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Desenrola e Não Me Enrola entrevista candidaturas periféricas a vereança da cidade de São Paulo

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Assista a sabatina completa.

Nesta terça-feira (03), a jornalista Thais Siqueira, co-fundadora do Desenrola E Não Me Enrola, apresentou a primeira sabatina do Desenrola Aí nas Eleições, programa de entrevistas dedicado a entrevistar candidaturas negras e periféricas que visam ocupar o cargo de vereador na Câmara Municipal de São Paulo, um espaço de construção de leis e políticas públicas fundamental para a defesa da democracia e da pluralidade de vozes na política institucional.

A primeira entrevista com candidaturas periféricas contou com a presença dos candidatos Advogado Ewerton (PODEMOS) e Neon Cunha (PSOL).

A iniciativa faz parte da proposta do Desenrola e Não Me Enrola de realizar uma cobertura especial das eleições na cidade de São Paulo, a partir da sua  linha editorial, baseada em temáticas como raça, gênero, população LGBTQIAPN+, mulheres e povos indígenas.

No município de São Paulo, foram registradas 927 candidaturas ao cargo de vereador, conforme dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por meio do portal Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais. Devido ao número elevado de candidaturas registradas, não é possível entrevistar todas. Portanto, o Desenrola selecionou oito candidaturas que dialogam com temas conectados à sua linha editorial.  

Ao todo, serão realizadas quatro transmissões ao vivo no canal de YouTube do portal de notícias, todas as terça-feiras, nos dias 03, 10, 17 e 24 de setembro, sempre às 12h, com duração de uma hora. 

Cada entrevista contará com a presença de duas candidaturas, e terá perguntas elaboradas a partir das pautas emergentes dos territórios periféricos, além de perguntas criadas pelo público que estarão acompanhando o programa. 

As próximas entrevistas do Desenrola Aí nas Eleições conta com a presença da candidata a reeleição, Elaine Mineiro (PSOL), que representa a mandata coletiva Quilombo Periférico, Ingrid Soares (Rede), Keit Lima (PSOL), Professora Flavia (PSTU), Chirley Pankará (PSOL)Erick Ovelha (PSOL)

Confira as próximas datas com entrevista simultânea as candidaturas periféricas a vereança da cidade de São Paulo

📅 [10 de setembro, às 12h] Elaine Mineiro (PSOL) e Ingrid Soares (Rede).

📅 [17 de setembro, às 12h] Keit Lima (PSOL) e Professora Flavia (PSTU)

📅 [24 de setembro, às 12h] Chirley Pankará (PSOL) e  Erick Ovelha (PSOL)

Sobre o Desenrola Aí nas Eleições

O Desenrola Aí nas Eleições é um programa de entrevistas dedicado a sabatinar candidaturas negras e periféricas que disputam cargos públicos nas eleições municipais e estaduais. O programa foca em candidaturas que visam ocupar posições como vereança, deputado (a/e) estadual e federal, espaços essenciais para a construção de leis e políticas públicas que defendam a democracia e promovam a diversidade de vozes na política institucional.

Desde sua primeira edição em 2022, o Desenrola Aí nas Eleições tem sido um importante espaço de diálogo, entrevistando candidaturas periféricas para cargos de deputado estadual e federal, ampliando o debate sobre representatividade e inclusão no cenário político.


Tarifa zero no transporte público: é possível?

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O cientista social e pesquisador do Centro de Estudos Periféricos, Sandro Oliveira, responde à pergunta feita nas redes sociais do Desenrola.

Adotar a tarifa zero está entre as soluções mais importantes e imprescindíveis para garantir o direito à cidade para todas, todos e todes cidadãos. Essa é uma política pública adotada em alguns municípios brasileiros, como em Maricá, no estado do Rio de Janeiro e, recentemente, em São Caetano do Sul, na Região Metropolitana de São Paulo. Ela implica num potencial de circulação em que, paulatinamente, tende a melhorar as condições do trânsito, ao reduzir os congestionamentos, além de promover um bem-estar comum no quesito da qualidade de vida para o conjunto da população das cidades em que são aplicadas e esperamos que isso ocorra em breve em São Paulo.

Histórico

Cabe destacar que a tarifa zero, que atualmente ocorre aos domingos em São Paulo pela atual gestão municipal, foi uma política criada e adotada originalmente na gestão da prefeita Luiza Erundina (1988-1992), na época do Partido dos Trabalhadores. Essa política foi criada pelo então Secretário de Transportes da Erundina, o engenheiro Lúcio Gregori, que implantou parcialmente a tarifa zero em finais de semana e em alguns bairros como em Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo (com os ônibus circulares). Ele pretendia ampliar para toda a cidade, mas foi boicotado pelos empresários de ônibus das empresas privadas, que não permitiram e até sabotaram essa proposta.

Gregori desde então vem fazendo a defesa de que em vez de a cobrança do “custo do transporte” ser por catraca, que pudesse haver uma mudança para a cobrança por quilômetro rodado, que poderia estimular inclusive as empresas privadas em investirem em mais ônibus para a circulação, já que quanto mais circulação, mais ganham, A catraca é o inverso: poucos ônibus, ônibus lotados e muitas vezes em situação precária. Por isso, a tarifa zero apenas aos domingos tende a não ser funcional plenamente para os/as trabalhadores/as que vivem e habitam as periferias da cidade, porque o intervalo dos ônibus tornam-se mais demorado e há uma quantidade menor de ônibus circulando.

Mas a tarifa zero aos domingos é uma medida importante para viabilizar a circulação de pessoas que sequer saem do bairro em que moram por não dispor de recursos para o transporte, ao permitir o lazer, a circulação e a apropriação para outras partes da cidade por esses/as trabalhadores/as. Todavia, esse experimento aparece como um piloto para verificar as possibilidades de implementação da tarifa zero na cidade, algo que seria fundamental, já que o transporte não deve ser tratado apenas como serviço, mas como um direito social, tal como a educação, a saúde (SUS), etc.

A importância das empresas públicas e o combate a privatização

Outra questão para a implementação da tarifa zero é a retomada das empresas públicas de transportes. Em São Paulo existia a CMTC – Companhia Municipal de Transportes Coletivos, fundada em 1949 e privatizada na gestão de Paulo Maluf em 1993. É fundamental haver empresas estatais de transporte que, inclusive, há uma urgência em colocar a questão da importante pauta de reestatização do sistema de transporte, a exemplo do SUS que é uma política pública de Estado, para garantir o transporte como direito social e viabilizar a tarifa zero, já que empresas estatais não visam lucro. Em muitos países como Alemanha, por exemplo, há um processo de reestatização de empresas que foram privatizadas nas últimas décadas. Não podemos cair no mito ideológico do “mercado virtuoso versus estado ineficiente”. 

Por isso, o Estado precisa assumir o seu papel de regulador da sociedade, dos espaços sociais e da circulação, independentemente de seus governos, ao também operar o transporte como fez em outras épocas aqui em São Paulo, seja pela CMTC ou mesmo pela EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos), e como faz ainda pelo Metrô (Companhia do Metropolitano) e CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), empresas estatais fundamentais para o transporte de massa ameaçadas de privatização pela atual gestão do governo do Estado de São Paulo, na contramão da tendência mundial de reestatização e melhoria dos serviços públicos de transportes. A grande questão é que a gestão de uma cidade, Estado e país passa pela ação de governos e, muitos destes, não atende os interesses do conjunto da população, apenas os interesses de grupos econômicos e políticos vinculados ao seu programa de governo. 

Iniciativa ocupa espaço público na Brasilândia através do samba

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Todo primeiro domingo do mês, moradores e público em geral, são convidados a participarem de uma roda de samba, na qual podem inclusive tocar algum instrumento e ser o cantor da vez. Essa é uma das propostas do Samba do Bowl, criado em 2013, e que realiza diversas atividades na Praça Sete Jovens, localizada no bairro Elisa Maria, no distrito da Brasilândia, zona norte de São Paulo. 

Morador dos arredores onde acontece o samba, Fábio Alves, conhecido como Lol, arte-educador e um dos fundadores da iniciativa, conta que além de fomentar o lazer e entretenimento, o evento promove diversas formações, principalmente para os jovens. “A ideia do samba em si era a gente criar um espaço de apresentação ao ar livre para os artistas do território”, conta. 

Fábio Lol cofundador do Samba do Bowl e arte-educador. (foto: arquivo pessoal)

“Hoje em dia a gente tem um embasamento que é formar as pessoas dentro do conteúdo artístico. Elas aprendem a tocar no samba, a cantar, a organizar o evento, aprendem produção, pré-produção e pós-produção cultural”, diz o arte-educador.

Golfe, slackline, desfile de moda, feira empreendedora, oficina de pipa, de trança, turbante, oficina de boneca abayomi, teatro e grafite são algumas das atividades que já foram realizadas na praça a partir do samba. “A cada mês a gente traz também uma pessoa [ou grupo] que queira participar”, compartilha Fábio.

A prática de golfe acontece com frequência na praça junto com o samba. (foto: arquivo pessoal)

O arte-educador acredita que a partir do contato das crianças e dos jovens com a cultura, a arte e o movimento popular, que também são fomentados por outros coletivos da Brasilândia, eles têm construído imaginários e perspectivas de vida mais prósperas. “Daqui pode sair o [próximo] Tiger Woods, do golf”, diz.

“São várias atividades que vão trabalhando também a autonomia das pessoas que participam diretamente ou indiretamente. Quando a gente fez o desfile de moda da periferia, [convidamos] 10 marcas locais, costureiras [e] modelos do território. Então, você vê as pessoas se apropriando, se tornando protagonistas do rolê.”

Fábio Lol, arte-educador e cofundador do Samba do Bowl.

Apesar de não ser o foco, ações sociais voltadas para a saúde também já foram realizadas pelo movimento. “A gente já fez atendimento psicológico, já transformou escola em hospital odontológico, foram mais de 500 famílias atendidas. Na pandemia, atendemos 10.000 famílias com cesta básica”, relembra Fábio. 

Cestas básicas foram entregues durante a pandemia de Covid 19. (foto: arquivo pessoal)

A iniciativa acontece de forma independente, um dos motivos da única atividade fixa ser o samba na praça. Em 2018 e 2019, o grupo teve acesso ao edital público VAI (Programa de Valorização de Iniciativas Culturais), mas atualmente não possui nenhum tipo de fomento para manter as atividades. O que ocorre são parcerias pontuais com espaços públicos e institucionais da região que atuam com cultura. 

O arte-educador conta que a articulação no território acontece a partir do saber de cada morador. “‘Ah, mas eu não sou artista’, tudo bem. Sabe fazer bolo? Faz um bolo, traz aí e vamos começar a vender. Você costura? Vem costurar, fazer um bordado, vem ensinar a gente. Teve uma vez que um jardineiro veio e deu oficina de jardinagem. Então a gente vai despertando coisas que já existem dentro do território”, pontua. 

Praça Sete Jovens

Ocupar a praça por meio da cultura e do movimento popular é uma estratégia do coletivo para tentar se distanciar do contexto de violência que é reincidente no território. “Eu vejo [isso] como uma ferramenta de redução de danos”, diz Fábio.

“A Praça Sete Jovens é uma denúncia”, afirma ao contar sobre o histórico do local que envolve a chacina que resultou na morte de seis, dos sete jovens que foram baleados enquanto conversavam na escadaria da Rua Olga Benário, próxima à praça, que na época ainda não existia. 

Cartaz feito com  as crianças em uma oficina de grafite. (foto: arquivo pessoal)

A chacina ocorreu em 2007, e investigações realizadas pelo DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) provaram que foi realizada pela Polícia Militar. No mesmo ano, moradores reivindicaram e conquistaram a construção de um espaço de lazer no terreno, que era conhecido como Pastão. No entanto, Fábio explica que essa luta pela praça existe desde os anos 80, puxada pelo movimento popular dos moradores.

Em assembleia, foi decidido que a praça passaria a se chamar Sete Jovens em homenagem às vítimas. “[A princípio] a prefeitura não aceitou, a gente levou quase seis anos para oficializar o nome e até hoje eles não mandaram a placa”, relata Fábio.

O samba é realizado dentro de uma piscina de skate, por isso leva o nome de Bowl. Local em que, em 2014, ocorreu outra chacina que matou mais três jovens. “A gente não morrer aqui ainda é uma luta”, menciona Fábio.

“Só construir a praça não garantia que a gente ia estar vivo, foi aí que a gente se ligou que não adianta só ter a praça, tem que ocupar com as famílias, crianças, [assim] os polícia não vai chegar dando tiro na gente”

Fábio Lol, arte-educador e cofundador do Samba do Bowl.

Com o passar do tempo a praça se tornou um polo cultural. Segundo Fábio, “um espaço democrático de encontro”. As crianças utilizam o local para brincar, sendo esse um dos poucos acessos que elas têm na região para correr ao ar livre e ter contato com a natureza. 

Iniciativa ocupa espaço público na Brasilândia através do samba
As crianças estão sempre presentes nos eventos que realizados pelo coletivo Sete Jovens. (foto: arquivo pessoal)

Fábio ressalta que um dos principais desafios para manter as atividades é conseguir fazer as pessoas participarem ativamente, e reforça que tudo é construído em coletivo. 

“É difícil fazer com que as pessoas se apropriem, porque a gente está tão envolvido no cenário do capitalismo, da escassez, que é até compreensível que elas não se [disponibilizem]”, pontua Fábio, que também pontua sobre a importância das novas gerações darem continuidade ao que vem sendo construído no território.

Uma vítima imperfeita

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Nas últimas semanas, li nos jornais sobre uma jovem estudante de 21 anos e sua via crucis para acessar o aborto legal em São Paulo. Por conta de violência doméstica e abuso sexual do então namorado, Maria engravidou (vou manter o nome fictício usado pela imprensa). Descobriu a gravidez já com mais de 13 semanas, mas só se deu conta de que tinha direito ao aborto legal depois de 24 semanas.

Consegui seu contato e marcamos de nos conhecer. Na estação de trem, encontrei uma mocinha miúda, de cabelos cacheados, bem agasalhada e com uma mochila enorme nas costas. Se ela dissesse que tinha 15 anos, eu teria acreditado. “Tá de mudança?”, brinquei. Ela respondeu com um sorriso, dizendo que não tem tido forças para ir para faculdade, mas que tem tentado manter as leituras em dia na biblioteca perto de casa. 

Maria é uma jovem negra periférica, que está no segundo ano de graduação em uma universidade pública. Super articulada, dona de olhos curiosos, ela é extraordinária. E é justamente por ser extraordinária que sua vida está de cabeça para baixo. 

Durante todo o último mês, se tornam comuns comentários do tipo: nossa, uma estudante desta universidade não tinha acesso à informação? Por que não separou dele antes? Não procurou ajuda antes? 

Além de uma enorme ignorância sobre a dinâmica da violência, inclusive nos serviços de acolhimento, essas perguntas ignoram também que toda e qualquer mulher pode ser vítima de violência doméstica. Outra Maria, a da Penha, é um exemplo.

É mais provável o senso comum criar empatia com uma história terrível, de uma menina afroindígena de 10 anos, do interior de algum estado fora do sudeste, abusada por um familiar. Já que ela não tem nenhuma agência sobre sua própria desgraça, não pode ser também responsabilizada. Elas existem, são um retrato cruel da imensa tragédia em que estamos submersas. 

Talvez por isso dê mais trabalho argumentar contra uma vítima perfeita. 

Só que o problema de Maria é justamente ser uma vítima imperfeita. Mais de um ano de relacionamento abusivo havia passado quando ela parou de duvidar de si mesma: “eu só tomei consciência de verdade depois que eu fui no Hospital do Campo Limpo. Quando eu contei a minha história lá, a assistente social e a psicóloga me acolheram, me ajudaram a identificar as muitas camadas do que eu estava vivendo. Conforme elas iam me explicando, parecia um bingo e eu tinha marcado quase todos os pontos”.

A via crucis começou porque Maria deu o azar da médica estar de férias e precisou ser transferida para o Hospital Mário Degni, no Rio Pequeno. Lá, teve que recomeçar do zero e perdeu um mês, em seis idas e vindas ao hospital, chegando a 29 semanas. Para cada vitória que teve na vida, foi se tornando mais imperfeita e a equipe se sentiu excessivamente à vontade para minimizar sua história. 

Uma equipe de profissionais de saúde tirou o jaleco do cuidado, vestiu toga de juiz e criou barreiras no acesso a um direito.

Nas seis visitas ao hospital Mario Degni, Maria não recebeu nenhuma orientação sobre serviços para mulheres vítimas de violência, nem tampouco informações sobre medida protetiva ou fez qualquer exame médico. 

Não houve cuidado para ela, a paciente. Ao contrário, foi colocada em risco psíquico pela demora na autorização do aborto e pelos comentários incabíveis (“já escolheu o nome?”, “você tem uma história de vida bonita, vai ser uma mãe guerreira”), prova da falta de preparo da equipe técnica. Foi submetida a um risco físico, por não ser incluída em nenhuma rede de suporte que a ajudasse a sair da situação de violência doméstica, que poderia escalar a qualquer momento; e a um risco obstétrico, por condições comuns a gravidez, como diabetes gestacional e pré-eclampsia, que aumentam a medida que a idade gestacional avança, sem o devido cuidado em saúde. 

A equipe nunca entregou uma negativa ao aborto, mas estimulou que ela não voltasse ao hospital, que procurasse a adoção e pediu que viesse com seus pais, criando um terror psicológico. “Quando eu comecei a chorar, elas me trataram um pouco melhor”. 

O que Maria viveu é tortura.

Fiquei dias olhando para a página em branco depois de encontrar com Maria. Me faltavam palavras. Uma jovem mulher preta e periférica, consegue entrar em uma das universidades mais importantes do país, mas ninguém consegue olhar pra ela e dizer: você tem o direito de escolher sobre a sua vida. 

A gente tinha conversado por telefone antes de se encontrar, e eu levei um livro de presente, o Gravidez Indesejada, um importante estudo sobre os impactos de ter o acesso ao aborto negado. Tinha lido ali uma história muito parecida com a dela, e com um final positivo, achei que Maria poderia se animar um pouco.

“Amei, obrigada! É bom sentir que não sou a única, não estou sozinha. Tô passando com uma psicóloga do Projeto Vivas, e conversamos sobre o quanto ser uma mulher que defende seus direitos e que busca ser feliz e livre (liberdade de ir e vir, de estudar, de trabalhar, de se colocar, de fazer planos) incomoda, e incomoda bastante. Ela disse que também viu a matéria e que me considerava uma guerreira sim, mas não por ter passado por tudo isso, mas sim por não ter me resignado, pois eu poderia ter desistido e ter aceitado a minha “sina”. Ela completou dizendo que eu posso ser guerreira para muitas outras coisas, como nos estudos, para um trabalho legal, para uma vida legal. Que a guerra de ser mãe, não é obrigação, ou melhor, não deveria ser.”

Não mesmo.

Com o apoio do Projeto Vivas, Maria foi acolhida com muito mais profissionalismo e empatia em outro hospital. Conseguiu fazer o aborto e já tomou sua vida de volta.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.


De diarista a confeiteira: a conquista do primeiro ponto comercial na periferia

Desde 2002, o Bloco do Beco reúne moradores do Jardim Ibirapuera, Zona Sul de São Paulo, em prol do incentivo da produção cultural do território. Em frente ao local, de terça a sábado, o carrinho de doces de Solange Ferreira, 46, moradora do Jardim Mazza, reforça a importância da gastronomia local ao agradar o paladar dos frequentadores, entre uma atividade cultural e outra do espaço cultural comunitário.

Até o momento da pandemia, Solange era diarista – atividade afetada pelo lockdown, como tantas outras. Considerando os índices do IBGE, nos primeiros 5 meses de restrição de aglomerações, a taxa de desemprego aumentou em 33,1%. Dado que pode ser explicado por um contexto de mudanças estruturais baseadas na insegurança econômica de modo geral. 

Solange Ferreira, 46, confeiteira e moradora do Jardim Mazza, zona sul de São Paulo. Foto: Sthefani de Jesus.

A diminuição expressiva da demanda de serviços também impactou diretamente no fechamento de empresas e gerou demissões em massa. Escancarando assim um panorama de desigualdades que passa a popularizar a informalidade como uma alternativa viável de geração de trabalho e renda, principalmente nas regiões periféricas do país.

Enquanto pessoas de média e alta classe podiam trabalhar de maneira remota, diaristas, assim como Solange e outros prestadores de serviços essenciais, não tinham condições ou alternativas de trabalho seguro com critérios rigorosos de proteção contra o vírus. 

A história de Solange nos abre horizontes para debater a importância da auto realização empreendedora, a partir de conquistas como o primeiro estabelecimento comercial. Proporcionando acesso a benefícios legais, além de melhora na logística, na segurança e muitos outros aspectos que influenciam na estabilidade e no crescimento de sua empresa a longo prazo. Em entrevista ao Você Repórter da Periferia, ela conta como o negócio está movimentando a economia local e contribuindo com a geração de empregos. 

VCRP: Como era ser diarista? Você gostava do ofício?

Não gostava muito. Era o que eu tinha para fazer. Fui empregada doméstica por 10 anos e diarista por mais 5. É um serviço que a gente trabalha muito e é pouco valorizado.

VCRP: O que te fez parar com o ofício de diarista para começar a empreender?

Eu sempre tive o sonho de montar meu próprio negócio e vi na minha sobrinha Karen, que também é confeiteira, a visão da gente poder crescer trabalhando juntas. Começamos em 2021, já num momento de flexibilização da quarentena. Ainda diante dos desafios que a pandemia trouxe para todos os ramos, mas principalmente para o serviço doméstico. Acho que o dom com a confeitaria vem de família, meus irmãos também trabalham com isso nas cidades em que moram.

VCRP: Você sente falta da sua função anterior ou prefere trabalhar com confeitaria?

Eu amo o que eu faço agora. Trabalho muito, né? Porque ser empreendedora não é fácil, tem que se esforçar bastante, mas eu gosto muito.

VCRP: E o que que te motiva a continuar empreendendo?

Eu sempre gostei de trabalhar com empreendedorismo. A minha mãe também trabalha com isso, vende artigos de cama, mesa e banho. É mais uma coisa que vem de família e eu sempre a incentivei.

VCRP: Como é trabalhar no seu território?

Faz muita diferença. Como diarista, eu sempre trabalhava longe. Na Vila Leopoldina, na Berrini, na Vila Mariana. Estar por perto agora é gratificante em todos os sentidos. Quando chego para trabalhar, já tem gente esperando para comprar o doce da tia. Eu abri uma loja há duas semanas, num ponto um pouco longe daqui e “tá” todo mundo reclamando disso. Por conta da afinidade, o pessoal acaba me dando dicas para novos produtos e feedbacks dos doces que eu já vendo. Tenho clientes bem importantes na Rua Estados Unidos e na Brigadeiro Faria Lima, que encomendam meus bolos sempre que podem. Na Zona Leste também sou conhecida e forneço sobremesas para alguns restaurantes no Itaim Bibi. 

VCRP: E quais os planos para o futuro?

Me vejo abrindo uma loja lá no Piraporinha, no Jardim Mazza. E quero abrir uma filial aqui no Jardim Ibirapuera, onde estão meus clientes mais antigos. Mas a longo prazo, meu planejamento é que minha filha aprenda tudo que eu sei, “pra” ela poder continuar com as lojas que eu quero futuramente abrir. Tenho uma filha só e é isso que eu falo para ela: “Um dia eu vou ficar velha, então você tem que aprender um pouco de tudo, para lá na frente fazer o que a sua mãe fazia e continuar o legado dela.”

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

“Não tenho que pegar trânsito”: fotógrafa celebra o fato de ir andando ao trabalho

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Na contramão da rotina diária da maioria dos paulistanos que gastam em média 2h30 no trânsito para ir e voltar do trabalho, a fotógrafa Letícia Pires, 47 anos, moradora do Jardim Ibirapuera, zona sul de São Paulo, tem o privilégio de trabalhar perto de casa, fato que permite ter uma rotina com mais tempo para o lazer e qualidade de vida. Ela trabalha no Bloco do Beco, um bloco de carnaval que promove a difusão da cultura periférica, por meio da música, dança, literatura e alimentação saudável. 

Enquanto moradores e visitantes do Bloco do Beco saboreiam uma feijoada ao som da batucada de um grupo de sambistas  que fazem parte da construção da organização cultural e do bloco de carnaval, Letícia corre de um lado para o outro apoiando na produção de imagens do evento e também na organização logística do espaço que recebe mais de 100 pessoas aos finais de semana, quando ocorre o tradicional samba da velha guarda.

Letícia Pires atua há dois anos auxiliando na organização dos eventos e atividades culturais do Bloco do Beco. Em entrevista ao Você Repórter da Periferia, ela relata sobre a melhor qualidade de vida e conforto de trabalhar no seu território.

Jovens do Você Repórter da Periferia em entrevista com Letícia Pires, moradora do Jardim Ibirapuera, zona sul de São Paulo. Foto: Vinicius Ramos.

VCRP: Como é o trabalho ideal para você?

Olha eu gosto muito de estar com pessoas, eu acho que todo trabalho é trabalho, eu entrei aqui no bloco para ajudar com o público. Para dar informação sobre os cursos, para falar sobre os eventos. Eu não tenho muita rotina. Então para mim é maravilhoso atuar ajudando onde precisa.

VCRP: Seu último emprego era longe de casa?

Não. Eu sempre trabalhei aqui na quebrada e o último trabalho que eu tive foi na Fábrica de Cultura do Jardim São Luís, que já é aqui ao lado. Não tem essa questão de pegar trânsito e nem de falta ônibus, mesmo quando eu estava por conta própria, o local era perto também, porque eu fazia unhas, ajudava e pintava a parede de casas, então pegava vários bicos perto de casa.

VCRP: Qual é o impacto na sua rotina ao trabalhar perto de casa?

A primeira questão é que tenho pais, minha mãe já tem uma idade, então se eu precisar ir almoçar em casa para ver eles eu consigo. Então isso facilita a rotina e eu não perco tempo, né? Porque a qualquer minuto eu tô dentro de casa, um fator importante com relação a minha mãe que tem idade e precisa da gente lá.

VCRP: Em relação a segurança, você se sente segura trabalhando no território?

Eu moro aqui desde quando eu nasci. Eu tenho 47 anos. Então a gente já conhece a maioria das pessoas. Agora eu tô trabalhando aqui no Bloco do Beco e tudo que eu faço é muito comunitário. É lógico que como todo lugar que você vai passar, você vai ter que ter cuidado e responsabilidade com as pessoas, não tem essa né? Mas mesmo assim, eu não me sinto desconfortável.

Moda como expressão de identidades nas periferias #30

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O que é “estar na moda” para você?  Nesse episódio falamos sobre moda para além de vestir uma peça de roupa, mas como uma ferramenta de identidade, pertencimento e cultura. 

Chegam com a gente nesse papo Renato Simões do Acervo do Reliquia e Pokito de Brechó, e Tamires da Silva (Tamirão), pesquisadora de moda periférica.

Felizs impulsiona venda de livros com Moeda Literária

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Já ouviu falar de economia criativa? No Campo Limpo, essa ideia ganha vida através da Moeda Literária, uma iniciativa que está revolucionando o acesso à leitura nas periferias de São Paulo. Com data marcada de 15 a 21 de setembro deste ano, a Feira Literária da Zona Sul (FELIZS), organizada pelo Sarau do Binho desde 2015, chega à sua 10ª edição com o  tema: “A Poética dos Caminhos – Donde Miras?”. Criadora da Moeda Literária, a FELIZS se consolidou como um evento cultural essencial no calendário paulistano.

Desde sua criação, a Moeda Literária tem sido um pilar na valorização da literatura periférica. Em 2023, foram convertidos R$10 mil em Moedas Literárias, destinados exclusivamente à compra de livros. Este ano, o objetivo é dobrar esse impacto, convertendo R$20 mil em Moedas Literárias, que serão utilizadas por alunos de escolas públicas, bibliotecas comunitárias e coletivos culturais da região.

A Moeda Literária exemplifica o conceito de economia criativa, que se baseia no uso da criatividade, cultura, conhecimento e inovação essenciais para o desenvolvimento econômico e social. A economia criativa abrange diversos setores, incluindo arte, música, literatura, design, moda, cinema e outros campos culturais e criativos.

Moeda Literária: Promovendo Cultura e Economia

Cédulas da Moeda Literária que movimenta a economia criativa e incentiva a venda de livros na periferia do Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Foto: Thais Siqueira.

Criada para fomentar a venda de livros de editoras e autores independentes, a Moeda Literária circula no encerramento da feira, que ocorre anualmente em setembro na Praça do Campo Limpo. Segundo Suzi Soares, produtora cultural da FELIZS, “a expectativa é aumentar o valor para que mais alunos das escolas, bibliotecas e coletivas sejam contempladas, ampliando as oportunidades de vendas para editoras e autores.”

Escritora Dinha expondo suas obras e contando as Moedas Literárias que ganhou com a venda dos livros durante a Felizs. Foto Thais Siqueira.

Para a escritora e expositora, Dinha Maria Nilda, além de democratizar o acesso aos livros, a Moeda Literária fortalece a economia criativa local, oferecendo poder de compra, permitindo que os recursos sejam destinados às necessidades intelectuais, muitas vezes deixadas de lado devido às necessidades básicas do núcleo familiar.

 “a Moeda Literária torna o processo de aquisição de livros mais lúdico e acessível, favorecendo as editoras independentes e autores presentes na feira”,

Destaca a escritora Dinha Maria Nilda
Elizandra Souza, jornalista e escritora expondo suas obras durante a Felizs e mostrando a quantia em Moedas Literárias que conseguiu com as vendas. Foto Thais Siqueira.

Elizandra Souza, jornalista e escritora que expõe seus  livros anualmente durante a FELIZS, reforça a importância da iniciativa da Moeda Literária.

“Se fosse dinheiro, talvez os alunos das escolas que frequentam a feira não valorizassem tanto quanto o voucher da Moeda Literária, porque eles pesquisam qual livro vão levar por entenderem o valor social dessa moeda. É muito gratificante ver essa conexão entre os autores e os alunos, especialmente da escola pública”.

Ressalta a jornalista e escritora, Elizandra Souza.

Para os expositores, como Juninho, diretor editorial da Dandara Editora, por meio da economia criativa, à Moeda Literária promove a diversidade cultural e fortalece a identidade cultural dos moradores dos territórios periféricos.  “a Moeda Literária é fundamental para garantir a circulação e compra dos nossos livros, além de fortalecer o acervo de bibliotecas comunitárias e escolas. A Moeda Literária investe na difusão da literatura periférica e no fortalecimento de uma economia que circula entre nós”, conclui o diretor editorial.

Bloco do Beco lidera ações de formação cultural no Jardim Ibirapuera

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Dandara Kuntê, produtora cultural do Bloco do Beco, zona sul de São Paulo. Foto: Vinicius Ramos.

O Bloco do Beco foi fundado em 2002 com o intuito de manter viva a cultura das rodas de samba e do carnaval de rua, mas hoje, a iniciativa mantém a conexão com os moradores do território por meio de oficinas e atividades artísticas, como Escolinha de Bateria, Capoeira, Ginástica Funcional, Carimbó, Forró, Mosaico, Pilates, Samba Rock, Maracatu, Dança Livre, Percussão, Teatro e até Mutirão de Alfabetização.

Para garantir que as histórias e tradições culturais do Jardim Ibirapuera sejam passadas para as futuras gerações, o Bloco do Beco vem transformando o bairro em um lugar cada vez mais acolhedor e de pertencimento cultural para a população das periferias de São Paulo.

A produtora cultural Dandara Kuntê conta com detalhes para o Você Repórter da Periferia as diferentes formas de atuação da organização e o impacto na valorização cultural do Jardim Ibirapuera.

VCRP: O que você faz aqui no Bloco do Beco?

Eu sou a produtora cultural do espaço, recebi um convite dos gestores, entre elas a Carla que é a presidente do Bloco do Beco, a gestora coordenadora Mariana e o Luiz, que também é um dos direitos aqui do espaço.

VCRP: Qual é o papel do Bloco do beco na conservação da memória dos pontos históricos da comunidade?

Na década de 90 a gente teve uma questão muito forte de violência nos bairros Jardim São Luís, Jardim Ângela, Campo Limpo e Capão Redondo. Esses quatro bairros formavam um triângulo da morte, onde aconteciam vários assassinatos, aconteciam várias coisas ruins. Mas para além da violência, o Bloco do Beco é um dos primeiros espaços que vai puxando essa preservação da memória, para não deixar as memórias do bairro morrer. Na década de 90 também, para além dessa questão da violência, a gente teve os clubes de clubes de mães, que também foram e ainda são espaços de preservação da memória, e aí o Bloco do Beco chega também para somar.

VCRP: Quais são os principais espaços de atividades culturais?

Os principais espaços são a biblioteca do Bloco do Beco que fica aqui embaixo na Favela da Erundina e o próprio Bloco do Beco, que é esse espaço que a gente está, onde se concentra a maior parte das oficinas, reuniões de pessoas, a biblioteca, horta comunitária e o Ibira Lab.

VCRP: Como você vê a importância desses pontos históricos na comunidade?

A importância é gigantesca porque agora é pensando nesses espaços de educação não formal, que não seja só a escola ou a universidade. Com esses espaços não formais de cultura, saúde, lazer, etc, que estão concentrados aqui na região, a gente não precisa mais buscar fora porque a gente tem esses espaços aqui dentro da quebrada.

VCRP: O que você acha que tem surgido no território que é uma novidade na cena cultural e que deveria ter mais atenção e valorização? 

Eu fico pensando que as coletividades, como os grupos de mulheres e a galera LGBTQIAP+, que é uma galera mais nova, que está chegando para compor e construir juntos. Essa galera tem chegado com muito peso. Eu acho que a população precisaria olhar com outros olhos.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Depois

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Oprê! E aí, como você está? Eu passei cerca de 1 ano pra poder refletir sobre minha escrita musical e buscas expressivas na música. Essa demora não se deu apenas por dificuldade de concatenar as ideias, mas por uma busca de poder sentir, passar pelo luto ou me ver nele e depois dele. Esse texto aqui contém gatilhos, esteja avisade se está correndo os olhos por aqui nessa humilde coluna. 

Estou com 43 anos e canto e componho canções autorais desde os 6 anos de idade. Em 2020 iniciei as gravações do meu primeiro EP autoral, o “Depois” (selo Pôr do Som 2023). Do lançamento do disco, que saiu em 23 de Agosto de 2023 até aqui, tenho encontrado em mim e na trajetória do disco mais do que eu conscientemente havia escrito ou planejado, talvez isso seja natural, dados os temas… 

O disco, mesmo sendo pequeno, singelo, com apenas 4 canções, tinha a pretensão de tratar sobre o tema futuridades, sobre saúde mental e sobre o luto, este último tema que eu acho que eu mais subestimava e que depois de ser provocado a escrever sobre isso aqui e passar por diversos medos pra concretizar essa escrita, resolvi encarar e rascunhar as palavras que seguem. 

Poéticas periféricas e pretas

Sou um homem preto, periférico, nascido no Bexiga. Eu e minha família passamos por diversas expulsões, empurrões e “chega pra lá” que a cidade de São Paulo reserva não apenas a mim, mas a várias corpas dissidentes e especialmente se essas corpas forem de pessoas pobres. 

Aos 7 anos meu pai me falava: “Não se engane meu filho, você é preto. Precisa fazer melhor que os outros, ter os dentes cuidados e andar sempre com os documentos por onde vai”. 

Esses alertas vindo de um pai baiano e retinto para um filho fruto da mestiçagem, dava pra mim a toada de como seria o século XX para pretes das periferias. 

Na minha infância ganhei de meu pai o primeiro livro do Clóvis Moura, a cartilha “O negro no mercado de trabalho”, com ilustrações de Maurício Pestana. Essa formação influencia muito a minha poética e a minha atuação cultural até os dias de hoje.

Na minha família, 3 homens negros foram assassinados. Vários de nós, homens negros nascidos no século XX, e mesmo agora, passamos por drogadição, alcoolismo e sofremos diariamente violência policial e a sistemática ocultação e/ou supressão das nossas sensibilidades e subjetividades. Meu pai e minha mãe, e toda minha família e a maioria das famílias periféricas sofreram e sofrem um bocado com aluguel, dificuldades de transporte e com o parco acesso a políticas públicas dignas, decentes, justas. 

Eu sou ex viciado em cocaína e convivo com a depressão desde o final dos anos 2000. Muitos acontecimentos me marcam e acho que fazem parte da escrita afetiva que desembocou no EP “Depois”, alguns deles aqui seguem: 

Em 2016 me aproximei do dramaturgo e hoje amigo Jé Oliveira, que naquele momento preparava a escrita da peça teatral “Farinha com Açúcar”. Em sua pesquisa sobre masculinidades e a subjetividade de homens negros ele me entrevistou. Foi uma experiência importante, tanto como desabafo, para rever alguns passos, quanto para pensar possibilidades e conhecer outras histórias como a de Akins Kintê, Allan da Rosa, Renato Ihu, Salloma Salomão, dentre outros entrevistados para a construção da peça. 

Naquele momento foi muito impactante olhar novamente para caminhada da minha família e refletir sobre sonhos, amores e sobre a morte tão presente no nosso dia a dia: a morte como medo, como possibilidade provável, como se ela se avizinhasse logo ali, na esquina dos vários bairros pobres onde mora a maioria de nós. 

Essa peça foi muito marcante pra mim, por vários motivos, entre os quais, um dos grandes, o fato da peça ser tributária a obra dos Racionais Mcs. 

Em 2017, a Zona Leste e os movimentos culturais da cidade perderam um grande poeta, ator, performer, a bixa preta Daniel Marques Sundiata, co-fundador do sarau “O que dizem os umbigos?”, do coletivo Bicho Solto e participante de vários movimentos de cultura como Rede Livre Leste, Fórum de Cultura da Zona Leste, Movimento Cultural das Periferias, dentre outros. 

Com a passagem de Daniel eu perdi um dos meus melhores amigos, com quem confidenciava minha luta contra a depressão, as dificuldades de viver como trabalhador da cultura e minha vontade de viver de cantar. Daniel foi e é marcante, como foi e é marcante a trajetória das poéticas periféricas dos saraus e dos movimentos de cultura dos anos 2000 a meados de 2018. Em algum momento a cena cultural irá reconhecer várias das sementes plantadas nesse tempo. Sou testemunha.

No meu disco, no EP “Depois”, quero feminagear/homenagear Daniel Marques e as lutas desse período, uma forma de cantar o que pensamos, sentimos, passamos e com o que sonhamos nós que sobrevivemos ao sumidouro de gente que é o território onde vivemos.

Os futuros 

No último ano, após o lançamento do disco, tendo lido muito, refletido e passado por um período de acompanhamento psicológico (na terapia) e espiritual (no candomblé) que tem me feito rever mais alguns passos. Esse tempo me permitiu reconhecer-me como um sobrevivente de suicídio, não apenas por váries amigues terem partido ao longo da minha vida, mas pela relação sensível que homens pretos tem com a passagem pro outro plano, pro Orun. 

Bem, você já deve ter lido em pesquisas e textos por aí, que homens negros são as vítimas mais prováveis desse tipo de evento traumático, evento que afeta além da pessoa, um círculo íntimo, amigues e familiares da pessoa que faz a passagem. As pessoas que fazem parte desse círculo próximo são sobreviventes de suicídio, mesmo que nunca tenham atentado contra a própria vida. 

Infelizmente nossa sociedade tem vários tabus e não fala abertamente sobre isso, seja entre nós ou nos meios de comunicação, o que faz com que a solidão nos leve mais e mais pessoas, que se sentem incompreendidas ou sozinhas em suas emoções e sentimentos. 

Em suma, tenho certeza de que não deveríamos falar sobre isso apenas em um mês ou dois do ano (me refiro ao Setembro ou Outubro amarelo). Meu primeiro disco me permitiu cantar sobre isso, direta e indiretamente. Tem me feito bem esse movimento de falar/cantar/escrever, mesmo que nem todas as pessoas percebam os assuntos mais profundos e tratados de forma indireta em “Depois”. 

Mesmo eu tendo que conversar muito por aí, ler “O que é o luto?” do Renato Noguera (recomendo muito) e passar por várias etapas internas para poder pensar e sentir melhor sobre.

Eu fiz uma promessa a Daniel Marques em seu leito de morte. Eu afirmei a ele (e a mim) que irei viver de cantar o que eu quero, porque gosto da máxima: “Eu escrevo o que eu quero”, do Sul Afrikano Steve Biko. 

De várias formas o EP “Depois” é uma afirmação da minha permanência nessa terra, afirmação da minha sensibilidade, mesmo que o futuro reserve muita ansiedade, incertezas e desejos não correspondidos. 

Firmar os pés na esperança e perseverança por novas manhãs tem sido o que decidi pra mim. Espero que isso possa ser uma premissa a dividir com pessoas que se pareçam comigo ou que passaram por algo parecido na vida. 

Nesse tempo violento em que vivemos, me questiono e canto sobre a possibilidade de se vestir de ternura e procurar em si e nos outres, os quilombos possíveis, de afeto, transformação e viradas, afinal, o futuro é incerto, mas há coisas que precisamos afirmar para poder firmar utopias, feitiços do tempo que afetem a nós dentro e fora de casa, por dentro e por fora de nós. 

Acredito, tenho FÉ nisso para poder abrir a janela e ver o sol. 

O “Depois” 

Algumas escolhas pro disco não são só estéticas ou poéticas, mas sim culturais (alguns diriam políticas). Eu adoto paridade de gênero nos meus trabalhos e opto por trabalhar com pessoas pretas, preferencialmente periféricas. 

Eu não acredito num bom futuro no qual as pessoas se fechem as possibilidades de outras contribuições, então mesmo dirigindo artisticamente o trabalho, gosto de contar com contribuições que vem para compor a “estória” do disco. 

Nesse sentido, destaco a direção musical do Ravi Landim, direção vocal de Estela Paixão, produção da Obara Produções (obrigado Paloma), as artes da capa do disco são construídas a partir de um quadro da Lê Nor,  tem a pintura corporal de Juliana dos Santos, adereços de Ana Pimenta, sessões de foto de Joyce Prado, animação de Alê Naslim no clipe de “Flor de Baobá” e finalização de arte de capa da maravilhosa artista Marisa Soou. 

Mais recentemente tive a oportunidade de gravar o clipe da faixa título “Depois”, com direção de Matheus Alencar e uma equipe pretíssima, jovem e periférica. Esse clipe, a ser lançado nos próximos meses, é gravado em película super-8 e ganhou menção honrosa na 11° edição do Festival Super Off, realizado no Centro Cultural São Paulo. 

O EP “Depois” deu trabalho a quase 40 pessoas pretas e por isso tendo a trabalhar com pouca intervenção eletrônica nos meus trabalhos. Ter pessoas por perto tem sido importante. 

Entre as participações especiais, o ator e premiado dramaturgo Jé Oliveira, que participa da faixa-título. Ao lado dele, na mesma composição, o pianista Fábio Leandro, do Aláfia. 

Em “Áfrika”, o brilho da cantora e preparadora vocal Estela Paixão, também integrante do Aláfia. Neste mesmo single, François Muleka traz suas texturas e linhas de contrabaixo. 

Para fechar o time de participações que compõe a canção “Áfrika”, Luedji Luna conclui poeticamente a necessidade de afirmarmos futuros que também são retornos. Amo esse dueto. 

As faixas

“Flor de Baobá”. Começamos o disco como num quarto, ouvindo o canto ao violão de uma forma melancólica e crua e com uma sonoridade latino americana. Ao longo da canção vão soando solos de violão, palmas e a voz se alterando passando para uma ternura, um acalanto quilombola. A levada da canção se liga afetivamente com a canção “Saudade”, de Chico César e Moska, canção interpretada por Maria Bethânia. 

“Sundiata”. Samba exaltação delicado feito como homenagem/feminagem póstuma. Numa escrita inspirada em Gonzaguinha, qualidades e características de Daniel Marques Sundiata e de seu orixá vão dançando verso a verso da canção. A progressão dos acordes, das percussões, ao fim alçam voo num coro vocal típico de sambas e de jongos, em melodiosos “laiá laiás”. 

Depois”. Clímax do disco. Uma introdução orquestrada, com piano, violão, viola de arco e clarinete chegam aos ouvidos para mostrar sonoramente as belezas de um futuro idealizado, lírico, belo e solar. Muitas dúvidas para o futuro vão sendo cantadas, muitas delas típicas do pós-pandemia. Ao fim da canção, o que começou com dúvidas, termina afirmando “a mata, o mar e os amores” no peito, no coração, em si. A letra dessa canção se liga afetivamente com a “Cair em si”, do Djavan. 

Áfrika”. Como uma cena final de um filme, o dueto com Luedji Luna é a sentença final do disco sobre como as memórias do passado, presente e futuro podem servir  para garantir o bem viver e as futuridades para as pessoas pretas das periferias do mundo. O coro vocal e as melodias, as pausas e as progressões de violão, o swing do baixo, das percussões ecoam o sagrado e a centralidade do tempo para o retorno simbólico as afrikanidades plurais.  

Saravá as futuridades e possibilidades do “Depois”!

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