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O destino da adolescência periférica num teste de gravidez

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A história que pensei em contar foi do primeiro dia que fiz teste de gravidez na Unidade Básica de Saúde (que muita gente chama de posto ou postinho).

O ano era 1998, a região era o Grajaú e eu tinha 14 anos. Minha mãe estava grávida do meu irmão caçula e, numa conversa com a vizinha, ela contou que havia teste de gravidez gratuito no SUS. 

Eu nunca tinha feito sexo com meninos, então obviamente eu não estava grávida, mas eu fiquei muito curiosa para saber como funcionava um teste de gravidez. 

Chamei algumas amigas da minha rua para irmos ao Postinho fazer o teste de gravidez. Como você sabe, geralmente adolescentes da nossa quebrada adoram andar em grupos de cinco ou mais pessoas e eu não era diferente. 

Juntei meu bando e fomos para a UBS. Lá fomos recebidas pelo guardinha que contou que os testes eram feitos às 8h da manhã e por ordem de chegada.

– Cheguem cedo, porque a fila é grande.

No dia seguinte a gente foi bem cedo, 6h30 já tinha gente na fila e nós ficamos lá esperando.

A gente estava com medo de algum vizinho descobrir que íamos fazer o teste de gravidez e contar para nossas mães. A gente nem transava, mas vai explicar isso para nossas famílias. Meu pai não ia acreditar!

8h o portão da UBS abre e o guardinha pergunta:

– Quem vai fazer teste de gravidez?

O cara gritou, mas mesmo com medo, a gente levantou o dedo.

– Aqui moço!

Ele nos entregou um copinho descartável daqueles de cafezinho e um pedaço de papelão escrito um número e disse que era a senha. Lá pelas 9h ou 9h30, a gente recebeu a orientação de que precisávamos fazer xixi naquele copinho e esperar na fila até nosso número ser chamado. Obedecemos.

Agora imagina a cena: cinco meninas de chinela de dedo, canela cinzenta, risadas mascarando a vergonha e segurando um copinho de xixi na recepção da UBS.

Lá pelas 10h a gente começou a colocar os copinhos numa mesa enquanto uma moça – que não se apresentou – colocava os pauzinhos do teste nos recipientes com a nossa urina.

Em quinze minutos ela começa a chamar senha por senha. 

Minhas amigas saiam rápido e eu, mesmo nunca tendo feito sexo penetrativo na vida, cheguei a pensar:

– Meu Deus, será que eu tô grávida?

Minha vez chegou. Entrei na sala e a moça disse:

– Elânia? Tá negativa. Tchau e até o mês que vem.

Aquele “até o mês que vem” passou batido por um bom tempo e eu nem me toquei do que aquelas palavras queriam dizer.

Como ela tinha tanta certeza de que eu voltaria mês que vem? Por que ela disse para mim que nos veríamos no próximo mês?

Muitas vezes, quebrada, as pessoas tratam adolescentes de periferia como se o destino já estivesse traçado. Esse menino é malandro e tá na cara que vai ser bandido, essa menina é assanhada, tá na cara que vai engravidar na adolescência. 

Tratam adolescentes de quebrada como pessoas com “cara de favelada”, a cara de quem tem o destino traçado, a cara de quem tem futuro limitado, a cara de quem é culpabilizada pela ausência de serviços e lugares que falem com a gente na nossa língua.

Colocam na adolescência periférica a culpa e desacreditam de meninas que, como eu, só queriam saber como funciona um teste de gravidez.

Ninguém, naquela época, era obrigada a saber que eu e minhas amigas só queríamos saber como era o teste, mas ninguém deveria ter dito que nos esperaria no próximo mês, afinal, obviamente ela vai voltar mês que vem. 

Ninguém me ofereceu camisinha para prevenir gravidez, o que recebi foi a previsão de um destino que não se cumpriu. Não engravidei na adolescência, mas muitas de minhas amigas, sim. 

A ausência ou escassez de espaços para conversar com adolescentes de forma respeitosa e transparente sobre sexo e sexualidade, faz com que não acessem informações e não saibam ou não queiram se prevenir de uma gestação não desejada ou Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST).

Adolescentes de quebrada merecem liberdade e informação para construir suas próprias histórias e não seguir o modo automático de viver um destino traçado pelos outros. 

Me conta aí, o que passou pela sua cabeça com essa leitura?

Até a próxima. 

Saúde, quebrada.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Bancos comunitários combatem desigualdade de acesso ao crédito nas periferias

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Enquanto os bancos tradicionais dificultam o acesso ao crédito para pequenos empreendedores e pessoas de baixa renda no Brasil, os bancos comunitários Palmas, localizado na periferia de Fortaleza, e Paulo Freire, localizado na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, estão reduzindo taxas, criando moedas digitais, facilitando acesso ao crédito e fortalecendo empreendedores locais.

Uma das pessoas impactadas por essas instituições financeiras comunitárias é Márcia Rodrigues, 52, moradora do bairro Jangurussu, em Fortaleza, que se tornou empreendedora do ramo de alimentos com o apoio do banco Palmas, instituição financeira comunitária, após conseguir acesso ao crédito necessário para iniciar e expandir o empreendimento “Bolo Bolo”.

Ela conhece o banco Palmas desde os anos 2000, quando trabalhava como coordenadora em uma creche comunitária, que também era um centro de nutrição. Nessa época, Márcia não recebia nem um salário-mínimo e para complementar a renda ela começou a aprender a cozinhar.

Com o apoio de cursos oferecidos gratuitamente pelo Banco Palmas, ela conseguiu estruturar um novo ramo de atuação profissional, passando a fazer tortas de frango, bolos e salgados para vender na porta de casa.

“O dinheiro para fazer isso era tão pouco. O que entrava a gente tinha que comprar [os ingredientes] novamente, e essas coisas não têm um retorno a curto prazo, porque você tem que investir. Aí eu pensei: ‘vou procurar o banco Palmas para ver se consigo fazer um empréstimo’.” relembra a empreendedora.

Ela conseguiu esse empréstimo para investir no empreendimento. “Eu cheguei a fazer [empréstimo de] até R$ 5.000. Então, [o negócio] deu uma guinada, porque eu pude fazer bastante coisa com esse valor. Eu fui comprando os equipamentos”, aponta a empreendedora.

Emanuel Kayro de Souza Costa, funcionário da Bolo Bolo. (foto: arquivo pessoal)

Márcia menciona que ela solicitava o crédito, empregava o dinheiro arrecadado, e o que ela conseguia de retorno era usado para pagar o empréstimo, o lucro servia para continuar os trabalhos. Com o tempo, ela abriu uma lanchonete e contratou três funcionários, gerando renda e trabalho na região.

Moeda própria e tarifas mais baixas

Segundo Joaquim Melo, criador do Banco Palmas, a instituição financeira comunitária é a primeira no Brasil. A iniciativa tem uma atuação inovadora por lançar o E-dinheiro, primeira moeda digital brasileira criada com o objetivo de promover inclusão econômica de pessoas de baixa renda, como a dona Márcia, criando uma plataforma digital para operar a moeda com juros mais baixos no acesso ao crédito e outros serviços bancários, em relação aos bancos tradicionais.

Ao criar essa estratégia, o banco foi desenvolvendo uma série de processos que vão na contramão da cultura de instituições financeiras tradicionais, que se baseiam em taxar praticamente todos os serviços utilizados pelos consumidores.

“As taxas de juros são menores, a análise do crédito é mais rápida, não é obrigado ter cadastro limpo, tem acompanhamento e tu vai ter estratégia de comercialização [no caso dos empreendedores]. No banco tradicional o crédito serve para ele [o banqueiro] ganhar dinheiro. No banco comunitário o crédito é uma estratégia de desenvolvimento do território, ou seja, a gente empresta dinheiro para o bairro crescer”

Joaquim Melo, fundador do Banco Palmas e criador da E-dinheiro.

O fundador do Banco Palmas explica que embora cada banco comunitário tenha autonomia para decidir uma taxa de juros, há um protocolo que estabelece que seja cobrado “uma taxa de no máximo até 1%, para poder ficar abaixo do que é praticado no mercado”. Ele explica que essa taxa de juros está estabelecida com base na Lei da Usura 22.626, de 7 de abril de 1933.

Enquanto os bancos comunitários adotam a taxa de juros de 1% ao mês para fornecimento de crédito pessoal, os principais bancos comerciais brasileiros têm uma taxa média de 7,94% ao mês, segundo estudo mensal do Procon- SP, divulgado no mês de fevereiro de 2024.

Neste contexto, Márcia, a empreendedora de Fortaleza, ressalta: “não tenho mais conta em banco comercial”. Ela justifica essa mudança de cultura com o exemplo de sua mãe. “Todo mês na conta da minha mãe vem R$ 60 descontado só da taxa de manutenção, mesmo recebendo um benefício pelo INSS. Isso é um absurdo para um trabalhador.”

Ela conta que na plataforma E-dinheiro esse tipo de taxa não existe e menciona as diferenças nas cobranças de taxas entre os diferentes tipos de bancos.

“Eles não me cobram nenhum tostão. A única coisa que eles cobram é R$ 1 pelo pagamento de boleto de até R$1.000, e acima [desse valor] é R$ 2.”,

Márcia Rodrigues é empreendedora e cliente do banco comunitário Palmas.

Atualmente, a dona do “Bolo Bolo” não precisa mais pegar crédito para investir em seu negócio, mas continua utilizando o banco comunitário para fazer as demais operações bancárias. “Eu recebo o E-dinheiro no meu negócio e eu também pago as minhas contas com eles no banco Palmas, compro em outros comércios do bairro também, porque é uma mão lavando a outra”, comenta a empreendedora.

Bancos comunitários combatem desigualdade de acesso ao crédito nas periferias
Márcia em seu empreendimento “Bolo bolo” localizado no Conjunto Palmeiras, em Fortaleza. (foto: arquivo pessoal)

No Brasil, a E-dinheiro é a primeira e por enquanto a única moeda social digital. Dos 152 bancos comunitários que existem no país, 98 são cadastrados na plataforma. Para aderir ao uso dessa moeda é necessário que o banco comunitário esteja localizado no mesmo bairro ou município da pessoa interessada em abrir uma conta, pois o uso da moeda social é destinado ao território.

Segundo o criador do banco Palmas, todo lucro gerado no banco comunitário é investido no próprio território. Essa é outra regra que tem que ser cumprida por todos os bancos dessa rede. Um exemplo desse investimento é o curso de culinária que a Márcia fez, e é desse jeito que o desenvolvimento social ocorre.

Banco Paulo Freire

Na Cidade Tiradentes, distrito da zona leste de São Paulo, o banco Paulo Freire também usa o E-dinheiro, como uma ferramenta para viabilizar a inclusão econômica de moradores da região, proporcionando que mesmo as pessoas endividadas, desempregadas, com o nome listado no serviço de proteção ao crédito (SPC), de baixa renda consigam acessar o crédito, para empreender ou consumir em comércios locais. 

“Elas conseguem pegar o crédito sim. Mesmo aquela família que a gente sabe que tem mais dificuldade de pagar, a gente parcela [a devolução] em mais vezes, e procura ser bem acessível”, conta Maria das Dores Ferreira, 52, que é mais conhecida como Dora no território, e que além de pedagoga, é gerente do banco Paulo Freire. 

Dora enfatiza que diferente das demais instituições financeiras, nos bancos comunitários é possível obter crédito, mesmo quando a pessoa não está com a condição financeira ideal.

De modo geral, os pré-requisitos e os benefícios de acesso ao crédito se igualam tanto para o empreendedor como para o morador que procura o banco comunitário, conforme diz Joaquim. “O acompanhamento, o aconselhamento, o controle de inadimplência, prazo maior para você poder pagar, tanto serve para um como para o outro”, pontua.

No banco Paulo Freire, a avaliação para liberação de crédito é feita pelos associados que estão na gestão do banco. “A gente vê o quanto a pessoa recebe, o quanto que ela gasta e tenta ajudar ela a ter o controle da própria renda. Tem vezes que a pessoa nem precisa pegar um empréstimo, porque ela só não está sabendo usar direito o dinheiro que tem. Em outros momentos, a gente empresta e acompanha”, comenta Dora sobre o processo de empréstimo.

A gerente do banco menciona que a confiança e a relação de proximidade com as pessoas é um ponto crucial para que a concessão e a devolução do crédito ocorram. “Quando a família não consegue pagar no prazo estipulado, a gente vai conversar com ela e estende, por exemplo, se tem que pagar em três meses, ela paga em seis o empréstimo. Assim a pessoa consegue ter o dinheirinho dela e consegue devolver pra gente.”

Os bancos comunitários têm uma renegociação de dívida mais flexível, que leva em consideração as condições sociais e financeiras das pessoas. “No Brasil, no começo de 2023 estava em 45% a inadimplência, ou seja, quase cinco de cada 10 pessoas não conseguiam pagar suas dívidas [no banco comercial]. No banco comunitário, a gente fala de 2%, ou seja, menos de uma pessoa por cada 10.”, aponta Hamilton Rocha, coordenador e articulador da Rede Paulista de Bancos Comunitários.

Cura e cuidado ancestral

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Vou começar a nova sessão convidando vocês a refletirem sobre o que é uma sessão voltada ao cuidado ancestral. O que lhes vem à cabeça ao receberem esse convite?
E também lhes pergunto se iniciaram a busca por algum cuidado que propus na sessão anterior.

Vou apresentar aqui algumas práticas que podemos acessar e que dão uma conexão profunda consigo mesmo e ajudam a iniciar um processo de autoconhecimento.

Escrever e falar sobre si, se permitir ser ouvido, falar à vontade sobre qualquer assunto sem ser julgado, pode ser muito curativo, isso pode ser feito com um profissional da psicologia, psicanálise, terapeutas, terapeutas holísticas e também na oficina maravilhosa sobre “Escrita de Si”, com a Bianca Santana. 

Porém, contar sua história, resgatar e saber mais sobre si, reconhecer e saber quem são seus ancestrais, é também uma maneira de se conhecer melhor, resgatar sua trajetória e se conectar com seus antepassados. 

Quem são eles, sua origem, conhecer sua raiz, cultura, seus saberes, entender como viviam os povos negros, ameríndios e a forma como cultuavam os ancestrais, e entender que não se vivia baseado no individualismo e capitalismo.

Compreender as diversas formas de cuidados com as práticas e saberes dos antepassados que se dava de forma oral e circular no cuidado com seu povo, é um cuidado com a medicina tradicional que é muito potente e curativa.

Nos deixar embalar pelas escritas e nos levar pelas leitura do que escrevemos, nos envolver e trazer a tona o cuidado e a manifestação dos desejos que temos de sermos vistos, ouvidos e cuidados, está conosco este compromisso.

Me lembro de ter dito que é muito possível incluirmos um cuidado diário e passando para essa reflexão e ações, o que podemos incluir e que seja saudável e curativo para nossa mente, corpo e alma?

Um desafio para rompermos essa prática de rotina adoecedora é entender como vivemos inconscientes, como a lógica capitalista e colonialista nos impuseram tantas formas violentas de viver, que não temos uma história relacionada com nossos antepassados para contar ou ouvir, sendo que todos os outros povos antigos honram suas histórias e sua cultura, me dá uma sensação que somos aculturados pelo sistema, mas também muitos de nós não tem muito interesse em entender de onde viemos e o que somos para além do que realizamos em torno de tarefas exaustivas.

Como é poderosa essa forma de viver, incluindo a comunidade e de forma coletiva, ter contato social. Após iniciar o trabalho que criei com o Núcleo Obará, percebi que estava revivendo uma forma de cuidar de mim e do outro através dos saberes ancestrais.

Que a partir da oralidade, das conversas em roda e do contato com as medicinas tradicionais fui trazendo a vida de volta, o afeto, o amor e as re-conexões com minha própria trajetória, como ela deságua na cura individual e coletiva, no autoconhecimento e nas infinitas possibilidades de vivermos como nosso povo ancestral vivia. Povos que vieram do grande continente africano e que não sabemos quase nada sobre eles, somente o que os pesquisadores e a história contam, e dos povos originários sabemos ainda menos, sabemos que resistem para serem conhecidos e reconhecidos como os verdadeiros donos dessa terra.

A narrativa aqui desta sessão tem o objetivo de lhes apresentar o que tenho vivenciado e que temos muitas maneiras de quebrar o individualismo, nos conectando com a essência da vida e ainda nos provoca a entender quem somos e quem nos deixou seu legado. Foram escondidos e apagados, porém temos formas de resgatarmos e buscar o conhecimento que venha nos levar a integralidade interna, uma identificação e força olhando para trás para podermos seguir em frente, isso também é um ensinamento antigo. 

Então encerro aqui lhes dizendo: não neguem quem são, resgatem sua história e disso saíra um acolhimento tão amoroso e afetuoso consigo mesmo, assim como faziam os mais velhos e antepassados, cuido aqui de encerrar esta sessão reverenciando a Eles.

Na próxima sessão falamos sobre mais possibilidades de autoconhecimento através da cura e cuidado ancestral.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

O caipira também é periférico?

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Qualquer pessoa de quebrada em algum momento da vida já ouviu da família “deixa de ser caipira” quando a timidez era grande em ambientes desconhecidos. Esse é só um dos fragmentos de uma cultura que sobrevive estilhaçada entre becos e vielas, interiores e grandes centros, sustentando-se no meio urbano, na maioria dos casos, nos pequenos gestos, por isso é preciso ver para além dos preconceitos e das estigmas sociais para reconhecer essa cultura em nosso cotidiano. 

Preâmbulo histórico 

Antes de tudo se faz necessário dar alguns dados históricos importantes sobre a realidade brasileira para que possamos ter dimensão de como esse assunto é parte fundante da formação de nossa identidade. 

A primeira e talvez a mais importante é que o Brasil foi um país de maioria rural até meados de 1950, ou seja, nos transformamos numa nação majoritariamente urbana apenas 62 anos depois que formalizamos a “abolição da escravatura”. 

Outra informação importante é que até o início do século 20 não tínhamos natal como hoje, e nossa maior festa popular era a Folia de Reis, que na maioria dos casos começava no dia 25 de dezembro e se estendia até o dia 06 de janeiro, com o ritual da cantoria de casa em casa e a bênção dos 3 reis magos, neste dia uma criança da cidade era escolhida para libertar um preso, era uma celebração cristã e também pagã. 

A história do Papai Noel vermelho e da árvore nevada veio do norte, tradição trazida pelos filhos do baronato tupiniquim que iam estudar na europa e achavam chique manter essa performance no calor tropical, mesmo não fazendo sentido algum. A publicidade também contribuiu com a mudança a nível nacional, devido a uma campanha em larga escala da Coca-Cola em meados de 1920.  


Entre os valores culturais importados pelos jovens ricos da elite brasileira, alguns outros bens de consumo e bugigangas também vinham na mala, a primeira câmera filmadora e os primeiros aparelhos de projeção estão entre estes objetos, sendo o jovem ítalo-brasileiro Afonso Segretto o primeiro a produzir imagens da baía de Guanabara em 1898, assim como realizar as primeiras sessões de cinema na sala Paris no Rio, que passou a ser um ponto de encontro da sociedade carioca.

Afonso Segreto

Mas do que os primeiros filmes tratavam? Quem eram estes primeiros cineastas? 

Nosso cinema nasce caipira

Entre os pioneiros do cinema brasileiro destacam-se dois caipiras, Humberto Mauro, que realizou o clássico “Ganga Bruta” e o folclorista Cornélio Pires, que em 1924 fez o filme “Brasil Pitoresco”. Uma viagem sobre o Brasil rural e os hábitos das pessoas pobres dos diferentes biomas do país. 

De Tietê – SP para Pernambuco, passando por várias paisagens com as lentes voltadas para as tradições populares do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Sergipe e Alagoas. 

Assim como a escrita de Cornélio, suas imagens são carregadas de paixão e respeito pelas pessoas do campo e suas artesanias, sua cultura e vida social. Este mesmo pesquisador foi responsável pela gravação fonográfica das primeiras duplas caipiras, sendo o revelador de uma tradição até então pouco divulgada pela indústria musical da época. 

O mineiro Humberto Mauro também fez registros importantes da cultura popular, revelando cantigas e folguedos caipiras, assim como os hábitos das pessoas do interior de seu estado. 

Mário Peixoto é outro importante nome que revelou em seu único filme a paisagem caipira/caiçara. “Limite” de 1931 é um romance experimental ambientado no litoral de Mangaratiba-RJ, provocando reflexões sobre a passagem do tempo e a condição humana. 

Não podemos esquecer também de Ozualdo Candeias, um caminhoneiro que adorava andar a cavalo e fazer filmes, dentre as várias pornochanchadas que rodou na boca do lixo, fez o celebre “A Margem”, e também em 1986, o clássico “As belas da Billings”, gravado nas margens da represa na região do Grajaú, periferia da zona sul paulistana.

Ozualdo Candeias

Tá, mas afinal quem são esses tais caipiras e o que estes sujeitos de São Paulo, Minas e Rio tem a ver com a periferia e os periféricos? 

Agroboy, bandeirante, trabalhador do campo…

Talvez os dois maiores símbolos da identidade nacional sejam o malandro do samba e o caipira dos interiores, não à toa duas simbologias advindas das culturas de roça, em alguns lugares ligadas umbilicalmente, vide o samba de viola do recôncavo baiano, ou o cururu paulista, ambos parentes do samba de partido alto. 

O cinema, os quadrinhos, a literatura e as artes plásticas trouxeram inúmeras representações de grande abrangência destes personagens, todas tem muito sucesso até hoje, e carregam de forma mais ou menos estereotipadas, vários elementos da identidade nacional. 

Você deve lembrar do Zé Carioca, do Chico Bento, da Carmen Miranda, do tio Barnabé, do Macunaíma, do Jeca Tatu, da Iracema, entre outros. 

A música sempre foi um marcador fundamental da nossa formação como povo, o pesquisador Ivan Vilela, relatou em seu livro “Cantando a própria história: música caipira e enraizamento” que um processo importante da catequese dos jesuítas para com as populações indígenas foi a música, em especial a música de viola, sejam as violas portuguesas ou as violas de buriti dos nativos, as canções desse projeto colonial foram fundamentais para a aculturação produzida nesse período. 

No cinema nacional alguns filmes contaram essa história, “Desmundo” de Alain Fresnot é um deles e fala do processo das bandeiras e das primeiras cidades coloniais no Brasil. 

O bandeirante é o personagem central dessa narrativa, a escravização indígena e os hábitos culturais da urbe nascente. Outro filme importante é o “Brava gente brasileira”, de Lúcia Murat, que entre outras coisas mostra a complexidade do personagem bandeirante, que mesmo mestiço de brancos e indígenas era também quem favorecia a escravização e o estupro colonial. 

Não há dúvida que o caipira se transfigurou com o tempo e sofreu mudanças da leitura redutora e preconceituosa desenvolvida por Monteiro Lobato. 

Cornélio Pires, já citado aqui, era uma das pessoas com um olhar mais respeitoso para as tradições populares, em especial a cultura caipira. 

Vendo toda a produção de Mazzaropi e alguns filmes da Vera Cruz sobre as multifacetadas formas de ser caipira, era possível ver nas entrelinhas as presenças de elementos da vida rural nas periferias do capital, lembro aqui do “Corinthiano”, e do “Jeca Tatu”, filmes de Amácio Mazzaropi, que revelam já na segunda metade do século 20 a migração dos interiores para a “cidade grande”. 

Entre erros e acertos, Mazzaropi reformulou com competência os textos racistas e xenófobos de Lobato, acrescentando seu olhar e sua capacidade dramática para dar humanidade às gentes dos interiores.

Caipiras de quebrada

Eu morei em diferentes periferias da zona sul de São Paulo, Jd. Herculano, Piraporinha, Rio Bonito, Jd Primavera, etc. Meu pai em nenhum destes lugares, por mais dura que fosse a paisagem, nunca abriu mão de um fogão de lenha, talvez você lendo esse texto também saiba dizer outra miudeza sobrevivente na sua família das reminiscências da tradição. Uma pequena horta de fundo de quintal, uma paixão por um radinho de pilha, o amor cotidiano pelos cachorros e demais criações, a paixão pela viola, sabedoria na construção doméstica, etc.

Antônio Cândido que era um grande pesquisador da cultura caipira disse que com o roubo de terras no interior, a especulação imobiliária e a precariedade do emprego, muitos caipiras foram para as cidades, e com seu perfil, seu grupo étnico e seus hábitos culturais o lugar onde puderam estabelecer pouso foram as periferias.

Você já encontrou algum deles com certeza, tocando violão ou sanfona num buteco do bairro, num mutirão de casas no fundão, ou passando de charrete ou cavalo na rua onde mora. Já se perguntou quem cria as galinhas que botam os ovos do carro do ovo? 

Enfim, a lista é longa, assim como os estereótipos, amamos as festas juninas, mas não nos questionamos sobre a pintura do dente, a calça menor que a altura do corpo, os remendos de costura nas roupas, todas formas pejorativas advindas do peso da pobreza e das limitações provocadas pela memória da colonialidade. 

Este mesmo peso que apagou também a questão racial levantada em inúmeras músicas das duplas pretas e pardas desde os anos 50, já ouviu “Preto Velho” de Tião Carreiro? Ouso dizer que foi o Negro Drama da época. 

Falei tudo isso pra te dizer que tem um cinema caipira de quebrada sendo feito bem perto de você, mas muitas vezes você não chega a ficar sabendo. 

Destaco aqui o curta “Ainda restarão robôs nas ruas do interior profundo”, de Guilherme Ribeiro Xavier, filmaço gravado junto dos muleque zika de roça da cidade de Assis-SP, vencedor do grande prêmio do Júri de 2022 no Festival Internacional de Curtas da Kinoforum.

Neste mesmo ano fiz um curta doc chamado “Sobre Pardinhos e Afrocaipiras” lançado no festival In-Edit Brasil, parte desta minha pesquisa de muitos anos sobre o tema. 

Mote de uma importante leitura caipira do nosso cinema de quebrada, parte de um entendimento de quem somos que não aceita simplificações e cobra uma vida que nos reconecte com nossas raízes, sem nos congelar no tempo, vide Matuto S/A e Gabeu, expressões da cultura caipira no Rap e no sertanejo (ou queernejo como diz o mesmo), inovando com os pés na ancestralidade, pois ainda que o cimento tenha coberto quase tudo nas periferias, temos ainda o coração, essa terra fértil sedenta por novas sementes. 

Acredite!

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PEC 45: Cientista Social analisa nova proposta na política de drogas e impacto nas periferias

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Assista e entrevista completa com a cientista social, Nathália Oliveira.

PEC 45: Nesta terça-feira, 25 de junho, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira determinou a constituição de uma comissão especial para analisar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2023, que criminaliza a posse e o porte de qualquer quantidade de drogas. O motivo de acelerar o processo surge em resposta à decisão do STF, que se mostrou favorável à descriminalização do porte de maconha para uso pessoal.

Nathália Oliveira, Cientista Social da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, ressalta a importância da decisão do STF, tomada nesta última terça-feira, 25 de junho, sendo aguardada há quase 10 anos para avançar.

“Os ministros reconheceram publicamente o racismo implícito na escolha da proibição e convocaram os demais poderes para novas interpretações sobre o tema. Esse resultado acontece no mesmo período em que enfrentamos um legislativo ultraconservador, que deve reagir a essa decisão através do endurecimento das leis de drogas, como é o caso da PEC 45. Por outro lado, a interpretação da Suprema Corte sobre esse assunto pode mobilizar setores que estavam em cima do muro sobre a pauta. Sabemos que esse primeiro passo terá reação no Congresso Nacional, aumentando o risco da aprovação da PEC 45. Sigamos atentas e mobilizadas para garantir essa vitória também nas ruas”.

16º ano da Marcha da Maconha na Avenida Paulista. Foto: Pedro Oliveira / Junho de 2024.

Pessoas negras são maioria entre presos por tráfico drogas. 86% dos réus processados é do sexo masculino, 72% tem até 30 anos, 67% possui baixa escolaridade e 68% são negros. É o que revelou uma pesquisa realizada em outubro de 2023, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA.
Esses números evidenciam o impacto desproporcional da política de drogas sobre a população negra e periférica. Em entrevista ao programa do Desenrola Aí, a cientista social também destaca o impacto da Guerra às Drogas e da nova PEC 45 nos territórios periféricos.

“O combate ao tráfico de drogas tem cor e CEP. Basta olharmos o sistema carcerário para perceber que mais de 60% das pessoas presas são pobres, negras, de baixa escolaridade. Essas pessoas respondem com penas de privação de liberdade, muitas vezes altíssimas, desproporcional ao dano causado na sociedade”,

afirma Oliveira.

Impacto da PEC 45/2023: endurecimento das leis de drogas e repressão nas periferias

No Brasil, a Guerra às Drogas resultou em extermínio e encarceramento em massa da população negra, especialmente homens jovens e periféricos, colocando o país na terceira posição mundial em população carcerária, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.

16º ano da Marcha da Maconha na Avenida Paulista. Foto: Pedro Oliveira / Junho de 2024.

Segundo Nathalia, a inclusão da criminalização na Constituição para a posse e o porte de qualquer quantidade de droga, pode abrir precedentes para endurecer ainda mais as leis relacionadas às drogas, aumentando a repressão nas periferias e favelas, agravando o aumento do encarceramento em massa no país. Por isso, é de extrema importância o reconhecimento dos ministros sobre o racismo implícito na escolha da proibição do porte de maconha para uso pessoal.

Aprovado em abril deste ano no Senado, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que criminaliza a posse e o porte de qualquer quantidade de droga, cita a necessidade de diferenciar traficantes de usuários. No entanto, a PEC não especifica como essa distinção será feita na prática. A proposta foi enviada e aprovada em 12 de junho, pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e será analisada em comissão especial. Se aprovada, segue para o plenário.

Atualmente, a Lei de Drogas define que a distinção entre usuário e traficante é determinada pelo juiz, com base na quantidade de droga apreendida, sem especificar um limite exato. O juiz também considera o local, as condições da ação e as circunstâncias sociais envolvidas.

Sobre o Desenrola Aí

O Desenrola Aí é um programa quinzenal que visa trocar ideias com especialistas da quebrada, descomplicando assuntos relevantes, que afetam o cotidiano da população negra e periférica e os direitos humanos, que é a essência da nossa existência e convivência enquanto sociedade. O programa do Desenrola Aí tem como realização o Desenrola e Não Me Enrola e Fluxo Imagens.

Para onde vai o lixo?

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Salve, salve galera, chegando hoje pra trazer um assunto mega importante, principalmente para nossa quebrada. Sabemos da importância de não descartar de forma irregular os lixos que produzimos e/ou entulhos ou madeiras de móveis que não usamos mais. Você sabe para onde vai todo esse lixo? 

A maioria do orgânico e materiais são despejados em uma área grande a céu aberto (mais conhecidos como lixões), localizados geralmente em regiões periféricas de cidades. Tem também os aterros sanitários. Nestes locais, o solo é preparado para receber o lixo orgânico que é colocado em camadas intercaladas com terra, evitando assim o mau cheiro, contaminação e a proliferação de insetos e ratos.

Então além dessas questões sabemos muito bem o que acontece na quebrada quando vem a chuva, juntando com esse descarte irregular de lixo.

Mas se pensarmos bem, a falta de saneamento básico e a dificuldade em lugares para acesso de coleta, dificulta mais ainda a vida da galera da quebrada, tendo lugares onde o caminhão de coleta não passa. 

As consequências com isso são enormes e a comunidade sofre quando vem as chuvas somadas com esses fatores e acaba que muitas casas são invadidas por água, acabando com todo bem material que as famílias lutaram uma vida para conquistar. 

Moradores de viela muitas vezes tem que se encaminhar até um certo ponto específico para colocar o lixo, geralmente em caçambas. Mas você já pensou quando faz uma obra, onde por aquele entulho? 

Muitos carros “cata bagulho” passam mais em bairros nobres, enquanto na quebrada que é onde precisa-se tanto, eles não passam. Faltando assim muito suporte com esse tipo de descarte dentre tantos outros. 

Podemos nos conscientizar e melhorar nossos descartes, nos empenhar e focar em fazer a separação para reciclagem, podemos fazer nossa parte. Mas sabemos muito bem da falta de suporte e atenção dos governantes para esse aspecto nos bairros da periferia. 

Como podemos ver nos últimos acontecimentos as catástrofes sofridas, onde o povo de baixa renda que é o mais afetado, enquanto os governantes que poderiam tomar decisões assertivas para evitar isso se isentam e se abstêm ao longo de anos esperando o pior e sendo conivente com que acontece ao povo.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Qual a relação entre as escolas cívico-militares e o desmonte da educação pública? #28

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Nesse episódio falamos sobre a ampliação do projeto de escolas cívico-militares e de que forma a militarização das escolas se apresenta como um dos caminhos de ataque à educação pública. 

Para desenrolar esse papo, conversamos com a Nycolle Fernandes, estudante e integrante do movimento Afronte Secundaristas / Afronte SP, e com a Catarina Santos, especialista em Gestão Escolar, com mestrado na área de Educação e coordenadora da Rede Nacional de Pesquisa sobre a Militarização da Educação no Brasil. 

O Cena Rápida tem episódios novos quinzenalmente, sempre às quartas, disponivel gratuitamente no Google Podcasts, Spotify e Youtube.

Coletivo incentiva uso da bicicleta como opção de mobilidade e lazer nas periferias

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Segundo dados da pesquisa Viver em São Paulo: Mobilidade, realizada pela Rede Nossa São Paulo junto com o Instituto Cidades Sustentáveis e o Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica), em 2023, o tempo médio gasto diariamente para fazer todos os deslocamentos na cidade, através do transporte público, era de 2h26.

Esse é um dado vivenciado por muitas pessoas, principalmente em territórios periféricos, como é o caso da Josivete Pereira, conhecida como Jô, que passou a considerar o uso da bicicleta para se locomover, a princípio por uma questão financeira, mas também pelo tempo de locomoção na cidade.

Jô Pereira, moradora do Rio Pequeno, é presidenta da União de Ciclistas do Brasil e cofundadora do coletivo Pedal na Quebrada. (foto: Yuri Vasquez)

“A gente precisa ter tempo pra gente, só [temos] tempo para o trabalho. A gente se desloca, trabalha e volta. Não pode ser só isso”, coloca Jô Pereira, que é educadora física, moradora do bairro Jardim Ester, no distrito do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, presidenta da União de Ciclistas do Brasil, atuante na Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo, e uma das fundadoras do coletivo Pedal na Quebrada. 

A ciclista aponta que qualidade de vida e lazer se relacionam com as questões de mobilidade urbana. Ela coloca que o uso da bicicleta nas periferias não se dá apenas no aspecto da obrigação ou escassez, que pode ser usada para brincar e em exercícios físicos.

“A mobilidade ativa, tanto a pé quanto de bicicleta, e o transporte público dependendo dos horários, são maneiras com as quais a gente pode estar somando ganhos nessa mobilidade. Isso é importante para repensar as cidades”, diz Jô. 

Pedal na Quebrada

O Pedal na Quebrada é uma iniciativa criada em 2018, pela Jô Pereira, junto da Jezz Rodrigues e Angela Maris, que moram em Itaquera, e pela Tati Souza, que é de Guaianazes, ambos territórios localizados na zona leste de São Paulo. 

Coletivo incentiva uso da bicicleta como opção de mobilidade e lazer nas periferias
Angela Maris, Jô Pereira, Tati Souza e Jezz Rodrigues formam o coletivo Pedal na Quebrada. (foto: arquivo pessoal).

Formado por três educadoras físicas e uma educadora infantil, as ações do coletivo circulam por diferentes regiões. A principal atividade tem sido retomar as reais histórias dos territórios, a partir do conhecimento de quem veio antes e de quem o habita no momento, isso se dá através da poesia e do ciclismo na atividade que Jô se refere como Pedalada Política, proposta pelo coletivo. Ela explica que o objetivo é “falar da nossa historicidade, dos corpos negros e indígenas na cidade, só que no olhar do pedal”.

“Não é um passeio ciclístico, é uma pedalada política, artística e principalmente afetiva, porque é para a gente se colocar na história e se colocar no presente”. A ciclista conta que essas pedaladas são realizadas com alguém do território, e previamente é feito um mapeamento do percurso que tem entre 10 e 20 km. 

Pedalada noturna no município de Mogi das Cruzes, em São Paulo. (foto: Jezz Rodrigues)
Pedal no distrito de Belém, com o projeto ‘Poesia urbana sobre rodas’. (foto: Yuri Vasquez)

O coletivo também promove oficinas de mecânica e de pedal, que além do aprendizado prático estimulam o desenvolvimento da autonomia, da construção coletiva e provocam questões de identidade e subjetividade das pessoas que participam.

Como exemplo, Jô cita um grupo de pedal formado por incentivo das ações do coletivo, após uma oficina que realizaram na Casa Anastácia, um Centro de Defesa e Convivência da Mulher que atende mulheres vítimas de violência doméstica. 

Participar de discussões acadêmicas é mais uma das movimentações da iniciativa. “Entrar dentro das estruturas de educação para decolonizar esse assunto [da mobilidade urbana], porque ele é bem colonizado”. Classe, raça e gênero são temas presentes quando se trata da viabilidade do uso de bicicletas e o Pedal na Quebrada também desenvolve suas atividades a partir dessas abordagens ao abrir espaço para rodas de conversas antes das oficinas práticas.

Políticas públicas

A regulamentação do uso das bicicletas e dos demais veículos, como bicicletas elétricas, ciclomotores, entre outros, para que eles utilizem as vias ao invés das calçadas, por exemplo, é apontada por Jô como uma forma para evitar acidentes.

“A gente está lutando por mais espaço dentro das vias, da ‘carrocracia’ e para isso a gente tem que ganhar mais espaço também para o pedestre”.

Jô Pereira, Presidenta da União de Ciclistas do Brasil, integrante da Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo e cofundadora do coletivo Pedal na Quebrada.

Segundo o Código de Trânsito Brasileiro, a bicicleta é considerada um veículo de propulsão humana, e por isso pode ser usada na via, tendo direitos e deveres resguardados pela lei.

Jô afirma que a diminuição da velocidade dos veículos motorizados é uma das providências a serem tomadas para viabilizar não só a locomoção com bicicleta nas cidades, mas para diminuir os sinistros com veículos de modo geral. Ampliar a malha cicloviária na cidade, tendo como foco as periferias, também é uma das prioridades reivindicadas.

“Pensar a cidade e as políticas públicas também nessa visibilidade de como respeitar a pluralidade das pessoas estarem nos mesmos espaços com seus direitos garantidos. [Precisamos] de olhares [na] construção política para periferias e falar: ‘Opa, precisamos aumentar a malha cicloviária nas periferias’. Tem aumentado? Tem. Com tanta pressão tem funcionado, mas ainda está muito lento”, coloca a cofundadora do Pedal na Quebrada. 

Vivência Bike Trial, projeto do Dia do Desafio pelo Sesc 14 Bis. (foto: arquivo pessoal).

As necessidades para viabilizar a locomoção com bicicleta nas periferias ainda são muitas, e Jô coloca que a organização em coletivos para elaborar projetos políticos tem sido a estratégia adotada para alcançar melhorias. 

“Quem mais pedala é a periferia, isso é muito bom e positivo, só que a gente precisa de segurança para todo mundo [com] qualidade, não é só pintar [uma faixa]”, compartilha Jô, que também afirma sobre a facilidade do uso de bicicletas em bairros centralizados ocorrer por conta do investimento destinado para esses locais.

A educadora coloca que as discussões sobre políticas públicas de mobilidade urbana precisam acontecer também nas periferias para que moradores desses territórios possam ter a possibilidade de participar.

“[Precisamos de] mais de nós falando, não pode ter tão poucas representações assim, porque somos muitos, tem que ampliar mais essa discussão, porque não é uma discussão só da bicicleta, é uma discussão da cidade”, menciona Jô, que ressalta sobre o voto nas eleições interferir diretamente nesse planejamento urbano.

Será que sabemos o quê a juventude quer? 

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Bom, não é de hoje que o tema juventude acumula local de pauta em diversos grupos, instituições ou em falas governamentais, porém é perigoso o movimento de definição sobre o que as juventudes esperam sem um devido olhar acerca das vivências, territórios e outras questões primordiais pro debate.

Quando pensamos “jovem” o que ecoa em nossa mente? Que vamos ensiná-lo a viver? 

A ideia do jovem como um indivíduo para ser simplesmente ensinado é preocupante e carrega consigo inúmeras limitações, espera-se aqui que o jovem corresponda a quem irá conduzir ou ensinar, e na maioria das vezes não é esse o movimento que irá ocorrer.

Muitas vezes falamos sobre acolhimento e empatia, mas esse exercício não é fácil e o local de escuta também é um local de esforço, inclusive para lidar com os conflitos de ideias. E que bom que as ideias não são iguais! Que bom que existem conflitos geracionais, isso enriquece os debates. O aprendizado também nos exige que possamos aprender a conflitar.

Trago aqui o respeito pelo passar dos anos, pelas mudanças geracionais que precisam ser levadas em conta, as demandas mudam ou às vezes são reivindicadas de outras formas. Eu não dou local de fala a ninguém, assim como ninguém deu ele a mim. Eu posso e devo falar quando sinto que me convém! A voz do jovem não é doada, é dele. 

O protagonismo não pode ser podado, me entristece quando vejo que o debate ainda está focado no que definimos que seria bom para a juventude e não em criar meios da própria juventude elaborar o que deseja (inclusive porque existem diversas juventudes). Para existirem ambientes verdadeiramente acolhedores, primeiro precisamos repensar sob quais prismas nos constituímos, como tocamos as instituições, pesquisas e associações.

Esse texto começou a ser escrito ano passado, após inúmeros desconfortos e confrontos que me levaram a questionar se realmente queremos locais de diálogo ou não. Parece que ainda é turva a ideia de que o diálogo traz consigo um certo desconforto, de certo, o outro não é aquilo que esperamos, e que bom para nós…que sorte amadurecer! Nós também estamos nesse lugar, o tempo inteiro.

Compreendi a partir das observações que fiz, que precisamos conversar sobre o por quê trazemos jovens para alguns ambientes e se estamos dispostos a comportar a presença deles, com suas diferentes trajetórias, vivências, olhares, opiniões e vulnerabilidades. Não basta eles estarem lá, é necessário que haja troca.

Talvez ao esperar que as respostas das juventudes sejam padronizadas ou que há um só caminho, nos limitamos. 

E quando falamos da atuação institucional, por vezes criamos ambientes onde os jovens estão sempre como atores secundários, mesmo que digamos que são eles que desenvolvem os projetos, não são eles a ganharem voz, poder de escolha e reconhecimento.

Não sabemos o que a juventude quer!

Se partirmos da ideia de que existem diversas juventudes, não sabemos o que a “juventude” quer, não existe uma resposta pronta (aqui não estou falando sobre pesquisas já feitas, dados já coletados, entre outros), nesse texto estou discorrendo sobre a nossa ausência de auto reflexão quando nos colocamos num lugar de definição, já que sabemos que as pautas mudam e as urgências mudam para cada território e cada juventude.

Toda a minha escrita é focada em repensar caminhos, e ao meu ver não existe a construção e continuidade dos caminhos sem a participação ampla e ativa das juventudes.

Não acredito na obrigatoriedade dos papéis, ou seja, você é jovem, logo é obrigado a buscar protagonismo, a se movimentar etc. Ao meu ver, existem múltiplos fatores que levam uma pessoa aos lugares onde ela se afiniza, mas especificamente, eu afirmo que não é papel meu transferir minha identidade para o outro para que ele seja o que eu desejo.

Contudo, vejo uma responsabilidade em permitir que esses ambientes sejam confortáveis para todas as pessoas, que estejam abertos ao protagonismo jovem e que aprendam a construir novos olhares. 

Vladimir Maiakóvski
Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

“Generalizar todos como bandidos é criar fábrica de monstros”, diz ex-detento e empreendedor social

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Assista a entrevista completa em nosso canal no YouTube.

A Lei de Execução Penal brasileira determina que ao longo da pena, para pessoas privadas de liberdade, deve-se proporcionar condições para a reintegração social. No entanto, em entrevista ao Desenrola Aí, Erick Soares, egresso do sistema prisional, enfatiza a ausência dessas condições, durante e após o cumprimento da pena, dificultando o retorno dos ex-detentos à sociedade e acentuando os desafios e preconceitos enfrentados no processo de ressocialização.

“Um dos maiores obstáculos que encontrei foi o preconceito da sociedade. O preconceito está em todos os lugares e torna extremamente difícil se reintegrar no mercado de trabalho. Uma passagem pela justiça limita você. Não consegue um empréstimo, não consegue um financiamento, e ao procurar emprego, pedem atestado de antecedentes criminais, o que complica ainda mais.” Destaca Erik.

O Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking mundial de países com a maior população carcerária, com mais de 832 mil pessoas privadas de liberdade. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha, em 2016, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e divulgada no 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, revelou que 57% da população brasileira acredita que “bandido bom é bandido morto”, 34% discordam da afirmação, 6% neutros e 3% não souberam responder.

“O preconceito está estampado em todos os lugares. Muitas pessoas que passaram pelo sistema prisional querem uma oportunidade, mas não conseguem. Você colocar todo mundo na mesma caixinha, todo mundo como bandido, você vai criar uma fábrica de monstros”. Conclui Erik.

Longe do sistema carcerário, Erik Soares encontrou recomeço como empreendedor social, palestrante em escolas públicas, Fundação Casa e como ator, contracenando em séries como “Sintonia” e “DNA do crime”, da plataforma de streaming da Netflix.

Sobre o Desenrola Aí

Empreendedor Social, Erick Soares e a jornalista Thais Siqueira durante a gravação do Desenrola Aí. (Maio 2024). Foto: Pedro Oliveira. 

O Desenrola Aí é um programa quinzenal que visa trocar ideias com especialistas da quebrada, descomplicando assuntos relevantes, que afetam o cotidiano da população negra e periférica e os direitos humanos, que é a essência da nossa existência e convivência enquanto sociedade. O programa do Desenrola Aí tem como realização o Desenrola e Não Me Enrola e Fluxo Imagens.