Home Blog Page 2

Volta às aulas: como a restrição ao celular afeta alunos e professores nas periferias

0

“Foi bem desafiador não mexer no celular, porque é algo que hoje em dia a gente não consegue viver sem”, é assim que Larissa Gomes (nome fictício), 18, avalia os primeiros meses da Lei 15.100/25, que restringe o uso de aparelhos eletrônicos em espaços públicos e privados de educação. Moradora do bairro Jardim São Bernardo, no Grajaú, zona sul de São Paulo, ela estuda na Escola Estadual Afrânio de Oliveira, que faz parte da rede pública de ensino, localizada na mesma região em que mora.  

Em vigor desde o início do ano letivo de 2025, em São Paulo, a Lei Estadual 18.058/2024, detalha que, os estudantes que escolherem levar seus celulares para as escolas deverão deixá-los armazenados, sem acessá-los durante o período de permanência na unidade escolar. A exceção se dá para casos específicos, como uso para fins pedagógicos, alunos com deficiência ou alguma condição de saúde.

Larissa conta que as primeiras semanas foram bem rígidas, que não pegavam no celular, “mas hoje em dia alguns alunos nem ligam mais e, às vezes, mexem mesmo tendo a orientação dos professores de que não devem usar”, compartilha a estudante que cursa o terceiro ano do ensino médio, que se se coloca a favor da lei, mas diz não ter notado grandes diferenças em sala de aula. 

“Alguns alunos prestam mais atenção nas explicações dos conteúdos, mas já vi também muita gente pegando no celular mesmo não podendo. Até mesmo em determinadas aulas, o celular precisa ser usado para fazer a atividade, porque não tem aparelho suficiente na escola para todos”, conta ao citar pontos de contradição quando se trata do acesso a outros recursos de ensino na escola.

“Na minha escola tem laboratório e sala de informática, mas às vezes não tem tantos computadores e tablets para todos os alunos. Às vezes os professores deixam [de explicar a lição em classe] para poder passar lição com o uso da plataforma, como a ‘sala do futuro’.” 

Larissa Gomes da Silva, 18, estuda na Escola Estadual Afrânio de Oliveira e mora no Jardim São Bernardo, Grajaú, zona sul de São Paulo.

A estudante Rafaela Oliveira (nome fictício), 18, destaca situações parecidas com as mencionadas por Larissa, e fala sobre a necessidade de escuta dos alunos e professores ao se implementar uma lei que muda a dinâmica escolar. “Na minha escola não tem laboratório. A gente tem uma sala que não era para isso, mas agora eles modificaram e mesmo assim, não tem computadores para todo mundo”, conta Rafaela, que é aluna do terceiro ano de uma escola da rede pública estadual na região da Brasilândia, zona norte de São Paulo.

Dados do Censo Escolar de 2023 (INEP, 2024), sistematizados no estudo Panorama da qualidade da Internet nas escolas públicas brasileiras, revelam que o Brasil tem 137.208 escolas públicas, somando as redes estaduais e municipais. Desse total, 121.416, o que equivale a 89%, disseram ter acesso à internet para uso geral e 85.039 escolas, ou seja, 62% do total, declararam ter acesso à internet com foco na aprendizagem. 

Em 2023, 89% das escolas públicas informaram ter acesso à internet para uso geral, o que representa um aumento de 5% em relação a 2022. Porém, mesmo com esse avanço, a realidade ainda é desigual entre as regiões do país e dentro de cada região também existem diferenças. Na região Norte, por exemplo, há 20.279 escolas públicas — isso representa 14,8% do total de escolas públicas do Brasil. Dessas, 7.443 escolas, ou seja, 37%, disseram que não têm acesso à internet para uso geral. 

Muitos alunos e poucos equipamentos é uma das demandas da escola, segundo Rafaela. “Quando precisamos fazer a Prova Paulista ou alguma outra prova que a escola inteira precisa fazer, a internet cai, muita gente não consegue realizar, o sistema dá erro. Tudo isso deixa a vida, de nós, alunos do terceiro ano, os vestibulandos, muito mais difícil”, afirma a estudante que é contra a proibição do celular na escola, por considerar que existem outras formas de melhorar o ensino. 

“Eu trabalho, estudo e ainda sou vestibulanda. Não é meu caso, mas muitas pessoas que não têm acesso em casa [a internet], simplesmente não conseguem fazer [atividades]. Com o celular na sala de aula [como apoio] ficava muito mais fácil. A escola não tem computadores disponíveis para todo mundo, não tem tablets para todo mundo. Essa lei não foi pensada para as periferias”.

Rafaela Oliveira, 18, aluna da rede pública estadual de ensino e moradora da Brasilândia, zona norte de São Paulo. 

Ela diz que o uso de celular é um problema dentro das salas de aula, “mas quando você fala em escolas da periferia, aplicar uma lei dessa [em uma] escola que não tem infraestrutura para receber [demanda tecnológica necessária], [é outra história]”.

Aplicação em escolas públicas e privadas

Na Escola Estadual Vila Socialista, localizada na Vila Conceição, em Diadema, região metropolitana de São Paulo, o professor de ciências, Jordan Alves, esperou algum tempo para entender como seria essa nova dinâmica. “No primeiro momento, achei algo positivo e interessante, mas logo pensei que algumas tecnologias que [costumava utilizar], já não seriam mais viáveis em sala de aula, devido os alunos não estarem com o celular”, conta. 

Nos primeiros meses do ano, Jordan trabalhou em três escolas públicas. “Na Escola Socialista, onde estou atualmente, houve e há uma comunicação clara com as professoras em relação ao uso do celular. Inclusive, foi solicitado que nós mesmos, educadores, evitássemos o uso do aparelho. Os alunos realmente evitam. Quando precisam utilizar a orientação é que desçam e conversem com a coordenação”, explica ao contar que o formato tem funcionado na unidade, mas com ressalvas.

O professor diz que mesmo a lei permitindo o uso pedagógico do celular, na prática, isso quase não acontece em muitas escolas. “Eu até usava em atividades com jogos educativos, mas hoje evito para não gerar conflitos entre outros professores. Além disso, a estrutura das escolas públicas é muito precária. Onde [leciono], por exemplo, não há laboratório de ciências em funcionamento”, contextualiza Jordan.

“O Estado cobra resultados, mas ele mesmo não oferece condições e o professor da escola pública acaba tendo que fazer milagre, muitas vezes tirando do próprio bolso [para suprir as demandas].”

Jordan Alves, professor de ciências da rede pública estadual de ensino.

O educador, que atualmente dá aula para cinco turmas, com em média 30 alunos, conta que o perfil de cada estudante faz diferença na criação de procedimentos no ambiente escolar. Ele coloca como exemplo os alunos do 6° ano, que muitos não têm celular, diferente do ensino médio. 

“Atuei com turmas dessa etapa em outra escola da região e mesmo com a coordenação informando e colocando avisos nas salas, a maioria dos alunos simplesmente ignoravam. A sensação era de um ‘território sem lei’. Isso mostra como o apoio da coordenação é fundamental. Apesar de ser uma lei federal, cabe a cada escola organizar sua aplicação e, nesta escola [com estudantes mais velhos], parecia que a norma sequer existia”, relembra.

Mesmo com uma rotina em curso na escola em que atua no momento, Jordan pontua que a desigualdade educacional entre os modelos de ensino não pode ser ignorada. Ele cita sobre escolas públicas localizadas em áreas centrais e escolas particulares que contam com equipes pedagógicas maiores e uma outra infraestrutura tecnológica. 

Para ele, há limites a serem considerados. “Particularmente acho necessário que o aluno tenha o celular. Se ele precisa falar com o pai, com a mãe ou outro responsável, deve poder. Acredito sim que a comunicação rápida é essencial, ainda mais considerando o contexto de violência, de vulnerabilidade”, coloca.

Alguns quilômetros separam a escola Escola Estadual Vila Socialista do colégio particular que o Leandro Barros trabalha, localizada na região do Ipiranga, em São Paulo. Professor substituto de ciências, ele é responsável pelo laboratório da escola e conta que o uso de celular já era controlado antes da lei entrar em vigor. 

Desde que começou a trabalhar no colégio, em 2023, os celulares já eram recolhidos no início do período e só utilizados em momentos específicos, como no intervalo. Com a nova regra, o acesso ficou mais restrito, mas segundo ele, sem gerar grandes impactos na dinâmica do colégio.

“Os professores pedem, voluntariamente, que os alunos coloquem os celulares dentro da caixa. Depois disso, os inspetores recolhem as caixas e as levam até a biblioteca, onde ficam guardadas durante todo o período. Cerca de cinco a dez minutos antes do sinal de saída, os aparelhos são devolvidos’’, detalha Leandro. Na escola, os inspetores distribuem caixas de madeira com divisórias específicas para guardar os celulares. 

“Vejo que não são todos que guardam, mas eles também não mexem. Alguns não gostam de guardar na caixa, mas deixam na mochila, desligado. [Usam] por exemplo, só depois que bate o sinal, na hora da saída. Se algum estudante for visto utilizando o celular durante o intervalo, pode ser advertido”, frisa.

Leandro diz que a estrutura da escola favorece fazer valer a medida. “Por ser uma escola privada, trata-se de uma instituição com bastante estrutura. Temos o laboratório de ciências, que eu sou responsável, com experiências de química, física e biologia. São muitos os equipamentos”, conta o professor ao detalhar a estrutura que também inclui uma sala maker com notebooks, impressoras 3D e materiais para atividades de programação. Ele ressalta que quando os educadores precisam de algum material extra, é possível fazer a solicitação com antecedência e a escola providencia. 

No contexto do ensino, o professor acredita que a medida, por si só, não resolve o problema da distração dos alunos em sala. Ele relata que após o endurecimento da regra, alguns estudantes passaram a levar câmeras digitais. “Só que a câmera também é uma distração. E não só a câmera, mas também jogos de baralho, etc. Ou seja, os alunos vão procurar outras formas de se distrair”, analisa.

Para Leandro, o uso pedagógico dos aparelhos eletrônicos pode ser benéfico no lugar de uma proibição rígida. “Já aconteceu de eu estar ensinando sobre astronomia e me perguntarem qual que era a maior estrela já descoberta. Falei que não sabia, mas que a Sirius era maior que o Sol. E sugeri [uma pesquisa]. O aluno pesquisou e trouxe a informação para sala”, exemplifica. 

Nesse sentido, enquanto ferramenta de auxílio para o aprendizado, o celular ainda seria um caminho, segundo ele. “Se fosse nesse contexto de proibição, isso teria matado ali a curiosidade do aluno que quando chegasse em casa, provavelmente nem se lembraria mais disto”, pontua.

Memórias periféricas na história da cidade

0

Dia 13 de maio de 2017, data em que relembrávamos exatos 127 anos da falsa abolição da escravidão. Escrita na lei, mas até hoje vivida de forma relativa pelas populações negras brasileiras. Nesse dia, fui até o bairro Jardim Vila Carrão, o nosso Carrãozinho, distrito do São Rafael, Subprefeitura de São Mateus.


Havia combinado uma conversa com Maria Aparecida Trajano, Cida Preta, também conhecida como Tia Cida. Sento-me no sofá, ligo o celular para iniciar a gravação e ouço atentamente as histórias de uma mulher preta que chegou a São Mateus no fim dos anos de 1940, ainda com 7 anos.


Em um loteamento comercializado pela família italiana dos Beis (que dá nome à principal avenida do território), viu sua primeira casa, construída em mutirão por sua família e vizinhos, ser derrubada pelas chuvas e ventos.


Seu longo caminho de ônibus nas estradas de barro de São Mateus até os bondes na Celso Garcia e centro da cidade para chegar ao Jardins, para trabalhar como doméstica — trabalho que depois vira sua “casa”, por conta das longas distâncias, mas também da cultura racista dos patrões — é mais uma herança da falsa abolição que Tia Cida nos traz.


A fala é pausada, o olhar para o alto, expressão facial de quem saboreia o ato de rememorar. Entre o cigarro que acendia na boca do fogão e o café que preparava, contava da infância de seus filhos, as dificuldades nos estudos que só foram superadas pela filha. Os dois meninos sofriam racismo na escola, sua educação formal seria abreviada pela falsa abolição.


Desafios de uma mãe solo que teve seus filhos com um pintor de alegorias e espaços da escola Camisa Verde e Branco. Que foi embora e voltou ao final da vida para receber os últimos cuidados.


As andanças entre São Mateus, centro da cidade e Barra Funda, para comprar discos e instrumentos musicais, frequentar sambas e se formar enquanto cidadãos que rabiscavam a cidade ao ritmo do samba foram fundamentais para enfrentar as barreiras da falsa abolição. Marcelo Tocão se tornou exímio tocador de banjo.

Os sambas animaram o quintal de Tia Cida, a partir dos anos de 1970, sendo espaço de formação de uma turma que se espalhou por São Mateus como Berço do Samba de São Mateus, Bar do Timaia, Instituto do Samba de São Mateus, Samba da Maria Cursi, Escola de Samba Amizade Zona Leste. Quintal e sambas de resistência contra a violência do lado de fora, em plena Ditadura Civil-Militar, e na construção do viver na década de 1990 marcada pelo desemprego.

A sina do trabalho do cuidado, que a sociedade da falsa abolição destina às mulheres negras, fez com que Tia Cida estudasse serviço social, fosse designada pelo padre Franco, pároco da Igreja São Mateus Apóstolo, para mapear famílias que precisavam de cesta básica, crianças que precisavam de cuidado e espaços educacionais para que suas mães pudessem trabalhar.


Veio, então, a luta pelas creches, pelos postos de saúde, hospitais, com a participação no Movimento de Saúde da zona leste, do qual o Hospital São Mateus e postos de saúde conquistados com a volta da democracia ainda são testemunhas em São Mateus. A sina virou luta, formulação política, saberes de organização do povo e de direção de creches.


A essa altura, o impacto de ver a história da cidade que eu vivo, da periferia leste, de São Mateus sendo escrita oralmente, com todo o seu conteúdo de abolição real — em construção — já havia me colocado outra questão: que história é essa, que vem das leis, dos documentos de governo, que não respira, não se empolga, não luta e não vive a construção da nossa cidade?

Essas memórias periféricas, de nossas casas autoconstruídas, do básico arrancado do Estado com muita luta e articulação política e da criação artística, conseguimos captar aqui e agora, como movimento em constante transformação. É aquela que documentamos, narramos e vivemos mobilizando nossos sentidos: o escutar, o ver, tatear-caminhar.


Que o diga o grupo Opni, referência do graffiti na cidade nos últimos 20 anos, que, em 2021, colocou Tocão para tocar banjo para Tia Cida ao lado do grupo Berço do Samba de São Mateus, em uma linha do tempo de nosso samba, com todos os grupos e comunidades de samba que Tia Cida inspirou, incentivou e articulou e com quem gravou e divulgou seu álbum Tia Cida dos Terreiros em 2013.

Estão todos ali, nas paredes da galeria de graffiti a céu aberto da Vila Flávia, história monumentalizada por um dos elementos da cultura hip hop.
As memórias periféricas na história da cidade transbordam nas paredes, nas falas, no chão e no nosso olhar para o alto e ao redor. A história não é só escrita nos livros e não fala só de heróis ou heroínas.

Tia Cida é mulher, negritude, coletivo e movimento. Uma e, ao mesmo tempo, várias e vários, como são os movimentos, criadores, grupos, vielas, ladeiras, ocupações, conquistas, resistências e reexistências nas nossas periferias.

É dessas histórias, memórias e patrimônios (nossos monumentos e heranças) que tratarei nesta coluna que inicio hoje no Desenrola e Não Me Enrola.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

‘‘Nossa principal reivindicação ainda é o fim da morte de nossos filhos’’: mulheres negras marcham por reparação e bem viver

0

“Nós, mulheres negras, estamos trazendo nossa contribuição política e criticando este modelo de sociedade que não nos contempla.” É assim que Juliana Gonçalves, jornalista e pesquisadora apresenta sobre a luta das mulheres negras por reparação e bem viver, princípio norteador da 10° edição da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo.

Fundamentado no cuidado, nos princípios de coletividade, dignidade, justiça social e respeito à vida, o conceito de bem viver surge a partir da denúncia das inúmeras violências históricas que atravessam populações marginalizadas. A filosofia, que propõe caminhos de emancipação, é baseada nos conhecimentos dos povos tradicionais, especialmente dos povos andinos e indígenas que vivem há séculos na região da Cordilheira dos Andes, em países como Peru, Bolívia, Equador, Chile, Argentina e Colômbia.

‘‘Quando marchamos, celebramos a vida, o legado e a memória do que as mulheres negras construíram e constroem neste país até hoje. Ao mesmo tempo, a gente faz a crítica, porque infelizmente esse modelo de sociedade, político e econômico, não nos contempla. É um modelo racista e sexista, que não valoriza a abundância dos saberes que existem nos territórios” 

Juliana Gonçalves, jornalista, pesquisadora e integrante da Marcha das Mulheres Negras. 

Sob constantes ataques, a ativista reforça que a luta é por direitos e para que as mulheres negras possam viver com liberdade e dignidade, sobretudo, nas periferias. “A periferia é rica e está sendo massacrada com a falta de direitos básicos: escola, educação, cultura”, afirma. 

A jornalista ressalta que esse massacre acontece em diferentes frentes, como a forma hostil que a Prefeitura de São Paulo trata o movimento funk. “Também estamos sendo massacradas quando a gente não consegue diminuir os números de feminicídio de mulheres negras, sobretudo num momento em que a Lei Maria da Penha [vai completar quase] 20 anos. É um grande avanço, porém, ainda não chega para as mulheres negras”, coloca.

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, divulgado na véspera do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, apontam que 1.492 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2024, sendo que 63,6% delas são mulheres negras – soma de pretas e pardas. 

Nesse cenário, Juliana aponta que a construção do Bem Viver exige organização política e continuidade do que foi construído pelas que vieram antes.

“Tudo que [vivenciamos] está sendo sintetizado em nosso manifesto político, que aborda sobre o PL da Devastação, justiça climática em território urbano, etc. É o momento de apresentarmos para a sociedade tudo o que temos pensado e refletido dentro do movimento de mulheres negras. E isto não é um movimento isolado. Isso faz parte de um grande movimento nacional”, coloca a pesquisadora sobre algumas das estratégias do movimento.

No Brasil, em 2025, 18 cidades marcharam por reparação e bem viver. As mobilizações começaram no dia 19 de julho e seguiram até o dia 27. Desde a grande marcha de 2015, quando se juntaram para ocupar Brasília e reivindicar direitos, muita coisa mudou. No entanto, as conquistas não acompanharam todas as necessidades das mulheres negras. 

“Ainda observamos a nossa população encabeçando os índices de pobreza, vulnerabilidade, evasão escolar, violência. Em 2015, fomos o último movimento a ocupar Brasília antes do golpe da Dilma, e já havia um acampamento pedindo a volta da ditadura. O que vivemos hoje é reflexo de algo que vem sendo [articulado] há anos”, analisa Juliana, que cita sobre momentos complexos para a população, como a pandemia da covid, que só não foi pior, porque as mulheres negras estavam organizadas nos seus territórios.

“Essa democracia que está posta não contempla as mulheres negras, não contempla a população pobre, as empregadas domésticas, mulheres que estão na prostituição, as que estão nos terreiros. O que estamos fazendo é discutir e disputar que Estado a gente quer construir e quais bases de Estado são essas”, pontua.

“A nossa principal reivindicação ainda é pelo fim da morte de nossos filhos. Ainda é o fim do genocídio da população preta. A gente avançou, mas é preciso lutar. É preciso estar na rua contra essa política de morte que ainda é viva no país. Não é possível que fiquemos tranquilos sabendo que, a cada 23 minutos, morre um jovem negro, e que o índice de mortalidade de mulheres negras também aumentou. O encarceramento é outra ferramenta de controle e de manipulação.” 

Juliana Gonçalves, jornalista, pesquisadora e integrante da Marcha das Mulheres Negras. 

Criar estratégias a partir do Bem Viver, é sobre pensar outras formas de sobrevivência e existência em coletivo. É o que afirma Maria José Menezes, ao pontuar que não é possível discutir cidadania, se não for pela ótica das mulheres negras. 

Bióloga, ativista e uma das fundadoras da Marcha das Mulheres Negras, Maria José conta que representa uma geração de mulheres nordestinas que migraram para São Paulo em contexto de deslocamento forçado, na década de 1960, e destaca que o Estado sempre foi um articulador de violências contra a população negra.

“A luta das mulheres negras remonta à formação do que se chama de Brasil, desde o tráfico transatlântico. Nós nunca tivemos, de fato, uma cidadania real. Mesmo após o período escravagista, a população negra, sobretudo as mulheres, segue até os dias atuais enfrentando a precariedade e a violência do Estado.” 

Maria José Menezes, bióloga, ativista e uma das fundadoras da Marcha das Mulheres Negras. 

Em 2025, o movimento se organiza para realizar a 2° Marcha Nacional das Mulheres Negras, em Brasília, 10 anos após a primeira mobilização que marca a atuação das mulheres por justiça racial e de gênero no país. 

“Em 2015, mobilizamos cerca de 50 mil mulheres para Brasília. Foi a nossa força, a nossa voz de dizer: Chega! Nós queremos moradia, cidadania, dignidade, saúde, queremos viver, pois somos o setor da sociedade que, de fato, paga os impostos e que mantém o Estado brasileiro’’ relembra Maria José.

A ativista ressalta que não é mais possível viver em um país com tantas violações. “Exigimos que os nossos direitos sejam respeitados. Exigimos ser tratadas com cidadania, exigimos moradia, exigimos o direito de permanecer em nossos territórios dizendo não ao despejo e a tantas outras opressões”. Ela reforça a importância de uma sociedade que pensa e atua a partir da coletividade.

“Somos mulheres cis, mulheres trans, bissexuais, lésbicas, mulheres com deficiência, trabalhadoras domésticas, mães, donas de casa, etc, todas lutando por algo em comum: o Bem Viver’’, finaliza.


Capoeira na quebrada: ginga que educa e fortalece

0

Estamos nas férias escolares da criançada, momento de lazer e esporte é o que fortalece para se divertir nesse período. Muitas mães optam por colocar as crianças para praticar algum esporte, ocupando esse tempo com algo produtivo e agregador. 

Na quebrada, a capoeira é um espaço de identidade, disciplina e autocuidado para crianças e jovens. Nas rodas, meninos e meninas aprendem a importância do corpo, do respeito ao outro e de suas próprias raízes.

Mestres e Mestras de capoeira, que começaram muitas vezes pequenos nesses mesmo espaços, hoje se dedicam a fortalecer a molecada com valores que vão além da ginga. É ali que se cria confiança, senso de comunidade, coragem para enfrentar os desafios diários e orgulho de ser quem se é.

A capoeira ensina que ninguém joga sozinho, é um progresso coletivo. Cada queda também é aprendizado, cada canto é resistência, cada roda é proteção. 

É bonito ver como, em um mundo que insiste em excluir corpos periféricos, a capoeira reafirma: aqui você é bem-vindo, aqui você é forte, aqui você faz parte de uma história que começou muito antes de você e vai continuar depois.

No batuque e nas gingas dos corpos é um chamado para cuidar do outro, para se mover sem medo e para dizer aos pequenos e pequenas: vocês tem força, tem história, vocês têm lugar. A capoeira fortalece a quebrada, ensina que ninguém vence sozinho, que toda roda só existe porque tem gente disposta a apoiar. E é isso que faz a quebrada seguir firme, a certeza de que juntos somos mais fortes.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

“Sou uma cidadã que tem o direito de cobrar’’: caminhos para participação social e incidência política a partir das periferias

0

Para uma grande parcela da população brasileira, a política ainda parece algo distante. Dados do levantamento DataSenado indicam que, em 2012, 63% dos brasileiros demonstravam algum interesse em política, número que caiu para 53% em 2022. De acordo com o estudo, 18% dos entrevistados dizem ter um alto interesse, enquanto 35% afirmam ter um interesse médio. Quando questionados sobre os motivos do desinteresse, apontaram a falta de conhecimento sobre o sistema político relacionado a falhas no ensino que não consegue explicar sobre o tema.

Outro fator citado foi o sentimento de desilusão com a política institucional, além da percepção de que os políticos preferem manter a população afastada e desinformada sobre como funcionam os processos. 

Lara Pascom, RP (Relações Públicas) e especialista em metodologias para colaboração, explica que esse cenário não é fruto de um único problema, mas de um conjunto de fatores que agravam esse afastamento, sobretudo da população periférica, dessa participação cidadã. 

“Estamos passando por uma espécie de solidão [coletiva], mesmo com tanta conectividade. Com as redes sociais [geramos e escolhemos a informação que queremos acessar] e depois ficamos nós mesmos sobrecarregados dessa mesma informação. [Além disso], a nossa educação política é insuficiente, a gente não aprende na escola sobre política, finanças públicas que são temas que permeiam toda a nossa vida’’, destaca.

Lara detalha que, mesmo nas esferas em que a população poderia interferir, como na discussão das leis orçamentárias, outro obstáculo é a linguagem técnica e a burocracia que distancia ainda mais os cidadãos da possibilidade de fiscalizar e cobrar o poder público. “Quando falamos de PPA, LDO, LOA, ninguém sabe o que é. E os documentos são cifrados, difíceis de entender, o que impede que a população acompanhe o destino do dinheiro público”, exemplifica.

A especialista aponta diferentes tipos e níveis de participação social. ‘‘O primeiro é a ação direta da comunidade, como mutirões e melhorias locais, quando a comunidade se junta para [reformar] uma lixeira. O segundo é o controle social, ou seja, a fiscalização do governo pela população, que acontece quando as pessoas buscam informações em portais de transparência, fazem denúncias ou usam a Lei de Acesso à Informação (LAI)”, diz Lara, que ainda cita sobre incidência política a partir da organização coletiva para pressionar mudanças.

Segundo ela, os conselhos municipais também são espaços fundamentais. ‘‘Os conselhos são temáticos, como os de meio ambiente, saúde, educação, diversidade sexual, e podem ter poder deliberativo ou consultivo. Além disso, eles podem administrar fundos específicos, o que é uma forma importante de participação social e controle’’, explica.

“Temos o direito de saber. A lei garante isso. O primeiro passo é identificar o que te incomoda, o que te causa indignação. Depois disso, buscar entender as causas e usar os mecanismos disponíveis para cobrar respostas do governo. Navegue pelo site da prefeitura da sua cidade, faça perguntas, cobre respostas”.

Lara Pascom, especialista em políticas públicas, práticas autônomas e colaborativas.

“O controle social é um exercício importante que fortalece a democracia e qualifica a participação política”, diz Lara ao destacar que o E-OUV (Sistema de Ouvidorias do Poder Executivo Federal) é uma das formas de exercer a participação social e colaborar com a gestão pública. Este é um canal de comunicação, onde a população pode interagir com a prefeitura local para fazer denúncias, elogios, sugestões e/ou reclamações, contribuindo para a melhoria dos serviços da cidade. 

Como acompanhar os mandatos da sua cidade?       : “Sou uma cidadã que tem o direito de cobrar’’: caminhos para participação social e incidência política a partir das periferias

Participação social no cotidiano

Mesmo diante de um sistema que considera falho, Wandy Uchôa, 26, estudante de direito, ativista e moradora de Diadema, município da Região Metropolitana de São Paulo, integra a Comissão da Diversidade da OAB Diadema e acredita que a participação social é essencial. Para ela, entender os próprios direitos e o funcionamento dos órgãos públicos é o primeiro passo para dialogar com as decisões que impactam a vida das pessoas, seja no nível municipal, estadual ou federal. 

Sua trajetória de engajamento político-social iniciou a partir de uma violência que sofreu em um dos serviços públicos de saúde. “[Passei por] transfobia no Quarteirão da Saúde, pronto-socorro em Diadema. A médica se recusou a me chamar pelo nome social. Quando gravei um vídeo expondo o caso, viralizou”, conta.

Wandy conta que a partir daí entendeu que deveria ser ouvida de alguma maneira. “Na minha cabeça, quando eu transicionei, achei que nunca mais seria ouvida. Eu enterrei meus sonhos. Inclusive, costumava falar que a partir do dia que tomasse meu primeiro comprimido de hormônio, estaria assinando meu atestado de solidão para o resto da vida. Porém, ver que fui ouvida, me deu forças”, conta a estudante, que após essa situação articulou uma reunião com o diretor do hospital. 

A estudante acompanha audiências públicas e é representante oficial da sociedade civil na Comissão da Diversidade da OAB Diadema, para ampliar a inclusão, representatividade e o acesso à justiça. Ela também utiliza as redes sociais para mobilizar a população para participar em pautas de interesse do município. 

A vivência familiar também é um dos marcos nessa mobilização de Wandy. “Minha mãe sempre foi obcecada por política. Eu [percebi ela] sendo ainda mais ativa quando a nossa casa caiu, porque a gente morava num terreno que ficava em uma área congelada (área isolada ao acesso devido à movimentação de solo ou risco de deslizamento de terra). Nisso veio uma chuva e levou nossa casa. [Ver minha mãe lutando], acabou me inspirando e despertou algo dentro de mim”, compartilha.

Wandy pontua sobre um desinteresse da população em fiscalizar políticos que ocupam cargos há muitos anos, mas associa como sintoma de um problema estrutural que afasta as pessoas dos debates públicos. 

“O que me faz ter mais vontade de estar perto é porque eu vejo o quão triste é a situação das pessoas, principalmente na periferia. Temos vereadores em Diadema que já estão no cargo há 20 anos e simplesmente se você sentar com qualquer pessoa da periferia e perguntar: ‘Por que você vota nele?’, não sabe dizer’’, coloca.

‘‘[Culturalmente] temos muitos conteúdos disponíveis que nos estimulam a imaginar o fim do mundo, mas poucos que incentivam a gente a imaginar futuros desejáveis. [A política] vai ficando distante. Isso influencia na motivação das pessoas, parecendo quase impossível mudá-la, mas dá.’’ 

Lara Pascom, especialista em políticas públicas, práticas autônomas e colaborativas.

Wandy busca pautar demandas relacionadas à saúde, educação, cultura, lazer, moradia, segurança pública, transporte e população LGBTQIAPN+. “Sempre que saía de reuniões da ONG da Diversidade de Diadema, quando falava da pauta trans, me diziam: ‘A gente tá engatinhando’. Mas esse ‘aos poucos’ nunca vira nada e a gente tem pressa. O movimento LGBT+ foi iniciado por pessoas trans, mas nós, as mesmas pessoas trans fomos deixadas de lado”, conta sobre uma de suas mobilizações.

Para a estudante, a incidência política precisa acontecer de forma coletiva, mas se questiona sobre como organizar demandas de interesse da população para pensar em estratégias que direcionam políticas públicas. “Sou uma cidadã comum, como qualquer outra pessoa e que tem o direito de cobrar, seja qual for o governo’’, finaliza.

Assessora de incidência política comenta desafios de participação social nas periferias após eleições: “Sou uma cidadã que tem o direito de cobrar’’: caminhos para participação social e incidência política a partir das periferias

De quem é a escola? 10 anos da luta secundarista

0

Em 2015, estudantes ocuparam escolas e ruas para dizer não a “reorganização” proposta por Geraldo Alckmin em São Paulo. A reorganização resultaria no fechamento de 94 escolas, o que mudaria a vida escolar de mais de 300 mil estudantes e cerca de 74 mil professores.

À nível nacional tínhamos duas políticas de cortes que afetariam a educação naquele momento. A primeira era a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que visava limitar gastos em diferentes áreas, incluindo a educação. Já a segunda era a PEC do Teto (PEC 55) que alteraria a Constituição Federal (1988) e congelaria por 20 anos recursos públicos.

A partir dessas movimentações aconteceram duas mobilizações estudantis consecutivas, sendo a primeira em 2015 e a segunda em 2016. Dessa forma, o movimento político dos estudantes protagonizou uma luta importante, ganhando até músicas como “O trono do estudar” produzida em união de diversos cantores. O movimento de 2016, intitulado como “Primavera Secundarista”, se tornou um marco e teve “vitória” naquele ano. 

Em 2013, as jornadas de junho já haviam sido um marco político e social, a organização “livre” e com uma descentralização em relação a partidos políticos já chamava atenção. Além disso, a luta do Movimento Passe Livre tomou não somente as ruas do centro da cidade de São Paulo, como também as periferias com o pedido de que os trabalhadores fossem para rua. 

Nessa época, eu tinha 12 anos e participei dos protestos do MPL na Zona Sul, irei deixar uma foto do dia que alguns integrantes do movimento vieram dormir na Associação que meu pai preside.

Nessa época, eu tinha 12 anos e participei dos protestos do MPL na Zona Sul, irei deixar uma foto do dia que alguns integrantes do movimento vieram dormir na Associação que meu pai preside. Fotos, arquivo pessoal

Em 2015 os estudantes se posicionaram para afirmar que a escola era deles, um lugar diferente da narrativa receptiva, o clamor era pelo coletivo. A Prof. Dra. Flavia Ginzel em sua tese de doutorado intitulada A insurgência da crítica e a crítica da insurgência:

resistência, autonomia e desafios pós-ocupações secundaristas (2024), a pesquisa realizada com jovens “ocupas” após as ocupações em Sorocaba traz importantes contribuições a partir das experiências narradas por esses jovens, não só reafirma questões trazidas por outros estudos como o olhar para a escola como um lugar de reconhecimento, pertencimento, de trocas, saberes e diversidades, mas também da construção de olhar desses jovens para a política e a decisão de se organizarem contra essas políticas incisivas do Estado.

Partindo desses olhares e da minha experiência pessoal nas lutas é que decidi construir este texto para perguntar: de quem é a escola? 

 Ao observamos os movimentos após a Primavera Secundarista, a  nível nacional e estadual as políticas que nos assustaram foram reformuladas, ampliadas e aprovadas. Pensando nisso, decidi retomar esse recorte temporal, pois estamos vivendo em um momento desafiador para a educação, especialmente à nível estadual.

A partir de 2017 as políticas voltadas a educação focaram em fomentar a ideia de que o novo modelo seria mais compatível com o “mercado” ou com formar o estudante dentro da área de interesse, o NEM (Novo Ensino Médio), não somente ampliou as cargas horárias, como flexibilizou o currículo e propôs os itinerários formativos.

O projeto é interessante, a discussão sobre ele precisa de um aprofundamento que uma coluna não dará conta de realizar, mas é fato que entre o projeto e a prática existe um vão, um vão que também é composto pelo o que é oferecido de recursos a escola e comunidade escolar como um todo.

Para além dos debates sobre recursos, essas políticas excluem a realidade do estudante periférico que precisa trabalhar, por exemplo. Também não pensam melhores condições de trabalho docente.

Uma complementa a outra, mas não parecem contínuas, à medida que não pensamos que um estudante que trabalha não vai optar por estar na escola somente por receber 200$ do Pé de Meia, e se temos que implementar esse tipo de política é porque algo não está compatível com o ideal colocado primordialmente. 

A escola vira um objeto, perde a sua essencialidade, aprender se torna algo pautado não no conhecimento, mas no marketing desse conhecimento. A escola é de quem? Se em 2015, os estudantes gritavam nas ruas que a escola precisava se manter, melhorar e pediam por melhores ambientes para toda a comunidade escolar, o que nos restou?

Qual estudante permanece nessa escola? Para é essa escola?

Não digo aqui que tenhamos que realizar a crítica de maneira extrema, mas no mínimo precisaríamos revisar, à nível nacional, quais caminhos estamos direcionando para a educação em nível médio no Brasil. Já à nível estadual, não é preciso uma lupa para enxergar que todas as políticas caminham para a iniciativa privada, e não possuem tempo e nem espaço para debate. 

À qual interesse serve uma escola cívico-militar? De quem e para quem é essa escola? Não digo que não tenham estudantes que gostem da ideia, mas qual projeto de escola é esse? O que muda e melhora no currículo? S e o foco é o aluno e as trajetórias desses estudantes, quais conhecimentos e recursos essa escola oferece?

Como disse, esse texto não dá conta de responder, mas relembrei a lutar para que possamos refletir o que ficou para nós após esses 10 anos? O que podemos observar nas políticas de educação agora? De quem é essa escola?

Se em 2015 e 2016, lotamos as ruas para afirmar que as escolas eram nossas e que não aceitaríamos políticas de destruição, quais realidades temos agora? O projeto de escola que está vigente pertence a quais interesses? E quais alunos são contemplados por esse projeto? 

Segundo dados publicados em uma nota técnica em 2023 pela Rede Escola Pública e Universidade (REPU):

Os dados analisados permitem afirmar que a expansão do tempo integral no ensino médio não ampliou as matrículas nesta etapa de ensino nas redes estaduais em todo o país. Ao contrário, o que vimos, desde 2008, é uma perda de quase 830 mil matrículas, sendo a redução das matrículas noturnas uma das principais variáveis que impactaram esta redução. Vale ressaltar que tal perda de matrículas tem sido contínua desde 2008, indicando que a aprovação das legislações, programas e políticas com foco no ensino médio e na expansão do tempo integral no referido período não produziram os efeitos de expansão da oferta e, muito menos, de universalização desta etapa da educação básica”.

A partir da perspectiva que segui nesse texto, essa é uma escola para marketing, é um projeto de escola que não pensa no conhecimento e nem nas trajetórias reais dos alunos e tampouco se interessa pelos territórios onde serão desenvolvidos os projetos. Há uma padronização da educação e uma política excludente em relação à jovens periféricos e suas trajetórias. 

Após 10 anos, qual escola temos?

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

As consequências sociais e ambientais das barragens #35

0

Desde 2019, após a morte de 272 pessoas devido ao rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais, o debate sobre essas construções se intensificou. Conversamos com a bióloga e doutoranda em geociências Maíra Silva, e com a Joyce Silva, militante do Movimento Atingidos por Barragens, sobre o histórico de barragens construídas ao longo dos anos, o que representam para o meio ambiente e para as populações desses territórios.

As especialistas abordam o aspecto racial e social que envolve a autorização dessas construções, que são estruturas criadas para conter ou reservar substâncias, sejam líquidas ou sólidas, e podem ser destinadas para abastecimento de água, mineração, hidrelétrica e outros.

Dialogando ao Som do Vinil: encontros musicais unem memória e negritude na zona leste de SP

0

Uma agulha encosta no vinil e faz brotar memória, afeto e resistência. Desde 2019, a música tem sido a junção de diferentes pessoas que se reúnem todo último domingo do mês, no espaço Canto de Cultura Negra, localizado no bairro Guilhermina Esperança, na zona leste de São Paulo. Criado pelo Tiganá Macedo, o projeto Dialogando ao Som do Vinil apresenta a música como ferramenta de transformação, através da audição de discos de samba produzidos por artistas negros. 

O projeto nasce da vivência de Tiganá, que cresceu em uma casa onde a música sempre teve um papel sagrado. As rodas nos quintais, os almoços de domingo, as conversas atravessadas por canções, tudo isso moldou seu olhar sobre o mundo.

“Lá em casa era muita música”, lembra Tiganá. “As casas se abriam, os vizinhos juntavam as famílias, preparavam o almoço e passavam o dia inteiro em resenha. Eu brincava com galho, fazia carrinho, mas tava sempre ouvindo tudo.”

Inspirado pelos pais, especialmente por sua mãe, Tiganá transformou essas lembranças em potência coletiva. Com o projeto, por meio do vinil, ele resgata histórias e promove encontros onde política, cultura, arte e ancestralidade caminham juntas.

Antes de qualquer samba, veio o exemplo. Os pais de Tiganá seguem afinando o tom da vida, firmeza, afeto e presença. Fotos João Santos

“Dialogando ao Som do Vinil é um evento feito por pessoas negras e para pessoas negras, e tem como proposta usar a música como um canal para refletir sobre identidade, negritude e pertencimento”, diz Tiganá.

A cada edição, um artista é escolhido para ser celebrado. No encontro do mês de junho, a homenageada foi Alcione.

Durante a audição, Tiganá propõe uma escuta atenta e crítica. O artista costura as músicas com histórias, vivências pessoais e reflexões sobre o papel social da arte. Para ele, canções como “Pedrinha da Cor” ou “A Loba” carregam mais do que melodia: são manifestações da força ancestral das mulheres negras que nos precederam.

“A música sempre esteve presente na minha construção como homem negro. Não só como entretenimento, mas como ferramenta política, social e espiritual. Alcione é uma dessas artistas que representam tudo isso”, afirma Tiganá.

De acordo com Tiganá, as escolhas dos artistas acontecem por meio de trocas: “eu procuro dialogar com pessoas que já fazem parte da caminhada de anos e que tem visões políticas progressivas e diáspora. E com pessoas mais novas para que eu dialogue com os tempos de hoje para não perder o fundamento e manter a chama acesa do agora”, diz o educador. 

Música, memória e política

Com uma curadoria delicada, ele debate política e ancestralidade, como quando se fala sobre conscientização racial, na música Pedrinha da Cor do álbum da Cor do Brasil em que Alcione fala sobre momentos de racismo em sofreu, mas também abre ali o diálogo e exalta a beleza negra e a diversidade da cultura afro brasileira.

É nesse momento que Tiganá mostra a música pra quem tá nas audições e convida todo mundo a contar como ela bate, onde pega, o que mexe por dentro.

Entre as memórias que atravessam sua relação com a música, ele relembra com carinho o primeiro grupo que marcou sua trajetória: o Fundo de Quintal. “Foi ali que tudo começou. Eu pegava o balde e tentava imitar o repique de mão, meu irmão pegava a frigideira como se fosse pandeiro. A gente ficava horas trancado no quarto, tocando, ouvindo rádio.”

A Transcontinental FM era uma referência. “Tinha um horário só de samba. A gente apertava o play no rack e ficava ouvindo em silêncio, tentando decifrar quem era o grupo, o nome da música, os detalhes. Foi ali, com uns 12 anos, que muita coisa se formou em mim.”

Mas as referências não estavam apenas no rádio. Elas vinham do quintal da avó, onde todo domingo era dia de encontro, afeto e tambor. “Minha avó sentava no quintal cercada de planta, meu tio Vadu pegava o balde e começava a tocar samba. Aí vinha minha mãe, meu tio Nezinho e virava festa. Era emoção, alegria, mas também tinha dor ali. E era essa mistura que ensinava”, relembra.

O Dialogando ao Som do Vinil é mais do que uma roda de conversa com música: é um espaço de reconexão com as raízes, de valorização da cultura negra e de reafirmação da identidade. Em um país que ainda apaga memórias e vozes negras, iniciativas como essa são respiros de resistência e cuidado. 

Gaza sangra. Mas é o corpo branco que comove

0

A presença de Greta Thunberg garantiu mais cobertura midiática à interceptação do barco com comida para Gaza, em águas internacionais, do que as fotos de crianças chorando de fome.

Eu tinha planejado outro tema neste mês, mas a vida se impõe, e decidi falar sobre Gaza. Não vou fazer aqui um histórico da ocupação da Palestina, você me desculpe,  mas sugiro esta série de cinco vídeos da Sabrina Fernandes, que explica esse processo muito melhor do que eu conseguiria.

Imagino que você também esteja vivendo um bombardeio de informações sobre isso. Se não estiver, talvez precise ajustar seu algoritmo.

Vamos ao resumo: Um barco, com um grupo de doze ativistas de diversos países, entre eles, um brasileiro, tentou chegar à Palestina por via marítima, levando uma quantidade simbólica de alimentos, incluindo leite em pó e fórmula para bebês.


Mas foi interceptado, em águas internacionais, pelo exército israelense antes de chegar a Gaza. O grupo queria mostrar, ao vivo, que Israel está usando a fome e a sede como armas de guerra, ao impedir qualquer ajuda humanitária de chegar ao povo palestino.

Diante da magnitude do que acontece na Palestina desde a ocupação, há mais de 70 anos, e que se agravou desde 2023, a gente poderia achar que o “Iate de Selfies”, como o nomeou o governo de Israel, não era uma ação de muito impacto, mas foi.

Só o fato de o governo de um país em guerra se dar ao trabalho de inventar um apelido para ridicularizar a ação nas redes sociais, quando teria sido relativamente simples afundar o barco ou fazer desaparecer as pessoas, já diz bastante coisa.

Mas por que essa ação chama mais atenção do que os números ou as imagens de crianças sofrendo?

Ou do que as manifestações que juntam milhares de pessoas em todo o mundo?

Manifestações ocorrem, inclusive dentro de Israel, com israelenses pedindo cessar-fogo. Por que um barco com apenas doze pessoas chama mais atenção do que a Marcha Global para Gaza, com mais de quatro mil pessoas tentando chegar por terra à fronteira de Gaza com o Egito?

Bom, Greta Thunberg, famosa ativista ambiental sueca de 23 anos, uma das tripulantes do barco, ao ser perguntada por que o mundo fecha os olhos para o genocídio em Gaza, respondeu: por causa do racismo.

Por conta da presença de Greta, e de todo o privilégio branco que seu corpo carrega, a viagem teve que ser noticiada em jornais do mundo todo.

A interceptação do barco em águas internacionais e a deportação da tripulação tiveram que ser manchetes. Houve coletiva de imprensa no aeroporto.

Não era possível deixar “em branco” qualquer coisa que acontecesse com o barco em que Greta Thunberg estava. Isso impediu, inclusive, que ele fosse bombardeado.

Não é exagero. Escolas e hospitais em Gaza foram, sim, bombardeados. Militantes contra o genocídio na Palestina estão presos dentro e fora de Israel. Greta sabe disso.

Um governo violento, tão desesperado para se manter no poder quanto o de Benjamin Netanyahu, não teria pensado trinta segundos em simplesmente explodir esse barco no meio do mar — se isso não fosse causar uma dor de cabeça maior do que “apenas” prender e, em seguida, deportar a tripulação.

Greta não precisa do meu aplauso para continuar sendo a europeia-branca-ativista-estrela-heroicizada que ela é desde os 16 anos.

Seu nome é, e vai continuar sendo, usado como foi: para garantir que o mundo olhasse para uma quase minúscula demonstração do que está acontecendo em Gaza.

Cerca de duas mil pessoas israelenses estão entre mortas ou reféns desde o ataque do Hamas a Israel, em 2023.

Depois disso, e supostamente por conta disso, mais de 60 mil palestinos foram mortos, entre os quais 14 mil crianças.

Cerca de 1,9 milhão de pessoas foram deslocadas, o que corresponde a quase 80% da população de Gaza. O massacre de Israel sobre o povo palestino é genocídio, é limpeza étnica.

Não há como minimizar isso, em nome de uma suposta ponderação antiestrelismo, ou, muito menos, sob qualquer argumento que defenda “olhar os dois lados”.

No fim,Greta tem razão. A resposta “simples” é racismo. E ela não faz mais do que sua obrigação ao usar a visibilidade que tem para chamar atenção para isso.

Pra terminar: dentro do tema principal desta coluna, Justiça Reprodutiva — como foi pensada pelas mulheres negras, também se defende o direito de criar suas crianças sem medo da violência. É um movimento antigenocida.

Entre as diversas vertentes da esquerda judaica, existe um movimento que reconhece a ocupação israelense em território palestino como neocolonialismo, e defende o êxodo total — o que é um tema delicado e doloroso para o povo judeu, historicamente perseguido e forçado a migrar.

Hoje, o governo israelense é acusado, inclusive por parte de sua própria população, de ter deixado de procurar pessoas sequestradas pelo Hamas, porque, ao serem encontradas, deixariam de ser justificativa para a guerra.

A mãe de uma jovem israelense sequestrada pelo Hamas em 2023 disse recentemente no congresso em Israel:

“Eu preciso vir aqui implorar para vocês trazerem de volta a minha filha, que o Estado de Israel abandonou?
Se eu pudesse escolher, não viveria neste país.
Aconselharia minha filha a pegar tudo o que ela ama e deixar este país.
Este é meu conselho para as novas gerações.”

Que conselhos as mães palestinas gostariam de dar às suas novas gerações?

Odu Obará

0

O Mẹ́rìndílógún ou Jogo de 16 Búzios, é um oráculo milenar de tradição Yorùbá, no qual sacerdotes e sacerdotisas do culto afrobrasileiro são os intérpretes das 16 caídas e cada uma delas tem uma interpretação, seja ela positiva ou negativa. 

Normalmente recorremos a ele para termos orientações quando os caminhos estão fechados. Com perdas de toda ordem, através delas podemos tomar boas decisões para abrir os caminhos e nos recuperar dessas perdas.

Hoje quero citar o 6 º Odu, conhecido como Obará, que cultuamos no mês de junho, no dia 06/06. 

Em um dos mitos sobre Obará, que interpreto como um ensinamento sobre generosidade, humildade e até mesmo acolher aqueles que nos desprezam, pois, no final, as riquezas deste caminho serão certeiras e lhe darão o sucesso no momento certo.

Na filosofia tradicional, a ética é como um código para interpretação e podemos internalizar conceitos sobre boa conduta e bom caráter para que o destino nos devolva bons frutos à nossa colheita. Se apresenta como um aprendizado para a evolução moral e espiritual. 

Quando vivenciamos perdas e entendemos que são barreiras, desafios, má sorte, inveja, etc, normalmente pensamos ser algo negativo, o que nos leva, muitas vezes, a desistir de lutar ou de seguir em frente. Às vezes as perdas nos paralisam. 

Porém, precisamos esperar o tempo passar, sentir a dor e nos ouvir. Entender quais são as situações que nos afetam nas perdas, se é o apego, o ego, fantasias de que tudo é estável, que estamos no controle e nada vai mudar.


No jogo de búzios, o oráculo é um grande conselheiro e nos ajuda a entender que as perdas ou erros podem ser ganhos ou acertos. Que o tempo é um mestre sábio, que o silêncio é um excelente conselheiro. 

Entendo que a vida nos ensina que a dor é o maior professor, porque nos mostra possíveis formas de mudanças. Mostra quem torce por você, lhe estende a mão e também quem não nos quer bem, pois é nas dificuldades que conhecemos as pessoas. 

Temos que, diante do caos, organizar e recalcular a rota. Desistir não é uma possibilidade, temos que seguir e continuar, mas espere o tempo, o mestre que nos ensina a descansar, acalmar a mente e o coração para se ouvir.

A perda nos deixa solitários no processo da vida, mas isso não quer dizer que estamos realmente só. Muitas vezes é sobre aprender a ter fé e confiar em si mesmo, seguir sua vida guiado pela sua intuição. 

Temos deuses a nos governar e essas deidades, como nos mitos, são protetores. Podemos soltar o controle, o medo e confiar, pois teremos como Xangô e Oyá, deuses da justiça para nos fortalecer e lutar para que tenhamos vitórias sobre as perdas injustas.

Desde que iniciei o caminho da tradição e da vida devotada aos ancestrais, tenho observado que há uma grande filosofia que está por trás de cada conto e mito que se revela a partir dos movimentos do jogo.

São ensinamentos e orientações diante de perdas ou quedas, nos sentimos derrotados, desesperançados, não há caminho e nem vitórias diante da realidade que temos, mas na verdade, me parece uma reeducação. Tiram tudo do lugar, pois estávamos acomodados.

Pois crescemos somente no desconforto que nos faz ter movimentos e desenvolvemos novas estratégias para sobreviver ao caos e vamos colocando a casa interior e exterior em ordem.

Mudamos internamente para vivermos de outra maneira e conduzir a vida ou os relacionamentos de outra perspectiva.

Não estamos sós. Esta é a grande verdade. Nunca estaremos e seremos sempre testados a nos desafiar e crescer pelo nosso bem viver. 

Seguir confiando que algo melhor está por vir. Isto não é o fim da linha, mas o fim de um ciclo que irá dar espaço para o início de um novo, com a experiência das quais sem estes desafios não teríamos aprendido grandes lições para avançarmos e crescermos.

Esta é uma filosofia num conceito afrocentrado e não eurocêntrico. É um caminho de grandes aprendizados nesta jornada, pois perceber outro contexto que nos impulsiona a seguir e não desistir, nos abre uma nova visão diante dos caminhos que precisamos trilhar.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.