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Aqui Resiste um Quilombo: projeto na zona sul, atua para manter viva tradição do samba no Jardim Gismar

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Na zona sul de São Paulo, o projeto Aqui Resiste um Quilombo evidencia o que acontece quando cultura, história e coletividade se encontram, ao transformar uma comunidade inteira através do samba. No antigo bairro Jardim Gismar, a iniciativa busca manter viva e ampliar a tradição do gênero, promovendo rodas de samba na rua, apresentações e oficinas de formação em percussão e canto para jovens, adultos e crianças.

Criada a partir do grupo Amigos do Gismar, iniciativa de samba que atua na região há uma década (desde 2015), o projeto busca aproximar territórios — promovendo a troca cultural entre grupos e coletivos de diferentes bairros da região — com a proposta de preservar a memória do samba na periferia. O projeto nasceu do convívio: amigos que se reuniam para conversar e tocar. Desses encontros, mais tarde, veio a proposta de estruturar ações contínuas.

“A gente se juntava, tomava uma cervejinha, fazia um churrasco, trocava ideia e desse convívio nasceu a ideia de criar um projeto mensal. Eu acreditei, investi e assim tentando fazer acontecer”, conta o sambista Michael Rob, um dos idealizadores e fundadores do Samba Amigos do Gismar.

A partir daí, surgiu a necessidade não só de preservar a memória do antigo Jardim Gismar, mas também conectar comunidades ao entorno que igualmente reafirmam a cultura do samba. Assim tomou forma o Aqui Resiste um Quilombo. 

“O nome do nosso projeto, por si só, já é muito forte e toca diretamente na essência do que representamos: a favela, a união da comunidade, a força e a cor desses territórios. As pessoas sentem essa energia, essa vibração, e lutam, juntas, para mantê-la.” 

Michael Rob, um dos idealizadores e fundadores do Samba Amigos do Gismar.

O coletivo Amigos do Gismar promove rodas de samba na rua, apresentações e oficinas de formação em percussão e canto para jovens, adultos e crianças. As oficinas são conduzidas pelos próprios integrantes do grupo, que atuam como educadores e músicos. A participação é aberta: moradores podem se inscrever previamente, mas também é possível chegar no dia e acompanhar as atividades.

Esforço coletivo para manter a tradição do samba

Para o sambista, consolidar o trabalho como referência cultural exige esforço contínuo. “Nossos equipamentos estavam deteriorando e precisávamos tocar fora, enfrentando aquela rotina pesada de madrugada, chegando em casa às duas da manhã — até aos domingos — mesmo sabendo que no dia seguinte precisaríamos estar nos nossos trabalhos [formais]. Tudo isso para manter o projeto vivo na rua”, relata.

Apesar do trabalho conjunto, manter o projeto financeiramente, segundo ele, sempre foi outro grande desafio. “A gente se vira como pode, mas muitas vezes fechamos no zero a zero e nem conseguimos garantir o próximo evento. A saída é tocar de novo para tentar viabilizar”, afirma.

Para conseguir apoio financeiro, o projeto Aqui Resiste um Quilombo foi inscrito em editais públicos, sendo contemplado pela 2ª edição do edital Fomento às Comunidades de Samba e Fomento ao Samba da Cidade de São Paulo, programas da Secretaria Municipal de Cultura da capital paulista no ano de 2023.

Acolhimento, pertencimento e orgulho

Edmilson da Cuíca, também sambista, fundador do grupo Amigos do Gismar e do projeto Aqui Resiste um Quilombo, reforça a dimensão comunitária. Segundo Edmilson, para quem nasceu e cresceu no território, é especialmente simbólico. “Permanece o sentimento de pertencimento. Crescemos ali, sempre será o Gismar”, recorda.

Ele, que hoje não reside mais na comunidade, mas se desloca semanalmente para participar das atividades do coletivo, relembra os primeiros passos do grupo. “Tudo começou bem simples: uma roda de samba para o aniversário de um amigo, misturada ao Dia das Crianças, que virou festa da quebrada. Deu certo, uniu a comunidade e acabou virando tradição”.

Edmilson também destaca que, com o projeto, o grupo tem conseguido alcançar novos públicos. “A galera mais nova também se conecta com os sambas dos anos 90, músicas que estão voltando com força, tocando nas rádios, nos streams, e isso atrai eles, que chegam curiosos, ficam pelo ambiente e voltam pelo acolhimento”.

“O acolhimento é fundamental, pois nossa missão é mostrar justamente o lado positivo da periferia. Lutamos para mostrar que a quebrada não é só violência, droga e agressividade. A periferia é cultura, abraço, é família, pertencimento e resistência.” 

Edmilson da Cuíca, sambista, um dos fundadores do grupo de samba Amigos do Gismar e do projeto Aqui Resiste um Quilombo. 

Edmilson aponta que no Aqui Resiste um Quilombo a atuação das mulheres é destaque. “Tivemos clareza de que as mulheres precisavam ser homenageadas. Não só num evento, não só numa roda: todos os dias. Elas vêm de muita caminhada, muita luta, muita dor, muita resistência e por muito tempo, muitas delas, foram e ainda são invisibilizadas”.

Homenagem aos legados do território  

Dona Samantha dos Santos, referência da velha guarda do samba paulistano, foi uma das homenageadas pelo projeto, que a cada edição celebra e exalta figuras que sustentam o samba. Exemplo vivo da herança daquelas que vieram antes, a sambista fala que ver reconhecidos os anos que construíram seu trabalho sólido e respeitado, lhe traz profunda gratidão. 

“A primeira vez que tive contato com o projeto, já senti logo de cara o carinho. Me sinto envaidecida em ser homenageada”, compartilha. 

“Ser reconhecida como sambista é especial demais. Fiquei orgulhosa de estar participando de tudo aquilo. E estar no território, no meio dos meus, de outros mestres e mestras, é ainda mais especial,” afirma.

Com mais de 50 anos de estrada, dona Samantha dos Santos é sambista paulistana e referência da cultura de raiz. Sua voz e presença em rodas de samba dentro e fora dos terreiros traz sua força interpretativa e ligação com a ancestralidade. 

“Ver todo mundo cantando junto [também é muito especial]”, diz ao ressaltar a importância de conectar passado, presente e futuro. “Em São Paulo, no que diz respeito a manter o sagrado dentro do samba, eu acredito que fui uma das primeiras a trazer isso”, afirma. 

“O sagrado não era muito bem aceito, e hoje é. Quase todas as rodas cantam. Alguns não sabem o fundamento, mas cantam e isso mostra que o sagrado ganhou seu espaço”, celebra Dona Samantha.

Edmilson da Cuíca ressalta que o projeto resiste mesmo diante de dificuldades financeiras. “O grande desafio é financeiro. É manter o projeto vivo. É fazer cultura na periferia com tão pouco investimento. São 10 anos fazendo tudo por amor, colocando do nosso próprio bolso, ralando para que a comunidade tenha acesso a arte, aprendizado e pertencimento”, conta ao ressaltar que disputar e conquistar um edital público representou uma verdadeira virada de chave.

O sambista reforça a afetividade e o compromisso com o samba enquanto movimento de resistência e memória. “Queremos e lutamos para manter viva a rua onde tudo começou, ali na porta da casa dos meus avós, onde o samba hoje pulsa, respira e transforma a vida de muita gente”, finaliza.

“O samba nos deu dignidade”: Sambistas lutam para manter tradição do gênero nos territórios

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No início do século XX, o samba surgia no Brasil a partir de homens e mulheres que se reuniam para festejar. Expressão cultural das populações negras e periféricas, o gênero musical nasceu no Recôncavo Baiano e, mais tarde, se espalhou por outras regiões do país, como no Rio de Janeiro. A mistura de batidas, ritmos e histórias é marcada por resistência, especialmente frente à violência e repressão sofridas pelo povo negro. 

A antropóloga Fabiana Marques, nascida no distrito de São Mateus, zona leste de São Paulo, pesquisa sobre cultura afro-brasileira e samba, explica que o gênero musical carrega memória, resistência e pertencimento, sendo considerado também um ato contra-colonial diante das violências sociais. 

Segundo ela, os antigos quintais espalhados pelo Brasil, onde mulheres negras recebiam em suas casas a comunidade para celebrar o samba, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, funcionaram, historicamente, como espaços de aprendizagem, socialização e preservação da ancestralidade negra.

Essas manifestações herdaram consigo elementos da capoeira e das religiões afro-brasileiras, como o Candomblé, a Umbanda, Jurema e Kibanda, baseadas nas práticas que vêm dos terreiros e conduzidas por figuras religiosas como babalorixás, pais e mães de santo. 

Apesar do gênero estar historicamente associado às classes econômicas mais pobres, Fabiana destaca que ele transcende fronteiras sociais e raciais. “Não há quem viva no Brasil e não o conheça, seja no batuque, em seus versos ou instrumentos. Até entre os povos indígenas há variações do ritmo”, explica.

“As periferias são pontos de resistência política, pois o samba nasce da cultura periférica, fortalecendo a coletividade, o senso de família e o aquilombamento. O samba é ancestral porque ele cura, é como uma reza, uma bênção.” 

Fabiana Marques é nascida em São Mateus, mestre em Antropologia e pesquisadora do samba e da cultura afro-brasileira.

Desde 1920, o samba faz parte da história do país, marcado pelo cruzamento de vivências e trajetórias de mulheres negras que pavimentaram o caminho do movimento. 

Como economia criativa e espaço de formação, Fabiana ressalta que os quintais de samba, liderados por mulheres, foram fundamentais na consolidação do samba em São Mateus entre as décadas de 1960 e 1970.

“Hoje, alguns deles ainda existem e mantêm vivos os legados de quem veio antes. Mesmo que muitas dessas mulheres não estejam mais entre nós, suas memórias permanecem”, diz.

Num país que se recuperava dos traumas da ditadura militar, estes quintais se tornaram também escolas de vida. Neles, atuavam como verdadeiras educadoras, transmitindo consciência crítica e política aos mais jovens. Em São Mateus, Fabiana conta que grandes nomes se formaram fortalecidos pela luta e pelo apoio dessas figuras femininas até se consolidarem artisticamente.

“O povo negro nunca fez nada sozinho; estamos sempre em comunidade. É no samba que nos fortalecemos. Dele surgiram músicos, intérpretes e compositores que levam na música o que aprenderam com as tias: afeto, crítica, raízes e o valor da coletividade.” 

Fabiana Marques é nascida em São Mateus, mestre em Antropologia e pesquisadora do samba e da cultura afro-brasileira.

Os primeiros sambas registrados na história despontaram nomes como o grupo “Oito Batutas”, conjunto musical brasileiro criado em 1919 no Rio de Janeiro e formado pelos músicos Pixinguinha, Donga e Raul Palmieri, Nelson Alves, China, José Alves e Luis de Oliveira. 

Mulheres que propagaram a cultura do samba nos quintais 

Dentre outras figuras marcantes do movimento samba, está Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata, uma sambista, mãe de santo e curandeira brasileira, considerada por muitos como uma das figuras mais influentes para o surgimento do samba carioca. No Rio, seu quintal se transformou em um verdadeiro espaço de encontro, símbolo de cultura e força durante o regime militar.

Já em São Mateus, zona leste de São Paulo, um dos primeiros quintais surgiu nos anos 1950, com Dona Ercilia, mãe da Tia Cia dos Terreiros. Sua família foi uma das primeiras a ocupar o local, lutando por moradia e melhorias para o bairro.

Com o avanço da urbanização e a especulação imobiliária no cenário nacional, a população de São Mateus sofreu os reflexos, sendo empurrada do centro para as periferias. A família de Tia Cida passou pela Vila Madalena até se estabelecer em São Mateus, onde nasceram outros quintais importantes: os de Dona Ercília, Dona Carmen, Dona Chica, Tia Filó e tantos mais. 

Cada quintal tinha sua própria identidade: o de Dona Ercília (mãe de Tia Cida) era do Partido Alto; o de Tia Chica, do choro; o de Dona Carmen, do tambor de crioula; o de Tia Severina, ligado ao futebol de campo; e o de Tia Filó reunia influências do partido alto e do pagode 90.

Fabiana avalia que o quintal de Tia Cida, em especial, representa a síntese de todos os outros. “Juntos, criaram uma rede de cultura e pertencimento que mantém vivo o samba como expressão de identidade e resistência […]. Foi lá que as memórias, os ensinamentos e a força da cultura do samba se mantiveram, reunindo e propagando tudo o que essas mulheres construíram”, afirma.

“Parafraseando Tia Cida, e eu também sou cria desta grande mulher, se quiser conhecer a verdadeira história do Brasil, ouça um samba-enredo. É ali que tudo está escrito. [Quando o carnaval chega], o povo toma as ruas para celebrar sua cultura e sua política, transformando a arte em reflexão sobre quem somos e de onde viemos.”

Fabiana Marques é nascida em São Mateus, mestre em Antropologia e pesquisadora do samba e da cultura afro-brasileira.

A tradição do samba que resiste em São Mateus

Assim como o samba nasceu a partir de muitas mãos, essa força coletiva se reflete até hoje em São Mateus. Lá, acontecem diversos movimentos tradicionais, incluindo as rodas de samba do grupo Berço do Samba de São Mateus, uma das iniciativas que luta para manter a continuidade deste legado, através das ações promovidas pelo Instituto Cultural de Tradição e Memória do Samba de São Mateus.

O bairro também concentra a Orquestra de Samba e Choro, blocos carnavalescos e as escolas de samba: Amizade Zona Leste e Aroeira, além das comunidades de samba: Maria Cursi, Jd. Vera Cruz, Toca da Onça e Quilombo Vila Flavia, que movimentam o território e fazem de São Mateus um reduto do samba paulistano.

O braço social do grupo atende a comunidade local, especialmente crianças e jovens interessados em aprender a tocar, compor e compreender a história do samba, além das recorrentes rodas realizadas no histórico Bar do TiMaia e outras iniciativas culturais comunitárias.

Segundo o sambista Gerson Martins, um dos fundadores do Berço do Samba de São Mateus, não há documentos históricos que indiquem o exato momento em que o gênero surgiu na região, mas a própria memória coletiva evidencia a presença do samba na comunidade. 

Ele avalia que o samba se tornou um gênero muito presente em São Mateus e gerações foram conectadas através de artistas como Dixon, Evo, Subito, Miguelito, Canota, Tocão e Gilvan, músicos que fundaram o grupo Berço do Samba.

Gerson lembra que ele e outros músicos percorriam o bairro se apresentando e reencontrando as pessoas. Nesses encontros, reuniam aqueles que tinham mais aptidão para tocar instrumentos, outras que ajudavam a ditar o clima da plateia, além dos que cozinhavam para alimentar o público.

Samba como posicionamento social

O tempo difícil também impôs outras formas de silenciamento. “Houve um tempo que a discriminação [era pesada], no final da década de 70, se os caras pegassem a gente na rua à noite, eram truculentos mesmo. A polícia vinha junto, batia na cara, dava soco, quebrava os instrumentos, os caras chutavam com aquela bota de bico de ferro na nossa canela. Humilhavam mesmo”, lembra ele, que também relata a resistência dos sambistas diante da violência policial. 

“O samba não é só um gênero musical, é um posicionamento social. A gente se reconhece no samba. O samba nos deu dignidade. A gente respeita o samba muito mais que um gênero musical.” 

Gerson é sambista e um dos fundadores do grupo Berço do Samba, em São Mateus, Zona Leste de São Paulo.

Nos bastidores e nos palcos desta luta, também está Yvison Pessoa, conhecido como Casca, que é um dos principais articuladores do grupo e quem costuma orientar os encontros, as rodas de samba e as demais ações do Berço do Samba no território. Ao se referir à perseguição sofrida por sambistas, ele lembra que a Lei da Vadiagem, prevista nos Códigos Penais de 1890, que permitia prender pessoas sem documentos ou sem comprovação de vínculos empregatícios, ampliando a perseguição à população negra no pós-abolição, foi uma consequência direta da escravização. 

Os sambistas de São Mateus fazem questão de reforçar que na zona leste o samba se construiu como forma de coletividade e como resposta a um cotidiano de precariedade e silenciamento. Nesse sentido, os quintais foram espaços de criação e acolhimento, onde se aprendia a tocar, cantar, conviver e resistir diante deste cenário. 

Apesar de celebrar os quintais, Casca pontua que a repressão policial na região de São Mateus continua, sobretudo, contra o funk:  “É o mesmo processo que o próprio samba sofreu durante décadas. Agora a gente tá vendo outro gênero sendo perseguido igualmente, violentamente, o funk. Gênero esse que é [herança] da comunidade periférica”, comenta.

A resistência dos quintais

Casca relembra como eram realizados os sambas nos quintais, sob a proteção de mulheres: “O samba em São Mateus passou a ser feito nos fundos das casas porque era perigoso. O quintal da Tia Cida foi essencial. Ela era [e ainda é] uma ativista aqui no bairro e dizia: ‘Não quero ver meus filhos e minha comunidade sendo repreendidos pela polícia’”. 

Ele conta que foi dessa realidade que surgiu o verso da obra Elemento Suspeito do grupo Quinteto em Preto e Branco“O quintal da Tia Piló, tia do Gerson, já falecida, também foi um dos nossos focos de resistência”, conta.

Além da presença, ele ressalta que essas mulheres desempenhavam papéis cruciais na organização das rodas. “A Tia Cida fazia, a muito custo, uma comidinha para todo mundo. Lá, a gente sabia que estávamos fora de perigo e bem acolhidos. E temos um samba falando exatamente sobre isto: o racismo [que vê] o negro como elemento suspeito”, relembra. 

Dos quintais para as escolas de samba

A luta das mulheres negras migrantes da Bahia, também teve papel central na formação das escolas de samba que conhecemos hoje. “As Baianas” ou “tias baianas”, representavam a força espiritual e a tradição afro-brasileira, sendo vistas como guardiãs da ancestralidade e da memória. 

Com a migração ao sudeste, muitas delas se tornaram, na região, quituteiras e mães de santo. Elas ainda acolhiam os sambistas em suas casas, onde aconteciam as primeiras rodas de samba, em um contexto de marginalização e perseguição. 

“Mão pra cabeça

Se correr leva no peito

Um negro na favela

Essa tal atitude suspeita

É um preconceito velado

Aplicada pra cima do negro

E do pobre marginalizado

É nazismo declarado

Fruto da discriminação

Pra quem mora na periferia

E vive num campo de concentração. Mão pra cabeça”.

[Trecho da música Elemento Suspeito do grupo Quinteto em Preto e Branco] 

Fabiana Pedroso, conhecida como Fabis, faz parte da nova geração do movimento do samba. Mulher negra, ritmista, mestre de bateria da Elas Que Tocam e diretora da bateria Só Quem É da Escola Imperador do Ipiranga, fundada em 1968, em Vila Carioca, no Bairro do Ipiranga, ligada às comunidades da Vila Carioca e Heliópolis, em São Paulo, lembra como se deu seu encontro com o samba.

“O samba e o Carnaval é algo que sempre esteve presente na minha vida. Faço aniversário em janeiro, então, os meus presentes de aniversário sempre foram algo relacionado ao carnaval, um vinil do carnaval, que depois passou para CD. Meu pai sempre me dava, eu ficava vendo, sempre querendo fazer parte disso”, relembra. 

Ela fala do samba como lugar de acolhimento, mas também de luta, principalmente para as pessoas periféricas. “Tenho me envolvido com outros projetos também. Há três bandeiras que levanto: a de ser mulher, negra e LGBT+”, ressalta.

Fabiana ainda reitera que o samba é memória e pertencimento, elementos constantemente ameaçados. “Tenho conversado com amigos que percebem o samba ficando cada vez mais branco, com pessoas ocupando nossos espaços, até em escolinhas de bateria. Isso gera a discussão de que precisamos agir para proteger nosso lugar, porque o samba é muito mais que folia: é ancestral e cultural”.

Entre esse nascimento coletivo e territorial do samba e o cenário atual, para Fabis, existe um percurso marcado por disputas de espaço, permanência e reconhecimento. Segundo ela, se antes os quintais, terreiros e ruas eram lugares de construção comunitária, onde o samba se fortalecia a partir da vivência, hoje esses mesmos territórios simbólicos enfrentam processos de esvaziamento, apropriação e apagamento.

“É difícil manter o carnaval, especialmente por questões financeiras, já que as escolas com mais recursos geralmente são administradas por pessoas brancas, que historicamente têm mais acesso ao dinheiro”, coloca.

Fabis acredita que a história do Carnaval, o significado das tradições, como o papel das baianas, do mestre-sala e da velha-guarda, ainda não são amplamente conhecidos. “O samba e o Carnaval são para todos, pois é uma celebração coletiva, porém é fundamental que a comunidade negra permaneça [no centro] da história”, diz.

A sambista finaliza dizendo que manter o samba vivo é essencial para garantir a continuidade daquilo que resiste e não se rende em meio ao apagamento e à constante apropriação cultural sofrida pelo povo negro.

O corre do fim de ano

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Quem é que não quer chegar nas festas de fim de ano com aquele dinheirinho sobrando, não é mesmo?! A correria na quebrada nunca para, e, pra tirar aquele lazer merecedor, a galera sempre se reinventa para conseguir aquele a mais e garantir um conforto maior nas festas de fim de ano. Em cada esquina, uma banca nova, um carrinho de lanches ou de churrasco, um cooler com água gelada e refrigerante.

A galera trabalha dobrado, cada um tenta conquistar o cliente na simpatia. É a economia viva da periferia pulsando, longe dos shoppings e dos grandes comércios. A economia periférica é feita de laços e trocas que não aparecem nas estatísticas oficiais. 

O pagamento pode ser em dinheiro ou na confiança. O marketing é boca a boca, e o capital é o tempo de quem se dedica. Essa lógica, muitas vezes invisível, mostra outro modelo de economia: mais humana, mais direta e mais solidária. É o oposto do consumo desenfreado e distante das relações que marcam o fim de ano nas zonas centrais.

O fim de ano, para a comunidade, é também tempo de celebrar pequenas vitórias, fechar as contas, garantir o presente das crianças, preparar a ceia com fartura. Porque, quando a quebrada se movimenta, cada um encontra um jeito de transformar o tempo e talento em renda extra. 

Mas o corre não é só sobre dinheiro. É sobre dignidade. É sobre o orgulho de fazer parte de uma engrenagem que funciona à sua maneira, longe das normas e das vitrines. É sobre a força que o povo carrega, mesmo quando o sistema não reconhece. O corre é também um gesto político: afirmar que o trabalho da periferia tem valor. Fazer esse extra e poder partilhar para que mais famílias tenham também um fim de ano com tranquilidade e comida na mesa. O corre de fim de ano é coletivo.

Enquanto muitos celebram o consumo, nas periferias o verdadeiro espírito é o da luta coletiva, porque a ideia é uma só, a esperança de recomeçar o ano que está por vir com o pé firme no chão, contas em dia e comida na geladeira. 

Mais do que números ou vendas, o verdadeiro resultado do corre de fim de ano está na força que ele desperta de acreditar na própria capacidade, de apoiar o vizinho e de transformar pequenos recursos em grandes conquistas. É esse aprendizado coletivo que se perpetua, ano após ano, fortalecendo os laços da comunidade, mostrando que a quebrada é muito mais do que um espaço geográfico: é um espaço de resistência, crescimento e esperança contínua.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

“Fundamental discutir cotas de gênero”, diz economista Gabriela Chaves sobre Fundo de Reparação Econômica para população negra

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Três meses após sua aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (CCJ), em Brasília, por 41 votos favoráveis e 15 contrários, a admissibilidade da PEC 27/2024, que cria o Fundo Nacional de Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial (FNREPIR) e inclui na Constituição Federal o capítulo “Da Promoção da Igualdade Racial”, segue com discussão e tramitação em andamento. 

Com o objetivo de corrigir desigualdades históricas contra a população preta e parda no país, a iniciativa busca ampliar a inclusão social e econômica da população negra, que corresponde a 56,7% da população brasileira.

Dados de 2024 da PNAD Contínua, mostram que dos brasileiros que se autodeclaram pretos ou pardos, 45,3% são pardos e 10,2% pretos. Nesse panorama, as mulheres negras representam cerca de 28,5% da população, ultrapassando 60 milhões de pessoas, e aparecem tanto como maioria nos lares brasileiros quanto como parte fundamental da força de trabalho do país.

O objetivo do FNREPIR é ser um fundo para financiamento de políticas públicas e projetos voltadas para a população negra, como ações de educação, geração de renda, fomento a iniciativas culturais e comunitárias, entre outras demandas com foco na promoção de oportunidades de desenvolvimento social, econômico e educacional.

Gabriela Chaves, economista e idealizadora da iniciativa NoFront, explica que o debate sobre a construção de um fundo de reparações econômicas para a população negra no Brasil é antigo e configura uma demanda histórica do Movimento Negro. Nesse sentido, o avanço da discussão é bem recebido pela sociedade civil, porém os valores que estão sendo discutidos em torno do fundo são preocupantes. 

“Hoje a discussão posta é de 20 bilhões de reais a serem distribuídos ao longo de 20 anos. Esse valor é praticamente irrisório diante dos danos que temos, do tamanho da população negra e da necessidade que se tem de investimento relevante”, alerta.

Ainda existem diversas etapas burocráticas e legislativas dentro do Congresso Nacional para que o projeto avance. A admissibilidade da PEC foi aprovada na CCJ, e essa é a porta de entrada. A partir disso, o texto passa por outras fases, como comissões, discussão em plenário, votação em dois turnos, até eventualmente avançar no Senado Federal.

A economista ressalta que esse trâmite é complexo e exige conhecimento jurídico e político, o que nem sempre está ao alcance de quem atua diretamente nos movimentos sociais, que atuam para garantir propostas alinhadas ao contexto da população. Como os movimentos sociais não têm poder formal para decidir os rumos de uma PEC, sua atuação ocorre pela capacidade de influenciar o processo legislativo. 

Nesse sentido, para que o Fundo de Reparação Econômica avance conforme a realidade da população negra, esses grupos precisam acompanhar de perto cada etapa da tramitação, participando das discussões e pressionando as negociações em curso. Gabriela pontua, porém, que a complexidade técnica do processo acaba limitando essa participação de forma mais qualificada.

“Há a necessidade de construir um debate sobre que recursos são esses e como se dará a distribuição desses recursos para garantir uma equidade de gênero nessa questão”, coloca ao abordar sobre a origem dos recursos e como serão distribuídos, ao frisar que mulheres negras são, historicamente, as mais afetadas pela balança tributária desigual.

Segundo ela, um bilhão de reais por ano é um valor irrisório. “A minha expectativa era que esse fundo fosse pelo menos cinco vezes maior, e nesse caso estaríamos falando de pelo menos 100 bilhões de reais.”

Um país de mulheres negras

Nesse horizonte, a população de mulheres negras é a mais impactada pelas desigualdades socioeconômicas, como explica Gabriela, que também é Diretora de Economia e Incidência da Marcha Nacional das Mulheres Negras.

Mulheres negras contam o que mudou desde a última edição da Marcha em Brasília

Levantamento do Instituto de Pesquisa DataSenado revelou as principais desigualdades sociais, econômicas e educacionais que a população de mulheres negras enfrenta no país. No Brasil, majoritariamente jovens e adultas, 18% têm entre 16 e 24 anos e 12% têm 60 anos ou mais, elas se concentram, sobretudo, em São Paulo (18%), Bahia (10%) e Minas Gerais (10%).

Em termos proporcionais, a Bahia lidera com 80% das mulheres do estado se declarando pretas ou pardas, seguida por Pará e Maranhão, ambos com 79%.

Com relação à escolaridade, 2,8 milhões são analfabetas e 11,4 milhões não concluíram o Ensino Fundamental, somando 31% do total. A maioria conclui o Ensino Médio (34%), mas apenas 14% chega ao Ensino Superior.

Isso se reflete na renda: 66% vivem com até dois salários mínimos e só um terço considera ter renda suficiente; 32% não têm renda e 34% afirmam que ela não cobre suas necessidades. Entre as que trabalham, 40% atuam em instituições públicas ou privadas, 25% para pessoas físicas e 34% por conta própria.

Nos lares, 45% vivem em casas com quatro ou mais moradores; 78% tem 78% têm filhos e 58% criam ao menos um menor de 18 anos. A maior parte reside em áreas urbanas (87%) e se declara católica (45%) ou evangélica (36%).

O levantamento revela ainda que a violência doméstica contra mulheres negras é atravessada simultaneamente por aspectos de raça, gênero e classe.

Direito à terra e acesso a financiamento

Mercado de trabalho, acesso à terra, que envolve a titulação de terras quilombolas e de territórios tradicionais, além de um programa nacional de reforma agrária, são demandas que a economista destaca como prioritárias, sendo as mulheres negras as mais afetadas por essas políticas.

“Vivemos desafios profundos, tanto no contexto urbano quanto rural, que são resultado direto de um país que criou e manteve mecanismos para impedir que a população negra tivesse acesso à terra. Isso se reflete na presença majoritária da população negra nas favelas, periferias e nos territórios de maior risco ambiental.” 

Gabriela Chaves, economista, coordenadora do NoFront e Diretora de Economia e Incidência da Marcha das Mulheres Negras.

A economista aponta ainda que o sistema financeiro brasileiro exige garantias que muitas mulheres negras não possuem, dificultando o acesso a crédito e atrasando conquistas como a casa própria. Ela defende a criação de mecanismos como microcrédito, juros reduzidos e garantias públicas, permitindo que essas mulheres obtenham financiamento ou desenvolvam seus negócios com apoio de bancos públicos e do BNDES.

“É possível pensar também em como o Estado pode se tornar esse garantidor de crédito no caso da população de mulheres negras, que têm menos garantias para dar em empréstimos e, nesse sentido, acabam pagando taxas de juros mais altas. Por isso, é possível sim, estabelecermos um fundo garantidor”, exemplifica.

O avanço da reparação econômica passa também pela inclusão da ‘economia do cuidado’, que abrange trabalhadoras domésticas e de cuidado informal, sem proteção trabalhista. Por isso, defende que o Fundo Nacional de Reparação precisa contemplar esse grupo, garantindo que as políticas alcancem também as trabalhadoras que sustentam, de maneira invisível, a dinâmica econômica do país.

“As regras de funcionamento desse fundo ainda não foram definidas, e esse é um campo em disputa. Para que haja recursos destinados à reparação do cuidado, é fundamental discutir cotas de gênero”, salienta.

Ela aponta que uma das demandas mais fortes que identificam é o endividamento, que bateu recorde em 2024 e segue em alta. “Propomos, no âmbito da Marcha das Mulheres Negras, a criação de um Programa Nacional de Alívio de Dívidas, capaz de desonerar as famílias e garantir melhor qualidade de vida. Essa pauta será encaminhada ao Ministério da Fazenda e é central em nosso manifesto”, ressalta. 

Dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), divulgada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) em 2025, mostra que mulheres são as mais endividadas, somando 78,1%. 

“O desafio orçamentário existe porque o Brasil enfrenta limitações fiscais desde o teto de gastos e o novo arcabouço fiscal. Criar esse fundo exigirá encontrar recursos, seja taxando super-ricos, seja revisando subsídios, diante das desigualdades na distribuição de benefícios econômicos, como os concedidos ao agronegócio.”

Gabriela Chaves, economista, coordenadora do NoFront e Diretora de Economia e Incidência da Marcha das Mulheres Negras.

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Outro desafio, segundo Gabriela, está relacionado ao reconhecimento político da desigualdade racial no país, que historicamente se vendeu como uma democracia racial. Ela destaca que estabelecer um fundo nacional para a população negra não é apenas uma questão financeira, mas sim um paradigma de responsabilização do Estado brasileiro. 

“A reparação precisa vir acompanhada de reconhecimento das instituições envolvidas na escravização e nos processos discriminatórios pós-escravidão que moldam a vida da população negra hoje. Os principais entraves são econômicos, pelo arcabouço fiscal, e políticos, pela resistência de grupos que historicamente negaram a necessidade de reparação.” 

Gabriela Chaves, economista, coordenadora do NoFront e Diretora de Economia e Incidência da Marcha das Mulheres Negras.

A economista menciona que é essencial considerar aspectos de prevenção a novas injustiças socioeconômicas. “É igualmente essencial refletir sobre como esse recurso será investido na sociedade, considerando que nosso modelo de reparação é coletivo e não individual. Além disso, é fundamental garantir a implementação de mecanismos efetivos de não repetição”, diz.

Casos de trabalho análogo à escravidão, especialmente no trabalho doméstico, também são pontos de atenção ao resultar em indenizações baixas. “Pessoas que passaram a vida inteira nessa condição recebem valores insignificantes diante das violências sofridas. Precisamos repensar o cálculo, considerando o tempo de vida perdido e o real benefício econômico gerado.”

“Acredito que, a partir da mobilização da sociedade civil, podemos ampliar o valor [do Fundo de Reparação], mas estamos em um campo da disputa política, onde existem muitos fatores envolvidos”, reforça.


Moradores de Guaianases chamam atenção para o problema do lixo na região

Abaixo dela, no entanto, sacos de lixo são espalhados pela calçada. Infelizmente, uma cena recorrente nas esquinas seguintes. Nas ruas onde o lixo chega a bloquear a passagem pelas calçadas, além dos sacos de lixo, é possível ver móveis velhos, restos de comida, embalagens e até roupas velhas.

Esse problema é recorrente para a maioria dos moradores escutados pela equipe do Laboratório Você Repórter da Periferia 2.0 (VCRP 2.0), do Desenrola e Não me Enrola, em outubro de 2025.

Córrego próximo a estação da CPTM, enquanto o caminhão da coleta de lixo passa pela rua. Foto: Gabriel Zahid.

Quem é responsável pela limpeza?

A Prefeitura, por meio da Secretaria Executiva de Limpeza Urbana (SELIMP), é responsável por fazer licitações para contratar as empresas que vão recolher o lixo. Mas não é só a Prefeitura e as empresas contratadas as responsáveis pelo lixo. 

Cada morador também tem um papel crucial e precisa fazer a sua parte no descarte. Para lixos comuns, por exemplo, cada cidadão precisa colocar o que vai descartar em sacos fechados e resistentes. O lixo também precisa ser descartado na área onde os caminhões de lixo passam e próximo aos horários em que passam. Isso, para evitar  que os sacos rasguem e espalhem o lixo, ou que eles fiquem acumulados.

Placa da prefeitura posta para aviso e denúncia de descarte irregular de lixo, caracterizado como crime ambiental. Foto: Gabriel Zahid.

Fica esperto(a)!

Se o caminhão de lixo não passar na sua rua, denuncie. Ligue para a Central de Atendimento 156 para denunciar a falha na coleta. A denúncia também pode ser feita pela internet no site da Prefeitura de São Paulo.

Córrego próximo à estação CPTM com entulhos e sacos plásticos acumalados no fluxo. Foto: Gabriel Zahid.

E o lixo reciclável?

Segundo levantamento recente do jornal Bom Dia São Paulo, a capital paulista produz diariamente cerca de 20 mil toneladas de lixo. O que chama a atenção é que 40% deste montante é reciclável. No entanto, somente 7% é realmente reaproveitado.

Muitos moradores de Guaianases apontam dificuldades para reciclar o lixo. A falta de espaço em casa para separá-los e a ausência de uma coleta seletiva foram alguns pontos levantados por eles. 

Mas quem conseguiu inserir na rotina o descarte de recicláveis tem contribuído, não só para o meio ambiente, mas também colaborado com a sustentabilidade financeira de empreendimentos e trabalhadores na região.

Na rua Tristão Gago fica o Ferro Velho Rainha da Sucata, administrado por Paulo Tenório da Paixão, 46, mais conhecido na região como Alemão. Trabalhando há cinco anos com reciclagem, ele elogia a postura de alguns moradores.

“Alguns chamam os próprios recicladores para ir na casa deles retirar, até fora de dia de reciclagem, justamente para não ter esse tormento contra enchente e outros tipos de situação” – Alemão.

Alemão explica que a reciclagem é um benefício grande tanto para o reciclador, que irá ganhar seu sustento, quanto para o bairro e seus moradores, por impedir o descarte errado e colaborar com o meio ambiente, evitando também alagamentos e enchentes.

Por ser uma região com a presença de muitos córregos, ele também conta que os recicladores dão uma atenção especial a esses locais, entrando neles e retirando boa parte do lixo. 

A iniciativa contribui diretamente para evitar enchentes e alagamentos na região, já que a retirada de lixo possibilita melhorar o escoamento da água da chuva.

Recipientes de plástico despejados no Ferro Velho Rainha da Sucata. Foto: Gabriel Zahid.
Lixos e entulhos tampando a passagem nas calçadas em Guaianases. Foto: Gabriel Zahid.

No distrito de Guaianases existem três Ecopontos:

  • Rua Utaro Kanai, 374
  • Rua da Passagem Funda, 250
  • Rua Padre Nildo do Amaral Júnior, 900

Cata-Bagulho

O serviço foi criado em 2017 e é responsável por recolher gratuitamente móveis velhos, pedaços de madeira e outros objetos volumosos nas ruas da cidade. Os caminhões circulam duas vezes por mês em cada bairro, recolhendo esses itens que não podem ser destinados à coleta de lixo comum ou reciclável. O cronograma por onde eles passam é divulgado pela Prefeitura.

Se liga!

Em caso de lixo em vias públicas, é possível entrar em contato com a Prefeitura pelo telefone 156.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação do laboratório de produção de conteúdo Você Repórter da Periferia 2.0 (VCRP 2.0), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2014, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Mulheres negras contam o que mudou desde a última edição da Marcha em Brasília

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Após 10 anos da primeira edição da Marcha das Mulheres Negras, segundo estimativa da organização do evento, cerca de 300 mil pessoas ocuparam as redondezas da Esplanada dos Ministérios por Reparação e Bem Viver, tornando o dia 25 de novembro uma data histórica no Brasil.

Há 10 anos, novembro também foi um mês marcante para o debate de raça e gênero na sociedade. Foi em 2015, que a primeira Marcha das Mulheres Negras reuniu mais de 100 mil mulheres negras do Brasil contra o racismo, a violência e pelo bem viver.

Uma década depois, a capital do país volta a ser palco desse movimento de luta, colocando também em pauta a reparação histórica. Nesse tempo, muitas mudanças aconteceram no aspecto social, político e no que se refere a acesso a direitos. Como, por exemplo, a nova Lei 15.142, de 2025, que mudou de 20% para 30% a reserva de vagas oferecidas em concursos públicos e em processos seletivos da União para pessoas pretas, pardas, indígenas e quilombolas. Ou a decisão do Supremo Tribunal Federal, que em 2021, reconheceu o crime de injúria racial imprescritível e a sanção da lei que tornou a equiparação constitucional.

Ana Luísa, 33, moradora da capital de São Paulo, não esteve presencialmente na Marcha de 2010, mas participou de um dos comitês que construiu a delegação de Uberlândia, município em que morava na época. Em 2025, acompanhando a mobilização direto de Brasília, ela conta que marcha pelas mulheres negras da sua família.

Mãe, tia e avó são as suas principais referências de força, luta e protagonismo. “É por elas que eu estou aqui, que eu cresci, vivi, acessei vários lugares e posso estar presente nesse movimento hoje”, conta.

Ela é diretora do Instituto Geni, organização do terceiro setor que apoia governos na implementação de políticas públicas para as mulheres com foco gênero e interseccionalidade, e conta que, para os próximos 10 anos, espera a redução significativa da violência contra pessoas negras de forma geral.

“A violência é algo muito doloroso que atravessa a nossa experiência. Então, se a gente conseguir lidar um pouco com isso, eu sinto que a gente consegue também destravar outras partes da nossa existência.”

Ana Luísa, 33, moradora de São Paulo.

Assim como Ana, a assistente social, e moradora do município de Simões Filho, na Bahia, Esther Marcos Santiago, 42, mesmo sem estar presente na Marcha de 2015, contribuiu na sua construção. Nesse período, ela diz que enxerga avanços, sobretudo, ao se tratar de mulheres na política e em locais de poder, como na gestão, nos municípios, enquanto prefeitas, vereadoras e deputadas.

Entre 2014 e 2024, a presença de mulheres negras em cargos eletivos cresceu, mas ainda de forma lenta. No Congresso, elas passaram de 2% em 2014 para 5,7% na Câmara em 2022 — um avanço ainda distante da realidade demográfica do país. Nos municípios, o movimento também é tímido: menos de 1% das prefeituras eram lideradas por mulheres negras em 2016, e 4,3% em 2024. Nas câmaras municipais, a proporção subiu de 15,3% em 2016 para 39,3% entre as mulheres eleitas em 2020.

No total de eleitos nos municípios, a participação delas passou de 4,8% para 7,2% entre 2016 e 2024. Mesmo com 5.006 mulheres negras eleitas em 2024, o crescimento de apenas 2,5 pontos percentuais em oito anos evidencia como barreiras estruturais seguem limitando o acesso dessas mulheres aos espaços de poder.

Mas, segundo ela, ainda tem muito o que avançar, principalmente quando se trata da morte de mulheres. “Lésbicas são as mulheres que mais morrem. Mulheres negras, trans, lésbicas. Então esse avanço a gente precisa pra ontem na nossa sociedade”, diz. 

“Nós tivemos alguns avanços concretos, contudo, ainda existe o racismo, o sexismo, sim. A gente consegue perceber isso. Porque a gente não percebe a diferença da paridade, da participação, sobretudo nos espaços de poder, relacionada à questão de gênero. 

Esther Marcos Santiago, 42, assistente social, moradora de Simões Filho, Bahia. 

Na sua primeira vez na marcha, em 2025, Maria Fernanda Silva, 25, moradora de Brasília, conta que, enquanto psicóloga preta, compreende a importância da construção da identidade a partir do coletivo, por isso, também marcha pela saúde mental da população negra.

“Hoje eu percebo que a gente consegue alcançar alguns espaços a mais, tanto na questão da representatividade, tanto na construção da identidade. No entanto, a gente segue passando ainda por micro violências que estão vindo nas partes veladas. Eu confio muito nesse empoderamento, tanto na questão da autoestima, mas no posicionamento também da gente construir saberes que envolvem tanto as tecnologias ancestrais, quanto ocupar espaços.” 

Maria Fernanda Silva, 25, psicóloga, moradora de Brasília.

Para ela, a demanda principal de muitas mulheres negras é a exaustão e a dificuldade de descansar. “Então quando a gente fala da saúde mental da população preta, principalmente as mulheres, a gente tem que focar bastante na questão do afeto. Mas o afeto também como empoderamento, não só aquela questão do afeto romântico. Nesse autoafeto, o poder do descanso, ter uma rede de apoio para que essa pessoa também possa descansar”, diz. 

Edineia de Fátima Santos, 59, moradora de Curitiba e integrante do Movimento Nacional da População de Rua, avalia que houveram avanços, mas reforça sobre a importância de olhar para a diversidade de questões que envolvem as mulheres negras. “A realidade é que as mulheres pretas se empoderaram numa gigantesca organização para poder reivindicar as pautas que nos foram roubadas. Mas no geral, faltam muitas pautas [a serem] colocadas”. 

“[Por exemplo], o direito das mulheres em situação de rua, a violência que as mulheres sofrem dentro desse governo que não tem políticas públicas para essas mulheres que são abandonadas pelo Estado, pelo município e até pelo governo federal. Não tem pautas para esse tipo de mulheres. Mas, no geral, estamos avançando”, coloca.

Maria Fernanda lembra que toda sua construção enquanto mulher negra não é só para si, é fruto das gerações anteriores e construção para as que virão. “E é importante fazer esse recorte da idade, porque embora algumas questões sejam diferentes por causa da geração, ainda assim somos todas mulheres pretas. Então, temos a mesma característica, o nosso sofrimento tem a mesma raiz”, finaliza.

“Terra é proteção”: a luta de mulheres negras africanas por justiça climática na COP30

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Bridget Masikati desembarcou em Belém – sede da COP 30 –  com a responsabilidade de milhares de histórias nas costas. São mulheres que levantam às 4h da manhã para buscar água em nascentes cada vez mais distantes, que replantam suas roças três, quatro vezes porque as chuvas não vêm ou chegam violentas demais, que perdem filhos para a desnutrição enquanto a seca se estende. Mulheres negras, rurais, zimbabuanas — invisíveis nas negociações climáticas globais, mas na linha de frente da crise.

Ela é da Vila Mukanganwi, no distrito de Bikita, no Zimbábue, onde os riachos de sua infância secaram e a nascente que nunca falhava agora só corre após chuvas generosas. Cresceu vendo viúvas sendo expulsas de suas terras e filhas impedidas de herdar o solo que ajudaram a cultivar até o mesmo acontecer com sua mãe, após a morte do pai. Foi esse golpe que a transformou em ativista — e a levou até a COP 30. Para ela, crise climática e desigualdade de gênero são inseparáveis.

Atualmente, como parte da organização Women & Land in Zimbabwe (Mulheres e Terra no Zimbábue), Bridget trabalha em comunidades rurais para garantir que mulheres tenham acesso à terra, defendam práticas agroecológicas e construam resiliência climática a partir do que sabem fazer melhor: cuidar. Ela chegou em Belém com uma mensagem urgente para os líderes mundiais reunidos na Amazônia: sem direitos fundiários para mulheres, não existe justiça climática possível.

Gabi Coelho – Você cresceu na Vila Mukanganwi, no Zimbábue. Como era esse lugar na sua infância? E como está hoje?

Bridget Masikati – Quando criança, Mukanganwi era cheia de vida. Riachos claros cruzavam a vila, nascentes perenes alimentavam nossas hortas, e da porta da nossa cozinha buscávamos água de um canal desviado que fluía de uma nascente que nunca secava. Nossa casa tinha um enorme pomar com diferentes árvores frutíferas. Era uma paisagem onde as pessoas viviam em harmonia com a natureza, a vila era conhecida como um celeiro, com diversidade e chuvas confiáveis.

Hoje a história é diferente. Muitos riachos encolheram ou secaram, e a nascente que antes nos dava água o ano todo agora corre apenas após boas chuvas. O desmatamento e as mudanças climáticas erodiram o solo. As estações são imprevisíveis — as secas se estendem por mais tempo, as chuvas chegam tarde e violentamente, e ondas de calor queimam as plantações. O pomar ainda está de pé, mas a paisagem mais ampla mudou da abundância para a incerteza.

As mudanças climáticas transformaram tarefas básicas em batalhas diárias. As mulheres agora caminham mais longe por água, lenha é escassa e falhas nas colheitas são comuns. Chuvas erráticas forçam replantios repetidos, aumentando o trabalho sem rendimento. A desnutrição aumenta, as cargas de trabalho também e o estresse se acumula. As mudanças climáticas não são abstratas, são realidade vivida. Dignidade perdida, cultura perdida, redes perdidas e aumento do fardo do cuidado.

O que te fez decidir lutar pelos direitos das mulheres? Tem uma história pessoal por trás disso?

Meu despertar veio tanto das minhas observações de infância quanto de uma experiência familiar dolorosa. Crescendo, eu constantemente via violência contra mulheres, especialmente viúvas sendo expulsas de suas casas, ou filhas tendo negada a terra que ajudaram a cultivar. Era comum ouvir os anciãos dizerem: “Uma mulher não tem terra.”

Isso se tornou pessoal durante os últimos dias do meu pai. Depois que ele faleceu, alguns líderes da vila cobiçaram nosso pomar, fruto de anos de trabalho árduo, e queriam realocá-lo para seus filhos. Minha mãe foi repentinamente tratada como hóspede em sua própria terra. Ver ela lutar por dignidade e sobrevivência quebrou algo dentro de mim. 

Eu não suportava ver minha mãe sofrer sozinha, e me vi defendendo a própria terra que nos criou. Esse momento acendeu o verdadeiro ativismo e alimentou a energia nas comunidades com as quais trabalho na Women & Land in Zimbabwe.

Que tipo de resistência você enfrenta nesse trabalho?

Trabalhar em uma comunidade patriarcal nunca é fácil. Alguns homens se sentem ameaçados por mulheres empoderadas e desafiam abertamente nossas reuniões. Líderes tradicionais às vezes resistem à ideia de emitir terras para mulheres. 

Enfrentamos ataques verbais, acusações de “destruir famílias” e pressão para desistir. Até algumas mulheres mais velhas que cresceram sob normas de gênero rígidas nos alertam para ficarmos em silêncio.

As mulheres realizam a maior parte do trabalho agrícola, mas possuem menos terra. Sem terra, elas não têm garantia, controle ou poder de decisão. Investimentos inteligentes para o clima, como irrigação, bancos de sementes, agrofloresta, são mais difíceis de implementar quando a terra é insegura. A desigualdade aprofunda a vulnerabilidade climática.

Mas permanecemos firmes. Mostramos às comunidades os benefícios econômicos e sociais quando as mulheres têm terra: mais comida, melhores rendas, crianças mais saudáveis e redução da violência.

A gente ouve falar muito de financiamento climático nas COPs. Quanto disso chega de fato nas mãos das mulheres rurais?

Uma quantia insignificante do financiamento climático agrícola chega às mulheres no campo. Isso se deve à burocracia, falta de documentação, estruturas rígidas de financiamento e comitês dominados por homens que bloqueiam o acesso. A maioria dos fundos fica no nível nacional ou institucional.

A maioria dos esquemas de crédito de carbono e monoculturas “verdes” em larga escala prejudica as mulheres rurais. Eles ocupam terras comunais, restringem acesso a pastagens e lenha, e raramente compartilham benefícios. Esses projetos aprofundam a desigualdade, reduzem a biodiversidade e minam a soberania alimentar. As mulheres se beneficiam mais da agrofloresta controlada pela comunidade e sistemas de cultivo diversificados do que dos modelos corporativos de “crescimento verde”.

Apesar de tudo, que soluções vocês estão construindo para enfrentar a crise?

Apesar dos recursos limitados, as mulheres estão liderando soluções inovadoras: preservação de sementes indígenas e bancos de sementes, agroecologia, captação de água através de diferentes formas, hortas comunitárias alimentadas por bombas solares, plantio de árvores e restauração de campos degradados. Essas soluções são de baixo custo, sustentáveis e enraizadas no conhecimento vivido.

Uma das nossas maiores vitórias coletivas através da WLZ inclui apoiar mulheres rurais a adquirir mais de 200 hectares de terra para projetos de desenvolvimento em grupo. Para muitas mulheres, esta foi a primeira vez que tiveram acesso seguro à terra que era delas, não emprestada, não controlada por homens, não ameaçada por despejo. Uma mulher me disse: “Esta terra restaurou minha dignidade. Meu marido costumava me bater por pedir dinheiro. Agora eu alimento minha família.”

Em Belém, conhecendo a realidade das mulheres amazônicas, o que te chamou atenção nas semelhanças entre as lutas de vocês?

As mulheres amazônicas e as mulheres rurais zimbabuanas enfrentam ameaças semelhantes: grilagem de terras, extrativismo, desastres climáticos e controle patriarcal. Ambas defendem territórios ricos em biodiversidade. Ambas se organizam além das fronteiras. Ambas detêm conhecimento ancestral crítico para a justiça climática.

Irmãs na Amazônia e em todo o Brasil, sua luta é nossa luta. Continuem defendendo suas florestas, rios, sementes e comunidades. Sua coragem nos inspira. Estamos juntas em solidariedade, de Bikita à Amazônia, do Zimbábue a Belém, enraizadas como as árvores mais antigas, inabaláveis pelas tempestades, crescendo mais fortes a cada estação.

Integrante da organização Women & Land in Zimbabwe (Mulheres e Terra no Zimbábue), Bridget trabalha em comunidades rurais para garantir que mulheres tenham acesso à terra, defendam práticas agroecológicas e construam resiliência climática. Foto: Arquivo pessoal.
Este conteúdo foi produzido no contexto da COP 30, realizada em Belém, durante os dias 10 a 21 de novembro de 2025.


Futebol de várzea: times unem lazer e transformação social na zona leste de São Paulo

Da escolinha para crianças às ações sociais, e até mesmo aqueles momentos em que a galera se junta para um churrasco no campo, a união de moradores, torcedores, familiares, equipe técnica e diretoria, comprova a potência do futebol dentro e fora das quatro linhas.

Clubes tradicionais como o Botafogo de Guaianases, o Princesa Futebol Clube e o Vila Minerva, em Itaquera, são exemplos de como os times de várzea têm, ao longos dos anos, ocupado o papel do Estado ao suprir a ausência de alternativas esportivas e educacionais para os moradores.

“O futebol me salvou e é essencial pra molecada sair da rua. A educação começa pelo esporte.”Juliano Pereira, 38, jogador do Princesa Futebol Clube

Fundado em 1955, com muita mobilização de seus frequentadores, recentemente o campo do time, localizado na rua Luís Mateus, passou por um processo de revitalização. O campo do time deixou o terrão para dar lugar ao gramado sintético, além de receber postes de iluminação.

Décadas de resistência e diversão

Fundado no mesmo ano que o Princesa, o tradicional Botafogo de Guaianases completou 70 anos em abril. Ele foi fundado por Admardo Armond, um carioca que se mudou para São Paulo. 

Boa parte dos moradores da região conhecem ou já tiveram contato com o time e suas principais atividades, que acontecem na sua sede na rua Alexandre Monat, 166 ou no CEU Jambeiro.

O projeto social da escolinha de futebol é uma forte vertente dos trabalhos realizados pelo time. Nele, participam cerca de 600 crianças entre 5 e 16 anos, onde aprendem os fundamentos do esporte e, por vezes, têm a oportunidade de participar de peneiras e campeonatos de clubes profissionais.

Moradora da região, Débora Ferrari é professora e coordenadora da escolinha de futebol do Botafogo de Guaianases. Foto: Andressa Barbosa

A coordenadora e treinadora, Débora Ferrari, 41, afirma que o time acolhe crianças de diferentes perfis e sem distinções. Ela também alerta para que os pais acompanhem a evolução dos filhos no esporte. 

“Vejo crianças de 5 anos que vem sozinha treinar. É importante que os pais acompanhem, incentivem e tenham vivência com os filhos”, diz.

Um passo de cada vez

A falta de investimento e patrocínio é uma das principais reclamações de quem está nos bastidores dos times da várzea. “Falta estrutura, falta apoio. A gente faz o que pode, não tem investimento nem ajuda de custo. Às vezes, tira do próprio bolso para manter o time”, conta o técnico do time Vila Minerva, Davi Nascimento, 27. 

Luiz Oliveira Chagas, 61, e Einstein Jesus Teixeira da Costa, 73, mais conhecidos como Luizinho e Nego, são do Botafogo de Guaianases, e ressaltam que órgãos públicos deveriam investir e divulgar mais as iniciativas da várzea.

No time, vez ou outra os responsáveis dos alunos da escola comunitária de futebol precisam arcar financeiramente com gastos voltados para uniforme, alimentação e transporte em dias de jogos fora do campo do CEU Jambeiro.

Luizinho e Nego fazem parte da velha-guarda e participam de quase todas as atividades promovidas pelo time. Foto: Andressa Barbosa

Luizinho também foi o responsável por criar categorias 50+ dentro do Botafogo de Guaianases, possibilitando que jogadores mais antigos retornassem ao campo. 

“Antes diziam que era comédia o cara com 50 anos jogar bola. Hoje tem até jogador de 83 anos […] Times tradicionais [que não estavam ativos] voltaram a jogar por causa das categorias 50 e 60. Então o futebol continua vivo.” – Luiz Oliveira Chagas, do Botafogo de Guaianases

Nego, presidente da velha guarda e integrante do clube desde 1966, acredita que tais práticas são responsáveis por dar ao Botafogo o status de time respeitado no universo da várzea paulista.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação do laboratório de produção de conteúdo Você Repórter da Periferia 2.0 (VCRP 2.0), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2014, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Jornalismo e ritmo: Hip-Hop e celebração das negritudes como marco cultural e comunicacional

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A gente se reconhece nas ruas, nos becos, nos palcos e nas praças onde o hip-hop pulsa. Essa cultura, que há mais de quarenta anos se afirma como uma das expressões mais potentes das periferias urbanas, é também uma lente e um método que orienta a forma do Desenrola e Não Me Enrola de se comunicar, investigar e contar histórias. E está intimamente ligada às resistências e celebrações das negritudes.

Com tudo isso, marcamos o 20 de novembro – Dia da Consciência Negra e o associamos ao 12 de novembro – Dia Mundial do Hip-Hop.

Ambas as datas remontam as formas de pessoas negras, periféricas e de grupos socialmente marginalizados estarem no mundo. A celebração da negritude e de uma manifestação cultural urbana e das quebradas é marcada pela urgência de falar, de disputar narrativas e de criar caminhos próprios rumo à denúncia de violações e à efetivação de direitos sociais. Assim foi com o rap, com o graffiti, com o break, com o DJ e com o conhecimento — os cinco elementos que formam essa cultura viva e insurgente.

Thais Siqueira e Ronaldo Matos, cofundadores do Desenrola e Não Me Enrola, ao lado do rapper Dexter, em abril de 2013, durante a coletiva de imprensa e gravação do DVD do artista. Essa foi uma das primeiras coberturas produzidas pelo Desenrola.

Da mesma forma, articulações históricas e de denúncia de racismo, além de análises de fenômenos da branquitude estão ligados ao preciso reconhecimento das marcas coloniais e de uma sociedade constituída por hierarquizar raças.

Assim, nosso jornalismo se estrutura sobre o princípio de tomar a palavra, questionar o olhar hegemônico e dar visibilidade às múltiplas existências que constroem os territórios populares.

A palavra como lança e instrumento de transformação

Assim como o MC transforma sua vivência em verso e denúncia, o jornalismo que fazemos transforma a experiência coletiva das quebradas em narrativa e reflexão. As matérias  contam o cotidiano dos bairros, as reportagens sobre cultura, educação e políticas públicas, ou as entrevistas com artistas e ativistas, todas partem da mesma ética: a de que a palavra é ferramenta de transformação social.

Como cantam os Racionais MC’s em ‘Capítulo 4, Versículo 3’: “A palavra tem poder, pode curar, pode ferir, pode salvar ou destruir.”

Esse verso sintetiza muito do nosso fazer jornalístico — a palavra como ponte, resistência e libertação. O microfone do MC e o bloco de notas do repórter nascem do mesmo desejo de comunicar o que o sistema insiste em calar.

Jornalismo é resistência

O hip-hop nos ensinou que comunicar é resistir. Nos anos de 1980 e 1990, as rádios comunitárias e os bailes de rap foram espaços de denúncia e organização política. Hoje, esse legado inspira novas linguagens: podcasts, vídeos, blogs e reportagens que continuam desafiando o silêncio imposto às periferias.

O Desenrola nasce dessa energia — de quem entende que o microfone, a câmera e o texto são extensões de uma luta histórica por visibilidade e autonomia. Assim como o hip-hop, o jornalismo periférico é coletivo, criativo e insurgente.

Parte da cena, parte da história

Não estamos apenas ao lado da cultura das periferias — somos parte dela. Assim como não focamos apenas nas mazelas das populações marginalizadas, nos direcionamos com olhos e ouvidos atentos ao legado do povo preto diaspórico. Nosso jornalismo integra a cena cultural que retrata. As pessoas que compõem nossa equipe participam de rodas de rima, batalhas, iniciativas de arte e educação popular. Caminhamos junto de artistas, produtores, comunicadores e educadores que cotidianamente têm no hip-hop um projeto coletivo de existência.

Estar inserido nesse circuito nos permite produzir uma comunicação que fala de dentro, com afeto, pertencimento e compromisso político. O Desenrola é parte do circuito cultural que narra o que vive e vive o que narra.

Registro feito por Thais Siqueira e Ronaldo Matos, cofundadores do Desenrola, durante o show do grupo Versão Popular, durante a Virada Cultural, em maio de 2013. O grupo era formado por artistas da zona sul de São Paulo.

Nós por nós: narrar é resistir

Ao longo dos anos, cobrimos batalhas de rima, oficinas culturais, saraus e coletivos que fazem do hip-hop um território de formação e cidadania. Mas mais do que tema de pauta, o hip-hop é um modo de fazer. É ritmo, é oralidade, é estética e é política. Está no nosso jeito de apurar, de escutar e de construir a notícia a muitas mãos — com o compromisso de romper estigmas e fortalecer a autoestima das quebradas.

Assim como entendemos a intersecção do Dia da Consciência Negra como potente catalisador da construção de um futuro possível baseado na igualdade racial, justiça social e valorização da diversidade no Brasil.

Se o hip-hop diz “nós por nós”, o nosso jornalismo afirma: narrar e celebrar é resistir.
Contar histórias a partir das negritudes e das periferias é reafirmar que a comunicação popular tem valor, que o saber produzido nos territórios é legítimo e que a cultura é também uma forma de política.

No cruzamento entre o beat e a palavra, entre o microfone e o bloco de notas, seguimos construindo pontes. O hip-hop ensina que falar da periferia é também falar com a periferia — e é esse diálogo que faz do Desenrola e Não Me Enrola um projeto vivo, coletivo e transformador.

Em Guaianases, projetos impactam autonomia e a vida de quem envelhece na periferia

“Eu tinha diabetes, colesterol, pressão alta. Hoje, está tudo normal”, conta o baiano Leonídio Neto Chagas, 70 anos, aposentado e morador de Guaianases há 50 anos. 

Incentivado inicialmente pela filha, ele participa do projeto Dia Total, realizado de forma gratuita no Parque Linear Guaratiba, e se sente motivado a manter a frequência nas atividades com o apoio dos colegas.

“O pessoal trata todo mundo igual, seja novo ou velho. Todo mundo abraça como se fosse uma criança. É como se fosse uma família e uma casa”, conta

Reconhecido como destaque do bairro, o projeto existe há mais de 10 anos e mostra como iniciativas comunitárias fortalecem a saúde física e mental de quem envelhece na periferia.

“Estava depressiva por ter me aposentado e uma amiga me indicou o Dia Total. Fui muito bem recebida”, relata Margarete Pereira de Abreu, 52 anos, que frequenta o projeto há seis anos.

Professora aposentada e moradora de Guaianases, Margarete Pereira de Abreu, 52 anos, encontrou no projeto Dia Total acolhimento e motivação após a aposentadoria. Foto: Jéssica Calheiros

Desde então, sua rotina passou por uma grande transformação: ela sai de casa todos os dias às 5h30 para participar das atividades, também começou a frequentar a academia e a pedalar na praia. 

No entanto, ela aponta os desafios enfrentados pelos frequentadores. “O parque era muito sujo. Quando chegamos aqui, limpamos todo o espaço, e agora ele tem respeito. Mas é muito complicado: os banheiros são fechados e praticamente não há policiamento nenhum.” Apesar das dificuldades, ela reforça que o local segue sendo um espaço de acolhimento e superação.

“Hoje, [os frequentadores] entendem que o calo da mão e o suor da testa trazem pra gente o que a gente mais precisa: a coragem, a determinação, a força, a garra, a luta, a esperança — e a esperança não do esperar, a esperança do esperançar.” – Felipe Bezerra, idealizador do Projeto Dia Total.

Felipe Bezerra, diretor na SME-SP e idealizador do projeto Dia Total, atua como mentor emocional e dedica-se a transformar vidas por meio do cuidado e da empatia. Foto: Jéssica Calheiros.

Transformar a vida da comunidade foi o que motivou João Gabriel, 40 anos, a criar e manter, junto com seu primo Rodrigo Augusto, a Academia Black Brothers. “Nosso maior público no projeto é da terceira idade, e 90% são mulheres”, diz. “Aqui no bairro, esse é um público que não têm incentivo ao esporte, não tem apoio.”

Empresário e morador de Guaianases, João Gabriel, 40 anos, criou a Academia Black Brothers ao lado do primo Rodrigo Augusto para oferecer ao bairro as oportunidades que ele gostaria de ter tido na adolescência. Foto: Jéssica Calheiros.

Oportunidade para os frequentadores, mas também para quem programa as atividades. Na Academia Black Brothers, Geraldo Gabriel do Nascimento, de 71 anos, ministra aulas de boxe, incluindo turmas voltadas para pessoas idosas. 

Ele começou a praticar o esporte em 1971, aos 14 anos, e chegou a competir em competições amadoras, mas precisou interromper a prática ao servir na Aeronáutica. Após se aposentar, retomou o boxe na academia do filho. “Essa minha volta é só com o intuito de passar um pouquinho do que aprendi e manter um bom condicionamento físico.”

“Estou com 71 anos, tenho uma vida plena, normal, eu faço de tudo. Graças a Deus, tenho uma ótima saúde. Acredito que os esportes trazem muitos benefícios e são necessários na vida das pessoas.”

Aos 71 anos, Geraldo Gabriel do Nascimento, morador de Guaianases, compartilha sua paixão pelo boxe como professor na Academia Black Brothers. Foto: Jéssica Calheiros.

É preciso mais do poder público

Criada em Guaianases, a psicóloga Mariana Félix, especialista em psicologia organizacional e clínica, explica que a falta de políticas públicas voltadas à população idosa é um problema que afeta diretamente a saúde mental desse grupo.

“Os idosos sofrem muito com a solidão. Nas periferias, faltam centros de acolhimento e atividades voltadas a esse público. São políticas que não são levadas a sério pelos governantes, e, sem atenção adequada, muitos acabam depressivos e sem o respaldo da família, sendo, por vezes, abandonados”, destaca.

Ela explica que o acesso limitado aos cuidados básicos e à informação agrava ainda mais essa realidade, e reforça que a inclusão dos idosos em espaços de convivência é essencial. 

Seu Antônio, conhecido carinhosamente como Toto, é um dos destaques do projeto Dia Total. Foto: Jéssica Calheiros.

“A atividade física é benéfica para todas as idades, mas especialmente para os idosos, pois ajuda a tonificar os músculos e aumenta a disposição. Além disso, estimula neurotransmissores como serotonina, noradrenalina e dopamina — substâncias ligadas ao prazer, à regulação do humor e à memória.”Mariana Félix, especialista em psicologia organizacional e clínica

Para participar, basta chegar ao parque no horário das atividades e se juntar ao grupo. As aulas são gratuitas e abertas a todas as idades!

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação do laboratório de produção de conteúdo Você Repórter da Periferia 2.0 (VCRP 2.0), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.