Home Blog Page 76

A cronologia da covid-19 nas periferias e a crise social

0

O abandono de políticas de gerenciamento da cidade e de um plano diretor eficiente custou caro à população em um momento tão perigoso como esse. 

Jardim Ibirapuera, zona sul, São Paulo 2020. (Foto: DiCampana Foto Coletivo)

São dias difíceis de ler da ponte para cá, muitas coisas deixaram de acontecer para que os dias atuais se formassem em nosso contexto, outras tomaram seu lugar e estamos ainda analisando o que tudo isso significa.

Em uma leitura simples percebemos que a partir da chegada de um vírus vindo de águas bem distantes nossa cidade foi tomada por uma contaminação generalizada de pobreza.

Posso aqui descrever todas as medidas tomadas pelo governo para que pudéssemos evitar o avanço do Covid-19, pois não foram muitas para além de um isolamento tímido, um auxílio financeiro ínfimo e pequenas ações emergenciais na área da saúde, constatamos que o abandono de políticas de gerenciamento da cidade e de um plano diretor eficiente custou caro à população em um momento tão perigoso como esse.

Em 09 de fevereiro de 2020, trinta brasileiros que viviam em Wuhan, epicentro do COVID-19, foram repatriados e ficaram em quarentena por 14 dias na Base Aérea de Anápolis, em Goiás. Enquanto isso, estava me preparando para o início do semestre de atividades no trabalho, carnaval 2020 e como fazer de 2020 um ano melhor que 2019.

Em 21 de fevereiro, do mesmo ano, o Ministério da Saúde, além de Wuhan, amplia a lista de países que poderiam transportar o vírus para o Brasil, Japão, Singapura, Coreia do Sul e do Norte, Tailândia, Vietnã, Camboja, China, Alemanha, Austrália, Emirados Árabes, Filipinas, França, Irã, Itália e Malásia.

No dia 22, o Bloco do Beco, localizado no Jardim Ibirapuera, zona sul de Sampa, leva para as ruas do bairro o bloco de carnaval que sai a 18 anos, nosso carnaval além de parceria com o comércio local, homenageou seu Escurinho do Acordeom e trouxe o tema a rua como direito à cidade. Levamos 5 mil pessoas aglomeradas pela felicidade. Foi um sábado lindo seguido por um after de baile no Bloco do Beco. 

Em 26 de fevereiro, é confirmado o primeiro caso de COVID-19 no Brasil, um paciente de 61 anos vindo da Itália. No dia seguinte, 132 casos suspeitos são monitorados pelo Ministério da Saúde. Até 02 de março, dois casos são confirmados e o epicentro até então é o Hospital Israelita Albert Einstein, onde pacientes doentes recém chegados da lista de países que poderiam transportar o vírus são monitorados.

Bloco do Beco durante o carnaval 2020 no Jardim Ibirapuera. (Foto: Maloka Filmes )

No Brasil nada mudou. Vivemos o carnaval como se nada estivesse acontecendo de fato, e se a memória não me falha nada foi divulgado amplamente sobre a possível entrada do vírus em nosso país. Aqui na periferia nada de boatos sobre o até então chamado coronavírus, esperávamos dias melhores, 2019 foi um ano duro. A eleição do atual presidente, suas ações e a crescente crise do trabalho e da economia em decaída, foi uma nuvem pesada que carregamos. Perdemos direitos, investimento público em políticas da Assistência Social, cultura, no que diz respeito a arte e no que diz respeito a formação brasileira sobre gênero, raça e classe. Nosso orgulho brasileiro via Tweets presidenciais.

Em 05 de março, sobe para 8 o número de casos confirmados de COVID-19, 6 em São Paulo, são no país 636 casos suspeitos, nesse momento sai no Diário Oficial a obrigatoriedade do uso de máscaras pelos profissionais da saúde, álcool gel e luvas. Em 09 de março, são 25 o número de contaminados e 930 suspeitos, em São Paulo são 16.

Em 11 de março, a Organização Mundial da Saúde declarou em fim a Pandemia de Coronavírus no Brasil, três dias após o Ministério da Saúde regulamenta critérios de isolamento e quarentena. Em 17 de março é notificada a primeira morte por coronavírus no Brasil. Nesse momento os baixos investimentos na saúde e a crise financeira começa a ser a base para os números recordes de contaminação que vivemos, o ministério da saúde define que os testes só serão realizados em casos graves. São Paulo lidera os índices de mortes até então.

Esse foi o cenário inicial da pandemia, em maioria não ouvimos ou notamos que isso estava acontecendo, quem escapou tantas vezes da morte como o povo pobre desse país, não se abala com doenças descritas pela mídia ou que vem de gente rica, talvez fosse a fúria divina contra os ricos? Sabemos que não, mas que as lideranças evangélicas relativizaram inicialmente a gravidade da COVID-19. As bases religiosas ocupam hoje o vácuo do Estado e ao mesmo tempo são a principal base Bolsonarista, onde a ambivalência entre a importância do isolamento e a impossibilidade de parar de trabalhar, fortalecem o discurso do atual presidente, sem responsabilizar o mesmo por essa questão.

O que o povo realmente sentiu e se abalou foi com as medidas de isolamento coletiva que foi realizada a partir da constatação que nossa cidade vivia o processo de contaminação comunitária, isto é, o vírus estava dando um rolê por aí. Não bastando, o atual presidente no dia 22 março edita pela calada da noite, propõe a medida provisória que autoriza a suspensão dos contratos de trabalho por até quatro meses e dois dias, não foi aprovada. Logo depois diz que o COVID-19 “era só uma gripezinha”, sim não faz sentido, se era uma gripezinha porque suspender salários por 4 meses?  

Minha primeira publicação sobre o coronavírus foi em 13 de março, sem responsabilidade nenhuma, público um meme que revela os dados de feminicídio maiores que os de coronavírus, não podia imaginar os impactos mortíferos que essa pandemia teria.

Em 16 março, publicamos o primeiro comunicado sério sobre o coronavírus e as atividades de formação e de trabalho são suspensas presencialmente. Todo trabalho se tornou remoto e o medo de contaminação começa a fazer parte de nossas vidas. A doença que até então vinha de uma população que estava fora do país, se aproximava da periferia por meio do trabalho. Sim o contato das populações periféricas com seus, clientes, chefes e supervisores trariam o vírus às periferias.

Nesse momento, dia 27 de março, o número de mortos pelo vírus são 77 pessoas e cerca 3.027 pessoas contaminadas em todo território brasileiro, nada que abale esse povo que acompanha não só esses números, mas também os números de mortos pela polícia, feminicídio, lesbocídio, transfobia, crimes raciais e tráfico de drogas.

Em 1 de abril a Medida Provisória 936, institui o programa emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e impõe medidas trabalhistas complementares para o enfretamento das paralisações pela pandemia do COVID-19, sendo elas, benefício emergencial de preservação do emprego e da renda; redução da jornada de trabalho; auxílio emergencial mensal ao trabalhador intermitente; e acordos coletivos. O Home Office toma conta de nossas vidas e a dupla jornada de trabalho feminina se torna quíntupla jornada, dobrando as jornadas de cuidado dos idosos, crianças e adolescentes que estão todos em casa, mesmo sem nenhum planejamento para atual situação.

Na periferia se isola os idosos para que não se contaminem, sem saber que em 11 de abril um Boletim epidemiológico do Ministério da Saúde apontava que 25% dos óbitos são pacientes fora do grupo de risco e sem fatores de risco.

Nossa cidade continua a ser a mais atingida pelo COVID-19, líder em óbitos, não houve festa junina e o ministério da saúde atualiza essa cronologia afirmando que a primeira morte por Covid-19 aconteceu em 12 de março, uma mulher abriu a lista de mortes, nada emblemática para o quinto país que mais mata mulheres no mundo, com taxa de 4,8 assassinatos a cada 100 mil habitantes.

18 de maio, segunda-feira com 244.052 casos confirmados, o número de óbitos é atualizado para 16.201, somos o terceiro do mundo, ainda na segunda, o número é atualizado 16.792, entre eles, dona Maria Eterna dos Reis de 79 anos, que dedicou mais 30 anos à educação e alfabetização de crianças do Jardim Ibirapuera na Associação de Moradores, local onde hoje, atua a Associação Cultural Bloco do Beco. Um golpe que nunca vamos esquecer, sofremos em conjunto.

Dona Maria Eterna dos Reis, 79 anos, dedicou mais 30 anos à educação e alfabetização de crianças do Jardim Ibirapuera, zona sul de São Paulo. (Foto: Acervo Bloco do Beco)

“O que possivelmente nos resta temer depois de termos ficado cara a cara com a morte e não termos nos rendido a ela? Uma vez que aceito a existência da morte como um processo da vida, quem haverá de ter novamente algum poder sobre mim?

Audre Lourde (Irmã Outsider,2019), p. 16

O vírus chega às periferias forte como um trator, organizações sociais e de base, organizaram estratégias para conter os impactos econômicos das restrições estabelecidas a partir da pandemia, uma delas foi a distribuição de cestas básicas, kits de higiene e formação de uma rede de solidariedade entre todas as organizações sociais da cidade. Pessoas físicas e empresas privadas foram fundamentais para que toneladas de alimentos chegassem a periferia. As medidas de prevenção necessárias para conter o vírus, revelaram a situação do trabalho nas periferias, a maior parte da população se encontra em trabalho informal, que não traziam consigo segurança ou auxílio durante o isolamento. Foi também visto que grande parte da renda familiar nas periferias vinham de mulheres e que grande parte delas na informalidade. Poucas famílias com trabalhos formalizados, e enquanto isso acontecia, a mulher era quem garantia a renda, nesse sentido, verifica-se uma fragilidade mesmo com a empregabilidade formal, pois as mulheres ainda têm os salários mais baixos do mercado.

O empobrecimento das famílias ficou crítico, o Brasil tem o recorde de 13,5 milhões de miseráveis segundo dados divulgados pelo IBGE, em 2019, dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS), que analisa os anos 2012 a 2018. Com isso sabemos que além da pandemia do COVID-19, esses dados tiveram um salto diante do panorama atual.

Com um auxílio emergencial abaixo do salário mínimo, 1.045, sancionado pelo atual presidente em janeiro, estando sempre abaixo da inflação, que não deixa a população sentir qualquer benesse desse aumento, e muito menos se sentir amparado por um auxílio de 600 reais, que chega tardiamente, de forma confusa, trazendo aglomerações e excluindo a população que não tem acesso a internet ou a smartfones.

Entre chuva de lives, uso das redes sociais e demais aplicativos, a exploração do trabalho se tornou mais dura e menos sentida, pois o aplicativo me afasta do comércio, do comerciante e do entregador, dos funcionários, dos estabelecimentos, me alienando totalmente da exploração dessa força de trabalho. A internet não é pública, não é barata e nem eficiente nas periferias, sendo assim um aparato de exclusão social.

Seu Escurinho durante o Carnaval 2020 no Bloco do Beco, Jardim Ibirapuera, zona sul de São Paulo. (Foto: Maloka Filmes)

8 de junho de 2020, seu Escurinho do Acordeom se recupera de COVID-19 e retorna para casa, um mês depois falece devido as complicações do tratamento do vírus e se junta as taxas altas de mortalidade, a gente chora novamente, pois não tivemos chance de ouvir sua sanfona pela última vez, pois não houve vez que fosse última.

Perdas periféricas constantes, com ou sem diagnóstico, enterros com proteção são realizados constantemente em nosso território.

Cemitério São Luiz, zona sul de São Paulo, durante a pandemia de coronavírus em maio de 2020. (Foto: Marcelino Melo | Menino do Drone)

20 de julho, e o Brasil tem o terceiro dia com mais de 50 mil novos casos de COVID-19 em 24 horas, desde o início de março o governo federal registra 2.343.366 infectados, os casos na cidade de São Paulo cresce 74%, cerca de 22.997 óbitos após a reabertura do comércio, estamos em um trem desgovernado, em uma expiação diária. Ontem uma amiga apareceu com COVID-19, sim, do nada, ela estava bem, de repente COVID-19. Sentimos que houve uma criminalização por ela estar contaminada, como se tivesse escolhido, ou tivesse culpa. Me senti mal por identificar mais um mal que sobrecarrega as pessoas, a culpabilização individual.

Espero que ela se recupere, que as famílias periféricas contaminadas pelo COVID-19, ou pela crise econômica se recuperem. Que não se culpem por não ter estrutura física em suas casas para comprimir medidas de higiene ou isolamento, por não entender o que esta acontecendo. Os culpados dormem mesmo sem higienizar as ruas da quebrada em plena pandemia, dormem com milhões de reais em suas contas, mesmo exibindo um auxílio miserável a quem precisa, dormem sabendo da exploração trabalhista, dormem sabendo que tem gente que não tem casa, água potável, saneamento básico, internet e o principal, comida. 

Enfim, como dizia o jornalista e poeta Marco Antonio Iadocicco, Pezão, que partiu antes dessa loucura:

“Nóis é ponte, atravessa qualquer rio” e os rios têm sido cada vez mais perigosos.

“Se eu soubesse naquela avenida,

carnaval que me embalava,

Mesmo que a repressão,

ali tardia

estivessem agourando nosso futuro,

o coração virava a cara,

da agonia de viver fraco.

Hoje olhar triste

sobre a avenida vazia,

Bandeira parada.

Nesta triste alvorada

me resta olhar no retrato dessa vida

A alegria é uma estação sem trilhos,

de milhões de incapazes,

No meu samba metáfora

da aurora que virá.

Anabela Gonçalves

Os dados acima citados foram retirados: GOOGLE.COM: https://g.co/kgs/ZFXa4A

www.ibge.gov.br , BBC NEWS BRASIL em São Paulo: www.bbc.com

Projeto transforma WhatsApp em canal de direitos sociais das domésticas

0

Como um grupo de WhatsApp está contribuindo com o acesso às informações sobre direitos trabalhistas das empregadas domésticas que vivem nas periferias?

Selma Sousa, moradora da zona leste de São Paulo usa constantemente o Zap Zap das Domésticas | Foto: Emerson Santos

Atingidas pela crise econômica gerada pela pandemia de coronavírus, as empregadas domésticas perderam postos de trabalho ou tiveram seus salários reduzidos para continuar no emprego. Por trás de trajetórias de vida, se encontra também a figura de mulheres que cuidam do núcleo familiar e convivem com uma série de sonhos que ainda não foram alcançados.

O que é certo e errado na relação entre empregadores e empregadas domésticas? Como esses profissionais acessam informações sobre seus direitos trabalhistas? A partir destas questões, o Quebrada Tech conversou com algumas profissionais que dedicaram parte da sua vida ao ramo de serviços domésticos, para entender como elas estão lidando com as adversidades sobre o consumo de informações confiáveis e úteis neste momento de pandemia.

Há 38 anos trabalhando como empregada doméstica, Selma de Sousa, 52, moradora de Artur Alvim, bairro da zona leste de São Paulo, acompanhou ao longo das últimas quatro décadas o processo de conquistas de direitos trabalhistas, que aos poucos foi dando um pouco mais de segurança para uma categoria de profissionais que em sua maioria é representada pela figura feminina de moradoras das periferias.

“A gente não tinha nada, a gente não tinha benefício nenhum, a única coisa que a gente tinha era carteira registrada se o patrão quisesse, e o décimo terceiro”, conta Selma, relembrando um passado recente sobre conquistas de direitos, que antes eram desconhecidos ou faziam parte de um sonho distante entre as empregadas domésticas.

Para Selma, além de direitos trabalhistas, as domésticas ainda precisam de mudanças sociais e mais valorização. “Eu acho que falta pra gente em primeiro lugar mais respeito. Respeito que a maioria das pessoas não tem, eu falo dos colarinhos brancos, dos políticos sabe, que eles sempre colocam a gente lá embaixo, sendo que sem a gente eles não são nada, porque não sabem fritar um ovo”, argumenta, demonstrando o sentimento de ter uma profissão que ainda sofre uma enorme desvalorização.

Foi a partir destas inquietações que a moradora de Artur Alvim descobriu o Zap Zap das Domésticas, um grupo no aplicativo de mensagens instantâneas, que tira dúvidas sobre direitos trabalhistas das empregadas domésticas de diversos territórios do Brasil. “Eu vi lá e cliquei no link, entrei e gostei”, conta Selma.

O primeiro contato com o grupo de WhatsApp ocorreu quando ela estava navegando pela timeline do Facebook. “São pessoas maravilhosas, você tem perguntas e elas têm as respostas, então pra mim foi gratificante”, diz Sousa, relatando o contentamento de descobrir no aplicativo uma rede de apoio.

Selma ressalta que é importante existir direitos, mas para que eles sejam válidos é necessário compreendê-los para poder questioná-los. “Pra você questionar, você tem que ter a certeza do que você está questionando, não adianta eu questionar uma coisa no meu trabalho com meus patrões se eu não tenho certeza do que eu estou questionando pra eles né?”, questiona ela, enfatizando que hoje o meio de informação mais acessível se tornou o grupo do WhatsApp.

Uma das dúvidas relatadas pela doméstica foi sobre a quantidade de horas trabalhadas por dia. “Eu tinha dúvida se era oito horas com horário de almoço, ou se com o horário de almoço era nove horas, então eu tinha duvida disso”, conta Sousa, que depois de tirar suas duvidas no grupo, foi conversar com seus patrões e estabelecer seus horários para organizar suas tarefas e os horários de almoço, completando a jornada de oito horas diárias.

Durante a pandemia, Selma ficou afastada por quase três meses e retornou as atividades profissionais no dia seis de julho. Após retornar, ela diz que não teve muitas modificações, mas os seus empregadores adotaram algumas precauções como medidas de prevenção. “No serviço não mudou nada, o que mudou foram alguns costumes que é o uso da máscara e o álcool né”.

Selma relata que a luta pelos direitos trabalhistas das empregadas domésticas exige muita insistência e perseverança. “O que a gente não pode é sentar e esperar que aconteça, a gente tem que correr atrás sabe, eu falo isso porque eu já fiquei esperando, porque eu não sabia por onde começar, não tinha nem ideia onde eu poderia chegar e por qual meio eu podia chegar”.

Ela lembra que já trabalhou muito na vida sem ter direito a nada e que hoje, ela busca respostas para seguir em busca dos seus direitos. “Eu agradeço a Deus e agradeço a esse whatsapp das domésticas, porque elas me incentivaram a correr atrás dos nossos direitos”.

Após acessar uma série de informações importantes no ambiente de trocas do grupo, Sousa conclui que essa experiência trouxe um importante impacto para sua vida pessoal e profissional. “Pensa numa baiana arretada? Sou eu. Eu brigo pelos meus direitos até o fim, se eu não conseguir tudo bem, mas que eu vou brigar eu vou”.

O projeto Zap Zap das domésticas foi idealizado pelo Observatório do Direito e Cidadania da Mulher, que através de um grupo de pesquisadoras montou um guia dos direitos das domésticas em 2016. O material ensina o que está escrito na lei que considera os direitos trabalhistas das domésticas, com base em diversas referências bibliográficas. E em busca de tornar essa pesquisa mais acessível às trabalhadoras, as idealizadoras criaram em 2018 o grupo no whatsapp.

“A partir do guia, a gente percebeu que eram assuntos complexos, e que a oralidade seria muito importante, e talvez além da linguagem escrita, outros tipos de linguagem visual, símbolos e áudios, gente conseguiria contemplar essa diversidade no whatsapp, para atingir o maior número de trabalhadoras possível”, conta Mariana Fidelis, 34, advogada e umas das pesquisadoras do Observatório do Direito e Cidadania da Mulher.

Hoje o grupo no whatsapp Zap Zap das domésticas possui 570 participantes. As pesquisadoras produzem uma grande diversidade de conteúdos informativos com base nas pesquisas feitas no Observatório do Direito e Cidadania da Mulher, como em seu canal no Youtube, que tem uma série de vídeo que trazem informações sobre direitos das empregadas domésticas.

Além destes materiais, o projeto está prestes a lançar uma revista falando sobre a história de lutas dos direitos das domésticas. “Pesquisando ai os anos de luta né, as personagens, como foi essa luta pra conquista desses direitos, de como a PEC entra para o Brasil, de como o Brasil vai assinar o convênio da OIT, que dá origem a PEC”, descreve a pesquisadora, detalhando alguns conteúdos que farão parte da publicação.

Durante a pandemia, as pesquisadoras perceberam que essas informações precisavam circular por todos os meios de comunicação possível, pois previam que teria um retrocesso e uma escassez de direitos para esse momento. “A gente viu uma urgência em retomar o projeto, diante dos números de abusos, das exigências de casas de família e patrões, para que elas se isolassem dentro da casa, havendo aí uma reformulação do quartinho de empregada, do quartinho de serviço, que já tava cada vez mais sendo menos utilizado, dentro do nosso contexto social e econômico”, explica Fidelis.

A pesquisadora afirma que a profissão de empregada doméstica possui uma conexão direta com a figura da mulher nordestina que mora e constrói seus laços familiares nas periferias. “Umas das amostras que as pesquisa traz é que uma porcentagem considerável de mulheres domésticas que são moradoras das periferias”.

Fidelis conta que as maiores dúvidas que aparece no grupo Zap Zap das domésticas é sobre rescisão de contrato, compensação de horas e tempo para mover ações trabalhistas. “Lembrando aí que a maioria da categoria não chega a receber um salário mínimo né, principalmente as diaristas, que as diárias delas no final do mês não somam o valor de um salário mínimo”, alerta a pesquisadora, sobre as más condições de remuneração salarial no setor. 

“Você acredita que meu primeiro registro na carteira eu tava com 37 anos?”

Maria de Brito

Como é a vida de uma trabalhadora que não tem conhecimento do grupo Zap Zap das domésticas? Conhecemos a história de Maria de Brito, também conhecida na sua quebrada por Mazé, 60 anos, moradora do Parque Santo amaro, zona sul da cidade.

Após um dia intenso de idas e vindas de transporte público, ela relata que após finalizar o trabalho na casa dos patrões que residem no Campo Belo, bairro de classe média da zona sul de São Paulo, tomar um banho e assistir televisão se tornou um ritual para descansar o corpo e distrair a mente.

“Eu trabalho em casa de família desde meus 12 anos de idade”, conta Mazé. Com 48 anos de experiência como empregada doméstica, ela vê poucas mudanças em relação aos seus direitos trabalhistas.

“Eles puseram esse negócio de uma hora de almoço para as domésticas, mas a maioria não pode cumprir esse horário, porque se a gente cumpre esse horário de almoço atrasa tudo e você acaba saindo mais tarde”, afirma Mazé, apontando a falta de conexão entre a realidade no ambiente de trabalho doméstico e que prega as leis trabalhistas.

Diferente de Selma, durante a pandemia, Maria não parou seus trabalhos. Ela prestou seus serviços normalmente. “A pandemia todinha eu trabalhei, só que é assim: você vai com medo, você vem com medo e te atrasa um pouco tanto pra ir, quanto para voltar, porque eu fico esperando um ônibus vazio para vir né”, compartilha Mazé, descrevendo a sua rotina para ir e voltar do trabalho.

Em meio à pandemia, os patrões dela forneceram uniformes, álcool em gel e reduziram a carga horária. “Mas não tem outra coisa, não posso parar, tenho que ir né”, diz.

A informação do grupo do Zap Zap das domésticas ainda não chegou para moradora do Parque Santo Amaro. Desta forma, o único canal para se atualizar sobre seus direitos costuma a ser a televisão. “Quando eu vejo alguma informação, eu vejo quando passa no jornal, falando sobre o direito das domésticas, ai que fico sabendo de alguma coisa”, afirma.

Ela conta que essa história de direito trabalhista só chegou à sua vida quando ela já tinha mais de 35 anos. “Você acredita que meu primeiro registro na carteira eu tava com 37 anos?”, questiona ela, fazendo uma denuncia sobre o descaso histórico dos direitos trabalhista das empregada domésticas, que a atingiram e prejudicaram o seu plano de previdência.

“Acho que agora os patrões tem um pouquinho mais de respeito pelos funcionários, não é aquela coisa ainda, mas você já tem como reclamar alguma coisa, pedir um aumento. Naquela época, se você entrasse no serviço era dez anos com o mesmo salário”, revela Mazé, fazendo uma reflexão sobre as mudanças de comportamento dos empregados com a conquista dos direitos.

Maria finaliza fazendo uma suposição sobre o impacto do grupo do Zap Zap das domésticas, caso ele existisse a mais tempo na vida das empregadas domésticas. “Seria bom, a gente ia receber bastante informação, mais ideias das outras colegas, e também se tivesse isso no passado a gente não teria tanta perda igual tivemos dos nossos direitos antigamente”.

Corona e alimentação: onde fica a segurança alimentar de quem é da quebrada?

0

Em pouco mais de cinco meses de pandemia, a grande maioria dos moradores da Brasilândia, na Zona Norte de SP, tiveram que mudar, de alguma forma, a relação com a alimentação dentro de casa.

Distrito da Brasilândia | Foto: Beatriz Reis

Na Vila Terezinha, distrito da Brasilândia, periferia da Zona Norte de São Paulo (SP), Valquíria de Souza Oliveira, 54, recebe, quinzenalmente, uma cesta de alimentos orgânicos em sua casa, distribuída desde o início da pandemia de Covid-19, o novo coronavírus, pela Preto Império, um coletivo do bairro. “Os alimentos têm outro sabor, não estragam rápido, a gente consegue conservar um tempo na geladeira. O orgânico é outra coisa, né. Aqui em casa todo mundo gostou. Não tem nem comparação com o que a gente comprava na feira”, comenta.

Val, como é conhecida no bairro, divide a casa com mais sete familiares, entre eles crianças, que, até março, antes da interrupção das aulas presenciais, faziam, pelo menos, duas refeições diárias nas escolas em que eram matriculadas, refeições estas que seguiam normas técnicas e eram acompanhadas por nutricionistas. Com as crianças fora da escola, o desafio da família foi ainda maior para tentar equilibrar o que se põe à mesa todos os dias. Neste sentido, receber as cestas de orgânicos tem feito a diferença. “Para a alimentação dos pequenos está sendo maravilhoso”, diz Val.

Outro desafio, com certeza, é a grana. No início da pandemia, apenas o genro de Val trabalhava e completava a renda familiar, mas, há pouco tempo, a filha também conseguiu voltar a trabalhar, o que foi um grande alívio, principalmente, porque o cenário nacional não é animador: houve um aumento de 26% no número de desempregados diante da pandemia, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ao todo, 12,4 milhões de brasileiros estavam desempregados na quarta semana de junho; 2,6 milhões a mais que o registrado na primeira semana de maio. Junto a isso, vale destacar que a Brasilândia apresenta a 5ª pior taxa de emprego formal da cidade, segundo o Mapa da Desigualdade de 2019.

Com as contas ainda apertadas, a família de Val usa a estratégia de comprar alimentos aos poucos, nos mercados locais do bairro, e sempre com bases nas promoções. “Isso, porque os preços variam muito”, explica ela. Não à toa, na grande maioria das vezes, a escolha do alimento que vai à mesa é feita de acordo com as condições econômicas, e não pela necessidade e cuidado com a qualidade do que se come. 

A maioria das família entrevistadas pela pesquisa realizada pela Preto Império prefere comprar seus alimentos nos mercados locais do bairro | Foto: Beatriz Reis 

Corona na Brasilândia

O 7º distrito mais populoso da capital, com mais de 260 mil habitantes – sendo 50,6% de pessoas autodeclaradas negras -, a Brasilândia foi, segundo o último relatório regionalizado de casos de Covid divulgado pela Prefeitura, em maio, o distrito com mais óbitos da cidade em decorrência do vírus. Foram 209 mortes confirmadas, seguido dos distritos de Sapopemba (205), Grajaú (183), Capão Redondo (163), Jardim São Luís (157) e Jardim Ângela (156).

Assim como Val, outras 120 famílias em situação de vulnerabilidade social na Brasilândia recebem as cestas de alimentos orgânicos distribuídas para amenizar os efeitos negativos da Covid, tanto financeiramente, quanto para garantir uma saúde melhor para os moradores.

 “A galera do bairro já está em uma situação precária, uma questão ambiental precária, falta de saneamento básico e, ainda, sem alimentação. Sim, isso é um processo de genocídio a longo prazo. Quando chega uma doença como essa, é óbvio que muitas pessoas que estão em situação de vulnerabilidade vão vir a óbito

Dimas Reis, integrante da Preto Império.

A educadora e nutricionista Amanda de Jesus, também concorda e afirma que é extremamente importante que a população consiga manter uma alimentação saudável para garantir que o corpo também esteja saudável e mais preparado para lidar com o vírus. A falta de políticas que saibam lidar com isso, por exemplo, agrava o que ela denomina como “nutricídio”. “É nos matar através dos alimentos, pela boca”, explica.

Segundo ela, ainda é um desafio constante lidar com a massiva oferta, principalmente para a população negra e periférica, de produtos ultraprocessados e industrializados, que, de forma geral, não fazem bem para a saúde. Vale destacar que o Brasil é também, desde 2008, líder mundial em consumo de agrotóxicos e que os hábitos alimentares do brasileiro estão muito pautados pelo alto consumo de sal, gordura, bebidas adoçadas e refeições prontas. A pergunta que fica diante deste cenário é: o que tem sido feito para garantir a segurança alimentar de quem é da quebrada? 

As mudanças no prato

A pesquisa A alimentação na Brasilândia em tempos de Covid-19, realizada pela Preto Império, em julho, ouviu, por telefone, 103 famílias que recebem as cestas de orgânicos do coletivo e que residem em vários subdistritos da região. Segundo a pesquisa, para mais de 90% delas, desde que a pandemia começou, a relação com a alimentação tem mudado dentro de casa.

Em resumo, 68% dos lares têm mais de quatro pessoas residindo na mesma casa, e 37% deles têm, pelo menos, uma criança. Entre os principais motivos para esta mudança na relação com a alimentação, têm destaque os fatos de a renda familiar ter diminuído, os produtos estarem mais caros ou o fato de respeitarem o isolamento e mudarem a rotina de sair de casa: ao todo, 50% das famílias mudaram os locais onde costumavam comprar comida e 71% delas, agora, preferem o mercadinho perto de casa.

Celia Nazare da Silva, 53, é proprietária do conhecido Sacolão Silva Ramos, também localizado na Vila Terezinha, onde vende frutas, verduras, legumes, hortaliças, entre outros produtos. Segundo ela, nos primeiros meses da pandemia, o movimento do comércio local aumentou, pois “todo mundo só pensava em comer, então o movimento estava ótimo”. Agora, com pouco mais de cinco meses de pandemia, o movimento deu uma caída.

Para muitas famílias do distrito, o preço dos alimentos aumentaram, o que tem interferido no que é possível ou não comprar pra casa | Foto: Beatriz Reis

“As pessoas estão comprando um pouco menos agora. Muita gente perdeu o emprego, outras voltaram pro trabalho e não estão tanto em casa”, diz. O preço dos alimentos também é uma questão avaliada por ela. “As mercadorias aumentaram pra gente comprar pro sacolão, então fica difícil pra gente conseguir manter o mesmo preço [na venda]”, explica ela, justificando o aumento dos preços no sacolão.

Em todo Brasil, a qualidade e a quantidade de comida que as crianças e adolescentes brasileiros estão consumindo foi afetada pela pandemia, segundo a pesquisa Impactos Primários e Secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes, da Unicef, realizada pelo Ibope, e divulgada no final deste mês. De acordo com o levantamento, 21% dos entrevistados afirmaram que vivenciaram momentos em que os alimentos acabaram e não havia dinheiro para comprar mais.

Dos entrevistados, 6% também disseram que a única saída foi deixar de comer, o que representa cerca de nove milhões de brasileiros deixando de realizar alguma refeição por falta de dinheiro. O estudo ainda mostra que a comida, quando tem, é de pior qualidade em muitos casos. Quase metade (49%) dos brasileiros sofreu alguma mudança nos hábitos alimentares neste período de quarentena.

Para a nutricionista Amanda de Jesus, a principal dica para uma boa alimentação é dar atenção maior aos alimentos naturais, aos alimentos da feira, ou seja, “aproveitar a xepa, que é o que a quebrada já tem costume de aproveitar”. “Será que sabemos o que realmente estamos consumindo? A feira tem que ser a base. O mercado acaba sendo complementar, apenas. Mas, normalmente, se faz ao contrário. É preciso inverter este olhar”, sinaliza.

Ao todo, 120 famílias em situação de vulnerabilidade social na Brasilândia recebem as cestas de alimentos orgânicos distribuídas pela Preto Império | Foto: Beatriz Reis

Amanda também fala sobre as cestas básicas distribuídas massivamente às famílias no início da pandemia, quando diversas lives de artistas famosos e grandes organizações e empresas passaram a distribuir milhares de mantimentos pela quebrada. Estas ações ajudaram muitas famílias que, de uma hora para outra, foram impactadas pela pandemia.

No entanto, Amanda de Jesus também sinaliza algo bem importante e pouco discutido: quem doa cestas também precisa se responsabilizar pela qualidade do que está doando. “Se tem oportunidade de escolha, porque não escolher uma cesta melhor, que tenha menos produtos ultraprocessados, por exemplo, ou distribuir frutas e legumes”, diz.

Este cuidado com o que se come citado pela nutricionista foi seguido em outra ação importante no território da Brasilândia de combate à Covid-19, e protagonizada pela ação direta dos moradores, na base do nós por nós. Assim que decretada a pandemia, a AMAVB, a Associação dos Moradores do Alto da Vila Brasilândia, iniciou a distribuição de marmitas para dezenas de famílias.

Eram 170 marmitas distribuídas todos os dias, além de outras 200 que recebiam prontas de outra organização, resultando em cerca de 360 marmitas distribuídas diariamente. Em 4 meses, foram distribuídas mais de 34 mil quentinhas, incluindo algumas no período noturno. Hoje, o número de produção das marmitas diminuiu drasticamente, muito por conta da redução dos apoios financeiros e parcerias, embora a pandemia permaneça e ainda impacte a vida de milhares de pessoas.

Segurança alimentar como direito

O direito humano à alimentação adequada (DHAA) ainda tem sério desafios no país, e a morosidade de seus avanços têm reflexos nesses tempos de pandemia. Nacionalmente, o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), criado em 2006, a partir da Lei nº11.346, e assinada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, definiu a segurança alimentar e nutricional como “a estratégia que consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambientais, culturais, econômica e socialmente sustentáveis”.

Mas, foi somente em 2010, em sessão solene do Congresso Nacional no plenário do Senado, que foi promulgada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 047/2003, que incluiu o direito humano à alimentação entre os direitos sociais da Carta Magna. Até então, eram direitos sociais educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. 

“A feira tem que ser a base. O mercado acaba sendo complementar, apenas. Mas, normalmente, se faz ao contrário”, explica a nutricionista Amanda de Jesus | Foto: Beatriz Reis.

À nível municipal, embora a cidade de Sã Paulo tenha certo protagonismo na discussão, foi a partir de 2013, na gestão do prefeito Fernando Haddad, que a Prefeitura de São Paulo iniciou o processo de institucionalização da segurança alimentar e nutricional (SAN) com a lei nº 15.920, que estabeleceu que o município deveria tomar as medidas necessárias para garantir o direito humano à alimentação adequada e a segurança alimentar e nutricional de sua população.

Foi neste período também que foi instituído, finalmente, os componentes municipais do SISAN: a Conferência Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (CMSAN); a Câmara Intersecretarial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN-Municipal) e o Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo (COMUSAN-SP), anteriormente criados, mas, neste momento, passam a ser componentes do sistema nacional.

Entre uns dos maiores gargalos da implementação das políticas está, justamente, a dificuldade em estruturar e aperfeiçoar uma rede de equipamentos pública alimentar para a população. Segundo o Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional na cidade de São Paulo: ações, desafios e perspectivas do papel da cidade na alimentação, o número de equipamentos que cumpriam esta função dimunuiu na cidade em uma comparação com a década de 1990. Até 2015, eram 15 mercados e 17 sacolões municipais na cidade (ante 27 em 1993), além de mais de 800 feiras livres convencionais – apenas sete feiras de produtos orgânicos.

Soma-se a isso, segundo o documento, o constante processo de privatização dos equipamentos públicos, a falta de instrumentos de regulação do mercado por parte do Estado na cessão do espaço e na política de preços dos alimentos praticados nesses equipamentos; e, apesar do expressivo número de feiras que ainda existem (que ainda são refém, por exemplo, de alimentos cultivados a base de agrotóxicos), ainda persistem os “desertos alimentares” na cidade, com difícil acesso aos alimentos saudáveis por parte da população, principalmente em regiões das periferias, o que influencia na real condição de manter uma alimentação saudável e acessível nos territórios.

*Com colaboração de Priscila Reis e Beatriz Reis. 

Esta reportagem faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização das iniciativas de comunicação Alma Preta, Desenrola e Não me Enrola, Embarque no Direito, Nós, Mulheres da Periferia, Periferia em Movimento, Preto Império e TV Grajaú, com patrocínio da Fundação Tide Setubal. 

O adeus à atriz e produtora cultural da periferia Dora Nascimento

0

Enraizada nos movimentos culturais da região do Campo Limpo e Taboão da Serra, a atriz Dora Nascimento, que já foi coordenadora da Casa de Cultura do Campo Limpo, faleceu neste sábado (22), em decorrência de um câncer no pâncreas.

Dora Nascimento durante a Felizs em 2018. Crédito da Foto: Acervo Felizs.

A atriz, articuladora e produtora cultural Maria das Dores Rodrigues Nascimento, mais conhecida por Dora Nascimento ou Dorinha no território do Campo Limpo, zona sul de São Paulo, faleceu neste sábado (22), às 6h15, no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP) em decorrência de um câncer no pâncreas.

Dorinha já vinha se tratando de um câncer desde janeiro, antes mesmo do início da pandemia, quando descobriu a doença. Mesmo assim, a atriz não se deixou abater e, aos 55 anos de idade, buscou força entre amigos e familiares, além de continuar seus trabalhos até onde pode.

Dona de um sorriso único e cativante, a alegria, carinho e amor era a sua marca registrada transmitida para as pessoas que a rodeavam. A atriz deixará saudades não só pelos feitos artísticos e culturais, mas pelo ser humano cativante e acolhedor que sempre foi. O velório aconteceu nesse domingo (23), às 9h, e o enterro foi realizado às 10h, no Cemitério da Saudade, Parque Pinheiros, Taboão da Serra – SP.

 Uma vida em prol da cultura

Cenas do filme A Sombra do Fogo, onde a atriz Dora Nascimento interpreta a personagem Jant. Créditos da foto: Site A Sombra do Fogo

Dorinha era sócia-proprietária da produtora Belbellita e integrava a equipe que comanda a produção e realização da Feira Literária da Zona Sul (Felizs). Em sua trajetória de vida, ela atuou na produção do filme “A Sombra do Fogo”, de Jean Grimard, estreado no Canal Brasil em 2015.

Entre 2013 e 2015, ela atuou na produção da encenação da 57ª, 58ª e 59ª “Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo”, em Taboão da Serra. Em 2014, ela se juntou ao coletivo de artistas, poetas e autores Sarau do Binho, para participar da 40ª Feria del Libro de Buenos Aires.

Ao longo da sua caminhada, a atriz também integrou as organizações sociais Pólis (Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais e Poiesis), Instituto de Apoio à Cultura à Língua e à Literatura, e integrava atualmente a equipe de captação de incentivadores na Associação Músicos do Futuro.

No teatro, ela conta com participações nas companhias Teatrais Cia de Teatro TESOL, Cia de Teatro Encena e Espaço Clariô de Teatro. Além disso, foi coordenadora entre 2017 e 2019 da Casa de Cultura do Campo Limpo. 

 “Não tinha medo do novo, do diferente”

Dora Nascimento ao lado da equipe Felizs. Créditos da Foto: Acervo Felizs

A educadora, articuladora e produtora cultural do Sarau do Binho, Suzi Soares, revela que Dora representava muito amor, carinho e afeto para as pessoas que a conheciam e viviam ao seu lado.

“Era alegre, divertida, apaziguadora. Eu a conheci por volta de 2006, no Bar do Binho. Ela costumava ir ao sarau e era uma das últimas a ir embora. Sempre muito elegante. Usava uns vestidos lindos, floridos, alegres”, relembra a amiga.

Dora também gostava de pintar os cabelos de roxo, de pink, porque não tinha medo do novo, do diferente. Gostava de colares e brincos. Quando ela soltava uma gargalhada não tinha quem não se contagiasse, sempre agradecia muito pelas coisas, pelos aprendizados, pelas oportunidades que a vida lhe dava.

Dorinha, sempre me  mandava mensagem no meio da noite só pra agradecer por alguma coisa que tinha acontecido naquele dia. Na maioria das vezes coisas muitos simples, que no dia a dia nos esquecemos de dar valor e dar graças, mas ela não se esquecia nunca disso.

Diz Suzi Soares

Suzi conta que, em 2007, o Sarau do Binho realizou a Expedicion Donde Miras, caminhada literária em direção a Curitiba (PR). Dora estava de férias em Juquitiba, mas resolveu se juntar por uns dois dias àquele “bando de malucos sonhadores” e acabou indo com eles até o final da caminhada.

“Ela não tinha nem barraca, dormia em cima de um colchonete e estava feliz. Saía de manhã pelos mercados e sacolões das cidades, pedindo doações pra melhorar nossa alimentação. Fazia milagres, porque ninguém resistia aos seus apelos e simpatia. De lá pra cá, sua relação com o Sarau do Binho e com todos nós só se fortaleceu e muitas coisas construímos juntos”, diz.

Suzi relata o lado humano de Dora que sempre perguntava a ela: “fia, tem alguém precisando de alguma coisa, uma cesta básica?”. Dorinha fazia as compras pela internet e fazia chegar na casa da pessoa.

A cada data de aniversário de Suzi, Dora preparava uma nova surpresa. “Nos meus aniversários ela sempre me fazia alguma surpresa. Até mesmo este ano, já hospitalizada, pediu ao seu irmão, Beto, que me trouxesse umas plantinhas”.

Suzi também enfatiza sobre a dor de perder a cada ano pessoas importantes que atuam para o bem comum e coletivo nas periferias. “Foram pessoas que ajudaram a construir o movimento cultural da zona sul: Raquel Trindade, Tula Pilar, Marcos Pezão, e agora a Dora Nascimento e tantos outros. São buracos que vão ficando e que a gente não consegue preencher. Fica o vazio, a dor, a saudade”.

A emoção tomou conta nas redes sociais

Articulações territoriais engajam moradores na luta pelo saneamento básico

0

A partir de projetos, pesquisas e vivências comunitárias, articuladores propõem soluções para prevenção de enchentes, canalização de córregos e coleta de lixo para melhorias sanitárias nos territórios periféricos.

Foto: Dicampana Fotocoletivo

A ineficiência da gestão pública diante das demandas populares reflete de diversas formas no cotidiano de quem mora nas periferias. O sistema de desigualdade de acessos se fortalece diariamente na falta de políticas efetivas que garantam os serviços que na teoria são direitos universais da população, como serviços essenciais de saneamento básico.

O serviço de saneamento básico se tornou mais comentado recentemente, devido ao avanço da pandemia de covid-19, o novo coronavírus, que pressionou a população por maiores cuidados de higiene. No entanto, essa cobrança não é acompanhada da garantia ao acesso desse serviço básico, já que, de acordo com o levantamento de 2018 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), há na cidade de São Paulo quase 300 mil pessoas sem acesso à água encanada e mais de dois milhões sem coleta de esgoto.

Em julho deste ano, o governo federal aprovou o Marco Legal do Saneamento Básico (PEC 4162/2019) que, entre outras deliberações, prevê maior participação do setor privado na gestão dos recursos hídricos e a universalização do acesso ao saneamento básico nas regiões metropolitanas até 2033.

Para Dora Lima, integrante da Coalizão pelo Clima, rede de coletivos que debatem e promovem ações de acesso à informação para combater mudanças climáticas, essa proposta do Marco Legal do Saneamento Básico não se tornará realidade. 

“Para mim é puro marketing a história da universalização em 2033 nos termos que estão colocados. Visto que o atendimento do direito humano à água e ao saneamento básico deve ser feito de modo progressivo e deve priorizar as populações mais vulneráveis”, afirma a educadora ambiental, que também faz parte da Agenda 2030, um movimento engajado em propor ações efetivas para erradicação da pobreza no mundo. 

Dados do SNIS/2018 apontam que 9,6% da população da cidade de São Paulo não tem acesso ao tratamento de esgoto.

Outro ponto que Dora ressalta é que quanto mais o poder público se ausenta de cumprir seu papel na promoção dos direitos, mais a população sofre. “Atualmente, toda essa falta de políticas de Estado está fazendo crescer o número de mortes pela covid-19 em regiões onde o poder público não atua. A pandemia, portanto, vem revelando a face mais perversa de um país desigual: quem fica com os piores efeitos da covid-19 são os que não têm acesso à direitos básicos, como água e tratamento de esgoto. Sendo assim, com toda esta falta de política de estado afasta ainda mais a universalização. O lucro sempre acima da Vida”, conclui.

Conscientização e mobilização

Diante da pouca eficiência da gestão municipal, articuladores e movimentos ambientais que entendem as necessidades e o contexto de quem moram nas periferias, buscam criar possibilidades de mudança e melhoria na qualidade de vida dos moradores.

Um exemplo dessas articulações territoriais que tem pensado soluções para melhorias sanitárias é o Abraço Guarapiranga, um movimento que busca sensibilizar e conscientizar as comunidades que são abastecidas pela Represa Guarapiranga. O objetivo é trazer as pessoas para a discussão sobre o cuidado necessário com a água. O Comitê Executivo do Fórum em Defesa da Vida é quem coordena as ações do Abraço Guarapiranga e realiza os encontros que acontecem toda primeira sexta-feira do mês.

Segundo Renato Rocha, educador ambiental, integrante do Abraço Guarapiranga e criador do Coletivo DedoVerde, negócio social que realiza ações ecológicas e de preservação ambiental na periferias, as ações do Abraço Guarapiranga acontecem em parceria com outros agentes territoriais. 

“Além deste movimento social também participa a Defensoria Pública, que recebe as denúncias referentes ao descarte de esgoto direto na represa, situações de descarte de entulho nas áreas de mananciais e acompanha o que o poder público tem realizado no território”, conta ele, descrevendo a participação da Defensoria que faz parte do Fórum em Defesa da Vida.

Para o educador ambiental, as periferias ainda não possuem total acesso à água, tratamento de esgoto e ainda sofrem com enchentes devido a um processo histórico de ocupação desses territórios, beiras de córregos, rios e o não planejamento das cidades por parte do poder público. 

“A população empobrecida que ocupa estes locais foi forçada pelo poder público para ir ocupar as frestas da cidade, em locais que não poderiam ser habitados, como as áreas de mananciais, se pegarmos o exemplo da Represa Guarapiranga e Billings”

explica.

Ele ressalta como as empresas também contribuem para o sistema de acesso não ser completamente funcional. “Desde o começo, o poder público priorizou o fornecimento de água potável e depois como fazer a gestão do esgoto com coleta, afastamento (jogar o esgoto nos rios) e no final o tratamento. Outro fator é a ineficiência das empresas que fazem a distribuição, que perde cerca de 30% da água tratada. Um grupo de fatores que envolvem habitação, educação e investimento em desenvolvimento social”, argumenta o agente ambiental que tem as periferias como campo de trabalho. 

Soluções para auxiliar o combate a enchentes 

Muitas ações poderiam ser criadas pela gestão pública com o intuito de conter problemas estruturais para quem mora nas periferias, como por exemplo, as enchentes. A urbanização dos córregos, não no modelo de concreto, e sim de tratamento para que as margens sejam revitalizadas, coleta universal de esgoto com tratamento local descentralizado e arborização das áreas de mananciais são alguns dos caminhos apontados por Renato.

O articulador também ressalta que existem possibilidades para além de obras de infraestrutura. Soluções ecológicas que poderiam ser aplicadas nas periferias, como uma Mini Cisterna.

“A Mini Cisterna é uma alternativa para armazenar a água da chuva de forma correta para que não prolifere o mosquito Aedes Aegypti e ser utilizada para fins não potáveis. Pode ser construída com canos de PVC e tambor de plástico ou caixa d’água. Em nossa sede, na Casa de Cultura e Educação São Luís, usamos um sistema de aproveitamento de água de chuva para irrigação com duas caixas com capacidade de 500 litros cada, e uma caixa com 3.000 mil litros. Total de 4 mil litros de água de chuva”.

O articulador avalia que serviços de responsabilidade do município, como a canalização de córregos, coleta de lixo, limpeza urbana e prevenção de enchentes são parte importante de uma ação que se não for em conjunto com a população, não irão surtir efeitos concretos nos territórios.

“É preciso ter ações multidisciplinares de Educação Ambiental para que o cidadão não jogue lixo nas vias públicas e córregos. Que as empresas se responsabilizem pela logística reversa de móveis como sofá, cama e guarda-roupa e que haja mais ecopontos nas periferias. Se não tivermos essas ações, vamos continuar no mesmo”

Por meio de sua atuação no Coletivo Dedo Verde, Renato articula formações e ações de educação ambiental em parceria com escolas e postos de saúde. Entre elas, a mini cisterna e o Programa Óleo Vivo, que coleta, armazena e destina o óleo de cozinha utilizado com frituras, para ser posteriormente transformado em sabão ou biodiesel.

“Cada litro de óleo usado jogado pelo ralo da pia ou vaso sanitário contamina 25 mil litros de água potável segundo dados da Sabesp. De 2012 até 2019, coletamos 20 mil litros de óleo usado, deixando de contaminar 500 milhões de litros de água potável. Em contrapartida da coleta, vamos nas comunidades e realizamos oficinas de sabão ecológico, palestra a respeito do impacto que o óleo causa no meio ambiente e na saúde pública”, compartilha Renato.

Renato Rocha com a minicisterna desenvolvida pelo Coletivo Dedo Verde. (Foto: Arquivo Pessoal)

O articulador ambiental também coloca que existe um movimento governamental que busca privatizar empresas nacionais com objetivo de melhoria do serviço que o governo não faz, mas questiona quem sai ganhando com esses processos de privatizações.

“Tem um arranjo construído entre as empresas e o poder público que o cidadão comum não fica sabendo. Nada é feito de graça. Cerca de 50% da população brasileira não tem coleta de esgoto. Obras que são enterradas não trazem votos para os políticos. Este é um dos motivos de se privatizar. Diferente de pontes, campos de futebol, escolas, creches que os políticos podem expor suas faixas, não tem como por uma faixa dizendo: aqui realizamos a coleta de esgoto da sua região, com certeza não teremos mais problemas de doenças de veiculação hídrica ou ‘vermes’ ”

finaliza o articulador.

Zona sul: córregos, mananciais e enchentes

“A região das represas Billings e Guarapiranga têm ocupações que chegam a aproximadamente 2 milhões de habitantes onde, no meu entender, há o conflito de dois direitos aparentemente conflitantes – o direito à habitação e o direito ao meio ambiente. Foi a conclusão a que chegamos nos nossos estudos”, conta Vera Luz, coordenadora da Comissão Temporária de Sistematização da Legislação Ambiental do CAU/SP. Além deste trabalho de pesquisa no território, a arquiteta e urbanista é integrante do Grupo Amigos do Fundão do Jardim Ângela e do Fórum de Pesquisadores de M’Boi Mirim.

Segundo Vera, no Fundão do Jardim Ângela a demanda é muito complexa, porque encontra a questão de saneamento com a de proteção dos mananciais. Assunto que é discutido, no âmbito acadêmico e governamental, pelo menos desde a década de 1980.

Represa Billings, zona sul de São Paulo. (Foto: Você Repórter da Periferia)

Outra questão que afeta diretamente as periferias são as enchentes. Segundo Vera, essa não é uma situação que afeta apenas os territórios afastados do centro da cidade, devido ao processo de impermeabilização do solo urbano. “O provimento de água tratada na cidade de São Paulo alcança oficialmente quase que a universalidade o que, na prática, ainda deixa de fora populações carentes. Os serviços relativos aos resíduos sólidos, em ocupações periféricas informais, muitas vezes sequer existem”, conclui a urbanista. 

Na região sul de São Paulo, outro grupo que tem pautado discussões sobre a qualidade de vida dos moradores é o Amigos do Fundão do Jardim Ângela, que atua por meio do Fórum Fundão das Águas, movimento que articula ações na defesa dos mananciais e na questão da relação com o meio ambiente com foco na zona sul.

Uma das lideranças locais que atua no Fórum Fundão das Águas é o Genésio da Silva, morador do Jardim Capela, bairro localizado no distrito do Jardim Ângela na zona sul. Sua militância começou em 1999, quando observava alguns moradores da região reclamando da situação do bairro. A partir deste momento, ele resolveu juntá-los e realizar uma reunião para discutir as demandas que existiam. Desde então, tem atuado em conjunto com outros agentes, articuladores em rede por melhorias locais.

Genésio conta que realiza ações nas escolas com alunos e professores para falar da importância da preservação do meio ambiente e como o trabalho coletivo voltado à questão ambiental influencia politicamente nas mudanças sanitárias na região.

“Cada liderança ou membro do Fórum das Águas faz suas queixas e no dia da reunião do Fórum a gente apresenta as demandas no coletivo, seja qual for à demanda e elaboramos os documentos e enviamos ao poder público, para eles terem ciência do que acontece nas nossas comunidades periféricas”.

O líder comunitário relata o cenário do saneamento básico na região e o comportamento dos moradores. “Nossos córregos não são canalizados, as pessoas jogam entulho e lixo tudo dentro dos córregos”. Ele conta também como é a atuação do poder público com essa e outras demandas.

“O poder público nas periferia eles fazem vistas grossas, você não tem noção quanto a gente faz reivindicações. Só pra você ter uma ideia a nossa subprefeitura de M’Boi Mirim se quer faz a zeladoria correta na região. Então, nós das periferias sofremos muito com o poder público que não nos enxerga, ou melhor, não quer nos enxergar, essa é a verdade. Temos o grande problema na região com desmatamento e ocupação desordenada, não tem fiscalização dos órgãos públicos, isso é um dos absurdo. A gente faz a denúncia, mas não aparece ninguém, ou quando aparece já aconteceu, aí já era”

finaliza Genesio.

 O sonho de ter uma Veneza na Zona Leste

A situação dos córregos no Jardim Ângela, apontada por Genesio não é diferente do córrego Cangueiras da Vila Flávia, localizada no distrito de São Mateus, na zona leste da cidade.

O articulador cultural Negotinho, morador da Vila Flávia, conta como a hidrografia do território desassistida por políticas públicas, afeta a vida dos moradores. 

“Na nossa favela há casas sem coleta de esgoto, há ruas sem boca de lobo para captar a água da chuva. Por isso, o córrego se transforma em uma grande fossa a céu aberto, em pelo menos três pontos. A comunidade sofre muito com isso porque o odor é forte, traz escorpião, ratos e baratas. A exposição com o esgoto à céu aberto impacta diretamente na saúde da comunidade, causando lotação no posto de saúde, porque as crianças ficam mais doentes, ficam com ‘sangue sujo’, como a gente costuma chamar quando sai manchas e feridas no corpo”.

“Nossa ideia para o córrego Cangueiras não era uma questão de canalizar, era de recuperar as nascentes. Nossa ideia era separar o esgoto, os resíduos, das águas da nascente; cuidar do plantio de árvores e canteiros. A ideia era ter uma ciclovia ao lado do rio, que passasse pela Favela Galeria e pelo espaço São Mateus em Movimento, para chegar no parque Reserva do Carmo e no Sesc Itaquera. A ciclovia seria um elo de ligação entre esses espaços. Apesar de estar longe, nossa ideia era que fosse um rio navegável”

conta Negotinho.

No final de 2016, a prefeitura fez a obra de canalização do córrego, atendendo a luta de mais de 10 anos dos moradores. Entretanto, a falta de serviços públicos de manutenção causa outro transtorno, o entupimento da tubulação: “quando entope, é a população que é obrigada a desentupir”, finaliza.

Fotos: São Mateus em Movimento e Desenrola e Não Me Enrola

A luta pelo direito de viver com condições dignas nas periferias acontece desde sua ocupação. Atuar por meio da conscientização e engajar a população para reivindicar seus direitos tem sido o trabalho de articuladores locais que enxergam nos territórios diversas possibilidades de transformá-lo, com o objetivo de garantir qualidade de vida e saúde para os moradores.

Esta reportagem faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização das iniciativas de comunicação Alma Preta, Desenrola e Não me Enrola, Embarque no Direito, Nós, Mulheres da Periferia, Periferia em Movimento, Preto Império e TV Grajaú, com patrocínio da Fundação Tide Setubal.

“O fanzine é uma arma de revolução”, diz artista e educador social do Jardim Ângela

0

Através da arte do fanzine, o educador social Roger Beats, aborda diversas temáticas de luta e resistência da população periférica. Além de proporcionar vivências de recorte, montagem e colagem em fanzines para crianças e adolescentes, através desta linguagem artística e comunicativa, eles descobrem novas possibilidades de enxergar e estar no mundo.

A arte e a ligação com o universo do fanzine chegaram à vida de Rogério Souza, conhecido como Roger Beats de forma natural. O artista é morador do Jardim Ângela, região sul da cidade. Hoje, ele vive entre o extremo da zona sul e a Ocupação Cultural Ouvidor 63, espaço comunitário de cultura localizado no centro velho de São Paulo, um dos locais onde ele realiza oficinas de fanzine.

O fanzine é uma publicação impressa composta por textos autorais ou não, recorte de jornais, revistas, livros e imagens diversas que tem a função de explorar temáticas a partir da imaginação de quem o produz.

Além de fanzineiro, o artista é educador social, e se considera “artivista”. Roger já produzia fanzines há algum tempo, mas não entendia que eram fanzines. Para ele, eram informativos, revistinhas ou manifestos.

Por volta de 2001, o educador social e fanzineiro recorria às lan houses, e dentro do período de uma hora ele transcrevia um texto pesquisado, selecionava imagens que combinasse com o tema e imprimia. Chegando em casa, recortava, diagrama, corrigia pequenas falhas da impressão com caneta, e montava seu manifesto madrugada adentro, pois na época trabalhava e estudava. No dia seguinte, passava na copiadora e tirava cópias do material.

Fanzine elaborado pelo educador social que retrata a juventude periférica.

“Nesse período conheci uma galera do New Metal, onde as ideias coincidiram, havia uma necessidade de passar uma mensagem, informar e conscientizar a juventude sobre algo”, conta Roger, relembrando que deste encontro de propósitos surgiram também a produção de eventos culturais nas periferias da zona sul.

“Começamos a fazer eventos de Hardcore e Emocore pela sul e também, encontros de sarau na laje de casa. Durante uns oito anos propagamos a Cultura Underground através de manifestações artísticas e impressas. Eles que me falaram sobre a arte do fanzine, e como eu já fazia uns manifestos recortado e xerocado, isso como “shape” ideal na vida”, compartilha o educador.

Desde pequeno o artista sempre foi envolvido com questões culturais e sociais da região onde mora. Roger conta que possui 13 anos de carteira assinada, mas vivia sem dinheiro e angustiado. Largou o trabalho de ajudante de serviços gerais e auxiliar de serviços diversos, e foi pensar em alternativas de desenvolvimento cultural e educacional para a comunidade. Hoje considera que não trabalha, e sim que vive em missão.

“O fanzine bem no estilo ‘faça você mesmo’, veio como uma importante ferramenta que potencializa a comunicação offline e multiplica essa informação para as pessoas que atuo, as que vivem entre becos e vielas. Os últimos cinco anos, em vez de fazer fanzine sozinho como maioria dos fanzineiros fazem, comecei a proporcionar vivências de recorte, montagem e colagem em zines de uma forma simples e linguagem popular”, conta.

“Para minha surpresa, o fanzine soou como arma de expressão e transformação para muitas crianças, adolescentes e jovens da periferia.”

Os fanzines tem a intenção de informar algo que está para acontecer, ou trazer a realidade de algo que não é transmitido pela mídia tradicional. Muitas das produções do zinester, termo mundialmente conhecido para definir quem produz e propaga a arte do fanzine, têm sido construídas de forma coletiva e colaborativa.

“Isso na verdade, é visto como caso raro, pois a grande maioria do fanzineiros do Brasil atua de forma individual e introspectiva. Os objetivos e propósitos na produção coletiva, têm sido de atuar no inconsciente dos participantes sobre determinado assunto ou tema. Os encontros de Crias de Zines também têm o propósito de dar voz e protagonismo aqueles que são como invisíveis na sociedade”, relata o educador.

Oficina de fanzine realizada com crianças da zona sul de São Paulo.

Para Roger, o fanzine é uma arte introspectiva e intimista. Os temas são exclusivos de cada ‘zineiro’, reflete seu momento e olhar para o mundo em sua volta. Nas ações culturais e sociais nas quais ele leva os encontros “Fanzinando Idéias”, oficina de fanzines que ele desenvolveu uma metodologia própria, o educador percebe a necessidade local e qual a informação crítica será analisada pelos participantes.

“Geralmente sou convidado por lideranças, instituições e coletivos para atuar através de temas sazonais. Maio: família, abuso e tráfico infantil, julho: Estatuto da Criança e Adolescente, novembro: empoderamento negro, etc. Ou temas urgentes e necessários para determinado público ou período”, explica.

O artista e educador social conta que a cada ano tem que se readaptar ao contexto periférico. “Analisar as mudanças da tendência jovem, suas músicas, gírias, points, e picos que a galera frequenta. O diálogo pelo fanzine acontece por uma linguagem simples e direta ao dia-a-dia de cada público que visitamos, seja do reggae, do funk, do rock, do sarau, do samba ao rap, do futebol, das minas e monas, da luta por moradia, políticas públicas ou aquela praça com índice de drogadição”, conta Roger, que hoje tem em média 60 temas diferentes de fanzine no acervo do Sarau Comics Edition, coletivo cultural no qual o educador desenvolve suas ações de arte-educação.

Fanzine como instrumento de formação cultural e política 

O zineiro considera que o fanzine também funciona como ferramenta de fortalecimento de lutas, e oferece possibilidades de mudanças. “Você nunca mais será o mesmo depois que fazer um fanzine. Eu mesmo sou prova viva disso; sem o fanzine na minha vida, talvez nunca tivesse acessado os lugares e as pessoas que conheci. O fanzine por si só, já é uma arma de revolução, tipo a voz das minorias. Juntar a fome com a vontade de comer, ou seja, saber que você pode utilizar revista, recorte, letra, desenho, poesia, rima e juntar tudo num pedaço de papel. Falar o que bem querer da forma que quiser sobre determinado assunto”.

“Ser o próprio escritor e ilustrador de uma publicação independente, isso é transformador!” 

Anos atrás, Roger ajudava na organização de eventos de música, teatro e dança, para expor seus fanzines, mas percebia que as pessoas em sua maioria não interagiam.

“Frequentei encontros de Animes, Expo Fanzines, Fanzinadas e Feiras de Publicações, contudo, não me sentia à vontade. Então, fui pras ruas, para o gueto. Para lugares que não existia ‘Faneditor’ e nunca ouviram falar de fanzines. Troca de fanzines, mangueio e escambos. Com o tempo, passei ensinar, porque quem ensina aprende mais. Se quer ganhar dinheiro não vire fanzineiro! Fanzine está mais ligado á valores do que a preços. A circulação acontece de diversas maneiras e te leva para muitos lugares”, compartilha.

Continuar se conectando com outras pessoas através da sua arte no período da pandemia têm sido reconfortante para o artista, que conta como tem sido essa relação nesse momento onde grande parte das conexões tem se dado de forma online.

“Interessante é que boa parte das pessoas que conecta comigo e com as artes em fanzines virtualmente, nunca tiveram em mãos um artefato impresso do Sarau e talvez de outros fanzines. E boa parte das pessoas que levo a vivência de fazer um zine, não tem acesso à internet, ou acessam de vez em outra. Como dialogar com os dois públicos? Nasce assim, uma nova forma de fanzinar, comunicar uma mensagem. Despertar ao público virtual a sensação do que é fanzine”, analisa Roger.

Atividade realizada em escola pública com alunos adolescentes da periferias de São Paulo.

Quase todos os fanzines do educador social estão digitalizados e salvos em mídia externa. Roger pensa em possibilidades para a sua missão de vida com os zines e para facilitar e expandir sua mensagem e arte para mais pessoas: curtas de vídeo, preparar oficinas EAD, abrir Art Labs de fanzines, editora e livraria, além de desenhar uma primeira exposição.

“Tendo certa noção das tendências tecnológicas e das novas formas de comunicar. Sabendo que o YouTube será o novo Facebook da galera, três ou quatro anos atrás comecei a investir num canal para fanzines como forma de expressão, pois os vídeos que ensinam fazer fanzine são de youtubers e não fanzineiros. Com o boom da pandemia, muitos zineiros migraram para as plataformas e isso fez mover as águas que eu já estava nadando. Abriu um leque para novas conexões”.

Primeira Copa América de Fanzine 

Exposição de fanzines na PerifaCon, a primeira Comic Con da Periferia. (Foto: Anders Rinaldi)

Em 2020, o artista representou o Brasil na primeira Copa América de Fanzine que aconteceu de forma online durante os meses de junho e julho. “Foi surreal! Confesso que ainda não estou acreditando, sério mesmo. Além das Feiras de Fanzines que são uma verdadeira competição de vendas, nunca participei de nada igual”, conta.

Foi através de uma mensagem da revista El Otro Parche de Bogotá, informando que iriam organizar uma Copa América de Fanzines, que o zineiro recebeu o convite para participar da competição junto com outros artistas da América Latina. Roger convidou outros zineiros brasileiros, e após uma competição entre os artistas do Brasil, passou a disputar com participantes de outros países, que antes também realizaram o mesmo processo de classificação em cada país.

“Em Junho, começou a disputa de fanzine X fanzine de cada país, com voto virtual, quem tivesse maior número ganhava. No andar da carruagem, com picos de ansiedades ora dificuldades, em fazer a galera votar até mesmo aquela que se diz fanzineira, chegamos ao 4° lugar. O mais interessante, que quem patrocinou a competição foi o Consulado do Brasil em Bucaramanga na Colômbia. Recebi mensagens do Cônsul dizendo que todos do Consulado estavam votando e torcendo para o Brasil. Achei isso formidável.”

A possibilidade de uma segunda edição do torneio á algo que está no radar de Roger. “Tivemos uma Live com os quatro finalistas da Copa, junto com a correspondente da Organização e também do Consulado. A Intenção é preparar a 2° Copa América del Fanzines e pensar num Centro Latino-Americano do Fanzine, algo assim do tipo. Ah! O prêmio final será a cópias de todos os Fanzines participantes da Copa; Chile, Bolívia, Peru, Colômbia, Argentina, Venezuela, entre outros, que, para um bom fanzineiro é maravilhoso demais”.

Para participar da competição, o zineiro escolheu o fanzine “Voz que Clama No deserto”, que já passou de mil impressões e está em português brasileiro e espanhol. Ao longo da competição, ele descobriu que seria o mesmo fanzine até o final, e não um por competição. “Senão, teria enviado logo, o top das galáxias! Entretanto este fanzine de bolso “Voz que Clama No deserto” tem um quê de profético”.

O zineiro conta da importância do zine escolhido para a Copa: “Ele foi criado depois de uma grande ruptura entre os integrantes do Sarau Comics. Este foi o primeiro Zine que fiz quando parti em carreira solo. Quando entrei na Acepusp – Associação Cultural de Educadores e Pesquisadores da Universidade de São Paulo -, quando entendi o que é Direita e Esquerda. Ele é a ponte da minha travessia do fanzine como forma de expressão para o fanzine de arte como forma de protesto”, compartilha.

Entre as oficinas de recorte, montagem e colagem que realiza por diversos cantos da cidade, até as novas descobertas que a arte do fanzine trouxe para Roger, a participação na Copa América foi mais uma oportunidade de troca, crescimento e aprendizado.

“Trouxe aquela alegria de mostrar a garra do Brasil, aquela determinação que todo brasileiro tem em competir. O que faltou mesmo foi envolvimento da galera. De acreditar e dá um voto de valor. Sou muito grato por toda esta vivência, mais uma que o fanzine pregou em mim”, finaliza o artista que segue tendo a arte como sua missão.

Morador do Jardim Mazza transforma linhas de ônibus em cenário de jogos realistas nas periferias

0

Atualmente, o canal Matrix Games tem mais de 260 mil seguidores e se prepara para atingir a marca de 50 milhões de visualizações. As lives que mais chamam atenção dos seguidores retratam a simulação de linhas de ônibus nas periferias da zona sul de São Paulo.

Pilotando um ônibus Terminal Jardim Ângela, p youtuber pega passageiros em ponto da M´Boi Mirim. (Foto: Reprodução OMSI)
Enquanto o youtuber Phillip Barbosa, conhecido como Matrix nas redes sociais, inicia mais uma live manobrando um ônibus 737A-10, que faz a linha Terminal Jardim Ângela – Terminal Santo Amaro, seguidores começam a se reconhecer no bairro e nos locais por onde o simulador passa. Com uma console formado por três monitores, volante, câmbio para troca de marchas e pedais para frear e acelerar, ele engaja as pessoas a olhar de maneira diferente para o bairro e para o transporte público, por meio de jogos que transmitem realismo.

Morador do Jardim Mazza, um dos bairros que fazem parte do distrito do Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo, Matrix transformou sua outra paixão, por games, presente na sua vida desde a adolescência, em uma forma de homenagear as linhas de ônibus do bairro onde mora, por meio de simuladores que apresentam uma riqueza de detalhes para dirigir coletivos.

Enquanto manobra o ônibus, Matrix faz os ajustes prepara iniciar a live em seu centro de controle.
“A minha paixão por ônibus surgiu desde criança. Eu sempre fui apaixonado por ônibus. Sempre brincava com caixinhas de pasta de dente simulando como se fosse um ônibus”, lembra Phillip Barbosa, youtuber gamer conhecido nas redes sociais como Matrix.

Sempre dedicado a alcançar seus objetivos, o youtuber conta que na fase da pré-adolescência era muito difícil economizar dinheiro para comprar um computador, mas quando essa oportunidade surgiu, ele não exitou em comprar.

Essa memória desperta no gamer a lembrança sobre os primeiros passos em jogar em simuladores. “Foi dai que conheci os jogos de caminhão, e no decorrer dos dias começou a aparecer jogos de ônibus e eu não parei mais, a minha paixão por ônibus estava ficando mais nítida para mim”. 

Nesta live, que faz um trajeto no simulador passando pela estrada do M’boi Mirim, o canal registrou um grande volume de interações.

A partir deste momento, Barbosa passou a ficar mais próximo do universo dos jogos simuladores. Um dos marcos desta época foi a compra do Euro Truck Simulator 2, jogo que oferece suporte para ônibus também. “Eu sempre fui fanático pelos simuladores, gosto de simular muito a realidade trazendo mais realismo possível”, afirma.

Com o simulador, o gamer consegue escolher qual local de saída, como bairro ou terminal de transporte público, pegar passageiros na plataforma, escolher o limite de pessoas para embarcar nos ônibus e a quantidade de carros nas ruas, fazer a planilha de rota e escolher o ônibus que deseja jogar. O jogo ainda oferece outras configurações que podem ser descobertas por meio de tutoriais, assim como Matrix fez.

“Aprendo muito através de tutoriais que temos na plataforma, e claro eu também já fiz tutorial ensinando a galera de como baixar e jogar nos computadores e celulares. No momento, os jogos que trago para o canal seria o Euro Truck Simulator 2, OMSI 2, Proton Bus Simulator (Android e PC) e o Fernbus Coach Simulator”, diz.

Após passar um bom tempo estudando como customizar e pilotar diferentes modelos de ônibus, o youtuber passou a usar o seu canal para realizar lançamentos de modelos exclusivos de coletivos, fazendo inclusive parceria com marcas de turismo intermunicipal e interestadual.

Nas lives realizadas pelo Matrix, linhas de ônibus do Terminal Jardim Ângela e Terminal Santo Amaro podem ser facilmente reconhecidos pelo público. Segundo ele, esse é um dos atrativos que engaja os seus seguidores a acompanhar o seu trabalho.

O simulador permite que o motorista pare em pontos de ônibus e defina a quantidade de passageiros que podem subir.

“Recentemente um amigo meu fez o bairro onde eu moro, chamado de Jardim Mazza, que fica paralelo com a estrada do M’boi Mirim. O nome do bairro dentro do jogo ficou Jardim Matrix, saindo justamente da rua onde eu moro e fazendo um percurso que existe na vida real, indo até o Terminal Santo Amaro. A sensação foi muito boa e fiquei muito feliz por ver isso dentro de um jogo”, relata o Youtuber.

Para Barbosa, morar na periferia e poder produzir conteúdos como gamer traz um diferencial muito grande, pelo fato dele ajudar outras pessoas, por meio do seu trabalho, que também não conhecia esse mundo dos games.

“Para uma pessoa que mora na periferia hoje em dia é muito difícil poder sair e ir se divertir em shopping e jogar naqueles fliperamas. A grande maioria dos módulos que disponibilizamos é gratuita, justamente para beneficiar as pessoas mais carentes da nossa comunidade”

argumenta o youtuber, ressaltando que a grande parte do seu público também são moradores das periferias.

Há seis anos, Barbosa está com o seu canal ativo no You Tube e sua página no Facebook. Ele conta que saiu recentemente do trabalho, que era bastante corrido por seu um supermercado, e que a partir deste momento, passou a se dedicar ainda mais ao universo dos games, atuando apenas como youtuber.

O canal Matrix Games surgiu em maio de 2014 sem nenhuma pretensão de ser uma referência no universo gamer. Segundo o Youtuber, era apenas um passatempo. Inspirado pelo youtuber Dudu Moura, Barbosa começou a gravar game plays, séries e tutoriais. “A partir daí não parei mais, o sonho tomou forma, ganhou proporções e hoje, conta com mais de 260 mil de inscritos. Estamos provando que com empenho e amor ao que faz, o resultado é sempre o mesmo: o sucesso”.

Atualmente, o canal Matrix Games se prepara para atingir a marca de 50 milhões de visualizações. O que antes era diversão, hoje acabou se tornando um instrumento de trabalho para o morador do Jardim Mazza, território que virou parte do jogo, passando a ter a linha de ônibus Jardim Matrix.

Direitos invisíveis: clínica de psicanálise democratiza acesso à saúde mental nas periferias

0

Quem cuida da saúde mental dos profissionais que se dedicam diariamente ao atendimento da população periférica em equipamentos públicos de saúde? Nesta reportagem, vamos conhecer a Clínica Periférica de Psicanálise, iniciativa que vem trabalhando para oferecer um espaço de escuta e acolhimento às pessoas que foram impactadas psicologicamente pela pandemia de covid-19, o novo coronavírus.

Os agentes de saúde e assistência social tiveram suas rotinas de trabalho e vida pessoal transformadas com o avanço da pandemia de coronavírus nas periferias de São Paulo. Indispensáveis para o atendimento à população periférica, estes profissionais representam um dos grupos mais vulneráveis diante das consequências emocionais e psicológicas causadas pelas más condições de trabalho presente nos serviços públicos de saúde, como hospitais, postos de saúde e unidades básicas de atendimento.

De acordo com dados divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde, no final do mês de junho de 2020, mais de quatro mil agentes de saúde estavam afastados das suas funções trabalhistas com sintomas de covid-19. Desses profissionais, mais de dois mil foram confirmados com coronavírus e a outra metade apresentou síndrome gripal. Ao todo, 28 vieram a óbito.

Após a divulgação deste relatório, publicado em 17 de junho de 2020, e com a implantação do plano São Paulo, a estratégia do Governo do Estado para vencer a pandemia de coronavírus, a Secretaria Municipal de Saúde não revelou mais em seu site o número oficial de profissionais afastados do ambiente de trabalho.

Além das más condições de trabalho enfrentadas nos espaços públicos de saúde, os agentes de saúde foram surpreendidos pelo presidente Jair Bolsonaro, que vetou nesta semana o Projeto de Lei 1.826/2020, que garantia uma indenização aos profissionais que se tornaram incapacitados para o trabalho em decorrência da covid-19.

Atuante nas periferias da zona leste, a redutora de danos Márcia Lysllane Santos, 28, moradora de São Mateus, que começou sua carreira saindo de Alagoas e vindo estudar psicologia em São Paulo, faz parte do grupo de profissionais que estão sendo afetados psicologicamente pela pandemia. Atualmente, ela trabalha no CAPS AD III São Mateus, realizando ações de promoção à saúde emocional juntos aos moradores do território.

Ela conta que antes de desempenhar a sua função, foi necessário entender a estrutura do Estado para ter um senso crítico sobre esse campo de atuação. “Eu precisei passar por um processo muito longo de conscientização, compreender o Estado, as políticas públicas, o sistema que nos administra, tive que aprender a ler, escrever, construir um senso crítico”.

Ultimamente, Santos tem se assustado com a rotina de trabalho e os impactos que isso tem gerado na sua vida. “É assustador! Em muitos momentos só me resta chorar diante do medo que me consome em relação ao futuro. Ando extremamente preocupada”.

Ela ressalta que deveria ser prioridade às pessoas que estão na linha de frente ter o acompanhamento de um psicólogo. “É um turbilhão de informações, angústias trazida pela comunidade que acabamos internalizando e nós angustiando com tamanho sofrimento social. Muitas vezes, o sentimento de impotência toma conta e nos abala e acaba interferindo na nossa atuação”.

Diante dos últimos acontecimentos vivenciados pela psicóloga, ela afirma que uma mulher preta e nordestina, como ela não tem o tempo para sonhar. “Uma mulher, negra, nordestina, mãe solo de uma criança de oito anos, não tem tempo de pensar ou sonhar”.

Para a redutora de danos, ficar desde o começo da quarentena longe de seu filho para protegê-lo, é a situação de muitas mães e pais que estão se arriscando pelo território agora. “Sou mãe solteira, moro apenas eu e o meu filho, e ele no momento não se encontra comigo. No início de todo esse caos eu tomei a decisão de deixá-lo com o pai em Minas Gerais para protegê-lo, pois o medo de estar com o Covid-19 e transmitir para ele era muito grandes. Eu sinto muita saudade do meu filho, passamos muitas dificuldades, mas sempre juntos”, afirma ela.

“É possível desmistificar o cuidado com a saúde mental” 

Atentos a esse cenário, no lado leste da cidade de São Paulo, nasce uma parceria entre o Movimento Cultural Ermelino Matarazzo e a Clínica Psicanálise Periférica, com o projeto de atendimento online voltado a profissionais da saúde e assistência social das periferias que não conseguem arcar com os custos para realização de terapias.

Numa condição semelhante a da estudante de psicologia, Diego William de Faria Rennó, 34, nascido na cidade de Cruzeiro, interior de São Paulo, vive atualmente no Jabaquara, bairro da zona sul. Ele é um dos colaboradores da ação que desenvolveu o coletivo da Clínica Psicanálise Periférica, além disso, ele trabalha como psicólogo na região central da Luz, na área de proteção especial da Secretaria de Assistência Social, em um Centro de Acolhida Especial para idosos.

Ele é mais um profissional na linha de frente de atendimento a pessoas em situação de vulnerabilidade social que foram afetadas pela pandemia. “É difícil estar na linha de frente, apesar de ser psicólogo, uma profissão da saúde. Eu atuo na Assistência Social, onde difere muito a atuação e não se tem os mesmos holofotes e investimentos que a área da saúde tem. Então é difícil atuar com limitação EPI´s, e mais do que isso, lidar com a os medos e as expectativas de 100 idosos”.

Rennó conta que já passam de 10 pessoas infectadas onde ele trabalha. “Em meu local de trabalho tivemos 11 casos confirmados de usuários, além de três profissionais. Eu não fui contaminado, mas lidar com o risco de ser contaminado e a pressão do contágio é sufocante”.

Diante desta situação que afeta toda uma categoria de agentes de saúde, ele ressalta que não há muita preocupação do Estado sobre a condição da saúde mental dos profissionais que trabalham na linha de frente de atendimento da população mais afetada pela pandemia. 

“Não há cuidado por parte do poder público, a abertura do comércio, a volta das atividades diárias baseadas em absolutamente nada é uma prova do descaso com os profissionais da linha de frente, com os que perderam sua vida”.

O psicólogo desconhece programas do poder público para atender os profissionais, mas ressalta que a sociedade civil está mais atenta a esse cenário. “Do poder público não tenho conhecimento não, o que existe são ações de grupos de apoio da sociedade civil. Eu participo de um coletivo de psicanálise que oferece atendimento a população periférica, além de profissionais da saúde, educação e assistência social”, conta ele.

Ele enfatiza que ações e projetos como a Clínica de Psicanálise Periférica tem a importante função de desmistificar a visão que se tem sobre o cuidado mental. “É de extrema importância projetos desse cunho, ações como estás levam ao território propostas que visam descolonizar a visão de saúde centrada no médico. E mostrar que é possível desmistificar o cuidado com a saúde mental”.

Para a articuladora cultural Yasmin de Souza, que atua na Ocupação Mateus Santos, em Ermelino Matarazzo, essa parceria com a clínica surge num momento de grande importância para o território. “Várias pessoas já compartilharam e até antes de eu postar as pessoas já vieram falar comigo, então eu já fui encaminhando pessoas antes mesmo do flyer e da divulgação está em curso. Então a necessidade foi evidente, não só do território de Ermelino, mas de outras pessoas que se interessaram e foi virando uma rede de apoio”.

A articuladora cultural conclui que esta parceria também promove uma mudança de cultura entre os moradores. “O que muda no território é principalmente o olhar da comunidade em si. Eu falo no geral, enquanto periferia, que a gente não precisa que o tratamento psicológico é banal, enfim essa contextualização de que as pessoas que se trata psicologicamente são doentes, e que esse tratamento é algo elitizado e burguês que de fato é, então quando se acessa esse lugar acho que as pessoas começam a ter um olhar menos preconceituoso, do que foi implantado pra gente como tratamento”, afirma.

O psicanalista João Luis Sales Sousa, 24, morador do Jardim São Carlos, na zona leste, conta que o projeto nasceu com o objetivo de democratizar o acesso à saúde mental nos territórios periféricos. “A Clínica Periférica de Psicanálise nasce a partir de um ato político que perpassa desde o campo psicanalítico até o campo social. As subversões que são propostas pelo coletivo, como por exemplo, o atendimento em um espaço público e a gratuidade do serviço, nos endereça para o objetivo da democratização da clínica psicanalítica e a ampliação do acesso desse serviço de escuta”.

Ele acredita que o projeto rompe com paradigmas tradicionais. “Visto que estamos quebrando com diversas práticas tradicionais da psicanálise, como pagamento em dinheiro e o setting, permanecemos com um posicionamento crítico a outras práticas e teorias, principalmente aquelas que não englobam a população que atendemos”, coloca. 

“A psicanálise, então, necessita de um desenvolvimento teórico que rompa com certos aspectos coloniais e elitistas, que tenha em vista noções sociais, que busque englobar a sociedade brasileira atual, com sua diversidade e questões culturais”.

explica o psicanalista.

Sales também pontua a importância da psicanálise em um momento como o que estamos vivendo. 

“A psicanálise nestes momentos de pandemia precisa tomar certo cuidado para não cair em uma posição de generalização dos fatos sociais e consequentemente, ter uma postura de saber absoluto sobre os sujeitos e a sociedade, tendo isso em vista, o papel da psicanálise é a partir de um serviço de escuta para o sofrimento psíquico que talvez possa estar latente em um momento de crise como o que estamos vivenciando”, reflete. 

Ele ainda coloca que a situação em cada sujeito está inserida, reflete diretamente nas desigualdades e sofrimento de cada individuo. “Já que o coletivo tem o intuito de fazer o atendimento a uma determinada população, que está em vulnerabilidade social, uma população periférica, a situação de pandemia pode intensificar as desigualdades sociais e o sofrimento do sujeito”, diz.

“Podemos afirmar que toda uma dinâmica relacional é afetada no território a partir dessa mudança de lógica, onde os sujeitos que ali residem, possuem a abertura e principalmente o direito de ocupar tantos os espaços físicos quanto os espaços simbólicos de uma análise, sem necessariamente precisar pagar por isso. Além disso, quando a psicanálise propõe se deslocar de um lugar elitista para adentrar nas periferias brasileiras, ela abre um espaço de escuta e consequemente de um cuidado psíquico para um recorte da população que não tem acesso a esse tipo de serviço”.

Continua falando sobre a importância para o território e o que muda com o acesso de um atendimento gratuito nos bairros periféricos.

O psicanalista finaliza ressaltando a importância de atender profissionais da saúde e assistência social. “possibilitar um espaço de escuta da angústia de profissionais que atuam na linha de frente – proveniente deste período de pandemia – assim como de sujeitos periféricos ainda mais marginalizados em meio às crises nos sistemas econômicos, de saúde e educação”. 

Para ele, trata-se da tentativa de minimizar os impactos de uma opressão imposta pelo sistema capitalista e “reproduzida por políticas governamentais de representantes ditos neoliberais, que buscam acentuar uma individuação dos sujeitos, partindo da premissa meritocracia. Colando a grande massa que são seus principais agentes de manutenção social na condição de explorados em detrimento da sua própria saúde biológica e psíquica”, finaliza.

Gravidez online: encontros virtuais dão apoio emocional às mães da quebrada

0
Você já parou para pensar como a pandemia está afetando psicologicamente e fisicamente a vida das gestantes que moram nas periferias de São Paulo? Essa questão foi um ponto disparador que motivou a parteira Ciléia Biaggioli, 42, moradora de Parelheiros, zona sul da cidade, a adotar uma plataforma digital de reunião como um ambiente de troca de conhecimento para difundir a sabedoria ancestral da gestação e do parto humanizado.
Pelo fato de estar impedida de realizar o atendimento presencial às gestantes que residem em territórios periféricos, essa foi uma das soluções encontradas, quando um grupo de doulas e parteiras que fazem parte do coletivo Sopro de Vida, onde Ciléia atua como integrante, começaram a pensar em formas de promover o bem estar físico e emocional de futuras mamães durante a pandemia de covid-19, o novo coronavírus.
A parteira explica que a essência do parto humanizado está no resgate de uma tradição perdida ao longo das gerações. “É o resgate do que era antes né, de um rito de celebração, de um momento de passagem, de um nascimento de uma mãe, de um pai, de uma criança, de uma nova família”, define. Para Ciléia, a medicina ocidental produz pouco apoio emocional e físico para as gestantes, reduzindo a mulher apenas a um corpo que dá a luz. “Você vai para um hospital parir com pessoas completamente desconhecidas, que faz um toque em você a todo o momento, sem te perguntar se você quer e se pode né?”, questiona ela.
Ela complementa o ponto chave sobre o questionamento: “por que o médico sempre sabe mais? A gente tem esse lugar de colocar um médico no endeusamento, em um lugar que é muito negativo pra gente, como se ele soubesse da gente mais do que a gente mesmo”.
E busca de espalhar um pensamento crítico sobre essa cultura, todas as sextas-feiras às 17h, ela promove encontros virtuais, que visam acolher e informar mães gestantes ou na condição de pós parto. Além da organização do coletivo Sopro de Vida, cada encontro conta com a colaboração de outras iniciativas e profissionais do parto humanizado, como o Mama Ekos e a doula Esther Marcondes. Fruto deste trabalho de acompanhamento semanal das gestantes, as organizadoras já pensaram em maneiras de ter um acompanhamento diário das participantes. “A gente tem um grupo do whatsapp que pode ser divulgado e é aberto, e a gente deixa o link para essas gestantes que quiserem entrar. Têm gestantes, por exemplo, que tem muitas dificuldades de acesso à internet, essas gestantes nem sempre conseguem entrar na roda virtual, mas elas podem tirar as dúvidas no grupo de WhatsApp, então a gente deixou esse momento bem aberto para poder fazer esses acolhimentos”, conta Ciléia. A qualidade dos serviços e da distribuição da internet nas periferias é um tema bastante comum que já discutimos em outras publicações no Quebrada Tech, mas no caso das gestantes, essa condição de infraestrutura gera outros impactos para além do acesso. “A periferia não tem internet direito. Entende? Então mesmo a roda virtual é muito ruim”, enfatiza a parteira, indignada com a falta de recursos que a periferia tem para os moradores e articuladores do território, que não conseguem fazer seu trabalho pela falta de acesso à internet, precisando criar novas maneiras de comunicação, para lidar com as ausências que a parteira citou. Ela acredita que durante a pandemia, o acesso à internet e a desigualdade dos direitos digitais dificultou ainda mais o simples ato de tirar uma dúvida. “Para mulheres que quiserem fazer perguntas a gente deixou nosso telefone e o zap na página, porque é muito difícil né”. Ao justificar o por que a rede entendeu que a comunicação por WhatsApp seria a mais eficiente em um momento de urgência Ciléia relata: “às vezes demora meia hora para chegar um WhatsApp, mas ele vai chegar, entendeu, aí é diferente de uma conversa né, de uma videochamada, se pergunta uma coisa tem que responder ali na hora não tem outra saída”. Por conta da má qualidade da internet no distrito de Parelheiros, Ciléia conta que durante as rodas e seus trabalhos que exigem um grande tráfego de dados, ela e sua família vão para casa da sogra, localizado no Cambuci bairro situado na região central do município de São Paulo, para conseguir fazer seus trabalhos. “Por exemplo, a internet hoje está impossível, e a gente está fazendo um festival online de inverno de Parelheiros. A família inteira está indo pro Cambuci porque não tem o que ser feito, a internet cai toda hora, não funciona. Você não consegue anexar, não consegue fazer as coisas, trabalhamos com edição de vídeo, aí tem que subir pro Youtube, uma coisa que na internet do Cambuci demora dois minutos, lá demora um dia e meio”, compara a parteira.

Tratar as dores

Andréa Martinelli, 26, mora na Vila Marcelo, bairro localizado na periferia da zona sul de São Paulo. Mãe solo, professora, pós-graduada em psicopedagogia, ela é uma das organizadoras do encontro virtual. “Começamos as rodas com a equipe de parteira, aprendiz de parteira e doulas. Aí trazemos as gestantes. Elas também convidam as amigas não só gestantes, mas pós-parto também, que nesse período de isolamento social também sofrem com falta de apoio, por falta de contato humano”, explica Andréa. Ela é responsável por mobilizar mulheres das periferias para a roda, pois a equipe percebe que o parto humanizado ainda é uma informação distante para gestantes periféricas. “A gente convida e muitas vezes elas não tem tempo sabe, esse tempo de poder parar mesmo, que é uma vez por semana, uma hora e meia ter esse tempo para ter uma troca”. Para conseguir acessar essas mulheres grávidas, as organizadoras estão em busca de divulgar os encontros virtuais para gestantes que frequentam unidades básicas de saúde nos territórios. “A gente está tentando levar essa divulgação pra a UBS, pra eles passarem para as gestantes, para elas terem acesso a esse conteúdo, de saber que existem as rodas”, afirma Martinelli. Assim como à internet, a telemedicina ainda não chegou para todas as mulheres gestantes da periferia. Sabendo disso, as organizadoras da roda virtual utilizam de uma abordagem para tratar suas dores emocionais e físicas da forma mais humana e natural possível, através da escuta. “A gente busca sempre usar formas medicinais né, do uso de ervas naturais, para conseguir tratar algum tipo de enjôo, ou outro fator que a gestante tá sentido, e também tenta trabalhar a parte emocional, então antes disso a gente conversa: ‘aconteceu tal coisa com você? passou alguma coisa essa semana? ‘ – e a gente vai buscando essas questões emocionais que levaram essa mulher a sentir”. Martinelli relembra sobre a importância dessa roda virtual, que carrega uma grande importância de desconstruir todos os conceitos pré-estabelecidos que elas aprenderam sobre gestação que não lhe fazem bem. “Quando a gente faz esse acompanhamento para gestantes e preparamos elas pro parto, a gente ajuda a diminuir a chance dela sofrer violência obstétrica, delas serem enganadas nos hospitais, e a gente também mostra para ela as opções que elas têm, se é uma gestação saudável, ela pode parir em uma casa de parto, ela pode parir em casa com parteira, enfim tem outras opções”, finaliza.

“É mais um grupo de amigas que apoiam umas às outras”

Mãe da Manuela de três meses, Suzane Mayumi, 26, moradora de Parelheiros, conheceu a roda virtual por meio de Andréa Matinneli, uma das organizadoras. Durante sua gestação, ela foi acompanhada pela Andrea e Ciléia até seu bebê nascer. Hoje, ela acompanha a roda para falar sobre sua experiência e como está sendo a segunda maternidade. “É mais um grupo de amigas que apoiam umas às outras”, define Suzane ao contar o que significa para ela a experiência do encontro virtual de gestantes. Consciente do impacto do grupo de apoio na sua gestão, ela faz um relato da experiência: “consegui tirar minhas dúvidas e obtive mais conhecimento na roda, pois me alertaram como não ter o abuso no parto, como que seria o trabalho de parto, o que fazer nas situações de trabalho de parto e amamentação também, para pegar de maneira correta e não machucar a mama”, conta a moradora. Mayumi entende que esse afastamento social no momento de pandemia faz com que as mulheres estejam mais propensas a depressão pós-parto. “Eu digo que se não fosse as dicas que eu tive, poderia não ter a mesma que tive maravilhosa que tive dessa gestação, pois na primeira gestação eu estava totalmente leiga no assunto”. A moradora de Parelheiros teve sua primeira filha com 19 anos e partir desta vivência, ela aponta que suas maiores dificuldades naquela época foram a falta de informação, que a levou a ter experiências difíceis na sua primeira gestação. Atualmente, a moradora atua na roda contando um pouco sobre suas experiências e apoiando outras mulheres que estão passando pelo período de gestação. “Indiquei que elas doassem o leite materno, visto que nessa pandemia o banco de leite caiu muito e precisam da doação para manter o estoque e poder ter leite para os recém nascidos”. No final da entrevista a parteira Ciléia faz uma analogia com esse momento atual e o processo de gestação. “Eu brinco que a quarentena ela é um grande ‘puerpério’, esse momento da lua negra, o momento que o parto aconteceu e a gente entra então nessa introspecção, esse momento de amamentação que é um momento muito difícil, que a sociedade fala pouco e a gente tão pouco compreende”.

Geolocalização: aplicativo conecta moradores com ações solidárias nas periferias de SP

0

Através do aplicativo RAH, desenvolvido pela Rede de Apoio Humanitário nas e das Periferias, moradores estão se conectando com ações solidárias em andamento nas ruas próximas de suas casas. Com isso, eles também descobrem formas de apoiar coletivos e movimento sociais que estão organizando doações de suprimentos às famílias afetadas pela pandemia de coronavírus. 

Território da M´Boi Mirim, zona sul de São Paulo. (Foto: Flavinha Lopes)

Criado por meio de metodologias de georreferenciamento de dados, o app RAH, surge como uma resposta da Rede de Apoio Humanitário nas e das Periferias para o enfrentamento das desigualdades sociais que aumentaram em grande escala nas periferias de São Paulo, devido ao avanço da pandemia de coronavírus nos territórios.

Através de um mapa que lista mais de 70 locais que estão espalhados pelas quebradas da cidade, incluindo as regiões norte, sul, leste e oeste, famílias que estão em condições de vulnerabilidade social podem acessar doações de alimentos e produtos sanitários ao se conectar com os pólos mapeados, que são representados por Associações Comunitárias, Templos Religiosos, Organizações Sociais e Coletivos Culturais.

Antes da pandemia, esses pólos de ações socioculturais já tinham a função de combater as desigualdades sociais em seus territórios, mas com a chegada do coronavírus nas periferias, essa missão precisou de atenção redobrada para atender as necessidades dos moradores que foram afetados de diversas maneiras pela crise econômica e política em curso no Brasil.

Reprodução: Mapa do aplicativo RAH, desenvolvido pela Rede de Apoio Humanitário nas e das Periferias

Envolvido no processo de elaboração do aplicativo, o articulador comunitário, Jesus do santos, 35, morador do Parque Edu Chaves, na zona norte de São Paulo, ressalta que a covid-19 só escancarou a realidade de quem vive nas periferias. E que o aplicativo cumpre a missão de unir quem precisa e quem tá batalhando para reduzir os impactos das desigualdades.

“A gente não vai dar conta de tudo e com o aplicativo as pessoas podem ter uma maior mobilidade né, podem se organizar. Isso foi o que nos motivou, o incomodo que despertou na gente”, conta Santos. Percebendo a extensão do problema, ele entendeu que construir uma rede de apoio digital seria a melhor estratégia para unir força de diversos territórios, para captar recursos e distribuir doações para os moradores que estão cadastrados para receber apoio de ações solidárias.

No app RAH, o mapa de georreferenciamento cumpre uma função estratégica nesse momento de distanciamento social. “Quando a gente reforça a ideia, de aproximar o doador da doadora, da receptora do receptor, dos lugares de vulnerabilidade e risco social que temos, a necessidade é justamente disso, de fazer com que as pessoas se tornem cada vez mais autônomas”, explica o articulador comunitário.

Santos acredita que a utilidade do app não se limita a esse momento de pandemia, mas sim, como uma ferramenta com fim público, que pode ser útil na pós-pandemia também. “Essa é uma ferramenta não só para agora, mas uma ferramenta aí para um bom tempo de nossa sociedade”. Pouco esperançoso sobre as melhorias que teremos futuramente, ele entende que o aplicativo ainda precisa passar por melhoras, pois segundo ele, a rede terá que se fortalecer ainda mais, e o aplicativo também. “A ideia é que a gente possa ampliar as campanhas que a rede tem desenvolvido”.

O impacto das doações geolocalizadas

Irani dias, 49, moradora do Jardim Brasil, na periferia da zona norte, é ativista dos direitos humanos, atuante nos territórios de Vila Sabrina, Jardim Brasil, Vila Zilda e Lauzane Paulista. Ela é uma das colaboradoras da ALMEM – Associação de Luta Por Moradia Estrela da Manhã. A organização está cadastrada no app RAH, e foi impactada pelo recebimento de doações nesse período por intermédio do aplicativo.

“No comecinho, talvez pela grande sensibilização, muita gente doou, a gente conseguiu juntar a vakinha online para arrecadar as cestas e tudo mais. Mas eu creio que agora que passou aquela euforia, as pessoas estão relaxando mais, não estão doando tanto quanto no começo”, conta Irani, que percebe que as arrecadações estão diminuindo muito e umas das suas alternativas hoje é a exposição que o aplicativo possibilita, para conseguir se conectar com doadores e manter as doações as famílias atendidas pela organização.

A articuladora até tentou mobilizar doações por uma comunicação fora do ambiente digital, mas ressalta seu descontentamento. “Eu não recebi um quilo de sal sequer”, e complementa que com o app, o pólo conseguiu algumas doações. “Chegou uma doação pra gente, uma doação bem singela, que a moça se mobilizou com as amigas delas para arrecadar coisas para bebês, ai ela viu numa rede para quem doar que era o nosso contato no Jardim Brasil, o mais próximo dela que está na Vila Maria”, afirma Irani, lembrando, que desta doação, a organização recebeu fraldas, leite, absorventes e sabonetes, produtos que foram direcionados para gestantes do bairro.

Irani ressalta que tem muitos moradores no entorno da organização que não conheciam o seu trabalho e que a partir do app, a exposição do pólo de doações alcançou outros lugares, que nem a própria articuladora consegue imaginar. “Essa moça mesmo que está a dois quarteirões da minha casa, e da associação não conhecia nosso trabalho, e através da rede ela conheceu”.

Embora esteja tendo um bom êxito com o apoio do aplicativo, a articuladora comunitária critica esse cenário, onde é preciso construir um mapa de georreferenciamento para expor uma necessidade que deveria ser o centro das atenções da sociedade e do poder público. “A necessidade ela existe, ela é como a violência, você coloca uma lupa nos períodos onde ela está em evidência e depois some, mas ela continua existindo ali”, argumenta Irani.

Inteligência de dados e periferias

Atualmente, a Rede de Apoio Humanitário nas e das Periferias tem um grupo de trabalho focado no desenvolvimento de tecnologias. O desenvolvedor do aplicativo e uns dos articuladores desse grupo é Gilmar Cintra, 31, moradora da Brasilândia, periferias da zona norte de São Paulo. Ele é programador e estudante de Engenharia da Computação na Univesp, Universidade Virtual do Estado de São Paulo.

Cintra diz que a tecnologia como um instrumento para gerar transformação social. E é a partir deste intuito que ele codificou as ideias da rede, estruturou e organizou os dados. A fase de elaboração que o aplicativo passou foi de desenho do protótipo, elaboração de proposta, desenvolvimento e fase de testes. “A gente está trabalhando em outra versão, com melhorias que torne mais fácil também, e tenha mais informações da rede em si”, afirma Cintra.

Segundo o desenvolvedor, umas das suas maiores dificuldades quando estava codificando as ideias da rede foi na captação dos dados. Ele acredita que a periferia tem uma grande defasagem de dados estruturados para se trabalhar. “Aqui na periferia é muito complicado resolver problemas pela simples falta de dados, porque quando você tem os dados, você consegue fazer um mapeamento das coisas e saber onde deve cobrar o poder público, e com a falta desses dados tudo se torna muito mais difícil”, argumenta.

“Quando eu comecei a desenvolver o aplicativo eu queria que a forma da manutenção e de editar as informações fosse de maneira fácil, então eu pensei porque não usar uma planilha online do Google pra fazer isso né, aí eu compartilho a planilha quem tem acesso administrativo para poder editar esses dados e tudo mais”, descreve Cintra, relatando os primeiros processos de elaboração da sua ideia, para encaminhar todos os dados dos pólos que iria estar dentro da plataforma.

Mas para elaborar a forma como os pólos de doações e o receptor iria se encontrar, Cintra montou uma estratégia computacional para reter informações. Ele automatizou uma planilha do Google, que contém informações básicas sobre os pólos, e a partir do endereço de cada pólo ele elaborou o mapa, buscando a longitude a latitude dos locais, fazendo da planilha a maior fonte de informação do aplicativo. “A gente foi melhorando os dados até ter uma base mais sólida, pra gente poder desenvolver o aplicativo e colocar ele no ar”.

Segundo o desenvolvedor, a proposta da solução é ser mais que uma aplicação móvel, mas também uma plataforma que tem a capacidade de explorar uma grande quantidade de dados, para mapear e conectar diversos pólos de São Paulo, através de padrões e relacionamento, detectando um ponto de referência de doações onde todos possam acessar por tecnologias simples.