“Substituo por salsicha”: moradores relatam insegurança alimentar em crianças nas favelas da zona oeste de SP

Carestia, desemprego e ausência de políticas públicas aumentaram a insegurança alimentar de famílias, moradores de favelas da zona oeste de São Paulo. Ações solidárias minimizam os impactos da fome, mas não resolveram o problema que permanece afetando crianças e adultos da região.  

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Com três filhos pequenos, a rotina de Samara Santos da Silva, 22, moradora da comunidade Bode Zé, localizado no distrito do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, mudou completamente durante a pandemia, a ponto de impedir a moradora de ter um trabalho fora de casa, devido ao fato de as escolas e creches estarem fechadas. Ela é mãe de Thalya, 6 anos, Otávio, 5 anos e Ellysa de 2 anos.

O companheiro de Samara, Bruno Nunes Silva, 33 anos, foi o responsável por trabalhar fora enquanto ela cuidava das crianças. Contudo, durante o período de isolamento social, a empresa de tapeçaria automotiva que ele trabalhava quase não estava pegando clientes e as condições financeiras da família ficaram comprometidas, afetando a rotina alimentar dos filhos, que precisou mudar completamente. 

Moradores das comunidades Bode Zé e 1010, na fila para a retirada de marmitas. (Foto: Ellen Amaral)

“Antes eu comprava costela, é uma coisa que não dá pra comprar mais, carne vermelha, porque tá muito caro, aí eu substituo por salsicha, linguiça, ovo”

conta Samara sobre a alimentação da família.

Uma das principais mudanças que Samara e as crianças sentiram, além da ausência de carne vermelha nas refeições diárias, foi com as compras na feira. Todos estavam acostumados a comer frutas e verduras, o que não acontece mais com tanta frequência.

“Toda terça eu ia na feira e comprava frutas pras crianças, agora eu não consigo ir porque aumentou bastante as coisas. Aí eu compro só uma banana e uma maçã, pra não faltar. Eu comprava bastante fruta e agora não dá pra comprar, porque as coisas tão muito caras, tá muito difícil”, relata Samara.

Após sair do Mapa da Fome em 2013, dados recentes da Organização das Nações Unidas (ONU), mostraram que na pandemia da Covid-19, o Brasil chegou ao mesmo patamar de insegurança alimentar do início dos anos 2000, em que quase 10% dos brasileiros não tinham o que comer.

Essa realidade, além de afetar adultos, impacta principalmente crianças na primeira infância, com idade de 0 a 6 anos, como retrata Samara, mãe de três filhos, moradoras da zona Oeste de São Paulo.

Thalya, Otávio e Ellysa jantando após chegarem da escola.  (Foto: Arquivo pessoal)

Com todas as dificuldades e comprando só o básico dentro de casa, Samara começou a depender de doações de cestas básicas e marmitas, já que o pouco de comida que conseguiam juntar, Samara e Bruno preferiram priorizar as crianças:

“Eu comecei a ir atrás de cesta, comecei a ganhar cesta, é o que estava ajudando. Teve uma época, bem assim da pandemia, que eu não comia porque tinha um pouquinho de arroz, aí eu fazia pras crianças, eu não comia”, desabafa Samara.

Samara começou a pegar as cestas básicas oferecidas pela Pastoral da Criança, localizada na igreja do bairro. Outro reforço na alimentação da família veio com a e também a distribuição de marmitas, iniciativa realizada por Lília Cristina, liderança comunitária da Bode Zé, que se articulou de forma autónoma e depois com a prefeitura, para a distribuição de marmitas para os moradores.

“Eu não tenho vergonha não, fui atrás e consegui bastante doação. Teve um tempo que eu não tinha nem bolacha, nem danone, mas porque o dinheiro não estava sobrando, tinha que tirar da janta pra comer no almoço, aí só comia ovo, ovo, ovo, ovo”

enfatiza Samara.

Lília Cristina, 57 anos, se tornou liderança comunitária no começo da pandemia de coronavírus. Morando na comunidade há mais de 50 anos, ela percebeu a extrema necessidade de combater a insegurança alimentar que estava afetando as famílias do bairro.

Por conta própria, ela começou a se movimentar para ajudar essas famílias e tentar captar recursos da prefeitura para doação de roupas, utensílios de higiene e principalmente alimentação.

“Eu faço a distribuição de cestas básicas quando eu recebo. Eu adotei tudo isso porque eu me vi em meio a pandemia sem condições, sem ter o que comer na minha casa. Meu marido é professor substituto de Educação Física na escola de Osasco, então faz dois anos que o meu marido não tem salário”, conta Lília.

A entrega de marmitas é feita todos os dias, a partir de 12h, no quintal da casa de Lília. (Foto: Ellen Amaral)

Passando necessidade, ela foi pedir uma cesta básica para uma organização social da região e foi negada pelo fato de ter casa própria dentro do território, mesmo sem ter como colocar comida dentro da casa, morando com o marido e os dois filhos. A partir desse dia, ela começou a lutar pelos direitos dela como moradora e pelos vizinhos que estavam na mesma situação.

Desde que passou a distribuir as marmitas na porta de sua casa, a fila para a retirada é composta majoritariamente por crianças, a partir de 5 anos. Alguns pegavam duas marmitas, uma para comer naquele instante e outra para a janta, ou uma para si e outra para os pais, que chegavam do trabalho com fome.

Para Lília, a entrega de marmitas e outros trabalhos de doação que não existiam antes da pandemia são essenciais, pois a alimentação das crianças se reconfigurou totalmente na pandemia.

“A alimentação mudou na casa dos trabalhadores aqui da comunidade Bode Zé. Eles podem ter o arroz, o feijão, o macarrão, o molho, mas eles não tem a proteína, eles não tem legumes. Eu tenho criança que nunca tinha visto uma manga. Uma vez eu fui doar uma manga para uma criança e ela disse: “Que que é isso, tia? As crianças não estão comendo do jeito que deveriam comer. As crianças estão largadas”

lamenta Lília.

Madalena da Conceição Ramos, 43 anos, mora na 1010, comunidade próxima a Bode Zé, e tem duas filhas, Mariana, 8 anos e Alessandra, 4 anos. Ela trabalha como técnica de enfermagem, mas no começo da pandemia precisou ficar em casa com as crianças, enquanto o marido, Adson Ramos, saía para trabalhar, em uma empresa de monitoramento de segurança, que não paralisou com o isolamento.

Assim como para Samara, por ter crianças pequenas, um dos maiores impactos que Madalena sentiu, foi com o aumento dos alimentos na feira. A solução encontrada para lidar com a alta dos preços, foi a substituição desses produtos.

“Tem algumas frutas que as pequenas gostam muito, né? Por exemplo, morango. E aí nesse período estava muito caro, a gente não tinha condições de comprar. Como eu não estava trabalhando então não tinha dinheiro suficiente, ou quando tinha algum dinheiro, dava prioridade a outras coisas. A gente substituída por uma mais em conta”, relata Madalena.

Madalena conta que a principal substituição que fez, foi trocar as outras frutas por melancia. Pois como é uma fruta que tem muita água, já matava a sede das crianças. “A minha pequenininha bebe bastante água e a nossa água aqui não é da gente, tem que comprar água também. Então a melancia já substituía”

explica Madalena.

O aumento do valor do gás de cozinha também impactou a alimentação da família. Madalena começou a cozinhar em maior quantidade e deixar tudo congelado, para evitar utilizar muito o gás.

Além disso, o aumento dos alimentos fez com que ela substituísse a carne vermelha por ovos e frango e não adquirisse mais todos os produtos que geralmente compõem uma cesta básica.

Conselho de Segurança Alimentar 

Maria Angélica, que atua no Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (COMUSAN), é moradora do Butantã, na Zona Oeste de São Paulo e se tornou membro do Conselho por conta de todas as articulações que já fazia em seu território.

Ela conta que a luta para fazer a ponte entre a necessidade alimentar das famílias periféricas, principalmente com as escolas fechadas, até a captação de recursos foi um processo burocrático que a desestabilizou muitas vezes, principalmente para entregar cestas básicas às comunidades no início da pandemia.

“Passou três meses, nada da outra cesta. Escuta, as famílias vão esperar três meses pra comer? [ pensou] Aí a gente começou a lutar pela marmitex. A lutar pelo alimento. Já que a cesta não está vindo, tem que correr atrás de outra coisa”, expressa Maria.

As marmitas ajudaram a suprir a necessidade alimentar dentro das comunidades, e a fila é composta majoritariamente por crianças. (Foto: Ellen Amaral)

A conselheira diz que todas as demandas que chegavam até ela eram graves, e que apesar de ter vivências nas comunidades Bode Zé e 1010, ela também viu os abismos de desigualdade que cercavam todos os cantos de São Paulo.

“A mãe tinha que abrir mão [do alimento] e inclusive escolher o filho mais novo que já estava chorando de fome do que o filho mais velho que poderia segurar um pouquinho mais”

conta ela, apontando uma situação de insegurança alimentar de uma família periférica.

De acordo com Maria, o principal foco do Conselho é atuar em conjunto com a população mais vulnerável, como a na primeira idade, que está em fase de desenvolvimento. Por conta da insegurança alimentar, em alguns territórios ela presencia crianças com oito anos com o tamanho de crianças de quatro, pois a carestia impediu esse desenvolvimento.

“Você só vai saber que ela tem oito anos quando você olha o cadastro dela, 

diz Maria.

Essa atuação, constitui incluir nas recomendações de metas para o prefeito, o enfrentamento da desnutrição e da falta de acesso à alimentação adequada das crianças nessa faixa etária.

“Todo suporte para que as mães possam manter o aleitamento materno, porque a gente buscou se articular com a Política Municipal da Primeira Infância de forma a mostrar que as políticas têm que ser articuladas para poder fazer o enfrentamento da fome e da Insegurança alimentar e nutricional de maneira efetiva”, expõe.

A conselheira relata que uma das maiores lutas do Conselho Municipal, é garantir que as cestas básicas e a comida distribuída nas escolas no processo de retomada, alcancem todos os critérios de alimentação digna para os cidadãos e para as crianças em idade de desenvolvimento.

“Além de dar o arroz, o feijão que é o que as figuras que estão no poder público imaginam que estufa o estômago da criança e está tudo certo. ‘Mata a fome’ [eles pensam]. A gente não quer matar a fome. A gente quer dar um alimento digno. Direito humano à alimentação”

enfatiza a conselheira, sobre a luta diária para levar uma alimentação digna para o prato das crianças periféricas.

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