Projeto transforma WhatsApp em canal de direitos sociais das domésticas

Edição:
Ronaldo Matos

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Como um grupo de WhatsApp está contribuindo com o acesso às informações sobre direitos trabalhistas das empregadas domésticas que vivem nas periferias?

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Selma Sousa, moradora da zona leste de São Paulo usa constantemente o Zap Zap das Domésticas | Foto: Emerson Santos

Atingidas pela crise econômica gerada pela pandemia de coronavírus, as empregadas domésticas perderam postos de trabalho ou tiveram seus salários reduzidos para continuar no emprego. Por trás de trajetórias de vida, se encontra também a figura de mulheres que cuidam do núcleo familiar e convivem com uma série de sonhos que ainda não foram alcançados.

O que é certo e errado na relação entre empregadores e empregadas domésticas? Como esses profissionais acessam informações sobre seus direitos trabalhistas? A partir destas questões, o Quebrada Tech conversou com algumas profissionais que dedicaram parte da sua vida ao ramo de serviços domésticos, para entender como elas estão lidando com as adversidades sobre o consumo de informações confiáveis e úteis neste momento de pandemia.

Há 38 anos trabalhando como empregada doméstica, Selma de Sousa, 52, moradora de Artur Alvim, bairro da zona leste de São Paulo, acompanhou ao longo das últimas quatro décadas o processo de conquistas de direitos trabalhistas, que aos poucos foi dando um pouco mais de segurança para uma categoria de profissionais que em sua maioria é representada pela figura feminina de moradoras das periferias.

“A gente não tinha nada, a gente não tinha benefício nenhum, a única coisa que a gente tinha era carteira registrada se o patrão quisesse, e o décimo terceiro”, conta Selma, relembrando um passado recente sobre conquistas de direitos, que antes eram desconhecidos ou faziam parte de um sonho distante entre as empregadas domésticas.

Para Selma, além de direitos trabalhistas, as domésticas ainda precisam de mudanças sociais e mais valorização. “Eu acho que falta pra gente em primeiro lugar mais respeito. Respeito que a maioria das pessoas não tem, eu falo dos colarinhos brancos, dos políticos sabe, que eles sempre colocam a gente lá embaixo, sendo que sem a gente eles não são nada, porque não sabem fritar um ovo”, argumenta, demonstrando o sentimento de ter uma profissão que ainda sofre uma enorme desvalorização.

Foi a partir destas inquietações que a moradora de Artur Alvim descobriu o Zap Zap das Domésticas, um grupo no aplicativo de mensagens instantâneas, que tira dúvidas sobre direitos trabalhistas das empregadas domésticas de diversos territórios do Brasil. “Eu vi lá e cliquei no link, entrei e gostei”, conta Selma.

O primeiro contato com o grupo de WhatsApp ocorreu quando ela estava navegando pela timeline do Facebook. “São pessoas maravilhosas, você tem perguntas e elas têm as respostas, então pra mim foi gratificante”, diz Sousa, relatando o contentamento de descobrir no aplicativo uma rede de apoio.

Selma ressalta que é importante existir direitos, mas para que eles sejam válidos é necessário compreendê-los para poder questioná-los. “Pra você questionar, você tem que ter a certeza do que você está questionando, não adianta eu questionar uma coisa no meu trabalho com meus patrões se eu não tenho certeza do que eu estou questionando pra eles né?”, questiona ela, enfatizando que hoje o meio de informação mais acessível se tornou o grupo do WhatsApp.

Uma das dúvidas relatadas pela doméstica foi sobre a quantidade de horas trabalhadas por dia. “Eu tinha dúvida se era oito horas com horário de almoço, ou se com o horário de almoço era nove horas, então eu tinha duvida disso”, conta Sousa, que depois de tirar suas duvidas no grupo, foi conversar com seus patrões e estabelecer seus horários para organizar suas tarefas e os horários de almoço, completando a jornada de oito horas diárias.

Durante a pandemia, Selma ficou afastada por quase três meses e retornou as atividades profissionais no dia seis de julho. Após retornar, ela diz que não teve muitas modificações, mas os seus empregadores adotaram algumas precauções como medidas de prevenção. “No serviço não mudou nada, o que mudou foram alguns costumes que é o uso da máscara e o álcool né”.

Selma relata que a luta pelos direitos trabalhistas das empregadas domésticas exige muita insistência e perseverança. “O que a gente não pode é sentar e esperar que aconteça, a gente tem que correr atrás sabe, eu falo isso porque eu já fiquei esperando, porque eu não sabia por onde começar, não tinha nem ideia onde eu poderia chegar e por qual meio eu podia chegar”.

Ela lembra que já trabalhou muito na vida sem ter direito a nada e que hoje, ela busca respostas para seguir em busca dos seus direitos. “Eu agradeço a Deus e agradeço a esse whatsapp das domésticas, porque elas me incentivaram a correr atrás dos nossos direitos”.

Após acessar uma série de informações importantes no ambiente de trocas do grupo, Sousa conclui que essa experiência trouxe um importante impacto para sua vida pessoal e profissional. “Pensa numa baiana arretada? Sou eu. Eu brigo pelos meus direitos até o fim, se eu não conseguir tudo bem, mas que eu vou brigar eu vou”.

O projeto Zap Zap das domésticas foi idealizado pelo Observatório do Direito e Cidadania da Mulher, que através de um grupo de pesquisadoras montou um guia dos direitos das domésticas em 2016. O material ensina o que está escrito na lei que considera os direitos trabalhistas das domésticas, com base em diversas referências bibliográficas. E em busca de tornar essa pesquisa mais acessível às trabalhadoras, as idealizadoras criaram em 2018 o grupo no whatsapp.

“A partir do guia, a gente percebeu que eram assuntos complexos, e que a oralidade seria muito importante, e talvez além da linguagem escrita, outros tipos de linguagem visual, símbolos e áudios, gente conseguiria contemplar essa diversidade no whatsapp, para atingir o maior número de trabalhadoras possível”, conta Mariana Fidelis, 34, advogada e umas das pesquisadoras do Observatório do Direito e Cidadania da Mulher.

Hoje o grupo no whatsapp Zap Zap das domésticas possui 570 participantes. As pesquisadoras produzem uma grande diversidade de conteúdos informativos com base nas pesquisas feitas no Observatório do Direito e Cidadania da Mulher, como em seu canal no Youtube, que tem uma série de vídeo que trazem informações sobre direitos das empregadas domésticas.

Além destes materiais, o projeto está prestes a lançar uma revista falando sobre a história de lutas dos direitos das domésticas. “Pesquisando ai os anos de luta né, as personagens, como foi essa luta pra conquista desses direitos, de como a PEC entra para o Brasil, de como o Brasil vai assinar o convênio da OIT, que dá origem a PEC”, descreve a pesquisadora, detalhando alguns conteúdos que farão parte da publicação.

Durante a pandemia, as pesquisadoras perceberam que essas informações precisavam circular por todos os meios de comunicação possível, pois previam que teria um retrocesso e uma escassez de direitos para esse momento. “A gente viu uma urgência em retomar o projeto, diante dos números de abusos, das exigências de casas de família e patrões, para que elas se isolassem dentro da casa, havendo aí uma reformulação do quartinho de empregada, do quartinho de serviço, que já tava cada vez mais sendo menos utilizado, dentro do nosso contexto social e econômico”, explica Fidelis.

A pesquisadora afirma que a profissão de empregada doméstica possui uma conexão direta com a figura da mulher nordestina que mora e constrói seus laços familiares nas periferias. “Umas das amostras que as pesquisa traz é que uma porcentagem considerável de mulheres domésticas que são moradoras das periferias”.

Fidelis conta que as maiores dúvidas que aparece no grupo Zap Zap das domésticas é sobre rescisão de contrato, compensação de horas e tempo para mover ações trabalhistas. “Lembrando aí que a maioria da categoria não chega a receber um salário mínimo né, principalmente as diaristas, que as diárias delas no final do mês não somam o valor de um salário mínimo”, alerta a pesquisadora, sobre as más condições de remuneração salarial no setor. 

“Você acredita que meu primeiro registro na carteira eu tava com 37 anos?”

Maria de Brito

Como é a vida de uma trabalhadora que não tem conhecimento do grupo Zap Zap das domésticas? Conhecemos a história de Maria de Brito, também conhecida na sua quebrada por Mazé, 60 anos, moradora do Parque Santo amaro, zona sul da cidade.

Após um dia intenso de idas e vindas de transporte público, ela relata que após finalizar o trabalho na casa dos patrões que residem no Campo Belo, bairro de classe média da zona sul de São Paulo, tomar um banho e assistir televisão se tornou um ritual para descansar o corpo e distrair a mente.

“Eu trabalho em casa de família desde meus 12 anos de idade”, conta Mazé. Com 48 anos de experiência como empregada doméstica, ela vê poucas mudanças em relação aos seus direitos trabalhistas.

“Eles puseram esse negócio de uma hora de almoço para as domésticas, mas a maioria não pode cumprir esse horário, porque se a gente cumpre esse horário de almoço atrasa tudo e você acaba saindo mais tarde”, afirma Mazé, apontando a falta de conexão entre a realidade no ambiente de trabalho doméstico e que prega as leis trabalhistas.

Diferente de Selma, durante a pandemia, Maria não parou seus trabalhos. Ela prestou seus serviços normalmente. “A pandemia todinha eu trabalhei, só que é assim: você vai com medo, você vem com medo e te atrasa um pouco tanto pra ir, quanto para voltar, porque eu fico esperando um ônibus vazio para vir né”, compartilha Mazé, descrevendo a sua rotina para ir e voltar do trabalho.

Em meio à pandemia, os patrões dela forneceram uniformes, álcool em gel e reduziram a carga horária. “Mas não tem outra coisa, não posso parar, tenho que ir né”, diz.

A informação do grupo do Zap Zap das domésticas ainda não chegou para moradora do Parque Santo Amaro. Desta forma, o único canal para se atualizar sobre seus direitos costuma a ser a televisão. “Quando eu vejo alguma informação, eu vejo quando passa no jornal, falando sobre o direito das domésticas, ai que fico sabendo de alguma coisa”, afirma.

Ela conta que essa história de direito trabalhista só chegou à sua vida quando ela já tinha mais de 35 anos. “Você acredita que meu primeiro registro na carteira eu tava com 37 anos?”, questiona ela, fazendo uma denuncia sobre o descaso histórico dos direitos trabalhista das empregada domésticas, que a atingiram e prejudicaram o seu plano de previdência.

“Acho que agora os patrões tem um pouquinho mais de respeito pelos funcionários, não é aquela coisa ainda, mas você já tem como reclamar alguma coisa, pedir um aumento. Naquela época, se você entrasse no serviço era dez anos com o mesmo salário”, revela Mazé, fazendo uma reflexão sobre as mudanças de comportamento dos empregados com a conquista dos direitos.

Maria finaliza fazendo uma suposição sobre o impacto do grupo do Zap Zap das domésticas, caso ele existisse a mais tempo na vida das empregadas domésticas. “Seria bom, a gente ia receber bastante informação, mais ideias das outras colegas, e também se tivesse isso no passado a gente não teria tanta perda igual tivemos dos nossos direitos antigamente”.

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