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Em defesa da vida… será mesmo?

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Vira e mexe surge um projeto de lei, ou até uma reforma do Código Civil, para dar direitos de pessoa a embriões e fetos. Por isso, queria apresentar alguns argumentos sobre o impacto que essa reforma pode ter sobre os direitos reprodutivos de todas as pessoas com útero. Como o dia 28 de maio é o Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna, vou começar falando sobre vida e morte.

Uma das grandes discussões em torno da legalização do aborto é sobre a vida desde a concepção. Esse é um debate delicado, porque o início da vida não tem uma definição única. Ele varia de acordo com as diferentes crenças religiosas e até dentro de uma mesma doutrina religiosa, em diferentes momentos históricos.

Além disso, impor uma “verdade” baseada em uma crença religiosa em particular sobre todas as pessoas, de todas as religiões, fere o princípio básico da liberdade religiosa, que é um direito constitucional. No entanto, como uma pessoa não religiosa, vou entrar nessa discussão, por outro lado.

Se um embrião ou feto forem atribuídos os mesmos direitos de pessoa de uma menina, ou mulher grávida, o aborto pode ser considerado homicídio, mesmo que a vida da gestante esteja em risco.

Neste caso, por exemplo, se uma criança for estuprada e fizer um aborto, ela e as pessoas que a ajudarem nesse aborto poderiam ter penas mais severas do que quem a estuprou — como bem disse a campanha “Criança não é mãe”, que você deve ter visto por aí.

Manifestação no Rio de Janeiro sobre o direito ao aborto Foto: Fernando Frazão (Agência Brasil)


Em países onde esse tipo de legislação já existe, como El Salvador e alguns estados dos Estados Unidos, um acidente de carro, seguido de aborto espontâneo, mesmo no caso de uma gestação de poucas semanas, pode levar à prisão.

Você pode ser responsabilizada por colocar o embrião em risco. Sem falar que se o aborto for proibido em qualquer circunstância, inclusive quando a vida da gestante está em risco, essa visão considera mulheres grávidas como incubadoras, em vez de pessoas com direitos básicos, desejos e projetos de vida próprios. E a gente sabe sobre quem o braço da justiça é mais pesado.

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal promoveu uma audiência pública para discutir a descriminalização do aborto até 12 semanas.

Durante dois dias, 50 pessoas e entidades apresentaram seus pontos de vista sobre o tema: 33 a favor — entre as quais representantes de organizações de direitos humanos, centros de pesquisa, o próprio Ministério da Saúde e movimentos sociais —, e 17 contra — 8 delas, entidades religiosas, das quais 5 foram representadas por homens. Apenas um profissional de saúde estava do lado contrário.

Embora o tema ainda não tenha sido votado no STF, esse evento marcou a história do debate público sobre aborto no Brasil.

Entre as falas que defendiam a descriminalização, o principal argumento foi a defesa da vida das mulheres, fundamentado por uma enxurrada de dados nacionais e internacionais. O aborto inseguro está entre as 5 principais causas de mortalidade materna; as outras quatro são: hemorragia, hipertensão, infecções e doenças agravadas pela gravidez — como a doença cardíaca da personagem Joy, no filme “Disque Jane”.


Segundo o próprio Ministério da Saúde, mais de 90% das mortes maternas são evitáveis e em torno de 66% das mulheres que morrem por causas ligadas à gestação, parto e aborto são negras.

Oferecer acesso a cuidados de pré-natal, parto e puerpério adequados são maneiras eficazes de reduzir a mortalidade materna, mas é igualmente importante e impactante prevenir gestações indesejadas. E, segundo a Organização Mundial da Saúde, isso se faz com educação sexual integral, ampliação do acesso a métodos contraceptivos de longa duração e aborto seguro.

Mas, durante aquela mesma audiência pública do STF, entre quem se opunha à descriminalização do aborto — se autointitulando “em favor da vida” —, havia até quem questionasse e menosprezasse o número de mortes de mulheres. Com fetos de borracha nas mãos, chamavam de mentirosos e exagerados os dados apresentados.

Embriões e fetos eram personalizados e sua existência destacada do corpo da gestante: nas imagens de slides, são sempre rosados, brancos, flutuando no nada, sem relação com a pessoa grávida de quem sua existência depende.

A luta em defesa do aborto caminha de braço dado com a defesa da maternidade desejada. Justiça Reprodutiva, como já disse aqui antes, é demandar políticas que protejam todas as fases da reprodução e que permitam que as pessoas tomem decisões informadas sobre ter ou não crianças, quantas e quando ter.

Que tenham apoio na prevenção de gestações indesejadas, mas que também tenham teto, comida de verdade e escola de qualidade para suas gestações desejadas, sem medo de que uma bala perdida encontre o peito de nenhuma delas. É sobre vida digna.

Contudo, tratar embriões e fetos como separados da pessoa grávida, desconsiderando os impactos físicos, psicológicos, econômicos e sociais sobre a vida e o corpo dessa pessoa, é um malabarismo retórico que nega às mulheres seu estatuto de pessoa e o transfere para a gravidez que está dentro do seu corpo.

Se você quer saber mais sobre a audiência pública ou sobre esse debate de vida e morte, recomendo a tese da Larissa Rybka. Os vídeos da audiência completa estão disponíveis na internet; aqui tem uma playlist com algumas falas fundamentais, mas recomendo particularmente esse vídeo da Lívia Casseres, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Adolescência da Netflix expõe a necessidade de olhar atento para os perigos dessa fase da vida

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O lançamento da série britânica, Adolescência,  reacendeu discussões importantes sobre os desafios e os perigos dessa fase da vida.
Desde então, o tema ganhou destaque nas redes sociais, impulsionando uma série de vídeos que analisam os motivos que levaram o personagem principal, Jamie Miller, de 13 anos, a cometer um crime contra uma colega da mesma idade.

Confira o resultado dessa conversa no quinto episódio da quarta temporada do Desenrola Aí 

Apesar de se passar no Reino Unido, o enredo retrata dilemas que também fazem parte da rotina de muitos jovens nas periferias brasileiras.

Enquanto Jamie vive cercado por uma rede de suporte composta por casa, família e escola estruturada, aqui, no Brasil, a adolescência é frequentemente atravessada pela falta de oportunidades, pelo abandono institucional e por uma rotina exaustiva, que empurra meninos e meninas para responsabilidades muito antes da hora.

Esse cenário é ainda mais alarmante quando se observa que, em 2023, o trabalho infantil fazia parte do cotidiano de 1,6 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos — sendo 65,2% delas pretas ou pardas, segundo dados da Pnad. Esses números revelam como a infância e a adolescência seguem marcadas por profundas desigualdades.

Leandro Rodrigues, psicanalista com mais de 20 anos de experiência em assistência social e atual coordenador do Centro da Criança e Adolescente da Fundação Julita, foi o quinto entrevistado da quarta temporada do programa Desenrola Aí.

Ele destaca que muitos adolescentes não encontram um espaço seguro com os adultos com quem convivem para a escuta e o acolhimento. 

Para ele, a rotina exaustiva e a falta de tempo de qualidade com a família levam esses jovens a buscar apoio, orientação e afeto em colegas da mesma idade.

A ausência de vínculos com figuras adultas abre portas para as redes sociais, onde o machismo, o racismo e os diversos preconceitos se manifestam e transbordam para a realidade.

Casos como a Baleia Azul, o desafio do desodorante e situações em que adultos se passam por crianças ou adolescentes para chantagear ou influenciar negativamente são exemplos reais que afetam os adolescentes” afirma Leandro.

Leandro Rodrigues é psicólogo e trabalha na área da educação com crianças e adolescentes há 20 anos. Foto: Geovanna Santana.

Desde 2024, o Governo de São Paulo estabeleceu o programa das Escolas Cívico-Militares, definido como um modelo de gestão escolar que prevê a participação de policiais militares em atividades educacionais, administrativas e disciplinares.

Leandro questiona a eficácia desse modelo: “Entender os contextos que levam a alguns comportamentos é difícil. É mais fácil punir e transformar o ambiente escolar em um lugar de medo”, diz.

Desenrola Aí

O programa Desenrola Aí é uma iniciativa quinzenal que promove diálogos com especialistas da quebrada, abordando temas relevantes que impactam o cotidiano da população negra e periférica, além dos direitos humanos, que são fundamentais para a convivência em sociedade. O programa é uma realização do Desenrola e Não Me Enrola, Fluxo Imagens e Portal Kintê Notícias, com apoio da Lei de Fomento à Cultura da Periferia, da cidade de São Paulo.

Coletivo promove acesso à informação sobre prevenção de ISTs na Brasilândia 

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No distrito da Brasilândia, zona norte de São Paulo, o Coletivo Prevenção para Todxs tem pautado a necessidade de dialogar com a população periférica sobre prevenção às ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis) e o acesso à saúde. A iniciativa, que surgiu durante a pandemia da Covid-19, começou com a distribuição de autotestes e de preservativos para os moradores dos bairros Jardim Guarani, Taipas, Parque Tietê, Jardim Elisa Maria, Parque Itaberaba, entre outros. Atualmente o grupo também circula por escolas para falar sobre prevenção.

Thiago Araújo, morador da Brasilândia, ativista, educador social e um dos fundadores do Coletivo Prevenção Para Todxs, conta que o cenário epidemiológico sobre as infecções foi um dos motivos para a criação do projeto.

Segundo o Boletim Epidemiológico de 2024, do Ministério da Saúde, até junho de 2024, o Brasil registrou quase 20 mil novos casos de infecção por HIV e cerca de 18 mil diagnósticos de aids. A maior parte dos casos (37,1%) está entre jovens de 20 a 29 anos. A região Sudeste teve o maior número de mortes por aids (55,5%), seguida pela região Sul (18%). Mesmo com os números altos, a mortalidade por aids caiu 32,9% entre 2013 e 2023.

A sífilis é ponto de atenção entre jovens de 15 a 29 anos. Dados da OMS e da OPAS mostram que, entre 2020 e 2022, os casos entre pessoas de 15 a 49 anos aumentaram 30% nas Américas. No Brasil, o Ministério da Saúde aponta que o crescimento tem sido mais forte entre homens jovens.

Entre as hepatites virais, 13% das pessoas infectadas no mundo haviam sido diagnosticadas com hepatite B até o fim de 2022, e apenas 3% estavam em tratamento. Para a hepatite C, 36% foram diagnosticadas e 20% em tratamento, o que representa 12,5 milhões de pessoas.

Outra motivação importante para o surgimento do coletivo veio de uma vivência pessoal de Thiago. Após uma relação sexual desprotegida, ele precisou acessar a PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV), medicamento de uso emergencial que pode evitar a infecção pelo HIV, vírus causador da aids, se iniciado em até 72 horas após a exposição. Mas ao procurar atendimento na região, foi informado de que a profilaxia não estava disponível e precisou se deslocar até outra zona da cidade. A situação, além de angustiante, segundo ele, escancara as múltiplas desigualdades no acesso à saúde nas periferias.

‘‘Quando a gente olha e fala para a Brasilândia, estamos falando de diversos bairros, onde o SAE (Serviço de Atendimento Especializado) e o CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento) são muito distantes. [O mais] próximo aqui de onde a gente está é pelo menos uns 15 minutos. Mas, por exemplo, se você vai para Taipas, o mais próximo fica a uma hora de distância [de transporte público]”, diz o ativista. 

“Pensando nesse contexto, temos noção, através dos dados do boletim epidemiológico, que os moradores daqui [da Zona Norte] só chegam no sistema de saúde quando já estão adoecidos, apresentando algum sintoma, pois o sistema não alcança essas pessoas ainda durante o período de testagem”.

Constatações como essas impulsionaram ações diretas e territorializadas do grupo, que atualmente realiza não só palestras, mas também rodas de conversa, oficinas e debates sobre prevenção, tratamento e combate ao estigma contra pessoas vivendo com HIV/Aids. A iniciativa também realiza a distribuição e facilitação no acesso a insumos de prevenção, como camisinhas internas e externas, gel lubrificante, auto testes de HIV, PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV) e PrEP (Profilaxia Pré-Exposição ao HIV).

‘‘O que mais nos preocupou foi perceber, durante as distribuições dos insumos, que muitas pessoas sequer sabiam o que era um preservativo interno ou o autoteste de HIV. Começamos a cobrar a Secretaria Municipal de Saúde para entender qual era o plano para esse público, pois o s dados só aumentam a cada ano” Thiago Araújo, morador da Brasilândia, ativista, educador social e um dos fundadores do Coletivo Prevenção Para Todxs.

O grupo realiza atividades principalmente em espaços educativos, como escolas e cursinhos populares, mas buscam levar informações a outros espaços que tenham interesse em dialogar sobre o tema. Em 2024, por exemplo, o projeto foi convidado para falar sobre prevenção sexual em uma igreja evangélica para um grupo de mulheres de 30 a 60 anos.

A iniciativa já alcançou diretamente mais de 1.500 pessoas por meio das palestras ministradas em cerca de 15 escolas. Indiretamente, o impacto já ultrapassa 3 mil pessoas, considerando a distribuição dos kits de prevenção, em parceria com o SAE Nossa Senhora do Ó. Além disso, participam de eventos públicos, feiras livres e campanhas nas ruas.

Estigmas e esteriótipos

Outra ferramenta importante que tem amplificado as ações é o podcast produzido pelo grupo que fala sobre prevenção, tratamento, cuidado humanizado e luta contra a sorofobia.

Jéssica Oliveira, co-fundadora e educadora no projeto, menciona a evolução dos encontros ao longo do tempo. “Eu acho que o saldo que a gente tem tirado de positivo é ver essas informações sendo levadas à frente. O nosso diferencial é usar uma linguagem mais simples [e] direta que as pessoas entendem melhor. A gente evita termos técnicos, aqueles que assustam e costumam aparecer nas escolas. Assim, prestam mais atenção e entendem com mais clareza [questões] que já [vivenciam no dia a dia]’’.


‘‘As pessoas não sabem onde buscar informações. O tema não é discutido em casa, a escola evita abordar, e a internet nem sempre é uma fonte confiável. Por isso, o coletivo cria um espaço aberto para perguntas sem julgamentos’’ – Thiago Araújo, morador da Brasilândia, ativista, educador social e um dos fundadores do Coletivo Prevenção Para Todxs.

O combate aos estigmas e estereótipos é parte crucial do trabalho realizado. “Sempre buscamos desassociar as ISTs [a algum grupo de pessoas], para que eles entendam que não é um bicho de sete cabeças, que há como se prevenir, que tem como se testar e se tratar. Queremos mostrar que é possível manter [a saúde] em dia, não só com a camisinha, como geralmente só é falado”, afirma Thiago.

Jéssica diz que sobrevivência é a palavra que resume a atuação do projeto. “A nossa região está sendo extremamente atacada pelas polícias, esquecida pelas políticas públicas. Nós não temos acesso à saúde, ao saneamento básico, à alimentação, a meio de transporte adequado. A gente tem buscado o mínimo de [direitos] que o governo deveria garantir para nós. Então, para a gente conseguir ter esperança, [mas] antes a gente tem que sobreviver”, diz. 

Thiago aponta que existem avanços na pauta, mas que a periferia continua à margem. Nesse sentido, ele reforça a necessidade do funcionamento dos três pilares do SUS: integralidade, universalidade e equidade. Além do acesso a insumos e a informações, o educador coloca que para a prevenção às ISTs, a rede de saúde precisa estar pronta para receber as pessoas. 

“Não adianta apenas chegar a máquina [de dispensação de PrEP e PEP na cidade], uma máquina parada ali não vai fazer diferença para a pessoa que não tem informação. Que chegue sim a máquina, mas com a informação e com acessibilidade para o acesso”, ressalta Thiago.

Memórias do Passado – 13 de Maio

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Na sessão de hoje, gostaria de falar sobre conexões e reconexões que acontecem e acolho como algo simbólico e profundo — algo que nos afeta e, ao mesmo tempo, nos aproxima do passado.

Quando escrevi o livro Obará – Escrevivências Coletivas de Autocuidado, iniciei a narrativa contando sobre uma fase muito importante da minha vida: a pré-adolescência. Foi nesse período que meu desenvolvimento físico me apresentou ao mundo como uma jovem adulta.

Essa fase me levou a tecer fortes amizades no bairro. Integrei o primeiro coletivo, que nomearam CECA. Organizavam bailes black, havia um time de vôlei do qual eu fazia parte, um time de futebol, festas juninas e tantos outros eventos. Me sentia feliz e pertencente àquela coletividade.

Foi ali que aprendi a arte de dançar samba, black music… e tudo era muito maravilhoso para o meu coração juvenil. Meus sentimentos eram precoces e, consequentemente, os relacionamentos também foram intensos — ainda que nem todos tenham se desenvolvido plenamente.

No livro, também relato como esse período foi conturbado e violento na minha relação com minha mãe, que era muito exigente com regras e condutas. O que mais me deixava enraivecida eram os ataques e os apontamentos sobre meus amigos e um namorado que tive — todos eles negros.

O medo que ela sentia de que algo me acontecesse era enorme, e daí vinham as proibições: ela não permitia certas companhias, baseando-se no perfil dessas pessoas, vistas como “maus elementos”.

Durante muito tempo, questionei minha mãe: como ela via os homens negros? O que a fazia agir e pensar daquela maneira? Hoje entendo que ela teve uma história trágica, que marcou profundamente nossas vidas: o assassinato do meu pai.

Mas sei também que essa visão dela é reflexo de como nos enxergamos. Somos uma população majoritariamente afrodescendente, mas muitas vezes nos olhamos com dureza, preconceito, medo… Isso tem sido assim desde a escravidão. O racismo nos afeta até hoje, a nós, seus descendentes.

Imagino que, naquela época, tudo era ainda mais difícil para ela: uma mulher negra, viúva, jovem, com quatro filhos pequenos para sustentar. Entendo que ela agia assim comigo para me proteger.

Escrevo este artigo justamente hoje, 13 de Maio, data que é oficialmente comemorada como o dia da Abolição da Escravatura — mas que, para nós, é símbolo de uma falsa abolição, pois os comportamentos sociais seguem permeados de violências e preconceitos.

Tenho minha mãe como referência no culto à Umbanda e aos Pretos Velhos, que também recebem, neste dia, homenagens. Essa falange tão sábia, que acolhe, cuida e cura através das rezas, das ervas e dos seus mistérios. Para nós, que escolhemos essa religião e esse culto tão bonito, esse dia é repleto de significados.

Apesar de me lembrar das duras surras que levei por desacatar as ordens rígidas dessa mãe que me queria longe daquele coletivo e dessas pessoas, ela me levava ao Congar, nas noites de sexta-feira, no terreiro, para tomar um passe e tirar o mau-olhado com esses velhos sábios.

Quantos deixamos para trás… Quantos amigos, quantas histórias foram distorcidas… Quanto desamor e violência vivemos… Quanto adoecimento psíquico e psicológico fomos obrigados a suportar, por conta dessa visão tão incongruente sobre nossos ancestrais!

Por que temos que deixar tudo isso para trás, nos calar e não honrar essa história?
Posso ter memórias dolorosas, mas me recuso a deixá-las. Quero reverenciar e resgatar essas memórias, com o cheiro do café e do bolo de fubá que servimos nesses rituais.

A música e a dança que aprendi naquela época são heranças do nosso povo. Precisamos dessa energia, dessa cura psíquica, dos sonhos e das esperanças para seguir vivendo — com magia, com vida pulsando em nossos corpos, mentes e almas, nos conectando com a história dos nossos antepassados.

Nos aquilombar para trocar afetos, energia, dançar juntos e coletivamente. Ir ao terreiro, rezar, sermos benzidos.

Tudo tem um fundamento na religião, mas a vida tem seus próprios mistérios. Quando, no presente, nos reencontramos com pessoas que deixaram memórias, percebemos que nós também deixamos a nossa. Isso é continuar a história. É deixar a vida nos religar para dançar, para trocar.

Mas, principalmente, para nos conectar àquela energia afetiva que nos fazia sonhar com um futuro feliz. Hoje, vejo que posso ser feliz de várias formas, e ainda levar a mensagem de que podemos ser mais e melhores do que já fomos — com a história de uma vida de mulher negra.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

O crescimento do trabalho informal e a precarização disfarçada de autonomia 

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Segundo dados da Pnad Contínua divulgados em abril de 2025, o Brasil encerrou o primeiro trimestre do ano com a taxa de desocupação em 7%. Mesmo acima do trimestre anterior, representa uma diminuição em comparação ao mesmo trimestre de 2024, que era de 7,9%. 

Mas como isso reflete na vida de quem está nos territórios? Será que a queda na desocupação significa melhora nas condições de trabalho?

Levantamento do IBGE, divulgado em 2025, mostra que ⁠31,7% dos trabalhadores brasileiros⁠, o que representa 32,5 milhões de pessoas, atuam como autônomos de modo informal, sem CNPJ, ou são empregados sem carteira assinada no setor privado. 

É a partir do questionamento do que significa essa variação na taxa de desocupação ao longo do tempo e o aumento de pessoas no trabalho autônomo que discutimos a ideia de flexibilidade e autonomia nas relações trabalhistas.

Gilvânia Reis e Luciana Mendonça, coordenadoras do Movimento dos Trabalhadores Sem Direitos, junto do Egeu Esteves, psicólogo social do trabalho e pesquisador de economia solidária, falam como esse cenário reflete no dia a dia de quem está nas quebradas.

Sou mãe, mas não só.

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Ser mãe e continuar sonhando, mesmo com as demandas da maternidade, é uma resistência diária. Na quebrada, onde as políticas públicas muitas vezes não chegam, há pouquíssima rede de apoio, mulheres enfrentam batalhas que vão muito além de alimentar, educar e proteger seus filhos. 

Elas lutam também para não desaparecer dentro do papel da maternidade. São mulheres que sonham em estudar, empreender, dançar, cantar, fazer atividades físicas, escrever, criar e ocupar espaços. Isso é uma sobrevivência emocional, porque ninguém deveria abrir mão de si mesma para ser uma boa mãe.

Para além de serem mães, são elas que constroem diariamente uma economia que gera um futuro melhor para seus filhos. São essas mulheres que lideram iniciativas que contribuem para a evolução de uma comunidade. 

Quantas mulheres você conhece que superaram fases tão difíceis na maternidade? 

Aposto que ao menos dois nomes surgiram na sua cabeça. De fato, depois da maternidade muita coisa muda, e a pergunta que fica não é quem você era antes do seu filho, mas sim, quem você pode ser agora, também sendo mãe.

Faço dessas minhas palavras uma forma de abraçá-las. Lembrar de que ser mãe é parte da identidade de muitas mulheres, mas não o todo. Que elas tenham o direito de ter vontades, metas e descanso. 

A quebrada floresce quando essas mulheres podem existir por inteiro. Resistir, insistir e construir um futuro onde caibam todos os seus sonhos.

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Mais de 1 milhão de histórias: os números e impactos da Lei de Cotas

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A Lei de Cotas 12.711/12 é uma política pública fundamental para a equidade social de segmentos minoritários da sociedade. Criada e implementada em 2012, a legislação define a reserva de um percentual de vagas em universidades públicas e institutos federais de educação para estudantes de escolas públicas, negros, indígenas e pessoas com deficiência. A fim de reparar os danos causados por anos de escravidão no Brasil, como a desigualdade racial e social e o racismo estrutural que atinge diretamente pessoas negras e indígenas.

Confira o resultado dessa conversa no quarto episódio da quarta temporada do Desenrola Aí


O impacto positivo da Lei de Cotas vai além da reserva de vagas. Ela representa um reconhecimento do Estado de que a sociedade brasileira é marcada pela falta da garantia de direitos para esses grupos. Além de promover a diversidade em contribuição acadêmica como na pesquisa, na tecnologia e nas mais variadas profissões antes elitizadas e embranquecidas.  Desde a criação, mais de 1 milhão e 100 mil estudantes ingressaram no ensino superior por meio da Lei de Cotas. 

Especialista em Direitos Humanos, Alessandra Garcia já participou de bancas de heteroidentificação na USP. Foto: Geovanna Santana.

Alessandra Garcia Nogueira Lúcio é advogada, especialista em Direitos Humanos, relações raciais e práticas antidiscriminatórias e é a entrevistada do 4 episódio do Desenrola Aí. Para ela, a Lei de Cotas ajuda a romper o ciclo de pobreza e exclusão que afeta essas comunidades. Garcia elenca algumas mudanças que ainda são necessárias para que essa Política seja mais abrangente, como, por exemplo, a criação de políticas de permanência e a inclusão de pessoas trans como público-alvo da legislação.

Em 2023, a Lei de Cotas passou por atualizações, os cotistas passam a ter  prioridade no recebimento do auxílio-estudantil, estudantes de famílias que recebem um salário mínimo podem ingressar via cotas, que passam a valer também para a pós-graduação.

O primeiro país do mundo a adotar um sistema de cotas foi a Índia, na década de 1950, para promover ações afirmativas que integrassem a população, tradicionalmente pertencente às castas excluídas nos sistemas educativos, na administração pública e nos cargos políticos.

No Brasil, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) foi a primeira instituição pública de ensino a adotar um sistema de ações afirmativas, em 2003. A primeira instituição pública federal a adotar um sistema de cotas foi a Universidade de Brasília (UnB), em 2004.

Lei de Cotas tem sido um divisor de águas para muitos jovens negros e periféricos que antes não tinham acesso à educação superior – a taxa de permanência e de conclusão do curso entre cotistas chega a ser 10% superior à taxa de estudantes que ingressam pela ampla concorrência, assim como têm desempenho acadêmico igual ou superior ao mesmo grupo, o que contrapõe a máxima de que quem ingressa pelo sistema de Cotas retira a vaga de outro estudante da chamada regular. 

Saberes da Mata: editora evidencia diversidade de conhecimento dos povos indígenas

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Fomentar a diversidade de saberes ancestrais dos povos indígenas é um dos objetivos da Editora Saberes da Mata. Criada pela educadora Martha de Lima, a editora surgiu do desejo de romper com a lógica dominante que reduz intelectualidade aos padrões ocidentais. 

A iniciativa, que surgiu em 2018, também tem como propósito descolonizar o conhecimento, é o que conta a educadora. “Precisamos regenerar a história e trazer uma nova forma de entender os padrões linguísticos, porque ignorar os conhecimentos dos povos indígenas também é uma forma de depreciação da nossa cultura.”

Escritora, pedagoga, pesquisadora e radialista, Martha, fundadora da Saberes da Mata é nascida e criada em Manaus, no Estado do Amazonas, mas migrou para o sul do país, onde vive atualmente, em Florianópolis, Santa Catarina. Martha, que aponta estar em retomada, conta que seu pai é de Rondônia e a mãe do Rio Grande do Norte, ambos têm raízes indígenas. 

“Estamos em um momento de retomada, pois até então todo mundo dizia que povos indígenas tinham só oralidade, mas não, tudo é linguagem: signos, grafismos, pintura corporal. O mundo branco entende que literatura são apenas letras.” Martha de Lima, fundadora da editora Saberes da Mata.

A editora já publicou quatro livros, são eles: “Contos da Vovó Marta”, escrito pela educadora; “Imuê’en: Por um estar no mundo originário”, escrito por Porakê Munduruku; a coletânea “O Ressoar das Vozes”, de Ariane Landa, Elias de Lima, Escaley Alves Gisely, Moura Argôlo, Jade Bustos, Julia Schardong Veiga, Letícia Couto, Maria Eduarda Corrêa, Martha de Lima, Thayssa Rodrigues e Saile Moura, que reúne contos e retomadas de memórias ancestrais. E também “Oboré: Quando a terra fala”, assinado por Martha Batista de Lima, Célia Xacriabá, Hugo Fulni-ô, Kaká Werá, Daiara Tukano, Walderes Cocta Priprá, Joziléia Kaingang e Kerexu Yxapyry.

A partir da editora, Martha circula por espaços educacionais, feiras e eventos culturais, onde leva as obras e promove contação de histórias, aproximando adultos e crianças da história indígena.

Os livros podem ser adquiridos em contato direto com Martha nas redes sociais da editora.

Para a educadora, a maneira de ver o mundo, de aprender com ele e com a vida passa por muitos caminhos e não pode se limitar às formas tradicionalmente estabelecidas. Ela reforça que os povos indígenas possuem conhecimentos que possibilitam a construção de imaginários de emancipação, através, principalmente, da valorização dos territórios e das relações humanas.

Martha ressalta que a literatura vai além de escrever livros, que trata-se de construir um pensamento contracolonial de existência. Ela também pontua que as dificuldades que editoras independentes enfrentam diariamente para sobreviver já escancara as contradições e limitações do academismo, que frequentemente invisibiliza os saberes e vozes indígenas. Confira o bate-papo na íntegra.

Desenrola e Não Me Enrola: Como nasceu a Editora Saberes da Mata?

Martha de Lima: Nasceu da necessidade. Eu não sabia nada, fui aprendendo fazendo, errando, acertando. Começou quando participei como mediadora do 3º Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, em 2020-2021. Daí nasceu o livro Oboré. Fiz mil cópias, saí vendendo pelo mundo. Foi nesse caminho que me reconheci como mulher indígena, originária do bioma amazônico.

O selo Saberes da Mata nasceu de um grupo de leitura do Oboré. Depois veio a obra “O Ressoar das Vozes”. Quando procuramos editoras para publicar, elas queriam mudar tudo: capa, revisor, até autor. Aí eu disse não. Foi aí que nasceu a editora. 

Eu nem sabia o que era ter um selo independente, mas fui lá, criei nome, fiz logo, abri MEI e coloquei como editora, depois de três pessoas me incentivarem a começar. 

No trabalho, opto por selecionar revisores que conhecem da cultura indígena, senão acabam por corrigir o que não é erro. Tenho alguém que trabalha com aquarela digital e já me entrega a capa diagramada. Agora busco alguém que traduza para o Guarani. 

De modo geral, a editora sou eu. Crio, vendo, envio, carrego as caixas no carro, levo nos eventos, etc. Meu marketing é artesanal. Agora, quero investir um pouco mais na divulgação, estou entendendo o melhor caminho.

Além da Editora, como a literatura chegou na sua vida?

A literatura sempre esteve comigo. Cresci em Manaus, criada como mulher parda. Depois vim para o sul e estudei pedagogia. A poesia me chamou nas escolas. Sempre li para os meus filhos, mas foi em 2018, com o Congresso, que entendi que queria escrever com sentido coletivo, para partilhar. 

A minha formação em pedagogia já foi toda voltada para projetos. A gente estudou Paulo Freire, fez trabalhos junto a aldeias indígenas, então meu caminho já foi sendo direcionado para isso. 

Além disso, o meu pai era contador de histórias. Ele teve 6 filhos, costumava se deitar no chão depois do almoço, sábado e domingo, e contava para a gente histórias do Boitata, espíritos defensores da Floresta, histórias de Iara, espíritos das águas, etc. Essas histórias ficaram marcadas em mim. Quando o congresso aconteceu, isso me atravessou com uma força que não consegui conter. Foi ali que aflorou algo em mim e comecei a escrever organicamente, até então não estudei para isso. Depois que o livro estava pronto é que fui me aperfeiçoando.

De 2018 pra cá, quis escrever, publicar pelo ímpeto. Preparei um livreto com três histórias. Assim, quando eu fosse contar, poderia também vender. Mandei revisar e assim a obra aconteceu. Ou seja, não sou aquela pesquisadora acadêmica. Pesquiso para mim. Só agora entendi que aquilo que eu estava fazendo para mim, também serviria para outras pessoas. 

Quando tentei apresentar minha ideia para as editoras tradicionais, foi bem difícil. Não sabiam onde me encaixar. Então, durante o congresso, nasceu o Aboré – o livro pai de todas as coisas. Um dos responsáveis me disse: “Faz você, eu te apoio.” Achei que era a hora. Um congresso mundial, transmitido na internet, com todo mês uma palestra, eu eu pensei: é o momento de começar a falar sobre isso para o mundo. 

As falas durante o Congresso não seriam registradas. Resolvi fazer por conta própria um livreto, como um presente. Algo que quem participou pudesse guardar como referência. Entendi que o que era dito no congresso precisava ficar registrado em algum lugar. 

Você acredita que esse desconhecimento sobre os povos indígenas e a dificuldade de fomentar a literatura indígena diz muito sobre uma visão colonizada que o Brasil ainda tem?

Com certeza. Não quero carregar sozinha toda a responsabilidade, mas penso que estamos em um momento que as pessoas estão vendo uma furada de bolha, inclusive na literatura, então é uma retomada de território, de fala e de poder que ainda não está organizado, pois ninguém sabe quem foi o primeiro escritor indígena. Quem define isso? Não há uma Academia Brasileira Indígena. 

É um caminho solidário e que dá medo, claro, de entrar por um terreno que eu sozinha não dê conta. No modelo colonizado, quem escolhe é um editor. Uma pessoa só. Aqui eu sou essa pessoa. Tentei montar uma banca, mas só encontrei gente branca: antropólogos, historiadores, e eu não quero necessariamente só isso. 

Não tenho ainda escritores indígenas para formar essa banca comigo. Mas quem chancela isso? Quem diz que a autodeclaração é válida? Estamos num momento de transição. Me sinto insegura por muitas vezes, tentando saber o que é coerente com o que mundo, com aquilo que os brancos aceitam, pois o problema não são os indígenas. O problema é com os brancos.

Considerando que, estatisticamente, a população brasileira não tem o hábito de leitura, você percebe que esse cenário se agrava quando falamos da leitura de obras de povos tradicionais? E como essa realidade se entrelaça na região onde você atua, o sul do Brasil?

Aqui no sul, ao mesmo tempo que tem mais acesso à cultura, em razão de maior poder aquisitivo, há mais facilidade na compra de livros, também cresce o academicismo e a retomada indígena dentro das universidades. Isso cria uma necessidade de publicações que citem os povos indígenas e não apenas que citem as pessoas brancas. 

A verdade é que não há grande oferta de autores indígenas nas universidades que sejam, de fato, reconhecidos como autores pelas universidades. No entanto, cataloguei mais de 200 escritores e 390 publicações feitas por pessoas pertencentes a organizações internacionais, estatais ou ONGs, mas que não têm indígenas como protagonistas da produção. 

Muitos livros tem como autor somente um branco, falando sobre vivências indígenas e lucrando com isso.

Andando pelos territórios, como você tem percebido o impacto do trabalho da Saberes da Mata?

Nas aldeias os professores comentam que querem produzir um livro, mas ninguém vai às aldeias para conversar. A ideia de publicar sempre passa pela ideia de ir para São Paulo, mas não é assim. Muitos livros não dialogam com a cosmovisão dos povos indígenas e apresentam só a opção de um livro branco, sem considerar as diversas características culturais.

Reforço que estamos em um momento de retomada, pois até então todo mundo dizia que povos indígenas tinham só oralidade, mas não, tudo é linguagem: signos, grafismos, pintura corporal. O mundo branco entende que literatura são apenas letras.

Precisamos regenerar a história e trazer uma nova forma de entender os padrões linguísticos, porque ignorar os conhecimentos dos povos indígenas também é uma forma de depreciação da nossa cultura. Pensam que a arte é apenas europeia, que língua apenas é inglês, desconsiderando, por exemplo, as 305 etnias que falam 179 idiomas, mas não são valorizadas como uma policonstrução trans-humana, pois o idioma eleito como mais importante é a língua do colonizador.

O que pesa mais: a falta de financiamento para publicar ou a visão estereotipada acerca dos povos tradicionais? E qual o papel do leitor não indígena nessa luta?

Recentemente fiz essa mesma pergunta. Subi em um palco e comecei a falar um pouco sobre o que é o movimento indígena. No final da fala, fiquei pensando: “O que será que eles vão fazer com isso?”. Então devolvi a pergunta para quem estava ali: “Quero saber qual o papel de vocês nesse processo. Como vocês observam tudo isso que estou dizendo? Os povos indígenas já conhecem os temas que abordo. Mas e a população de modo geral? Isso fica no ar: como é que a gente vai construir uma conversa sobre isso?”

Uma pessoa me respondeu que estamos diante de um impasse. Um encontro entre algo muito novo — a literatura indígena — e algo muito antigo — o academicismo. Então digo que o papel é criar um caminho para seguir daqui em diante, a partir de alguns questionamentos: A cultura indígena existe só pela oralidade ou existem outras formas de comunicação que ainda não foram reconhecidas? Quem modifica isso? Somos nós, os povos indígenas, ou são os pesquisadores e acadêmicos não indígenas? Quando a gente finalmente se encontrar nesse ponto de entendimento mútuo, como vamos chamar isso? Que pedagogia é essa? Que argumento novo será esse?

Digo que, na minha visão, estamos vivendo uma crise de paradigma de modelo educacional. Tem pedagogia do encontro, da presença, da escuta, mas e essa, de agora, não há nome. E para que esse encontro aconteça de verdade, precisamos nos reconhecer como sujeitos, vocês – não indígenas, reconhecendo os indígenas como comunicadores, e nós, voltando a confiar em vocês depois de tudo o que nos foi feito historicamente.

O que você espera para o futuro da literatura, da população indígena no Brasil e como se blinda, considerando os ataques em massa à diversidade, aos direitos indígenas, aos direitos humanos e à democracia?

Pensando numa literatura onde possam falar por si mesmas, com autonomia. Fora das aldeias, fico pensando como eu, uma única mulher, posso criar redes, plataformas de comunicação.

Quando o mundo, o conhecimento, a comunicação e os saberes seguem essa lógica do lucro, é porque a engrenagem ainda é a do mercantilismo.

Esse é o desafio: não cair no mercantilismo, não produzir apenas por dinheiro. Minha ideia é manter a reciprocidade com as aldeias. Quando publico um livro, por exemplo, levo a obra para dentro das comunidades e tentamos criar algo juntos, para que também participem, falem, contem suas histórias e escrevam essas histórias.

Adolescência é uma panela de pressão prestes a explodir?

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Eu, que gosto muito de metáforas, resolvi fazer uma comparação entre panelas de pressão e adolescência nesse texto. Justamente porque muitas pessoas gostam de dizer que a adolescência é uma panela de pressão prestes a explodir, mas o que não dizem é como cuidar para que a panela não exploda. 

Então, pensei em dar algumas possibilidades de cuidado com adolescentes que se baseiam nos cuidados com a panela de pressão.

Só para contextualizar: Quando eu era criança (lá pelos 10 ou 11 anos de idade), a panela de pressão da minha casa explodiu, literalmente! 

A telha brasilit que cobria o único cômodo em que minha família e eu morávamos, se estilhaçou em vários pedaços e fez um buracão no teto. Ninguém se machucou, por sorte estávamos perto da porta que dava para o quintal, mas voou comida e telha para todos os lados. 

Desde esse dia, eu passei a ter cuidado e respeito pela potência da panela de pressão. Fui aprendendo a me aproximar dela com respeito e sem duvidar de uma possível explosão. 

Eu não deixei de conviver com a panela de pressão em casa, afinal adoro um feijãozinho fresco e uma carne cozida com legumes.

Ah pois… Assim como panelas de pressão que para se abrir precisam de tempo para chiar e esfriar, adolescentes precisam de espaços para o desabafo. Adolescentes precisam de espaço para reclamar. 

Re-clamar. 

Clamar por escuta, clamar por acolhimento, clamar, clamar e re-clamar… quantas vezes for preciso. É importante termos paciência para dar suporte ao chiado da panela-de-pressão-adolescência. E mesmo com medo da possível explosão, você precisa estar por perto até que a panela esfrie. 

Não precisa ficar em cima do adolescente ou da panela, você pode dar um espacinho, mas não saia e a deixe sozinha (nem a panela, nem a adolescência).

Atenção! Não se pode jogar água no chiado da panela, nem da adolescência, porque o perigo de explosão é alto. É fundamental ficar perto, mas fique perto escutando. Fique ali e escute!

É importante perceber que o chiado diminui com o tempo e se transforma em possibilidades de abertura. A panela se abre quando não há mais pressão interna e externa. A adolescência também é assim: sem pressão e com paciência, é possível se abrir.

Não deixe que o medo da explosão te afaste da convivência com adolescentes. Não deixe que o medo da panela te afaste da possibilidade de uma alimentação saudável.

Tente usar o medo como um parceiro e não um limitador. É difícil fazer feijão quando o medo da panela é maior que o desejo do alimento. É difícil construir uma relação quando o medo da adolescência é maior que o desejo de uma boa convivência.

Sou educadora em sexualidade e uma das coisas que faço é escutar os chiados da adolescência por dias, semanas, meses. E só depois, bem depois, é que adolescentes se abrem para acrescentar novos temperos à vida.

Como diz a canção de Luli e João Ricardo: “Se eu não entender, não vou responder, então escuto… Fala!”.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

“Educar a Niara é me reeducar”, diz Amanda Porto sobre as provocações da maternidade solo

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Nascida e criada no Jardim Novo Santo Amaro, bairro localizado no distrito do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, Amanda Porto, 28, busca construir novos imaginários sobre o que é ser uma mãe preta desenrolada, ao lidar com a maternidade não apenas pelo lado das dores, desafios e sacrifícios, mas também através das alegrias, descobertas e reinvenções. Mãe da pequena Niara, de 4 anos, Amanda é profissional da área de relações públicas, e é uma das fundadoras do Coletivo Siriricas.

A comunicadora conta que a descoberta da gestação influenciou diretamente na forma que passou a enxergar o mundo. “Eu era uma pessoa extremamente egocêntrica dentro dos meus relacionamentos. Somente a minha opinião importava. Sempre fui uma pessoa crítica, que pensou muito nos direitos, e isso é até conflitante, pois me importava com a minha vida sempre em primeiro lugar, o que pode ser autoestima para algumas pessoas, mas acho que às vezes ultrapassa para algo doentio, dependendo do quanto você foca em si mesma e para de olhar ao seu redor”, coloca.

Essa mudança de percepção, fez com que a maternidade se tornasse um divisor de águas em sua vida. “Fui jogada ali nos primeiros meses para esquecer completamente quem eu era e passar a me dedicar 100% a uma pessoa que dependia totalmente de mim. Não arrumava mais o cabelo, não tomava banho direito, não fazia mais nada. Era assim: bebê chorando, e peito, peito, peito. Eu nem me reconhecia mais. Daí então vem meu processo de paciência. Tudo era para ontem, se não fosse do meu jeito, não era de jeito nenhum, mas Niara veio me mostrar que a vida não é assim”, afirma Amanda sobre os aprendizados.

“Educar uma criança é um ensinamento diário. Você educa uma criança educando [a si mesmo]”.  

Amanda Porto, uma das fundadoras do Coletivo Siriricas e mãe da Niara de 4 anos.


Quatro anos após a chegada da sua filha, ela relembra os primeiros meses com mais tranquilidade. “Educar a Niara é me reeducar ou me educar pela primeira vez, dependendo da situação que estou vivendo com ela naquele determinado momento. E isso eu tenho feito todos os dias, afinal todo dia é uma novidade para ela e para mim também.”

Criar Niara também expandiu seu olhar sobre o cuidado enquanto mulher e mãe de uma menina negra. “Isso me fez e ainda me faz rever várias coisas do meu passado e não querer replicar. Me faz construir uma relação em que eu e ela estejamos de acordo e, se a gente não tiver, está tudo bem também. Que ela aponte [o que pensa] e que [a gente chegue] a um consenso. Inclusive, é um trabalho que se faz agora, mas é ela quem vai dizer lá na frente se aquilo, de fato, fez sentido ou não. E aí você como mãe também vai ter que aprender a lidar com a frustração”, pontua Amanda. 

Com uma personalidade forte, Niara já demonstra seu lugar no mundo. “Ela é geniosíssima, é doce, muito afetuosa, mas cheia de opinião. Argumenta muito e é muito ligada ao próprio cabelo. Nós conversamos muito sobre negritude, sobre beleza, cabelo, sobre música, etc. Ela contou que já ouviu de outras crianças que o cabelo dela não é bonito, o que me preocupa, mas ao ver como ela já lida com isso de uma forma bem diferente de como eu lidava [nessa idade], me sinto aliviada”, compartilha a comunicadora.

Reflexos coletivos da maternidade

Antes mesmo da maternidade, Amanda conta que já era movida por muitos sonhos e desejo de transformação. Dessa vontade de mudar o mundo coletivamente, surgiu, em 2018, o Coletivo Siriricas, iniciativa formada por sete mulheres negras que dialogam sobre autoestima e negritude. 

“É um espaço que construí, junto com minhas amigas, para ampliar as nossas discussões de bar. Pensamos que se algo acontecia entre sete mulheres negras, com certeza acontecia com muitas outras pelo Brasil afora. E foi aí que demos vida ao coletivo, que é essa agência de notícias que trata de vários assuntos. De dores, sim, mas de muitas alegrias também”, conta. 

O coletivo promove debates através de podcast, lives, rodas de conversa, dentre outras ações. Em 2021, integrou o projeto Adidas Runners, criando uma comunidade de corrida voltada a estimular o autocuidado e a prática de atividades físicas entre mulheres negras.

Para Amanda, a criação do Sirricas reflete uma de suas buscas, que é pensar um mundo melhor para mulheres negras, para pessoas periféricas e criar estratégias para alcançar isso. “Tenho muitas felicidades, uma delas é o coletivo.. O que já conseguimos construir, juntas, para a população de mulheres negras no Brasil. Tudo isso me devolveu [a mim mesma] até no meu processo de maternidade”, compartilha. 

Amanda coloca que durante os primeiros meses da maternidade, estar entre mulheres fazia ela se reencontrar consigo. “No começo da maternidade, minhas primeiras saídas eram para a casa de algumas amigas do coletivo. Elas chegavam com pizza, vinho. Já não dava mais para ir a um bar na rua com uma criança pequena. Elas passaram a ser essa rede de apoio, não para cuidar da Niara, mas para me lembrar de quem eu sou além da maternidade”, relembra.

“Ter minhas amigas nesse processo foi essencial, porque a maternidade pode ser solitária para muitas mulheres.”  

Amanda Porto, uma das fundadoras do Coletivo Siriricas e mãe da Niara de 4 anos.

Ela ainda reforça que teve uma rede de apoio, fato que contribuiu para que se sentisse mais preparada, mas ainda assim ressalta que não deixa de ser desgastante.  

‘‘Ninguém vai dar para a gente o caminho. Quando pensar o que vai fazer [tem que] levar [a criança]; quando pensar que precisa ir em algum lugar e não tem com quem deixar, não deixe de ir. Leva [a criança junto]. Vai ser desafiador ficar com a criança aí do lado, ter ela puxando, chamando, chorando, mas não deixa de ir. Pode ser que ali você encontre espaço e conheça alguém que vai gerar essa oportunidade que você tanto espera”, compartilha.

Com o crescimento da Niara, o Dia das Mães ganhou um novo significado para Amanda. “Quero olhar para ela com orgulho do que a gente está construindo juntas e me sentir grata, porque até aqui tem dado certo”, finaliza.