No episódio #26 do Cena Rápida te convidamos a refletir sobre quem lucra com a exploração de trabalhadores que não conseguem ter uma vida além do trabalho.
No Jardim Colombo, bairro que pertence ao distrito do Butantã, na zona oeste de São Paulo, desde 2017, Ester Carro, 29, junto da comunidade local, mobiliza o Fazendinhando, criado com o intuito de gerar transformação territorial, cultural e socioambiental na região. Ester é arquiteta e urbanista, mora em Paraisópolis, mas nasceu e cresceu no bairro do Jardim Colombo.
Ester Carro é idealizadora do Instituto Fazendinhando, arquiteta, urbanista e cresceu no bairro Jardim Colombo. (Foto: arquivo do Instituto Fazendinhando)
“A primeira casa que eu morei ficava de frente para um lixão. Eu sentia o que é morar em frente a um lixão e não poder deixar a sua porta aberta, porque senão entraria ratos e baratas em casa, [tinha] o cheiro ruim também, mas ao mesmo tempo era um espaço [onde] a gente brincava”, relembra Ester.
Essa foi uma das vivências que deu origem ao primeiro projeto do Fazendinhando, que transformou um local que era utilizado para descarte de lixo, em um parque, que foi nomeado pelos moradores como Fazendinha.
“Antes de ser um lixão [aquela área] era como se fosse uma fazendinha, tinham vacas, bois, galinhas, plantações, o Seu Chico morava em frente, cuidava desse terreno, [que] era um dos poucos espaços livres que o Jardim Colombo possuía.”
Ester Carro, arquiteta e urbanista.
Ester conta que foi após Chico ficar doente e não ter mais condições de cuidar do local, que a área passou por um período de degradação. “As pessoas começaram a jogar muito lixo e esse lixão estava prejudicando a comunidade, porque a Fazendinha não é um espaço isolado, ela fica praticamente no centro do Jardim Colombo e com muitas casas no entorno”, comenta Ester, que ressalta o apoio e a inspiração em seu pai, Ivanildo de Oliveira, líder comunitário na região, ter sido fundamental na criação do projeto.
Transformação cultural e socioambiental
“Nós realizamos os primeiros mutirões em dezembro de 2017, foram mais de 40 caminhões que saíram com lixo do local, e quando foi julho de 2018, nós fizemos o primeiro festival de arte do Jardim Colombo, na Fazendinha”, conta Ester.
O parque Fazendinha, antes da mobilização social, era um local de descarte de lixo. (Foto: arquivo do Instituto Fazendinhando)
No início, parte da população desacreditava na transformação do lixão em parque. A urbanista relata que apenas o argumento ambiental não era o suficiente para acabar com o descarte de lixo inapropriado e foi através da cultura, da arte e das atividades contínuas no local, que a confiança e a mobilização dos moradores foi conquistada.
“O festival foi um sucesso, porque a gente conseguiu trabalhar com cultura e mostrar para comunidade: ‘olha aqui vai ser um lugar onde os seus filhos vão brincar’. A partir do momento que você tem essa transformação cultural no território, que você tem essa participação da comunidade, eles começam a olhar o espaço com outros olhos”, afirma Ester.
IV Festival Fazendinhando (Foto: arquivo do Instituto Fazendinhando)
Além dos festivais, o local recebe atividades mensais. “Tem rodas de conversa com as mulheres, têm distribuições, principalmente em datas comemorativas, temos oficinas, workshops, eventos, um playground, algo que não tinha dentro da comunidade”, pontua Ester. Ela menciona que os próprios moradores também realizam eventos no parque.
O parque Fazendinha foi inspirado no Parque Sitiê, um projeto que transformou um antigo lixão em uma área verde, na favela do Vidigal, no Rio de Janeiro, realizado por Mauro Quintanilha. Mauro, assim como outras pessoas de fora e da comunidade, estiveram presentes no início do projeto e participaram da construção e do processo de mobilização no território.
A Fazendinha se tornou uma área pública, pertencente à Secretaria de Habitação, no âmbito municipal, que atualmente é a responsável por concluir as obras do parque. “Nós conseguimos, depois de uma luta muito grande que [a Fazendinha] fosse inserida no projeto de urbanização”, conta Ester.
A urbanista coloca que as periferias, dentro de um contexto amplo, são invisibilizadas no planejamento urbano da cidade, assim como o bairro do Jardim Colombo era uma favela esquecida, e que esse cenário só mudou depois que o projeto repercutiu na mídia.
“Quando a gente fala nas áreas periféricas para criação de políticas públicas, o básico seria valorizar o que a comunidade faz de melhor. Muitas vezes essas políticas públicas são feitas sem ter essa interação.”
Ester Carro, arquiteta e urbanista.
Pertencimento e orgulho
Os moradores da região estão inseridos na construção e manutenção do parque, e compõem de forma ativa e de diferentes maneiras as atividades que acontecem no local.
“Na própria construção da Fazendinha, nós tivemos a participação dos moradores, principalmente de jovens, e temos, por exemplo, fotógrafos que são da comunidade, artistas, grafiteiros. Desde a coordenação de alguma ação que vai ser realizada no espaço, até a construção da Fazendinha [os moradores estão presentes]”, exemplifica Ester.
O parque Fazendinha é um dos poucos locais de lazer e área verde na região do Jardim Colombo. (Foto: arquivo do Instituto Fazendinhando)
As crianças são prioridade nas atividades realizadas no local. Segundo Ester, ter um espaço em que elas possam brincar é um dos impactos positivos que o parque proporciona na qualidade de vida na região. O local possui playground e área verde com espaço para correr.
Outros aspectos de melhorias apontados pela Ester se relacionam com a saúde pública, o acesso a uma área verde e de lazer. “Na parte cultural, acaba beneficiando a comunidade também, porque ela traz oportunidades para os talentos da comunidade”, comenta a urbanista.
Além de um espaço verde, com diversas atividades, a iniciativa trouxe outros reflexos na vida dos moradores da região. “Eu acho que pertencimento tem muito a ver com o orgulho, e o que vejo nos moradores é esse orgulho com a área”, analisa Ester.
Assista a entrevista completa em nosso canal no YouTube.
No Brasil, 11 milhões de mulheres criam seus filhos sozinhas, é o que aponta a pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, referente ao ano de 2022. Em entrevista ao Desenrola Aí, a antropóloga Alessandra Tavares explica como o abandono paterno pode ter impactos significativos no desenvolvimento emocional e social das crianças, além de gerar sobrecarga emocional e financeira para o responsável pelo cuidado da criança, geralmente as mães.
Enquanto muito se discute sobre a sobrecarga enfrentada pelas mulheres, há uma lacuna nas conversas e avanços sobre a responsabilidade, ou irresponsabilidade, dos homens na reprodução humana. Dados do Portal da Transparência da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) revelam que, em 2023, houve 172.450 casos de pais ausentes.
Biologicamente, os homens têm a capacidade de conceber com múltiplas parceiras em um curto espaço de tempo, enquanto as mulheres e pessoas que gestam levam até nove meses para uma única gestação. No entanto, historicamente, a responsabilidade pelo controle da natalidade e a prevenção da gravidez recai sobre as mulheres e pessoas que gestam.
“Quem deixou de falar com um amigo porque ele não assumiu o filho que teve? Ninguém. A gente vai para o samba, conversa e lida como se isso não fosse uma enorme violência. É um comportamento aceitável. O homem não tem prejuízo social por conta de não assumir os próprios filhos e todas as responsabilidades a ele associadas”.
Ressalta, Alessandra Tavares.
Antropóloga, Alessandra Tavares e a jornalista Thais Siqueira durante a gravação do Desenrola Aí. (Abril 2024). Foto: Pedro Oliveira.
Sobre o Desenrola Aí
O Desenrola Aí é um programa quinzenal que visa trocar ideias com especialistas da quebrada, descomplicando assuntos relevantes, que afetam o cotidiano da população negra e periférica e os direitos humanos, que é a essência da nossa existência e convivência enquanto sociedade. O programa do Desenrola Aí tem como realização o Desenrola e Não Me Enrola e Fluxo Imagens.
O calor extremo, notável principalmente em territórios vulnerabilizados, como as periferias, é evidenciado no relatório publicado pela Organização Meteorológica Mundial – a agência climática da ONU, ao apontar que 2023 foi o ano mais quente na Terra desde que se tem registro. Constatação vivenciada por diversas famílias que moram nas periferias, e que, em 2024, seguem sendo afetadas pelo calor intenso e pelas demais consequências da crise climática.
“Tem sido cada dia mais penoso. Nesse calor excessivo, eu não funciono muito bem, sinto muito cansaço. Limito o que eu tenho que fazer [na rua], [mas] eu tenho que sair para buscar as crianças [na escola], às 15h, que é um horário que está bem quente. Eu sempre achei horrível andar de guarda-chuva no calor, mas confesso que já faz parte do meu dia a dia.”
Fabiana Calixto, 42, moradora do bairro Vila Flávia, no distrito de São Mateus, zona leste de São Paulo.
O calor intenso tem afetado o bem-estar e a saúde da Fabiana e de sua família. (foto: Viviane Lima)
Além do cansaço, Fabiana, que é designer de sobrancelhas, menciona que o calor extremo também afeta a saúde de uma de suas filhas que tem bronquite. “O calor deixa ela bastante atacada, com a respiração lenta”, conta. Para amenizar a situação, Fabiana passa pano na casa durante o dia e antes de dormir para deixar o ambiente mais fresco e também para diminuir a quantidade de poeira que aumenta nos dias quentes.
O mal-estar em dias de alta temperatura também é uma queixa da Vera Lúcia dos Santos, 53, que mora na favela do Sapé, no distrito do Rio Pequeno, localizado na zona oeste de São Paulo. “Eu tenho muito calor devido a minha menopausa também. É um calor insuportável, toda hora tem que tomar banho”, compartilha.
Vera teve um infarto aos 38 anos e um AVC (Acidente Vascular Cerebral) em 2021, desde então o calor afeta diretamente a sua saúde. “Sinto um mal-estar, tontura, às vezes eu tenho umas pontadas no peito, mas é da rotina mesmo, né? Eu tomo remédio para pressão também. Estou me cuidando, vou fazendo o que eu posso, mas é difícil”, pontua.
Vera tem questões de saúde que se agravam quanto está calor, mas para garantir sua fonte de renda ela trabalha exposta ao sol. (foto: Viviane Lima)
A moradora do Sapé é líder comunitária e geralmente trabalha como cuidadora de idosos, mas está desempregada e para garantir a fonte de renda da família, no momento, atua no programa de distribuição de camisinhas, pelo SAE (Serviço de Assistência Especializada), do Butantã. Em ano eleitoral, ela também trabalha distribuindo panfletos nas ruas. Em ambos trabalhos Vera fica exposta ao sol para além dos horários indicados pelo Ministério da Saúde, que é antes das 10h e após às 16h.
“Eu saio de manhã e só chego lá para às 15h. E se [as camisinhas] acabar mais cedo, eu venho em casa e pego outra remessa, e aí tem dia que vou levantar, que quase não aguento”, comenta Vera.
Usar boné, carregar uma toalhinha para secar o rosto, passar protetor solar e beber bastante água é o que Vera faz nos dias quentes em que sai para trabalhar. “Aí eu vou parando nos bares. Eu sou bem tratada, tá? Eu ganho um suco, ganho água”, conta Vera.
Recomendações
Enquanto líder comunitária que tem acesso à realidade de outras pessoas da comunidade, Vera comenta que nem todo mundo que mora nas periferias consegue seguir as recomendações do Ministério da Saúde sobre os cuidados necessários nos dias de extremo calor, como manter hidratação, passar protetor solar, fazer refeições leves, entre outras.
“Nem todo mundo tem orientação”, afirma Vera, e acrescenta que nos territórios em que ela transita, os idosos são os mais afetados pela falta de orientação e de cuidados.
A líder comunitária conta que o consumo de alimentos in natura como frutas, verduras e legumes, sempre foi parte da rotina alimentar de sua família. “Eu crio os meus filhos e netos com bastante verdura, pode não ter a carne, mas verdura e legumes não faltam”, conta.
A dinâmica com relação à alimentação é semelhante na casa de Fabiana, que investe no consumo de alimentos saudáveis, como a laranja, para manter a família hidratada. “Bebemos bastante água, bastante suco também que eles gostam, eles têm acesso a algumas frutas”, menciona.
O hábito de usar protetor solar é algo recente para Fabiana, mas o cuidado com as crianças, com relação a isso, é maior. “Assim que pego as crianças na escola já passo protetor”, pontua Fabiana.
Filhos de Fabiana na escola. (foto: arquivo pessoal)Filhos de Fabiana na escola. (foto: arquivo pessoal)
A irritabilidade dos pequenos, de quatro e cinco anos, nos dias mais quentes, é perceptível, segundo a mãe. “A gente procura oferecer bastante água. [Quando] chega da escola já toma banho”, conta Fabiana. “Eu comprei uma piscina grande, aí a gente monta, enche e ela fica aí uns dois, três dias para poder aliviar [o calor] também”. A piscina é instalada no cômodo de entrada da casa, que também é o ambiente de trabalho da Fabiana.
Moradia
Fabiana concentra seu trabalho como designer de sobrancelhas e as demandas com as crianças em um mesmo espaço, na sua casa, que possui três cômodos. Ela menciona que o espaço é pequeno para que as crianças possam circular e brincar, e que a escola em tempo integral, das 7h às 15h, ajuda nesse sentido. Ao todo, moram quatro pessoas no local.
Fabiana mora com os três filhos em uma casa de três cômodos pequenos, onde também é o seu local de trabalho. (foto: Viviane Lima)
A casa de Fabiana tem poucas e pequenas janelas, o que dificulta a ventilação. A designer de sobrancelhas afirma que isso é comum nas periferias onde as casas são construídas sem orientação com relação à engenharia. “Quando tiver mais condições, eu quero colocar janelas maiores”, conta.
O apartamento em que Vera mora abriga quatro pessoas e é bem movimentado. A líder comunitária tem sete filhos e alguns netos costumam visitá-la e às vezes também dormem por lá. Vera menciona que nos dias de calor extremo, mesmo estando em casa, sente incômodo. “Você fica inquieta, a casa está cheia, é aquele calor. A gente usa muito ventilador, eu coloco aqui na sala e assim a gente vai se virando”, coloca.
O uso constante do ventilador é algo em comum entre as duas famílias, o que também reflete no gasto com energia elétrica. “O ventilador fica ligado 24 horas, a gente dorme com ventilador ligado, porque se não, parece que não tem ar”, comenta Fabiana.
Fabiana compartilha que o consumo, a conta de água e energia aumentaram na casa dela. “Há 5 anos, eu gastava em torno de R$ 50 por mês de luz e de água. Hoje em dia eu gasto R$ 150 por mês [em cada conta]”, diz.
Vera aponta que chega a pagar, por mês, uma média de R$ 250, tanto de água, como de energia elétrica. “E olha que eu não tenho muita coisa ligada. [O que] fica ligado é só a geladeira e a minha televisão”.
“Imagina você pagar uma conta de R$ 250 [a] R$ 270. Você já fica [pensando]: ‘poxa vida falta 20’. [Precisa] arrumar para ir lá e pagar”, comenta a líder comunitária sobre o aumento nas contas que interfere diretamente na vida financeira, principalmente na realidade de pessoas como Fabiana e Vera, que são trabalhadoras informais e sustentam sozinhas suas famílias.
Com o tema “Felicidade é a nossa revolução”, a 22ª edição do Festival Feira Preta reuniu pessoas de diferentes regiões de São Paulo, do Brasil e até de outros países, no Parque do Ibirapuera. Ao longo dos três dias de programação, o evento exaltou a potência que o sorriso negro carrega.
“Sabemos que a experiência de pessoas negras nessa sociedade é sim de luta, de resiliência, de busca e conquista de espaços que historicamente foram negados à população negra, e somos bastante lembrados por isso. Falar sobre a felicidade é dar visibilidade de que nossas vidas também são atravessadas e precisam ser atravessadas por essa dimensão, a felicidade”.
Adriana Barbosa, idealizadora do Festival Feira Preta.
A programação do Festival evidenciou a prosperidade no trabalho de pessoas negras no entretenimento, na moda, nas tecnologias, nas artes e em outras áreas, e mostrou que os fazeres das populações negras também se fortalecem através do ato de sorrir.
O que faz você sorrir?
Essa foi a pergunta feita para algumas pessoas que passaram pelo festival, e ela trouxe a tona diferentes tipos de felicidades que fazem parte dessa revolução do povo negro.
Josué Matos, 28, é de Salvador, mas mora em São Paulo, no bairro da Bela Vista, há 6 anos.
“A felicidade sou eu mesmo e também ver a evolução da galera preta, isso me faz sorrir bastante. [Eventos como o Festival Feira Preta] ajudam muito, porque a gente vê muita gente feliz e emocionada, por ter outras pessoas pretas também, diversas pessoas em um propósito só. Ver pessoas sorrindo faz outras pessoas sorrirem, é compartilhação de sorriso.”
Luiza Maria Paiva, 75, mora na zona sul de São Paulo, no bairro e distrito de Santo Amaro.
“A felicidade de estar bem na vida. Eu com 75 anos vivendo o que eu estou vivendo hoje, [e] o que eu estou vendo hoje, é muito bom. Estou vendo muito jovem feliz, vendo a minha raça levantando, tendo mais valor, apesar de ainda ter muito preconceito e racismo, a gente tem que lutar no dia a dia. [A felicidade faz parte dessa luta], cada dia é uma coisa que você conquista.”
Denise Ayres, 41, mora no bairro e distrito Vila Leopoldina, na zona oeste da cidade de São Paulo.
“O que me faz sorrir é poder acordar todo dia e ver o meu filho cada vez mais esperto, cada vez mais inteligente, cada vez mais argumentador, isso me deixa muito feliz.”
Denise conta que seu trabalho também é um motivo de felicidade. “Tenho a sorte de trabalhar só com coisas que eu gosto. As minhas profissões, porque eu não tenho só uma, elas me fazem feliz. A Fulelê, que está aqui na Feira Preta, me faz muito feliz, contar história para as crianças, poder apresentar para elas diversas literaturas que fazem parte da cultura afro-brasileira também tem me deixado muito feliz.”
Toalá Antônia Marques, 33, mora no bairro de Itaquera, que pertence ao distrito de Itaquera, na zona leste de São Paulo.
“O que me faz sorrir é o senso de justiça, é o meu filho, o meu progresso, o progresso da minha família, é eu estar perto de pessoas que eu amo. Eu sou mãe, então o que me faz sorrir é o Antônio. Porque o Antônio é a personificação do futuro que vai dar certo. Quando eu olho para ele e vejo ele vendo a minha história como referência, sei que o futuro [dele] vai ser melhor do que vivi até aqui.”
Cinthia Gomes, 44, mora no bairro Bela Vista, na cidade de Jundiaí, em São Paulo.
“Meu sorriso tem diversas fontes e expectativas. O que me faz sorrir hoje é o meu filho, por ele ser um deficiente intelectual e ele traz diversos sorrisos. Todo dia eu venço uma barreira, esse é o motivo do meu sorriso, cada vez que eu venço uma barreira meu sorriso abre, e eu sou uma pessoa extremamente sorridente.”
Júnior Matias, 30, mora no bairro Aricanduva, pertencente ao mesmo distrito, na zona leste de São Paulo.
“Muitas coisas [me fazem sorrir], a liberdade, minha família, música principalmente. Eu trabalho com música nas redes sociais. Então a possibilidade de participar de festivais que me possibilita conhecer novos artistas, principalmente artistas da comunidade negra, é muito importante e também me faz sorrir bastante.”
Quem tem direito de conhecer a própria história? Conversamos com o José Eduardo do Acervo da Laje, e com o Adriano Sousa, historiador e pesquisador no CPDOC Guaianas, sobre a memória enquanto meio para preservar narrativas e fortalecer identidades.
O episódio aponta a memória como possibilidade de continuidade da vida e o trabalho de iniciativas que documentam e valorizam a história dos territórios periféricos e seus moradores.
O Cena Rápida tem episódios novos quinzenalmente, sempre às quartas, disponivel gratuitamente no Google Podcasts, Spotify e Youtube.
O preço da feira aumentou. Essa afirmação é unânime, do feirante ao economista, e também entre quem frequenta a feira ou deixou de frequentar devido à alta nos valores das frutas, legumes e verduras. Cenário que tem afetado o bolso, mas também os hábitos de consumo de moradores das periferias de São Paulo.
“Muita coisa aumentou, antes era bom, mas agora não tem nada barato, é tudo caro. Então, eu prefiro pegar no sacolão durante a semana”, conta Joana Rodrigues, 60. Ela é aposentada e frequentava a feira do bairro onde mora, no Jardim Santo Eduardo, na cidade de Embu das Artes, desde 1994, quando se mudou para a região.
Joana Rodrigues deixou de frequentar a feira devido à alta dos preços. (Foto: Viviane Lima)
Joana conta que já teve situações em que foi a feira e acabou voltando para casa com o carrinho vazio. “Eu gostava de ir à feira todo domingo, porque as coisas estavam mais em conta e eu via várias pessoas conhecidas, a gente conversava. Eu sinto muita falta da feira”, compartilha a aposentada.
O Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) variou 3.4% no Brasil, entre março de 2023 e o mesmo mês de 2024, segundo o economista Luis Felipe Magalhães. O INPC mede a variação média dos preços de serviços e produtos de consumo das famílias com renda mensal que vai de 1 até 5 salários-mínimos.
“A gente está falando aqui de grupos sociais que são mais sensíveis às variações de preços, pois eles tendem a gastar a maior parte do seu rendimento médio mensal com itens básicos”, menciona Luis, que é professor de economia da Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisa temas relacionados à economia popular, local e territórios periféricos.
A macaxeira, que também é conhecida como mandioca, está entre os tubérculos que fazem parte da alimentação nas periferias. (Foto: Pedro Oliveira)
Segundo o economista, dentro dos 3.4% de aumento geral de preços pelo INPC, o item alimentação e bebidas subiu 2.82%, ou seja, estão abaixo da média. “Tubérculos, raízes e legumes tiveram um crescimento de 27,5%, muito acima da média nacional. Itens que entram decisivamente na composição da alimentação doméstica”, aponta.
E essas variações impactam diretamente na vida dos moradores, como na rotina do Alberto Batista, 55, que é torneiro mecânico e mora com a família no bairro Jardim Princesa, no distrito da Brasilândia, região norte de São Paulo. “Várias coisas eu já deixei de comprar por causa do valor. Sempre acontece, [para] um simples proletariado não tem como, né?”, diz o morador que frequenta as feiras localizadas no bairro Vista Alegre, Vila Terezinha e Estrada do Sabão, todas na Brasilândia.
Alberto Batista conta que vai à feira desde criança e que por isso segue esse hábito. (Foto: Viviane Lima)
Alberto menciona que nas feiras que frequenta, no mês de março de 2024, os preços que se destacaram foram do tomate, banana, laranja, cebola e das verduras em geral.
“As hortaliças e verduras cresceram bastante acima da média, o coentro subiu 40%, o repolho subiu 26.2% e o alface subiu 11.9%”, aponta Luís.
Maycon de Jesus, 33, é feirante há 17 anos e conta que vende frutas de todos os tipos. “Maçã, laranja e banana é o que tem muito na mesa dos brasileiros”. Ele é morador do bairro Jardim Marina, em Embu das Artes e atua em diferentes territórios da região com a venda das frutas.
O valor da banana se destacou no aumento dos preços dos alimentos in natura. (Foto: Pedro Oliveira)
Entre as frutas que comercializa, o feirante aponta que a banana foi a que mais teve elevação de preço, desde o início do ano de 2024. Segundo o feirante, o valor da laranja também aumentou. “Acho que R$10 em uma dúzia de laranja, tá bem alto, quando eu comecei na feira era R$2”, compara Maycon.
Maycon conta que entre os cinco dias que trabalha na feira, o mais movimentado é o domingo. “Todo mundo pede desconto, [o valor] é 10 por R$5 pedem para por 12. Pedem para tirar R$1”. Ele conta que geralmente atende aos pedidos dos clientes e que isso ajuda com que eles voltem.
Mesmo com as altas dos preços, Maycon avalia que a quantidade de pessoas que frequentam as feiras nas regiões em que trabalha, não mudou.
Ir às compras no horário da xepa, ou seja, próximo as últimas horas do final da feira, também é uma estratégia que alguns consumidores encontram para manter o consumo de alimentos in natura com valores acessíveis. “Só tem um detalhe: dependendo do que você for comprar a qualidade pode ser inferior também”, conta Alberto.
Impacto na alimentação
“O chuchu, se tá muito caro, você pode substituir por repolho, e é isso que eu faço”, comenta Joana sobre as adaptações que tem feito nas compras devido a variação dos preços. Já o Alberto tem uma dinâmica diferente. “Banana, laranja, alface independente do preço, se você se habituou a comer, você não abre mão”, diz o morador da Brasilândia.
Para Joana alguns alimentos também são insubstituíveis, como a cebola e o alho. “Esses dois pode estar caro do jeito que tiver, mesmo que eu compre [apenas] uma cabeça de alho e uma cebola, tem que ter”. A cebola subiu 36.4% e o alho 19.3%, o que é acima da média conforme o INPC anual apresentado pelo economista Luis.
Joana Rodrigues é moradora do bairro Jardim Santo Eduardo e frequenta os sacolões da região. (Foto: Viviane Lima)
Nem sempre as substituições são feitas de forma adequada, pois algumas famílias vão em busca apenas do que é mais barato e a qualidade alimentar acaba ficando em segundo plano.
“O impacto tende a ser negativo não só do ponto de vista financeiro, mas também nutricional e da saúde das famílias. Isso gera um cenário de mais pressão do SUS. Tudo isso tende a ser agravado com esse crescimento da inflação e de substituição de formas mais orgânicas e saudáveis de alimentação, por formas mais industrializadas e ultra processadas.”
Luis Felipe Magalhães, professor de economia da UFABC e pesquisador de temas relacionados à economia popular e local.
Outro método que Joana e Alberto passaram a utilizar foi diminuir a quantidade de itens comprados. “Quando o tomate está muito caro, eu pego um, dois no máximo, aí quando está mais barato, eu pego 1 kg”, exemplifica Joana.
Ela comenta que essa variação dos preços interfere na alimentação de sua família, pois antes ela comprava os alimentos in natura em maior quantidade. Por outro lado, Alberto diz que esse cenário não afetou a alimentação de sua família. “A gente faz um aperto em outras coisas para nessa questão da alimentação não ser afetado negativamente”, explica.
O valor da banana se destacou no aumento dos preços dos alimentos in natura. (Foto: Pedro Oliveira)
Os feirantes também tiveram que se adaptar às consequências da alta dos preços. “A gente levava 30 [a] 40 caixas de laranja, hoje são 10. Cortamos bastante, até porque não vende”, conta Maycon sobre as consequências também na vida financeira para quem trabalha comercializando os alimentos.
“O cenário não é nada positivo. Nós temos o crescimento que se abate preferencialmente em itens que têm maior peso no consumo das classes trabalhadoras, [isso] num contexto de baixo crescimento econômico, de dificuldade de geração de emprego e renda, e no elevado endividamento das famílias”, comenta Luis.
O economista também ressalta que as mudanças climáticas, os efeitos da pandemia da covid-19, a manutenção de conflitos internacionais, e as decisões políticas em aderir a uma política fiscal contracionista – que prioriza o controle de gastos, juntos, todos esses elementos interferem de algum modo na economia do Brasil. Diante disso, Luis menciona que é difícil ter uma previsão de mudança desse cenário.
Assista a entrevista completa em nosso canal no YouTube.
São muitos os desafios, responsabilidades e expectativas, enfrentadas por mães na busca constante pela almejada “maternidade sem culpa”. Em entrevista ao Desenrola Aí, a psicóloga Andrea Arruda destaca como o comportamento social alimenta a idealização da perfeição, desencadeando angústias, depressão pós-parto e culpa materna.
A especialista também destaca que enquanto sociedade é preciso pensar numa corresponsabilidade do cuidado, que não fique atrelado somente às mulheres e, principalmente as mães, que são responsabilizadas por todas as situações que envolve a criação e desenvolvimento do cuidado com os filhos.
Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) aponta que a depressão pós-parto atinge mais de 25% das mães no Brasil. Para a psicóloga, é importante reconhecer que muitas mulheres encaram a gestação e a maternidade sozinhas, uma realidade que se torna ainda mais desafiadora para mães negras e periféricas, devido às condições socioeconômicas, na qual, enfrentam sobrecarga de responsabilidades que deveriam ser compartilhadas de forma coletiva e igualitária.
“A depressão, ela tem várias causas, mas muitas vezes a mulher se sente sozinha, sente muito medo de não dar conta daquela criança que chegou e muitas vezes ela não vai dar mesmo. É um lugar muito dolorido o sentimento de não querer ver a criança, não querer amamentar. Então ela não está falando da criança, está falando dela mesma, de todos os impedimentos que ela tem nesse momento, na psicologia chama de round de contorno de acolhimento. Então,essa mulher está voltada para o seu próprio sofrimento e ela não tem um lugar para despejar isso”.
enfatiza a psicóloga, Andrea Arruda
Psicóloga, Andrea Arruda e a jornalista Thais Siqueira durante a gravação do Desenrola Aí. Março/2024. Foto: Pedro Oliveira.
Sobre o Desenrola Aí
O Desenrola Aí é um programa quinzenal que visa trocar ideias com especialistas da quebrada, descomplicando assuntos relevantes, que afetam o cotidiano da população negra e periférica e os direitos humanos, que é a essência da nossa existência e convivência enquanto sociedade. O programa do Desenrola Aí tem como realização o Desenrola e Não Me Enrola e Fluxo Imagens e conta com o apoio da 8ª edição da Lei de Fomento à Cultura da Periferia.
O crescimento de espaços voltados para o cuidado com cabelos crespos e cacheados nas periferias conectado ao autoconhecimento, tem sido um caminho de proteção para muitos moradores, é o que aponta a trancista Isabela Lopes.“É entender que a gente pode mudar sem maltratar o próprio cabelo, como uma proteção mesmo, porque é uma proteção para o nosso couro cabeludo, para o nosso ori e essa proteção nos traz uma autoestima”, coloca.
“[Alguns clientes] simplesmente vêm aqui falando, ‘eu não aguento mais o meu cabelo’, e [mudar] isso é algo que as tranças proporcionam”, afirma a trancista, sobre a relação entre a autoestima e identidade de jovens periféricos.
Isabela, que atende seus clientes no Jardim Santo Eduardo, em Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo, aponta que as tranças trazem uma conexão entre as pessoas negras e periféricas com as suas origens. “Para a gente é algo novo, mas na nossa família está aí há muito tempo”.
Evellyn Luz, 26 anos, mora em Itapecerica da Serra, região metropolitana de São Paulo, trabalha com marketing, e é cliente da Isabela. Para ela, mudar de cabelo também é um fortalecimento de sua identidade.
“Ao mudar e saber da história das tranças, como elas surgiram, além da minha autoestima física, fortalece os meus laços de ser uma mulher negra”, comenta Evellyn.
Isabela Lopes e Evellyn Luz (Foto: Viviane Lima)Realização da trança Box Braid (Foto: Viviane Lima)
Outro espaço também muito popular nas periferias de São Paulo, são as barbearias. Diego de Albuquerque, barbeiro, morador do bairro Jardim Canaã, em Osasco, possui uma barbearia no bairro desde 2017. A partir do contato com seus clientes, ele avalia como um corte de cabelo reflete nessa autoestima. “A vaidade subiu muito e isso põe a autoestima deles [clientes] lá em cima, porque um corte de cabelo muda muito a pessoa”. Ele completa: “[Na barbearia] vêm pessoas falando assim: ‘eu sou feio, mas o corte me ajuda’”, conta o barbeiro.
Diego aponta que alguns clientes vão à barbearia semanalmente para manter o corte em dia. Entre esses clientes está Gilmar de Souza, 49, que é professor de educação física e também mora no Jardim Canaã.
“Uma vez por semana eu estou aqui cortando o cabelo. Sempre foi o básico mesmo. Agora [que] comecei a cortar um pouco diferente”, diz Gilmar, que durante a maior parte da vida manteve o cabelo baixinho e atualmente aderiu ao chamado corte quadrado.
“A gente vem cortar mais mesmo pra dar uma mudada um pouquinho no visual e tentar ficar mais bonito”, diz Gilmar. O professor de educação física também menciona que a aparência e a identidade dele enquanto homem, negro e periférico dialoga com a sua personalidade.
Gilmar de Souza é adepto ao corte quadrado. (Foto: Viviane Lima)
“Padrão de imagem”
Peterson de Souza, 16, mora em Osasco, no bairro Jardim Canaã e frequenta a barbearia do Diego, mas diferente de seu pai, Gilmar, ele prefere o corte americano.
“Eu não ligo muito [para a] opinião dos outros, mas claro que os outros vão olhar. Ainda mais eu sendo da cor preta, né?”, coloca Peterson. Estudante do ensino médio, o jovem conta que já se sentiu discriminado pela sua aparência. “Já me seguiram em lojas de shopping”, comenta.
Peterson de Souza todo fim de ano, desde 2017, faz a descoloração que é conhecida como ‘nevou’. (Foto: Viviane Lima)
Gilmar aponta que sempre manteve o cuidado com a aparência e que isso influencia principalmente quando se trata de trabalho. “Eu sempre trabalhei por conta, mas hoje como eu trabalho com crianças e tem os pais também, então é sempre bom a gente estar ajeitado”, diz.
Diego avalia que determinados cortes de cabelo atraem abordagens policiais.
“A sociedade julga muito, essa é a verdade. Dependendo do corte de cabelo [que você tenha], você vai tomar enquadro.”
Diego de Albuquerque, barbeiro, morador do bairro Jardim Canaã, em Osasco.
“Da ponte para lá [fora das periferias], as tranças vão ser discriminadas. Eu trabalhei numa empresa que se eu chegasse com trança eu era discriminada, porque o meu chefe era branco”, cita Evellyn. “O que é lindo e belo para eles é o loiro e o liso”, coloca.
Isabela coloca que pessoas pretas e periféricas se sentirem confiantes se torna uma afronta em determinados lugares e contextos. “É um grande empoderamento e a galera [branca] sabe, porque eles se sentem com o ego ferido por não se encontrarem [nessa estética]. Essa galera branca se incomoda com a gente ter o nosso local, não se comparar, porque a gente cansou do olho azul e do cabelo liso”, afirma a trancista.
Tendências
“Eu sempre platinei. No final do ano isso já virou uma coisa minha, se eu não platinar eu não fico bem”, conta Peterson sobre uma das coisas que gosta de mudar no visual ao longo do ano. O jovem comenta que todos os seus amigos, em determinados períodos, também aderem ao platinado, que popularmente é chamado de nevou.
Peterson de Souza e Diego de Albuquerque (Foto: Viviane Lima)
“Final de ano para todo canto é o famoso ‘nevou’. Todo mundo quer passar o final de ano com o cabelo platinado, branquinho”, aponta Diego. Ele cita que essa tendência teve início por volta de 2016, e desde então se mantém nas periferias de São Paulo.
O barbeiro conta que atualmente os cortes de cabelos que são tendência nas periferias de São Paulo são: Taper Fade, que é mais chamado como corte americano, o corte Dimil, Selado, que é conhecido também como Boyzão, o Surfista e o corte Maraca.
Isabela comenta que atualmente as tendências nas tranças são: Box Braid, pela versatilidade, que é o modelo em que todas as tranças ficam soltas; as Nagôs, que são enraizadas; e a trança Fulani, que é uma nagô até a metade da cabeça e atrás as tranças são soltas.
Evellyn Luz com as tranças Box Braid finalizadas. (Foto Viviane Lima)
“A gente coloca uma personalidade em cima daquele cabelo”, comenta a trancista sobre os cabelos também representarem um modo de se expressar. “Eu acho que ser visto é algo que queremos”, finaliza.
Dignidade menstrual e pobreza menstrual são conceitos que tratam das condições de higiene e saúde de pessoas que menstruam, levando em conta as particularidades e necessidades que o período menstrual requer. Contudo, medidas de cuidado e saúde muitas vezes não são disponibilizadas para pessoas em situações de vulnerabilidade social.
“A dignidade menstrual é o acesso a cuidados de saúde em geral, para poder cuidar do próprio corpo e [isso inclui ter acesso aos] produtos ligados à menstruação”, explica Shisleni Macedo. Ela é especialista em estudos de gênero e teoria feminista, atua como pesquisadora no Centro de Estudos Periféricos (CEP) da Unifesp e trabalha em projetos ligados a justiça reprodutiva.
“A gente tem relatos de mulheres que durante a menstruação inserem miolo de pão no canal vaginal ou pedaços de colchão, que usam tecidos e nem sempre têm água o suficiente [ou] saneamento básico em suas casas para higienizar”, relata a pesquisadora, que também trabalha em uma organização de direitos sexuais reprodutivos.
“Pobreza menstrual é toda a dificuldade de pessoas que menstruam têm para acessar itens de higiene necessários para esse período, que não são apenas mulheres, adolescentes, meninas, mas também pessoas trans, não-binárias, intersexo, que tenham útero e menstruam. Uma pessoa que não consiga, por exemplo, ter absorventes suficientes para todo o seu período, está numa situação de pobreza menstrual”.
Shisleni, especialista em estudos de gênero e teoria feminista.
Situação pela qual a Taciana Lopes, 21, já passou. “Quando eu era adolescente deixei de ir pra escola por não ter absorvente ou [tinha que] racionar. Eu deixava de usar em casa e quando eu ia para a rua, ia com um pouco que eu tinha. Eu já tive que pedir para uma amiga. Na necessidade, em uma emergência, [são] outras mulheres que me ajudam a ter esse absorvente”, comenta a jovem bolsista do curso de Gestão Financeira, moradora do bairro Jardim Vera Cruz, em São Mateus, zona leste de São Paulo.
Taciana Lopes, antes do Pograma Dignidade Menstrual, tinha dificuldade de ter acesso suficiente aos absorventes. (Foto: Viviane Lima)
Segundo o relatório “Pobreza menstrual e a educação de meninas”, de 2021, realizado pelo movimento Livre para Menstruar, no Brasil, em torno de 60 milhões de mulheres menstruam, sendo que 15 milhões não têm acesso à água tratada e 1,5 milhão moram em casas sem banheiro. Ou seja, pode-se considerar que essas mulheres estão em situação de vulnerabilidade menstrual.
Políticas públicas
Atualmente, Taciana participa do Programa Dignidade Menstrual, uma política pública lançada em 2023, para viabilizar o acesso gratuito à absorventes para pessoas que menstruam, que tenham baixa renda ou estejam em vulnerabilidade social.
Para participar do programa é necessário ter entre 10 a 49 anos, estar inscrito no CadÚnico, emitir uma autorização pelo aplicativo Meu SUS Digital, ter renda mensal de até R$ 280, ou ser estudante da rede pública e ter baixa renda. Pessoas em situação de rua também têm direito a esse benefício. Os absorventes podem ser retirados em qualquer Farmácia Popular credenciada, mediante a apresentação de um documento de identidade com foto, CPF e a autorização do aplicativo.
“Eu não tenho renda, então ajuda bastante porque o valor de cada [pacote de] absorvente é muito gasto, e eu não tenho esse dinheiro todo mês. [Agora] eu não tenho essa questão de ficar contando os absorventes que eu vou usar para conseguir render para o próximo dia ou para o próximo ciclo”, conta Taciana. A jovem diz que conseguiu cumprir todas as etapas do programa e retirar os absorventes sem dificuldade.
Absorventes distribuídos pelo Programa Dignidade Menstrual. (Foto: Taciana Lopes)
No entanto, Shisleni aponta que essa não é a realidade da maioria das pessoas que precisam do auxílio. “É importante que existam políticas públicas, mas da maneira como está hoje, pela mediação de um aplicativo, elas não atingem as populações extremamente precárias”. A pesquisadora comenta que pessoas em extrema vulnerabilidade não têm acesso à internet ou até mesmo ao celular para realizar os passos necessários que viabilizam a distribuição gratuita pelo programa.
Giselda de Oliveira, 51, é agente comunitária de saúde e aponta que no caso de pessoas em situação de rua, falta até a documentação. Ela mora no bairro de Santo Onofre, e trabalha na UBS (Unidade Básica de Saúde) que tem o mesmo nome do bairro, localizado em Taboão da Serra, São Paulo.
Giselda de Oliveira é agente de saúde na Unidade Básica de Saúde Santo Onofre, no município de Taboão da Serra. (Foto: Viviane Lima)
“Quando você educa a população eles entendem. A gente tem que ir pra rua, ensinar, ter palestras”, comenta a agente de saúde. Para além de campanhas de informação e conscientização, ela aponta que é necessário realizar ações conjuntas envolvendo diferentes instituições e secretarias para auxiliar na questão da documentação, no acompanhamento e na implementação do programa para torná-lo efetivo e acessível para quem precisa. “A população não está informada sobre isso [o Programa Dignidade Menstrual]”, afirma Giselda.
A agente de saúde menciona que nenhuma informação ou instrução sobre o programa chegou para a UBS Santo Onofre. O fornecimento dos absorventes está acontecendo, mas segundo Giselda, não houve mobilização local para informar as pessoas e auxiliá-las na obtenção desses itens.
Taciana, Giselda e Shisleni mencionam a importância do programa, mas ressaltam que precisa de ajustes. Shisleni aponta que a situação das pessoas que menstruam que estão em cárcere também deveria ser considerada, para que elas pudessem ter acesso aos direitos básicos de higiene e saúde. A pesquisadora comenta que há muito a ser feito para as pessoas passarem pelo período menstrual de forma adequada.
“Que a gente consiga pensar políticas públicas de direitos trabalhistas [e] tenha mais licenças de saúde ligadas às questões de menstruação [para] pessoas que têm problemas que fazem com que a menstruação seja incapacitante”, coloca a pesquisadora.
Tabus discutidos por gerações
Sarah Lutosa, 15, é moradora do bairro Jardim Iracema, em Taboão da Serra, e afirma que a menstruação segue sendo um tabu mesmo para a sua geração, e que o acesso à higiene básica nos lugares públicos, como na escola, também é precário. Ela está no primeiro ano do ensino médio e estuda em escola pública.
“Tem papel higiênico, mas é muito raro ter sabonete e absorvente. Se você quiser um absorvente tem que ir na secretaria pedir e não é sempre que tem”, menciona Sarah.
Ainda segundo o relatório “Pobreza menstrual e a educação de meninas”, o Brasil tem cerca de 7,5 milhões de meninas que menstruam na escola, sendo que 90% delas frequentam a rede pública de ensino. A partir dos dados da Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar (PENSE) do IBGE de 2015, o relatório aponta que cerca de 3% das alunas estudam em escolas que não têm banheiro em condições de uso. Essa porcentagem equivale a 213 mil meninas, sendo dessas 65% negras.
A adolescente conta que já passou por uma emergência e teve que pedir absorvente na escola. “Foi horrível. Antes tinham disponibilizado os absorventes no banheiro, só que o pessoal que não tinha condição ia lá e pegava todos. Eles pararam de colocar por conta disso”, comenta.
Sarah Lutosa é estudante do ensino médio e faz uso de fitocosméticos para amenizar os incômodos menstruais. (Foto: Viviane Lima)
“Por ser um tabu, o pessoal tenta esconder que existe, então não tem muito suporte para isso”, aponta Sarah. “Acho que a menstruação tem que ser tratada da forma mais natural possível”, diz a adolescente sobre naturalizar a menstruação como caminho para que a população comece aprender a lidar melhor com o assunto.
Shislene coloca a educação sexual como outro ponto que poderia auxiliar na quebra dos tabus relacionados ao tema.
“Se a gente pudesse conversar nas escolas sobre educação sexual, uma das coisas que a gente iria discutir é sobre o ciclo menstrual. Como funciona, o que significa esse sangramento. Inclusive, para que jovens possam identificar quando tem alguma coisa que não está funcionando bem”.
Shisleni, especialista em estudos de gênero e teoria feminista.
A pesquisadora menciona que esse tipo de abordagem ajuda a ensinar sobre autocuidado, contribui com a identificação e prevenção de doenças, além de ser uma forma de detectar casos de vulnerabilidade social, e assim, auxiliar no combate à pobreza menstrual.
“[A educação sexual ajudaria a identificar] quando está tendo algum sintoma que não é esperado para aquela idade, para aquela fase do ciclo, e [para que] a gente possa identificar inclusive mais cedo problemas de saúde, por exemplo, ou acessar questões de precariedade mesmo, ligadas a isso”, finaliza a especialista sobre o papel também das escolas nesse processo.