‘‘Deu uma nova realidade para muitas pessoas de periferia”: artistas apontam o papel político do rap nos territórios

A partir de uma série de reportagens sobre a música enquanto movimento cultural, vamos contar de que forma o rap, o samba e o forró contribuíram na construção de consciência política e coletiva nos territórios periféricos. Na primeira reportagem, agentes da cultura hip hop analisam o impacto do gênero e as transformações do movimento nas periferias.

Elemento central da cultura hip hop, através das letras que, geralmente, apresentam discussões sobre raça, classe, violência policial, entre outras demandas, o rap passou a influenciar o debate público a partir de questões políticas e sociais.

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No Brasil, o movimento surgiu no final da década de 1980. O país, ainda nos reflexos do regime militar, vivia intensas tensões sociais, enquanto a cultura de rua ganhava força e o rap se espalhava cada vez mais nos territórios. Em São Paulo, foi nas praças da Rua 24 de Maio, próximas à estação do Metrô São Bento, que o gênero começou a tomar forma, consolidando-se mais tarde como uma expressão artística popular. 

A rapper, cientista social, ativista e produtora cultural, Rubia Fraga, é uma das principais referências do rap nacional. Pioneira na cena, ela formou o grupo RPW em 1991, atuou em coletivos como Minas da Rima, Hip Hop Mulher e atualmente integra a Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop. Desde 1989, se define como uma operária do movimento e destaca que a trajetória do rap é marcada por lutas contínuas, sendo uma expressão legítima de resistência e emancipação social. 

“[É uma forma] de protesto, denúncia e contestação. Até a ostentação é um grito do jovem preto periférico, das mulheres, das manas e monas, que querem também usufruir das boas coisas. É um desabafo.” Rubia Fraga, cientista social e integrante da Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop.

Rubia destaca que o rap é um retrato atual da sociedade brasileira e faz parte da emancipação das periferias, das lutas sociais, raciais e de gênero. “A geração dos anos 80 fala do seu cenário, a dos 90; dos 2000. Em 2025, a geração atual traz críticas com novas roupagens e formas de expressão. Isso é ótimo. É preciso revitalizar o discurso do rap para que ele dialogue com o povo, principalmente com as juventudes”, coloca.

Embora as formas de opressão tenham se transformado, a cientista social pontua que ainda vivemos em um país colonizado, escravocrata, que cultua a misoginia, homofobia, transfobia e o racismo, lutas pautadas de diferentes formas pelo movimento. 

“As elites e a extrema direita criam novas ferramentas com o passar do tempo. O samba foi criminalizado, a capoeira foi tratada como vadiagem. O rap passou pelo mesmo com muitos shows interrompidos pela polícia, muitos artistas presos. Hoje, também vemos isso acontecendo com o funk. A origem social é a mesma. Faz parte de um projeto de opressão”, afirma.

Os quatro elementos

O dançarino e ativista Nelson Triunfo, considerado precursor do breaking dance no Brasil, também destaca que o hip hop, especialmente o rap, sempre foi resistência às diversas formas de marginalização. Ele lembra os primeiros passos dados para a construção de uma consciência crítica coletiva nas periferias. “Fomos descobrindo as coisas brincando, misturando dança com capoeira e trazendo isso para o hip hop”, conta. 

“Quando os jovens começavam [a escutar o som], a pegar os passos [de breaking], percebia que eles ficavam mais à vontade e abertos para [o diálogo]. Era nesse momento que chegava mostrando que existiam outras possibilidades, que estudar era muito importante”, relembra. 

O artista conta que na época, muitos jovens começaram a dançar em grupo, dar aula e, naturalmente, viraram multiplicadores da cultura. O artista, que já era ativo no campo quando o reconhecimento do rap ainda era impensável, cita sobre as transformações e desafios enfrentados ao longo das décadas, e menciona que com o tempo surgiram outras vertentes, como o trap. 

“O hip-hop já é livre por natureza, inclusive, ainda difícil de ser compreendido por muitos, pois não é uma só cultura. Tem várias expressões: A dança, que já dialoga com a capoeira. A pintura, que vem das artes plásticas. O canto, a criação lírica, o DJ. Você pode não saber cantar, mas pode dançar. Pode não dançar, mas saber pintar. A gente tem muitas ferramentas nas mãos.” Nelson Triunfo, dançarino e educador popular.

Após alcançar muitas pessoas nos anos 90, o movimento se espalhou pelo Brasil e contribuiu para o nascimento de vários projetos sociais. “Naquela época, ainda não existia celular, então, quando algo passava na TV, todo mundo via. O povo assistia televisão para aprender. De repente, o Brasil inteiro estava dançando breaking”, recorda Nelson.

A visão do hip-hop como ferramenta de transformação social foi o que norteou toda sua militância em Diadema, cidade berço das atividades promovidas por Triunfo. “Quando a gente começou o trabalho em Diadema, o cenário era pesado. Todo mês morria alguém. Uma vez, apenas em um mês, morreram três moleques [da quebrada]. Vieram com a ideia de chamar o prefeito, trazer a polícia para a favela. E eu falei: ‘Não, pelo amor de Deus! Não faz isso!’ A gente aqui sabe conviver com a quebrada, mas não com a polícia dentro da nossa atividade”, cita.

“Quando eu chegava para dar aula de dança na escola, os alunos me reconheciam e contavam como tinham gostado da aula. Na próxima vez, perguntavam: ‘Você se lembra de mim?”, relembra com nostalgia como o hip-hop contribuiu para enriquecer a educação e fortalecer o envolvimento cultural e comunitário dos alunos.

No final dos anos 1980, Nelson Triunfo iniciou em escolas de Diadema um trabalho com oficinas que reuniam os quatro elementos do Hip Hop: rap, grafite, DJ e breakdance.

Conhecido por animar rodas de dança em pontos marcantes do centro paulistano, como o Theatro Municipal e a praça da Sé, foi chamado pelo então prefeito José de Filippi Jr. (PT) para ministrar aulas e oficinas culturais aos jovens diademenses, o que acabou fortalecendo ainda mais seu vínculo com a cidade e com a juventude periférica, consolidando sua importância na difusão do hip-hop em Diadema.

Novos fazedores de cultura

Com o tempo, novos agentes passaram a contribuir com o legado construído ao longo de anos. Jean Triunfo, por exemplo, que cresceu ouvindo Racionais MC’s, Facção Central, Sabotage e outros nomes da cena, conta que o rap forjou sua identidade e senso de pertencimento, o que também o levou a atuar em uma das vertentes do movimento. 

Pedagogia do rap

O rap enquanto processo de aprendizado, coletividade e incentivo para construção de sonhos é o que Letícia Reis destaca. Assistente social e organizadora da Batalha da VR, ela referencia o gênero como ferramenta de transformação. “Esse é o nosso trabalho: fazer com que essas crianças, jovens e adolescentes, através do hip hop, venham até a gente e saibam que podem ser o que quiserem”, afirma.

“Às vezes a criança está ociosa, mas tendo uma batalha de rima, cola e começa a ver que pode ter sim possibilidades [na vida]. Se quiser ser um MC, um DJ, grafiteiro, um dançarino de breaking, que hoje é até modalidade olímpica, ela pode;” Leticia Reis, assistente social, produtora cultural e organizadora da Batalha da VR.

Influenciada pelo seu avô, que realizava projetos sociais na região onde mora, no Parque Jd Santa Madalena, na zona leste de São Paulo, Letícia passou a frequentar batalhas de rima e atualmente integra a batalha da VR e a batalha do Badá, em Heliópolis. Ela também lidera o Projeto Raça Neguita. “Assim como meu avô plantou essa semente em mim, eu planto no meu filho para que ele também possa, lá na frente, plantar [nos filhos dele]”, diz.

Letícia ressalta que as batalhas de rima também são espaços de expressão e troca, mas ainda sofrem muito preconceito. “A gente ocupa espaço público por direito, faça chuva ou faça sol. É um trampo social, onde a gente leva cultura, lazer e entretenimento, que deveria ser obrigação do Estado, mas muitas vezes somos nós que fazemos isso”.

Renata Martins, conhecida como Mc Caramelo, articula as ações junto com Letícia e comenta de um novo momento que o rap vive. “A internet veio pra fortalecer uma nova geração, uma nova história, mas não podemos nos esquecer da base, do porquê tudo começou”, afirma. 

“O rap é um protesto social. Para [o sistema] e para quem vê de fora, é fácil julgar o que o povo periférico produz, tratando a nossa arte como crime. O rap é o grito dos esquecidos. Somos um povo que sobrevive fazendo milagre.” Renata Martins, Mc, fotógrafa e organizadora da batalha da VR.

A rapper ressalta que o rap deu uma nova realidade para muitas pessoas nas periferias, e acredita que o movimento feminino encabeça uma revolução. “A força da mulher dentro do rap é gigante”.

“O rap hoje traz [novas formas]. Já temos também o trap, outros caminhos, outras vivências. Eu sou daquelas que acredita que a gente pode mudar, se reinventar, se adaptar, mas sem perder a essência: o rap raiz, o rap nacional e de protesto”, acrescenta e finaliza Letícia.

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