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Articulações territoriais engajam moradores na luta pelo saneamento básico

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A partir de projetos, pesquisas e vivências comunitárias, articuladores propõem soluções para prevenção de enchentes, canalização de córregos e coleta de lixo para melhorias sanitárias nos territórios periféricos.

Foto: Dicampana Fotocoletivo

A ineficiência da gestão pública diante das demandas populares reflete de diversas formas no cotidiano de quem mora nas periferias. O sistema de desigualdade de acessos se fortalece diariamente na falta de políticas efetivas que garantam os serviços que na teoria são direitos universais da população, como serviços essenciais de saneamento básico.

O serviço de saneamento básico se tornou mais comentado recentemente, devido ao avanço da pandemia de covid-19, o novo coronavírus, que pressionou a população por maiores cuidados de higiene. No entanto, essa cobrança não é acompanhada da garantia ao acesso desse serviço básico, já que, de acordo com o levantamento de 2018 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), há na cidade de São Paulo quase 300 mil pessoas sem acesso à água encanada e mais de dois milhões sem coleta de esgoto.

Em julho deste ano, o governo federal aprovou o Marco Legal do Saneamento Básico (PEC 4162/2019) que, entre outras deliberações, prevê maior participação do setor privado na gestão dos recursos hídricos e a universalização do acesso ao saneamento básico nas regiões metropolitanas até 2033.

Para Dora Lima, integrante da Coalizão pelo Clima, rede de coletivos que debatem e promovem ações de acesso à informação para combater mudanças climáticas, essa proposta do Marco Legal do Saneamento Básico não se tornará realidade. 

“Para mim é puro marketing a história da universalização em 2033 nos termos que estão colocados. Visto que o atendimento do direito humano à água e ao saneamento básico deve ser feito de modo progressivo e deve priorizar as populações mais vulneráveis”, afirma a educadora ambiental, que também faz parte da Agenda 2030, um movimento engajado em propor ações efetivas para erradicação da pobreza no mundo. 

Dados do SNIS/2018 apontam que 9,6% da população da cidade de São Paulo não tem acesso ao tratamento de esgoto.

Outro ponto que Dora ressalta é que quanto mais o poder público se ausenta de cumprir seu papel na promoção dos direitos, mais a população sofre. “Atualmente, toda essa falta de políticas de Estado está fazendo crescer o número de mortes pela covid-19 em regiões onde o poder público não atua. A pandemia, portanto, vem revelando a face mais perversa de um país desigual: quem fica com os piores efeitos da covid-19 são os que não têm acesso à direitos básicos, como água e tratamento de esgoto. Sendo assim, com toda esta falta de política de estado afasta ainda mais a universalização. O lucro sempre acima da Vida”, conclui.

Conscientização e mobilização

Diante da pouca eficiência da gestão municipal, articuladores e movimentos ambientais que entendem as necessidades e o contexto de quem moram nas periferias, buscam criar possibilidades de mudança e melhoria na qualidade de vida dos moradores.

Um exemplo dessas articulações territoriais que tem pensado soluções para melhorias sanitárias é o Abraço Guarapiranga, um movimento que busca sensibilizar e conscientizar as comunidades que são abastecidas pela Represa Guarapiranga. O objetivo é trazer as pessoas para a discussão sobre o cuidado necessário com a água. O Comitê Executivo do Fórum em Defesa da Vida é quem coordena as ações do Abraço Guarapiranga e realiza os encontros que acontecem toda primeira sexta-feira do mês.

Segundo Renato Rocha, educador ambiental, integrante do Abraço Guarapiranga e criador do Coletivo DedoVerde, negócio social que realiza ações ecológicas e de preservação ambiental na periferias, as ações do Abraço Guarapiranga acontecem em parceria com outros agentes territoriais. 

“Além deste movimento social também participa a Defensoria Pública, que recebe as denúncias referentes ao descarte de esgoto direto na represa, situações de descarte de entulho nas áreas de mananciais e acompanha o que o poder público tem realizado no território”, conta ele, descrevendo a participação da Defensoria que faz parte do Fórum em Defesa da Vida.

Para o educador ambiental, as periferias ainda não possuem total acesso à água, tratamento de esgoto e ainda sofrem com enchentes devido a um processo histórico de ocupação desses territórios, beiras de córregos, rios e o não planejamento das cidades por parte do poder público. 

“A população empobrecida que ocupa estes locais foi forçada pelo poder público para ir ocupar as frestas da cidade, em locais que não poderiam ser habitados, como as áreas de mananciais, se pegarmos o exemplo da Represa Guarapiranga e Billings”

explica.

Ele ressalta como as empresas também contribuem para o sistema de acesso não ser completamente funcional. “Desde o começo, o poder público priorizou o fornecimento de água potável e depois como fazer a gestão do esgoto com coleta, afastamento (jogar o esgoto nos rios) e no final o tratamento. Outro fator é a ineficiência das empresas que fazem a distribuição, que perde cerca de 30% da água tratada. Um grupo de fatores que envolvem habitação, educação e investimento em desenvolvimento social”, argumenta o agente ambiental que tem as periferias como campo de trabalho. 

Soluções para auxiliar o combate a enchentes 

Muitas ações poderiam ser criadas pela gestão pública com o intuito de conter problemas estruturais para quem mora nas periferias, como por exemplo, as enchentes. A urbanização dos córregos, não no modelo de concreto, e sim de tratamento para que as margens sejam revitalizadas, coleta universal de esgoto com tratamento local descentralizado e arborização das áreas de mananciais são alguns dos caminhos apontados por Renato.

O articulador também ressalta que existem possibilidades para além de obras de infraestrutura. Soluções ecológicas que poderiam ser aplicadas nas periferias, como uma Mini Cisterna.

“A Mini Cisterna é uma alternativa para armazenar a água da chuva de forma correta para que não prolifere o mosquito Aedes Aegypti e ser utilizada para fins não potáveis. Pode ser construída com canos de PVC e tambor de plástico ou caixa d’água. Em nossa sede, na Casa de Cultura e Educação São Luís, usamos um sistema de aproveitamento de água de chuva para irrigação com duas caixas com capacidade de 500 litros cada, e uma caixa com 3.000 mil litros. Total de 4 mil litros de água de chuva”.

O articulador avalia que serviços de responsabilidade do município, como a canalização de córregos, coleta de lixo, limpeza urbana e prevenção de enchentes são parte importante de uma ação que se não for em conjunto com a população, não irão surtir efeitos concretos nos territórios.

“É preciso ter ações multidisciplinares de Educação Ambiental para que o cidadão não jogue lixo nas vias públicas e córregos. Que as empresas se responsabilizem pela logística reversa de móveis como sofá, cama e guarda-roupa e que haja mais ecopontos nas periferias. Se não tivermos essas ações, vamos continuar no mesmo”

Por meio de sua atuação no Coletivo Dedo Verde, Renato articula formações e ações de educação ambiental em parceria com escolas e postos de saúde. Entre elas, a mini cisterna e o Programa Óleo Vivo, que coleta, armazena e destina o óleo de cozinha utilizado com frituras, para ser posteriormente transformado em sabão ou biodiesel.

“Cada litro de óleo usado jogado pelo ralo da pia ou vaso sanitário contamina 25 mil litros de água potável segundo dados da Sabesp. De 2012 até 2019, coletamos 20 mil litros de óleo usado, deixando de contaminar 500 milhões de litros de água potável. Em contrapartida da coleta, vamos nas comunidades e realizamos oficinas de sabão ecológico, palestra a respeito do impacto que o óleo causa no meio ambiente e na saúde pública”, compartilha Renato.

Renato Rocha com a minicisterna desenvolvida pelo Coletivo Dedo Verde. (Foto: Arquivo Pessoal)

O articulador ambiental também coloca que existe um movimento governamental que busca privatizar empresas nacionais com objetivo de melhoria do serviço que o governo não faz, mas questiona quem sai ganhando com esses processos de privatizações.

“Tem um arranjo construído entre as empresas e o poder público que o cidadão comum não fica sabendo. Nada é feito de graça. Cerca de 50% da população brasileira não tem coleta de esgoto. Obras que são enterradas não trazem votos para os políticos. Este é um dos motivos de se privatizar. Diferente de pontes, campos de futebol, escolas, creches que os políticos podem expor suas faixas, não tem como por uma faixa dizendo: aqui realizamos a coleta de esgoto da sua região, com certeza não teremos mais problemas de doenças de veiculação hídrica ou ‘vermes’ ”

finaliza o articulador.

Zona sul: córregos, mananciais e enchentes

“A região das represas Billings e Guarapiranga têm ocupações que chegam a aproximadamente 2 milhões de habitantes onde, no meu entender, há o conflito de dois direitos aparentemente conflitantes – o direito à habitação e o direito ao meio ambiente. Foi a conclusão a que chegamos nos nossos estudos”, conta Vera Luz, coordenadora da Comissão Temporária de Sistematização da Legislação Ambiental do CAU/SP. Além deste trabalho de pesquisa no território, a arquiteta e urbanista é integrante do Grupo Amigos do Fundão do Jardim Ângela e do Fórum de Pesquisadores de M’Boi Mirim.

Segundo Vera, no Fundão do Jardim Ângela a demanda é muito complexa, porque encontra a questão de saneamento com a de proteção dos mananciais. Assunto que é discutido, no âmbito acadêmico e governamental, pelo menos desde a década de 1980.

Represa Billings, zona sul de São Paulo. (Foto: Você Repórter da Periferia)

Outra questão que afeta diretamente as periferias são as enchentes. Segundo Vera, essa não é uma situação que afeta apenas os territórios afastados do centro da cidade, devido ao processo de impermeabilização do solo urbano. “O provimento de água tratada na cidade de São Paulo alcança oficialmente quase que a universalidade o que, na prática, ainda deixa de fora populações carentes. Os serviços relativos aos resíduos sólidos, em ocupações periféricas informais, muitas vezes sequer existem”, conclui a urbanista. 

Na região sul de São Paulo, outro grupo que tem pautado discussões sobre a qualidade de vida dos moradores é o Amigos do Fundão do Jardim Ângela, que atua por meio do Fórum Fundão das Águas, movimento que articula ações na defesa dos mananciais e na questão da relação com o meio ambiente com foco na zona sul.

Uma das lideranças locais que atua no Fórum Fundão das Águas é o Genésio da Silva, morador do Jardim Capela, bairro localizado no distrito do Jardim Ângela na zona sul. Sua militância começou em 1999, quando observava alguns moradores da região reclamando da situação do bairro. A partir deste momento, ele resolveu juntá-los e realizar uma reunião para discutir as demandas que existiam. Desde então, tem atuado em conjunto com outros agentes, articuladores em rede por melhorias locais.

Genésio conta que realiza ações nas escolas com alunos e professores para falar da importância da preservação do meio ambiente e como o trabalho coletivo voltado à questão ambiental influencia politicamente nas mudanças sanitárias na região.

“Cada liderança ou membro do Fórum das Águas faz suas queixas e no dia da reunião do Fórum a gente apresenta as demandas no coletivo, seja qual for à demanda e elaboramos os documentos e enviamos ao poder público, para eles terem ciência do que acontece nas nossas comunidades periféricas”.

O líder comunitário relata o cenário do saneamento básico na região e o comportamento dos moradores. “Nossos córregos não são canalizados, as pessoas jogam entulho e lixo tudo dentro dos córregos”. Ele conta também como é a atuação do poder público com essa e outras demandas.

“O poder público nas periferia eles fazem vistas grossas, você não tem noção quanto a gente faz reivindicações. Só pra você ter uma ideia a nossa subprefeitura de M’Boi Mirim se quer faz a zeladoria correta na região. Então, nós das periferias sofremos muito com o poder público que não nos enxerga, ou melhor, não quer nos enxergar, essa é a verdade. Temos o grande problema na região com desmatamento e ocupação desordenada, não tem fiscalização dos órgãos públicos, isso é um dos absurdo. A gente faz a denúncia, mas não aparece ninguém, ou quando aparece já aconteceu, aí já era”

finaliza Genesio.

 O sonho de ter uma Veneza na Zona Leste

A situação dos córregos no Jardim Ângela, apontada por Genesio não é diferente do córrego Cangueiras da Vila Flávia, localizada no distrito de São Mateus, na zona leste da cidade.

O articulador cultural Negotinho, morador da Vila Flávia, conta como a hidrografia do território desassistida por políticas públicas, afeta a vida dos moradores. 

“Na nossa favela há casas sem coleta de esgoto, há ruas sem boca de lobo para captar a água da chuva. Por isso, o córrego se transforma em uma grande fossa a céu aberto, em pelo menos três pontos. A comunidade sofre muito com isso porque o odor é forte, traz escorpião, ratos e baratas. A exposição com o esgoto à céu aberto impacta diretamente na saúde da comunidade, causando lotação no posto de saúde, porque as crianças ficam mais doentes, ficam com ‘sangue sujo’, como a gente costuma chamar quando sai manchas e feridas no corpo”.

“Nossa ideia para o córrego Cangueiras não era uma questão de canalizar, era de recuperar as nascentes. Nossa ideia era separar o esgoto, os resíduos, das águas da nascente; cuidar do plantio de árvores e canteiros. A ideia era ter uma ciclovia ao lado do rio, que passasse pela Favela Galeria e pelo espaço São Mateus em Movimento, para chegar no parque Reserva do Carmo e no Sesc Itaquera. A ciclovia seria um elo de ligação entre esses espaços. Apesar de estar longe, nossa ideia era que fosse um rio navegável”

conta Negotinho.

No final de 2016, a prefeitura fez a obra de canalização do córrego, atendendo a luta de mais de 10 anos dos moradores. Entretanto, a falta de serviços públicos de manutenção causa outro transtorno, o entupimento da tubulação: “quando entope, é a população que é obrigada a desentupir”, finaliza.

Fotos: São Mateus em Movimento e Desenrola e Não Me Enrola

A luta pelo direito de viver com condições dignas nas periferias acontece desde sua ocupação. Atuar por meio da conscientização e engajar a população para reivindicar seus direitos tem sido o trabalho de articuladores locais que enxergam nos territórios diversas possibilidades de transformá-lo, com o objetivo de garantir qualidade de vida e saúde para os moradores.

Esta reportagem faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização das iniciativas de comunicação Alma Preta, Desenrola e Não me Enrola, Embarque no Direito, Nós, Mulheres da Periferia, Periferia em Movimento, Preto Império e TV Grajaú, com patrocínio da Fundação Tide Setubal.

“O fanzine é uma arma de revolução”, diz artista e educador social do Jardim Ângela

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Através da arte do fanzine, o educador social Roger Beats, aborda diversas temáticas de luta e resistência da população periférica. Além de proporcionar vivências de recorte, montagem e colagem em fanzines para crianças e adolescentes, através desta linguagem artística e comunicativa, eles descobrem novas possibilidades de enxergar e estar no mundo.

A arte e a ligação com o universo do fanzine chegaram à vida de Rogério Souza, conhecido como Roger Beats de forma natural. O artista é morador do Jardim Ângela, região sul da cidade. Hoje, ele vive entre o extremo da zona sul e a Ocupação Cultural Ouvidor 63, espaço comunitário de cultura localizado no centro velho de São Paulo, um dos locais onde ele realiza oficinas de fanzine.

O fanzine é uma publicação impressa composta por textos autorais ou não, recorte de jornais, revistas, livros e imagens diversas que tem a função de explorar temáticas a partir da imaginação de quem o produz.

Além de fanzineiro, o artista é educador social, e se considera “artivista”. Roger já produzia fanzines há algum tempo, mas não entendia que eram fanzines. Para ele, eram informativos, revistinhas ou manifestos.

Por volta de 2001, o educador social e fanzineiro recorria às lan houses, e dentro do período de uma hora ele transcrevia um texto pesquisado, selecionava imagens que combinasse com o tema e imprimia. Chegando em casa, recortava, diagrama, corrigia pequenas falhas da impressão com caneta, e montava seu manifesto madrugada adentro, pois na época trabalhava e estudava. No dia seguinte, passava na copiadora e tirava cópias do material.

Fanzine elaborado pelo educador social que retrata a juventude periférica.

“Nesse período conheci uma galera do New Metal, onde as ideias coincidiram, havia uma necessidade de passar uma mensagem, informar e conscientizar a juventude sobre algo”, conta Roger, relembrando que deste encontro de propósitos surgiram também a produção de eventos culturais nas periferias da zona sul.

“Começamos a fazer eventos de Hardcore e Emocore pela sul e também, encontros de sarau na laje de casa. Durante uns oito anos propagamos a Cultura Underground através de manifestações artísticas e impressas. Eles que me falaram sobre a arte do fanzine, e como eu já fazia uns manifestos recortado e xerocado, isso como “shape” ideal na vida”, compartilha o educador.

Desde pequeno o artista sempre foi envolvido com questões culturais e sociais da região onde mora. Roger conta que possui 13 anos de carteira assinada, mas vivia sem dinheiro e angustiado. Largou o trabalho de ajudante de serviços gerais e auxiliar de serviços diversos, e foi pensar em alternativas de desenvolvimento cultural e educacional para a comunidade. Hoje considera que não trabalha, e sim que vive em missão.

“O fanzine bem no estilo ‘faça você mesmo’, veio como uma importante ferramenta que potencializa a comunicação offline e multiplica essa informação para as pessoas que atuo, as que vivem entre becos e vielas. Os últimos cinco anos, em vez de fazer fanzine sozinho como maioria dos fanzineiros fazem, comecei a proporcionar vivências de recorte, montagem e colagem em zines de uma forma simples e linguagem popular”, conta.

“Para minha surpresa, o fanzine soou como arma de expressão e transformação para muitas crianças, adolescentes e jovens da periferia.”

Os fanzines tem a intenção de informar algo que está para acontecer, ou trazer a realidade de algo que não é transmitido pela mídia tradicional. Muitas das produções do zinester, termo mundialmente conhecido para definir quem produz e propaga a arte do fanzine, têm sido construídas de forma coletiva e colaborativa.

“Isso na verdade, é visto como caso raro, pois a grande maioria do fanzineiros do Brasil atua de forma individual e introspectiva. Os objetivos e propósitos na produção coletiva, têm sido de atuar no inconsciente dos participantes sobre determinado assunto ou tema. Os encontros de Crias de Zines também têm o propósito de dar voz e protagonismo aqueles que são como invisíveis na sociedade”, relata o educador.

Oficina de fanzine realizada com crianças da zona sul de São Paulo.

Para Roger, o fanzine é uma arte introspectiva e intimista. Os temas são exclusivos de cada ‘zineiro’, reflete seu momento e olhar para o mundo em sua volta. Nas ações culturais e sociais nas quais ele leva os encontros “Fanzinando Idéias”, oficina de fanzines que ele desenvolveu uma metodologia própria, o educador percebe a necessidade local e qual a informação crítica será analisada pelos participantes.

“Geralmente sou convidado por lideranças, instituições e coletivos para atuar através de temas sazonais. Maio: família, abuso e tráfico infantil, julho: Estatuto da Criança e Adolescente, novembro: empoderamento negro, etc. Ou temas urgentes e necessários para determinado público ou período”, explica.

O artista e educador social conta que a cada ano tem que se readaptar ao contexto periférico. “Analisar as mudanças da tendência jovem, suas músicas, gírias, points, e picos que a galera frequenta. O diálogo pelo fanzine acontece por uma linguagem simples e direta ao dia-a-dia de cada público que visitamos, seja do reggae, do funk, do rock, do sarau, do samba ao rap, do futebol, das minas e monas, da luta por moradia, políticas públicas ou aquela praça com índice de drogadição”, conta Roger, que hoje tem em média 60 temas diferentes de fanzine no acervo do Sarau Comics Edition, coletivo cultural no qual o educador desenvolve suas ações de arte-educação.

Fanzine como instrumento de formação cultural e política 

O zineiro considera que o fanzine também funciona como ferramenta de fortalecimento de lutas, e oferece possibilidades de mudanças. “Você nunca mais será o mesmo depois que fazer um fanzine. Eu mesmo sou prova viva disso; sem o fanzine na minha vida, talvez nunca tivesse acessado os lugares e as pessoas que conheci. O fanzine por si só, já é uma arma de revolução, tipo a voz das minorias. Juntar a fome com a vontade de comer, ou seja, saber que você pode utilizar revista, recorte, letra, desenho, poesia, rima e juntar tudo num pedaço de papel. Falar o que bem querer da forma que quiser sobre determinado assunto”.

“Ser o próprio escritor e ilustrador de uma publicação independente, isso é transformador!” 

Anos atrás, Roger ajudava na organização de eventos de música, teatro e dança, para expor seus fanzines, mas percebia que as pessoas em sua maioria não interagiam.

“Frequentei encontros de Animes, Expo Fanzines, Fanzinadas e Feiras de Publicações, contudo, não me sentia à vontade. Então, fui pras ruas, para o gueto. Para lugares que não existia ‘Faneditor’ e nunca ouviram falar de fanzines. Troca de fanzines, mangueio e escambos. Com o tempo, passei ensinar, porque quem ensina aprende mais. Se quer ganhar dinheiro não vire fanzineiro! Fanzine está mais ligado á valores do que a preços. A circulação acontece de diversas maneiras e te leva para muitos lugares”, compartilha.

Continuar se conectando com outras pessoas através da sua arte no período da pandemia têm sido reconfortante para o artista, que conta como tem sido essa relação nesse momento onde grande parte das conexões tem se dado de forma online.

“Interessante é que boa parte das pessoas que conecta comigo e com as artes em fanzines virtualmente, nunca tiveram em mãos um artefato impresso do Sarau e talvez de outros fanzines. E boa parte das pessoas que levo a vivência de fazer um zine, não tem acesso à internet, ou acessam de vez em outra. Como dialogar com os dois públicos? Nasce assim, uma nova forma de fanzinar, comunicar uma mensagem. Despertar ao público virtual a sensação do que é fanzine”, analisa Roger.

Atividade realizada em escola pública com alunos adolescentes da periferias de São Paulo.

Quase todos os fanzines do educador social estão digitalizados e salvos em mídia externa. Roger pensa em possibilidades para a sua missão de vida com os zines e para facilitar e expandir sua mensagem e arte para mais pessoas: curtas de vídeo, preparar oficinas EAD, abrir Art Labs de fanzines, editora e livraria, além de desenhar uma primeira exposição.

“Tendo certa noção das tendências tecnológicas e das novas formas de comunicar. Sabendo que o YouTube será o novo Facebook da galera, três ou quatro anos atrás comecei a investir num canal para fanzines como forma de expressão, pois os vídeos que ensinam fazer fanzine são de youtubers e não fanzineiros. Com o boom da pandemia, muitos zineiros migraram para as plataformas e isso fez mover as águas que eu já estava nadando. Abriu um leque para novas conexões”.

Primeira Copa América de Fanzine 

Exposição de fanzines na PerifaCon, a primeira Comic Con da Periferia. (Foto: Anders Rinaldi)

Em 2020, o artista representou o Brasil na primeira Copa América de Fanzine que aconteceu de forma online durante os meses de junho e julho. “Foi surreal! Confesso que ainda não estou acreditando, sério mesmo. Além das Feiras de Fanzines que são uma verdadeira competição de vendas, nunca participei de nada igual”, conta.

Foi através de uma mensagem da revista El Otro Parche de Bogotá, informando que iriam organizar uma Copa América de Fanzines, que o zineiro recebeu o convite para participar da competição junto com outros artistas da América Latina. Roger convidou outros zineiros brasileiros, e após uma competição entre os artistas do Brasil, passou a disputar com participantes de outros países, que antes também realizaram o mesmo processo de classificação em cada país.

“Em Junho, começou a disputa de fanzine X fanzine de cada país, com voto virtual, quem tivesse maior número ganhava. No andar da carruagem, com picos de ansiedades ora dificuldades, em fazer a galera votar até mesmo aquela que se diz fanzineira, chegamos ao 4° lugar. O mais interessante, que quem patrocinou a competição foi o Consulado do Brasil em Bucaramanga na Colômbia. Recebi mensagens do Cônsul dizendo que todos do Consulado estavam votando e torcendo para o Brasil. Achei isso formidável.”

A possibilidade de uma segunda edição do torneio á algo que está no radar de Roger. “Tivemos uma Live com os quatro finalistas da Copa, junto com a correspondente da Organização e também do Consulado. A Intenção é preparar a 2° Copa América del Fanzines e pensar num Centro Latino-Americano do Fanzine, algo assim do tipo. Ah! O prêmio final será a cópias de todos os Fanzines participantes da Copa; Chile, Bolívia, Peru, Colômbia, Argentina, Venezuela, entre outros, que, para um bom fanzineiro é maravilhoso demais”.

Para participar da competição, o zineiro escolheu o fanzine “Voz que Clama No deserto”, que já passou de mil impressões e está em português brasileiro e espanhol. Ao longo da competição, ele descobriu que seria o mesmo fanzine até o final, e não um por competição. “Senão, teria enviado logo, o top das galáxias! Entretanto este fanzine de bolso “Voz que Clama No deserto” tem um quê de profético”.

O zineiro conta da importância do zine escolhido para a Copa: “Ele foi criado depois de uma grande ruptura entre os integrantes do Sarau Comics. Este foi o primeiro Zine que fiz quando parti em carreira solo. Quando entrei na Acepusp – Associação Cultural de Educadores e Pesquisadores da Universidade de São Paulo -, quando entendi o que é Direita e Esquerda. Ele é a ponte da minha travessia do fanzine como forma de expressão para o fanzine de arte como forma de protesto”, compartilha.

Entre as oficinas de recorte, montagem e colagem que realiza por diversos cantos da cidade, até as novas descobertas que a arte do fanzine trouxe para Roger, a participação na Copa América foi mais uma oportunidade de troca, crescimento e aprendizado.

“Trouxe aquela alegria de mostrar a garra do Brasil, aquela determinação que todo brasileiro tem em competir. O que faltou mesmo foi envolvimento da galera. De acreditar e dá um voto de valor. Sou muito grato por toda esta vivência, mais uma que o fanzine pregou em mim”, finaliza o artista que segue tendo a arte como sua missão.

Morador do Jardim Mazza transforma linhas de ônibus em cenário de jogos realistas nas periferias

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Atualmente, o canal Matrix Games tem mais de 260 mil seguidores e se prepara para atingir a marca de 50 milhões de visualizações. As lives que mais chamam atenção dos seguidores retratam a simulação de linhas de ônibus nas periferias da zona sul de São Paulo.

Pilotando um ônibus Terminal Jardim Ângela, p youtuber pega passageiros em ponto da M´Boi Mirim. (Foto: Reprodução OMSI)
Enquanto o youtuber Phillip Barbosa, conhecido como Matrix nas redes sociais, inicia mais uma live manobrando um ônibus 737A-10, que faz a linha Terminal Jardim Ângela – Terminal Santo Amaro, seguidores começam a se reconhecer no bairro e nos locais por onde o simulador passa. Com uma console formado por três monitores, volante, câmbio para troca de marchas e pedais para frear e acelerar, ele engaja as pessoas a olhar de maneira diferente para o bairro e para o transporte público, por meio de jogos que transmitem realismo.

Morador do Jardim Mazza, um dos bairros que fazem parte do distrito do Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo, Matrix transformou sua outra paixão, por games, presente na sua vida desde a adolescência, em uma forma de homenagear as linhas de ônibus do bairro onde mora, por meio de simuladores que apresentam uma riqueza de detalhes para dirigir coletivos.

Enquanto manobra o ônibus, Matrix faz os ajustes prepara iniciar a live em seu centro de controle.
“A minha paixão por ônibus surgiu desde criança. Eu sempre fui apaixonado por ônibus. Sempre brincava com caixinhas de pasta de dente simulando como se fosse um ônibus”, lembra Phillip Barbosa, youtuber gamer conhecido nas redes sociais como Matrix.

Sempre dedicado a alcançar seus objetivos, o youtuber conta que na fase da pré-adolescência era muito difícil economizar dinheiro para comprar um computador, mas quando essa oportunidade surgiu, ele não exitou em comprar.

Essa memória desperta no gamer a lembrança sobre os primeiros passos em jogar em simuladores. “Foi dai que conheci os jogos de caminhão, e no decorrer dos dias começou a aparecer jogos de ônibus e eu não parei mais, a minha paixão por ônibus estava ficando mais nítida para mim”. 

Nesta live, que faz um trajeto no simulador passando pela estrada do M’boi Mirim, o canal registrou um grande volume de interações.

A partir deste momento, Barbosa passou a ficar mais próximo do universo dos jogos simuladores. Um dos marcos desta época foi a compra do Euro Truck Simulator 2, jogo que oferece suporte para ônibus também. “Eu sempre fui fanático pelos simuladores, gosto de simular muito a realidade trazendo mais realismo possível”, afirma.

Com o simulador, o gamer consegue escolher qual local de saída, como bairro ou terminal de transporte público, pegar passageiros na plataforma, escolher o limite de pessoas para embarcar nos ônibus e a quantidade de carros nas ruas, fazer a planilha de rota e escolher o ônibus que deseja jogar. O jogo ainda oferece outras configurações que podem ser descobertas por meio de tutoriais, assim como Matrix fez.

“Aprendo muito através de tutoriais que temos na plataforma, e claro eu também já fiz tutorial ensinando a galera de como baixar e jogar nos computadores e celulares. No momento, os jogos que trago para o canal seria o Euro Truck Simulator 2, OMSI 2, Proton Bus Simulator (Android e PC) e o Fernbus Coach Simulator”, diz.

Após passar um bom tempo estudando como customizar e pilotar diferentes modelos de ônibus, o youtuber passou a usar o seu canal para realizar lançamentos de modelos exclusivos de coletivos, fazendo inclusive parceria com marcas de turismo intermunicipal e interestadual.

Nas lives realizadas pelo Matrix, linhas de ônibus do Terminal Jardim Ângela e Terminal Santo Amaro podem ser facilmente reconhecidos pelo público. Segundo ele, esse é um dos atrativos que engaja os seus seguidores a acompanhar o seu trabalho.

O simulador permite que o motorista pare em pontos de ônibus e defina a quantidade de passageiros que podem subir.

“Recentemente um amigo meu fez o bairro onde eu moro, chamado de Jardim Mazza, que fica paralelo com a estrada do M’boi Mirim. O nome do bairro dentro do jogo ficou Jardim Matrix, saindo justamente da rua onde eu moro e fazendo um percurso que existe na vida real, indo até o Terminal Santo Amaro. A sensação foi muito boa e fiquei muito feliz por ver isso dentro de um jogo”, relata o Youtuber.

Para Barbosa, morar na periferia e poder produzir conteúdos como gamer traz um diferencial muito grande, pelo fato dele ajudar outras pessoas, por meio do seu trabalho, que também não conhecia esse mundo dos games.

“Para uma pessoa que mora na periferia hoje em dia é muito difícil poder sair e ir se divertir em shopping e jogar naqueles fliperamas. A grande maioria dos módulos que disponibilizamos é gratuita, justamente para beneficiar as pessoas mais carentes da nossa comunidade”

argumenta o youtuber, ressaltando que a grande parte do seu público também são moradores das periferias.

Há seis anos, Barbosa está com o seu canal ativo no You Tube e sua página no Facebook. Ele conta que saiu recentemente do trabalho, que era bastante corrido por seu um supermercado, e que a partir deste momento, passou a se dedicar ainda mais ao universo dos games, atuando apenas como youtuber.

O canal Matrix Games surgiu em maio de 2014 sem nenhuma pretensão de ser uma referência no universo gamer. Segundo o Youtuber, era apenas um passatempo. Inspirado pelo youtuber Dudu Moura, Barbosa começou a gravar game plays, séries e tutoriais. “A partir daí não parei mais, o sonho tomou forma, ganhou proporções e hoje, conta com mais de 260 mil de inscritos. Estamos provando que com empenho e amor ao que faz, o resultado é sempre o mesmo: o sucesso”.

Atualmente, o canal Matrix Games se prepara para atingir a marca de 50 milhões de visualizações. O que antes era diversão, hoje acabou se tornando um instrumento de trabalho para o morador do Jardim Mazza, território que virou parte do jogo, passando a ter a linha de ônibus Jardim Matrix.

Direitos invisíveis: clínica de psicanálise democratiza acesso à saúde mental nas periferias

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Quem cuida da saúde mental dos profissionais que se dedicam diariamente ao atendimento da população periférica em equipamentos públicos de saúde? Nesta reportagem, vamos conhecer a Clínica Periférica de Psicanálise, iniciativa que vem trabalhando para oferecer um espaço de escuta e acolhimento às pessoas que foram impactadas psicologicamente pela pandemia de covid-19, o novo coronavírus.

Os agentes de saúde e assistência social tiveram suas rotinas de trabalho e vida pessoal transformadas com o avanço da pandemia de coronavírus nas periferias de São Paulo. Indispensáveis para o atendimento à população periférica, estes profissionais representam um dos grupos mais vulneráveis diante das consequências emocionais e psicológicas causadas pelas más condições de trabalho presente nos serviços públicos de saúde, como hospitais, postos de saúde e unidades básicas de atendimento.

De acordo com dados divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde, no final do mês de junho de 2020, mais de quatro mil agentes de saúde estavam afastados das suas funções trabalhistas com sintomas de covid-19. Desses profissionais, mais de dois mil foram confirmados com coronavírus e a outra metade apresentou síndrome gripal. Ao todo, 28 vieram a óbito.

Após a divulgação deste relatório, publicado em 17 de junho de 2020, e com a implantação do plano São Paulo, a estratégia do Governo do Estado para vencer a pandemia de coronavírus, a Secretaria Municipal de Saúde não revelou mais em seu site o número oficial de profissionais afastados do ambiente de trabalho.

Além das más condições de trabalho enfrentadas nos espaços públicos de saúde, os agentes de saúde foram surpreendidos pelo presidente Jair Bolsonaro, que vetou nesta semana o Projeto de Lei 1.826/2020, que garantia uma indenização aos profissionais que se tornaram incapacitados para o trabalho em decorrência da covid-19.

Atuante nas periferias da zona leste, a redutora de danos Márcia Lysllane Santos, 28, moradora de São Mateus, que começou sua carreira saindo de Alagoas e vindo estudar psicologia em São Paulo, faz parte do grupo de profissionais que estão sendo afetados psicologicamente pela pandemia. Atualmente, ela trabalha no CAPS AD III São Mateus, realizando ações de promoção à saúde emocional juntos aos moradores do território.

Ela conta que antes de desempenhar a sua função, foi necessário entender a estrutura do Estado para ter um senso crítico sobre esse campo de atuação. “Eu precisei passar por um processo muito longo de conscientização, compreender o Estado, as políticas públicas, o sistema que nos administra, tive que aprender a ler, escrever, construir um senso crítico”.

Ultimamente, Santos tem se assustado com a rotina de trabalho e os impactos que isso tem gerado na sua vida. “É assustador! Em muitos momentos só me resta chorar diante do medo que me consome em relação ao futuro. Ando extremamente preocupada”.

Ela ressalta que deveria ser prioridade às pessoas que estão na linha de frente ter o acompanhamento de um psicólogo. “É um turbilhão de informações, angústias trazida pela comunidade que acabamos internalizando e nós angustiando com tamanho sofrimento social. Muitas vezes, o sentimento de impotência toma conta e nos abala e acaba interferindo na nossa atuação”.

Diante dos últimos acontecimentos vivenciados pela psicóloga, ela afirma que uma mulher preta e nordestina, como ela não tem o tempo para sonhar. “Uma mulher, negra, nordestina, mãe solo de uma criança de oito anos, não tem tempo de pensar ou sonhar”.

Para a redutora de danos, ficar desde o começo da quarentena longe de seu filho para protegê-lo, é a situação de muitas mães e pais que estão se arriscando pelo território agora. “Sou mãe solteira, moro apenas eu e o meu filho, e ele no momento não se encontra comigo. No início de todo esse caos eu tomei a decisão de deixá-lo com o pai em Minas Gerais para protegê-lo, pois o medo de estar com o Covid-19 e transmitir para ele era muito grandes. Eu sinto muita saudade do meu filho, passamos muitas dificuldades, mas sempre juntos”, afirma ela.

“É possível desmistificar o cuidado com a saúde mental” 

Atentos a esse cenário, no lado leste da cidade de São Paulo, nasce uma parceria entre o Movimento Cultural Ermelino Matarazzo e a Clínica Psicanálise Periférica, com o projeto de atendimento online voltado a profissionais da saúde e assistência social das periferias que não conseguem arcar com os custos para realização de terapias.

Numa condição semelhante a da estudante de psicologia, Diego William de Faria Rennó, 34, nascido na cidade de Cruzeiro, interior de São Paulo, vive atualmente no Jabaquara, bairro da zona sul. Ele é um dos colaboradores da ação que desenvolveu o coletivo da Clínica Psicanálise Periférica, além disso, ele trabalha como psicólogo na região central da Luz, na área de proteção especial da Secretaria de Assistência Social, em um Centro de Acolhida Especial para idosos.

Ele é mais um profissional na linha de frente de atendimento a pessoas em situação de vulnerabilidade social que foram afetadas pela pandemia. “É difícil estar na linha de frente, apesar de ser psicólogo, uma profissão da saúde. Eu atuo na Assistência Social, onde difere muito a atuação e não se tem os mesmos holofotes e investimentos que a área da saúde tem. Então é difícil atuar com limitação EPI´s, e mais do que isso, lidar com a os medos e as expectativas de 100 idosos”.

Rennó conta que já passam de 10 pessoas infectadas onde ele trabalha. “Em meu local de trabalho tivemos 11 casos confirmados de usuários, além de três profissionais. Eu não fui contaminado, mas lidar com o risco de ser contaminado e a pressão do contágio é sufocante”.

Diante desta situação que afeta toda uma categoria de agentes de saúde, ele ressalta que não há muita preocupação do Estado sobre a condição da saúde mental dos profissionais que trabalham na linha de frente de atendimento da população mais afetada pela pandemia. 

“Não há cuidado por parte do poder público, a abertura do comércio, a volta das atividades diárias baseadas em absolutamente nada é uma prova do descaso com os profissionais da linha de frente, com os que perderam sua vida”.

O psicólogo desconhece programas do poder público para atender os profissionais, mas ressalta que a sociedade civil está mais atenta a esse cenário. “Do poder público não tenho conhecimento não, o que existe são ações de grupos de apoio da sociedade civil. Eu participo de um coletivo de psicanálise que oferece atendimento a população periférica, além de profissionais da saúde, educação e assistência social”, conta ele.

Ele enfatiza que ações e projetos como a Clínica de Psicanálise Periférica tem a importante função de desmistificar a visão que se tem sobre o cuidado mental. “É de extrema importância projetos desse cunho, ações como estás levam ao território propostas que visam descolonizar a visão de saúde centrada no médico. E mostrar que é possível desmistificar o cuidado com a saúde mental”.

Para a articuladora cultural Yasmin de Souza, que atua na Ocupação Mateus Santos, em Ermelino Matarazzo, essa parceria com a clínica surge num momento de grande importância para o território. “Várias pessoas já compartilharam e até antes de eu postar as pessoas já vieram falar comigo, então eu já fui encaminhando pessoas antes mesmo do flyer e da divulgação está em curso. Então a necessidade foi evidente, não só do território de Ermelino, mas de outras pessoas que se interessaram e foi virando uma rede de apoio”.

A articuladora cultural conclui que esta parceria também promove uma mudança de cultura entre os moradores. “O que muda no território é principalmente o olhar da comunidade em si. Eu falo no geral, enquanto periferia, que a gente não precisa que o tratamento psicológico é banal, enfim essa contextualização de que as pessoas que se trata psicologicamente são doentes, e que esse tratamento é algo elitizado e burguês que de fato é, então quando se acessa esse lugar acho que as pessoas começam a ter um olhar menos preconceituoso, do que foi implantado pra gente como tratamento”, afirma.

O psicanalista João Luis Sales Sousa, 24, morador do Jardim São Carlos, na zona leste, conta que o projeto nasceu com o objetivo de democratizar o acesso à saúde mental nos territórios periféricos. “A Clínica Periférica de Psicanálise nasce a partir de um ato político que perpassa desde o campo psicanalítico até o campo social. As subversões que são propostas pelo coletivo, como por exemplo, o atendimento em um espaço público e a gratuidade do serviço, nos endereça para o objetivo da democratização da clínica psicanalítica e a ampliação do acesso desse serviço de escuta”.

Ele acredita que o projeto rompe com paradigmas tradicionais. “Visto que estamos quebrando com diversas práticas tradicionais da psicanálise, como pagamento em dinheiro e o setting, permanecemos com um posicionamento crítico a outras práticas e teorias, principalmente aquelas que não englobam a população que atendemos”, coloca. 

“A psicanálise, então, necessita de um desenvolvimento teórico que rompa com certos aspectos coloniais e elitistas, que tenha em vista noções sociais, que busque englobar a sociedade brasileira atual, com sua diversidade e questões culturais”.

explica o psicanalista.

Sales também pontua a importância da psicanálise em um momento como o que estamos vivendo. 

“A psicanálise nestes momentos de pandemia precisa tomar certo cuidado para não cair em uma posição de generalização dos fatos sociais e consequentemente, ter uma postura de saber absoluto sobre os sujeitos e a sociedade, tendo isso em vista, o papel da psicanálise é a partir de um serviço de escuta para o sofrimento psíquico que talvez possa estar latente em um momento de crise como o que estamos vivenciando”, reflete. 

Ele ainda coloca que a situação em cada sujeito está inserida, reflete diretamente nas desigualdades e sofrimento de cada individuo. “Já que o coletivo tem o intuito de fazer o atendimento a uma determinada população, que está em vulnerabilidade social, uma população periférica, a situação de pandemia pode intensificar as desigualdades sociais e o sofrimento do sujeito”, diz.

“Podemos afirmar que toda uma dinâmica relacional é afetada no território a partir dessa mudança de lógica, onde os sujeitos que ali residem, possuem a abertura e principalmente o direito de ocupar tantos os espaços físicos quanto os espaços simbólicos de uma análise, sem necessariamente precisar pagar por isso. Além disso, quando a psicanálise propõe se deslocar de um lugar elitista para adentrar nas periferias brasileiras, ela abre um espaço de escuta e consequemente de um cuidado psíquico para um recorte da população que não tem acesso a esse tipo de serviço”.

Continua falando sobre a importância para o território e o que muda com o acesso de um atendimento gratuito nos bairros periféricos.

O psicanalista finaliza ressaltando a importância de atender profissionais da saúde e assistência social. “possibilitar um espaço de escuta da angústia de profissionais que atuam na linha de frente – proveniente deste período de pandemia – assim como de sujeitos periféricos ainda mais marginalizados em meio às crises nos sistemas econômicos, de saúde e educação”. 

Para ele, trata-se da tentativa de minimizar os impactos de uma opressão imposta pelo sistema capitalista e “reproduzida por políticas governamentais de representantes ditos neoliberais, que buscam acentuar uma individuação dos sujeitos, partindo da premissa meritocracia. Colando a grande massa que são seus principais agentes de manutenção social na condição de explorados em detrimento da sua própria saúde biológica e psíquica”, finaliza.

Gravidez online: encontros virtuais dão apoio emocional às mães da quebrada

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Você já parou para pensar como a pandemia está afetando psicologicamente e fisicamente a vida das gestantes que moram nas periferias de São Paulo? Essa questão foi um ponto disparador que motivou a parteira Ciléia Biaggioli, 42, moradora de Parelheiros, zona sul da cidade, a adotar uma plataforma digital de reunião como um ambiente de troca de conhecimento para difundir a sabedoria ancestral da gestação e do parto humanizado.
Pelo fato de estar impedida de realizar o atendimento presencial às gestantes que residem em territórios periféricos, essa foi uma das soluções encontradas, quando um grupo de doulas e parteiras que fazem parte do coletivo Sopro de Vida, onde Ciléia atua como integrante, começaram a pensar em formas de promover o bem estar físico e emocional de futuras mamães durante a pandemia de covid-19, o novo coronavírus.
A parteira explica que a essência do parto humanizado está no resgate de uma tradição perdida ao longo das gerações. “É o resgate do que era antes né, de um rito de celebração, de um momento de passagem, de um nascimento de uma mãe, de um pai, de uma criança, de uma nova família”, define. Para Ciléia, a medicina ocidental produz pouco apoio emocional e físico para as gestantes, reduzindo a mulher apenas a um corpo que dá a luz. “Você vai para um hospital parir com pessoas completamente desconhecidas, que faz um toque em você a todo o momento, sem te perguntar se você quer e se pode né?”, questiona ela.
Ela complementa o ponto chave sobre o questionamento: “por que o médico sempre sabe mais? A gente tem esse lugar de colocar um médico no endeusamento, em um lugar que é muito negativo pra gente, como se ele soubesse da gente mais do que a gente mesmo”.
E busca de espalhar um pensamento crítico sobre essa cultura, todas as sextas-feiras às 17h, ela promove encontros virtuais, que visam acolher e informar mães gestantes ou na condição de pós parto. Além da organização do coletivo Sopro de Vida, cada encontro conta com a colaboração de outras iniciativas e profissionais do parto humanizado, como o Mama Ekos e a doula Esther Marcondes. Fruto deste trabalho de acompanhamento semanal das gestantes, as organizadoras já pensaram em maneiras de ter um acompanhamento diário das participantes. “A gente tem um grupo do whatsapp que pode ser divulgado e é aberto, e a gente deixa o link para essas gestantes que quiserem entrar. Têm gestantes, por exemplo, que tem muitas dificuldades de acesso à internet, essas gestantes nem sempre conseguem entrar na roda virtual, mas elas podem tirar as dúvidas no grupo de WhatsApp, então a gente deixou esse momento bem aberto para poder fazer esses acolhimentos”, conta Ciléia. A qualidade dos serviços e da distribuição da internet nas periferias é um tema bastante comum que já discutimos em outras publicações no Quebrada Tech, mas no caso das gestantes, essa condição de infraestrutura gera outros impactos para além do acesso. “A periferia não tem internet direito. Entende? Então mesmo a roda virtual é muito ruim”, enfatiza a parteira, indignada com a falta de recursos que a periferia tem para os moradores e articuladores do território, que não conseguem fazer seu trabalho pela falta de acesso à internet, precisando criar novas maneiras de comunicação, para lidar com as ausências que a parteira citou. Ela acredita que durante a pandemia, o acesso à internet e a desigualdade dos direitos digitais dificultou ainda mais o simples ato de tirar uma dúvida. “Para mulheres que quiserem fazer perguntas a gente deixou nosso telefone e o zap na página, porque é muito difícil né”. Ao justificar o por que a rede entendeu que a comunicação por WhatsApp seria a mais eficiente em um momento de urgência Ciléia relata: “às vezes demora meia hora para chegar um WhatsApp, mas ele vai chegar, entendeu, aí é diferente de uma conversa né, de uma videochamada, se pergunta uma coisa tem que responder ali na hora não tem outra saída”. Por conta da má qualidade da internet no distrito de Parelheiros, Ciléia conta que durante as rodas e seus trabalhos que exigem um grande tráfego de dados, ela e sua família vão para casa da sogra, localizado no Cambuci bairro situado na região central do município de São Paulo, para conseguir fazer seus trabalhos. “Por exemplo, a internet hoje está impossível, e a gente está fazendo um festival online de inverno de Parelheiros. A família inteira está indo pro Cambuci porque não tem o que ser feito, a internet cai toda hora, não funciona. Você não consegue anexar, não consegue fazer as coisas, trabalhamos com edição de vídeo, aí tem que subir pro Youtube, uma coisa que na internet do Cambuci demora dois minutos, lá demora um dia e meio”, compara a parteira.

Tratar as dores

Andréa Martinelli, 26, mora na Vila Marcelo, bairro localizado na periferia da zona sul de São Paulo. Mãe solo, professora, pós-graduada em psicopedagogia, ela é uma das organizadoras do encontro virtual. “Começamos as rodas com a equipe de parteira, aprendiz de parteira e doulas. Aí trazemos as gestantes. Elas também convidam as amigas não só gestantes, mas pós-parto também, que nesse período de isolamento social também sofrem com falta de apoio, por falta de contato humano”, explica Andréa. Ela é responsável por mobilizar mulheres das periferias para a roda, pois a equipe percebe que o parto humanizado ainda é uma informação distante para gestantes periféricas. “A gente convida e muitas vezes elas não tem tempo sabe, esse tempo de poder parar mesmo, que é uma vez por semana, uma hora e meia ter esse tempo para ter uma troca”. Para conseguir acessar essas mulheres grávidas, as organizadoras estão em busca de divulgar os encontros virtuais para gestantes que frequentam unidades básicas de saúde nos territórios. “A gente está tentando levar essa divulgação pra a UBS, pra eles passarem para as gestantes, para elas terem acesso a esse conteúdo, de saber que existem as rodas”, afirma Martinelli. Assim como à internet, a telemedicina ainda não chegou para todas as mulheres gestantes da periferia. Sabendo disso, as organizadoras da roda virtual utilizam de uma abordagem para tratar suas dores emocionais e físicas da forma mais humana e natural possível, através da escuta. “A gente busca sempre usar formas medicinais né, do uso de ervas naturais, para conseguir tratar algum tipo de enjôo, ou outro fator que a gestante tá sentido, e também tenta trabalhar a parte emocional, então antes disso a gente conversa: ‘aconteceu tal coisa com você? passou alguma coisa essa semana? ‘ – e a gente vai buscando essas questões emocionais que levaram essa mulher a sentir”. Martinelli relembra sobre a importância dessa roda virtual, que carrega uma grande importância de desconstruir todos os conceitos pré-estabelecidos que elas aprenderam sobre gestação que não lhe fazem bem. “Quando a gente faz esse acompanhamento para gestantes e preparamos elas pro parto, a gente ajuda a diminuir a chance dela sofrer violência obstétrica, delas serem enganadas nos hospitais, e a gente também mostra para ela as opções que elas têm, se é uma gestação saudável, ela pode parir em uma casa de parto, ela pode parir em casa com parteira, enfim tem outras opções”, finaliza.

“É mais um grupo de amigas que apoiam umas às outras”

Mãe da Manuela de três meses, Suzane Mayumi, 26, moradora de Parelheiros, conheceu a roda virtual por meio de Andréa Matinneli, uma das organizadoras. Durante sua gestação, ela foi acompanhada pela Andrea e Ciléia até seu bebê nascer. Hoje, ela acompanha a roda para falar sobre sua experiência e como está sendo a segunda maternidade. “É mais um grupo de amigas que apoiam umas às outras”, define Suzane ao contar o que significa para ela a experiência do encontro virtual de gestantes. Consciente do impacto do grupo de apoio na sua gestão, ela faz um relato da experiência: “consegui tirar minhas dúvidas e obtive mais conhecimento na roda, pois me alertaram como não ter o abuso no parto, como que seria o trabalho de parto, o que fazer nas situações de trabalho de parto e amamentação também, para pegar de maneira correta e não machucar a mama”, conta a moradora. Mayumi entende que esse afastamento social no momento de pandemia faz com que as mulheres estejam mais propensas a depressão pós-parto. “Eu digo que se não fosse as dicas que eu tive, poderia não ter a mesma que tive maravilhosa que tive dessa gestação, pois na primeira gestação eu estava totalmente leiga no assunto”. A moradora de Parelheiros teve sua primeira filha com 19 anos e partir desta vivência, ela aponta que suas maiores dificuldades naquela época foram a falta de informação, que a levou a ter experiências difíceis na sua primeira gestação. Atualmente, a moradora atua na roda contando um pouco sobre suas experiências e apoiando outras mulheres que estão passando pelo período de gestação. “Indiquei que elas doassem o leite materno, visto que nessa pandemia o banco de leite caiu muito e precisam da doação para manter o estoque e poder ter leite para os recém nascidos”. No final da entrevista a parteira Ciléia faz uma analogia com esse momento atual e o processo de gestação. “Eu brinco que a quarentena ela é um grande ‘puerpério’, esse momento da lua negra, o momento que o parto aconteceu e a gente entra então nessa introspecção, esse momento de amamentação que é um momento muito difícil, que a sociedade fala pouco e a gente tão pouco compreende”.

Geolocalização: aplicativo conecta moradores com ações solidárias nas periferias de SP

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Através do aplicativo RAH, desenvolvido pela Rede de Apoio Humanitário nas e das Periferias, moradores estão se conectando com ações solidárias em andamento nas ruas próximas de suas casas. Com isso, eles também descobrem formas de apoiar coletivos e movimento sociais que estão organizando doações de suprimentos às famílias afetadas pela pandemia de coronavírus. 

Território da M´Boi Mirim, zona sul de São Paulo. (Foto: Flavinha Lopes)

Criado por meio de metodologias de georreferenciamento de dados, o app RAH, surge como uma resposta da Rede de Apoio Humanitário nas e das Periferias para o enfrentamento das desigualdades sociais que aumentaram em grande escala nas periferias de São Paulo, devido ao avanço da pandemia de coronavírus nos territórios.

Através de um mapa que lista mais de 70 locais que estão espalhados pelas quebradas da cidade, incluindo as regiões norte, sul, leste e oeste, famílias que estão em condições de vulnerabilidade social podem acessar doações de alimentos e produtos sanitários ao se conectar com os pólos mapeados, que são representados por Associações Comunitárias, Templos Religiosos, Organizações Sociais e Coletivos Culturais.

Antes da pandemia, esses pólos de ações socioculturais já tinham a função de combater as desigualdades sociais em seus territórios, mas com a chegada do coronavírus nas periferias, essa missão precisou de atenção redobrada para atender as necessidades dos moradores que foram afetados de diversas maneiras pela crise econômica e política em curso no Brasil.

Reprodução: Mapa do aplicativo RAH, desenvolvido pela Rede de Apoio Humanitário nas e das Periferias

Envolvido no processo de elaboração do aplicativo, o articulador comunitário, Jesus do santos, 35, morador do Parque Edu Chaves, na zona norte de São Paulo, ressalta que a covid-19 só escancarou a realidade de quem vive nas periferias. E que o aplicativo cumpre a missão de unir quem precisa e quem tá batalhando para reduzir os impactos das desigualdades.

“A gente não vai dar conta de tudo e com o aplicativo as pessoas podem ter uma maior mobilidade né, podem se organizar. Isso foi o que nos motivou, o incomodo que despertou na gente”, conta Santos. Percebendo a extensão do problema, ele entendeu que construir uma rede de apoio digital seria a melhor estratégia para unir força de diversos territórios, para captar recursos e distribuir doações para os moradores que estão cadastrados para receber apoio de ações solidárias.

No app RAH, o mapa de georreferenciamento cumpre uma função estratégica nesse momento de distanciamento social. “Quando a gente reforça a ideia, de aproximar o doador da doadora, da receptora do receptor, dos lugares de vulnerabilidade e risco social que temos, a necessidade é justamente disso, de fazer com que as pessoas se tornem cada vez mais autônomas”, explica o articulador comunitário.

Santos acredita que a utilidade do app não se limita a esse momento de pandemia, mas sim, como uma ferramenta com fim público, que pode ser útil na pós-pandemia também. “Essa é uma ferramenta não só para agora, mas uma ferramenta aí para um bom tempo de nossa sociedade”. Pouco esperançoso sobre as melhorias que teremos futuramente, ele entende que o aplicativo ainda precisa passar por melhoras, pois segundo ele, a rede terá que se fortalecer ainda mais, e o aplicativo também. “A ideia é que a gente possa ampliar as campanhas que a rede tem desenvolvido”.

O impacto das doações geolocalizadas

Irani dias, 49, moradora do Jardim Brasil, na periferia da zona norte, é ativista dos direitos humanos, atuante nos territórios de Vila Sabrina, Jardim Brasil, Vila Zilda e Lauzane Paulista. Ela é uma das colaboradoras da ALMEM – Associação de Luta Por Moradia Estrela da Manhã. A organização está cadastrada no app RAH, e foi impactada pelo recebimento de doações nesse período por intermédio do aplicativo.

“No comecinho, talvez pela grande sensibilização, muita gente doou, a gente conseguiu juntar a vakinha online para arrecadar as cestas e tudo mais. Mas eu creio que agora que passou aquela euforia, as pessoas estão relaxando mais, não estão doando tanto quanto no começo”, conta Irani, que percebe que as arrecadações estão diminuindo muito e umas das suas alternativas hoje é a exposição que o aplicativo possibilita, para conseguir se conectar com doadores e manter as doações as famílias atendidas pela organização.

A articuladora até tentou mobilizar doações por uma comunicação fora do ambiente digital, mas ressalta seu descontentamento. “Eu não recebi um quilo de sal sequer”, e complementa que com o app, o pólo conseguiu algumas doações. “Chegou uma doação pra gente, uma doação bem singela, que a moça se mobilizou com as amigas delas para arrecadar coisas para bebês, ai ela viu numa rede para quem doar que era o nosso contato no Jardim Brasil, o mais próximo dela que está na Vila Maria”, afirma Irani, lembrando, que desta doação, a organização recebeu fraldas, leite, absorventes e sabonetes, produtos que foram direcionados para gestantes do bairro.

Irani ressalta que tem muitos moradores no entorno da organização que não conheciam o seu trabalho e que a partir do app, a exposição do pólo de doações alcançou outros lugares, que nem a própria articuladora consegue imaginar. “Essa moça mesmo que está a dois quarteirões da minha casa, e da associação não conhecia nosso trabalho, e através da rede ela conheceu”.

Embora esteja tendo um bom êxito com o apoio do aplicativo, a articuladora comunitária critica esse cenário, onde é preciso construir um mapa de georreferenciamento para expor uma necessidade que deveria ser o centro das atenções da sociedade e do poder público. “A necessidade ela existe, ela é como a violência, você coloca uma lupa nos períodos onde ela está em evidência e depois some, mas ela continua existindo ali”, argumenta Irani.

Inteligência de dados e periferias

Atualmente, a Rede de Apoio Humanitário nas e das Periferias tem um grupo de trabalho focado no desenvolvimento de tecnologias. O desenvolvedor do aplicativo e uns dos articuladores desse grupo é Gilmar Cintra, 31, moradora da Brasilândia, periferias da zona norte de São Paulo. Ele é programador e estudante de Engenharia da Computação na Univesp, Universidade Virtual do Estado de São Paulo.

Cintra diz que a tecnologia como um instrumento para gerar transformação social. E é a partir deste intuito que ele codificou as ideias da rede, estruturou e organizou os dados. A fase de elaboração que o aplicativo passou foi de desenho do protótipo, elaboração de proposta, desenvolvimento e fase de testes. “A gente está trabalhando em outra versão, com melhorias que torne mais fácil também, e tenha mais informações da rede em si”, afirma Cintra.

Segundo o desenvolvedor, umas das suas maiores dificuldades quando estava codificando as ideias da rede foi na captação dos dados. Ele acredita que a periferia tem uma grande defasagem de dados estruturados para se trabalhar. “Aqui na periferia é muito complicado resolver problemas pela simples falta de dados, porque quando você tem os dados, você consegue fazer um mapeamento das coisas e saber onde deve cobrar o poder público, e com a falta desses dados tudo se torna muito mais difícil”, argumenta.

“Quando eu comecei a desenvolver o aplicativo eu queria que a forma da manutenção e de editar as informações fosse de maneira fácil, então eu pensei porque não usar uma planilha online do Google pra fazer isso né, aí eu compartilho a planilha quem tem acesso administrativo para poder editar esses dados e tudo mais”, descreve Cintra, relatando os primeiros processos de elaboração da sua ideia, para encaminhar todos os dados dos pólos que iria estar dentro da plataforma.

Mas para elaborar a forma como os pólos de doações e o receptor iria se encontrar, Cintra montou uma estratégia computacional para reter informações. Ele automatizou uma planilha do Google, que contém informações básicas sobre os pólos, e a partir do endereço de cada pólo ele elaborou o mapa, buscando a longitude a latitude dos locais, fazendo da planilha a maior fonte de informação do aplicativo. “A gente foi melhorando os dados até ter uma base mais sólida, pra gente poder desenvolver o aplicativo e colocar ele no ar”.

Segundo o desenvolvedor, a proposta da solução é ser mais que uma aplicação móvel, mas também uma plataforma que tem a capacidade de explorar uma grande quantidade de dados, para mapear e conectar diversos pólos de São Paulo, através de padrões e relacionamento, detectando um ponto de referência de doações onde todos possam acessar por tecnologias simples.

Direitos invisíveis: abastecimento de água continua irregular nas periferias de SP

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126 dias após a divulgação oficial do primeiro óbito por covid-19, o novo coronavírus, ocorrido na cidade de São Paulo no dia 16 de março, toda noite de segunda-feira a domingo, a água vai embora e só retorna pela manhã na casa de muitos moradores de periferias e favelas. 

Na quinta reportagem da série Cidade dos Direitos Invisíveis, o abastecimento de água surge como uma das principais inquietações apontada por moradores do distrito do Capão Redondo e Cidade Ademar, na zona sul de São Paulo. Apuramos que após 126 dias da divulgação oficial do primeiro óbito de covid-19 no município, ocorrido no dia 16 de março, toda noite de segunda-feira a domingo, a água vai embora e só retorna pela manhã.

No mês de março deste ano, a Coalização pelo Clima, rede de coletivos que debatem e promovem ações de acesso à informação para combater mudanças climáticas, deu inicio a um processo de identificação de casos na cidade de São Paulo, onde os moradores estavam enfrentando problemas de abastecimento de água no início da pandemia. Na primeira fase do estudo, foram identificados 138 relatos de moradores que residem em periferias, favelas e cortiços nas quatro regiões do município.

Em meio à pandemia de covid-19, o novo coronavírus, a freqüência desses relatos reforça a crise sanitária em curso nas periferias. “No meu bairro falta água 1 hora e só volta de manhã”, conta Silvia de Souza, 43, moradora da Cidade Julia, no distrito Cidade Ademar, citando o horário que ela e seus vizinhos ficam sem água de maneira rotineira no bairro.

Silvia lembra que essa experiência de ficar sem água não é algo novo. “Teve uma vez que ficamos quatro dias sem água por causa de uma obra da prefeitura. Já é difícil ficar sem água, agora com esse vírus é muito mais difícil. A gente ta desprotegido aqui”.

No Capão Redondo, distrito localizado do outro lado da zona sul de São Paulo, que faz divisa com o município de Itapecerica da Serra, Embu e Taboão da Serra, Cristiane Silva, 39, afirma que morar no território é conviver com uma infraestrutura precária de serviços essenciais à vida. “Aqui tem casas de alvenaria e outras de madeira, em muitas partes as ruas são de barro, falta água sempre aqui e a energia é bem precária, não funciona quase nada”.

Dados invisíveis

No início do mapeamento realizado pela Coalização pelo Clima, no distrito do Capão Redondo foram registrados 11 casos de abastecimento irregular. Já na Cidade Ademar foram registrados quatro casos.

Com mais de 268 mil habitantes, o Capão Redondo tem uma média de 19 mil por quilômetro quadrado. Como o abastecimento de água atinge um bairro inteiro ou mais, fica impossível saber quantos moradores de fato estão sendo afetados pela falta de água.

Esse cenário muda completamente quando observamos os dados demográficos da Cidade Ademar. O distrito tem uma das maiores densidades de moradores da zona sul de São Paulo. Mais de 22 mil pessoas residem por quilometro quadrado no território, o que só aumenta ainda as incertezas sobre quantos moradores de fato estão sendo afetados neste momento de pandemia pelo interrupção no fornecimento de água.

Embora os moradores apresentem essas vivências que ilustram uma realidade cotidiana, as campanhas públicas veiculadas pela prefeitura de São Paulo pedem que se lavem as mãos com certa periodicidade, para prevenir o contágio. Na análise do geógrafo e mestre em planejamento e gestão do território, José Donato, morador do Campo Limpo, a água faz parte de uma dura realidade periférica.

“A questão da água nas periferias traz uma realidade muito dura, no sentido em que nos meios de comunicação sempre aparece uma mensagem para você lavar as mãos e se higienizar, quando você sabe que você tem aquele princípio limitado, que em determinados horários você não vai realizar o básico”

afirma o geógrafo, destacando a questão marcante que e o horário que a água costuma sumir das torneiras.

Ele enfatiza que a limitação dos moradores ao consumo de água gera uma desigualdade social em relação aos hábitos de higiene individuais e coletivos. “As pessoas trabalham diante das possibilidades com uma grande limitação do acesso à água, que muitas vezes é básico para o seu consumo e agora tem que dividir com higiene, com maior esforço de manter as mãos limpas, de lavar as máscaras, têm uma limitação de cuidar de si mesmo e do próximo”, analisa.

“Meu sonho é ter todas as ruas asfaltadas, rede de saneamento básico e energia elétrica de qualidade”

A profissão de diarista sofreu grandes impactos durante a pandemia de coronavírus. Quem não perdeu o emprego, foi afastada do posto de trabalho por tempo indeterminado, está trabalhando com uma carga horária reduzida ou em poucos dias no mês, o que afeta diretamente o salário final, comprometendo a renda familiar.

A relação entre trabalho, renda, moradia e urbanização está diretamente conectada a vida da Vanusia Silva, 43, moradora do Jardim Itaoca, no Capão Redondo. Ela relata que vive numa constante crise com o território onde vive com mais oito membros da família. “Quando chove vira aquele rio, não dá nem para passar, tem que esperar, mas a prefeitura não está fazendo nada pela gente não, continua igual, só que agora é pior porque precisamos mais”.

Vanusia diz que a pandemia aumentou as dificuldades de manter uma renda familiar estável. “Eu trabalhava de diarista, agora por causa do coronavírus, só vou um dia e isso dificulta muito porque só meu marido tá trabalhando aqui e somos oito. Estamos vivendo basicamente com o salário do meu marido e o auxílio emergencial que eu consegui”.

Desempregada e sem renda, a moradora da Cidade Ademar, Silvia Souza, está numa situação parecida com a de Vanusia. “Estou desempregada e sem renda, moro no terreno dos meus pais e estamos vivendo das doações”, afirma ela, cobrando uma posição do Estado, que deveria se atentar a questão de moradia.

“Acho que o governo deveria fazer mais habitações para que as pessoas saiam do aluguel, porque hoje quem ganha um salário mínimo paga 600 ou 700 reais de aluguel e o resto não dá nem para o mercado. E nesse momento, se as pessoas não tivessem que pagar o aluguel sobraria um dinheirinho a mais para ajudar a se cuidar”.

Silva acredita que a questão da moradia está ligada com a segurança habitacional. “A moradia própria tem uma ligação direta com a segurança, a segurança de você estar em um local e no dia seguinte você vai continuar nele. A dificuldade de ter acesso a moradia principalmente pelos custos, longos períodos de pagamentos, o sonho da casa própria é cultural, que vem passando de gerações. Hoje é menos coletivizada dentro do imaginário da população e mais individual, onde você tem uma questão de luta individual pela moradia onde você vai agregar sua família”.

Embora não se conheçam e também não sejam vizinhas, Cristiane, moradora do Capão Redondo, conta que seu sonho é presenciar a urbanização e a melhoria da vida no bairro. “Meu sonho é ter todas as ruas asfaltadas, rede de saneamento básico e energia elétrica de qualidade. Eu tinha e continuo a ter o sonho da moradia própria, porque vivo em uma ocupação e a qualquer hora podem me tirar daqui”, finaliza.

Moradora do Grajaú usa literatura para discutir a ‘travestilidade’ da quebrada

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A partir da realização de encontros literários, a produtora cultural Marcia Marci criou um espaço afetivo, cultural e político que mobiliza jovens moradores do Grajaú e de outros bairros para de maneira sensível e acolhedora debater gênero, sexualidade e a ideia de ocupar a cidade.

O sonho de poder ocupar a cidade de dia, ocupar seu bairro em um momento que não fosse apenas de noite, moveu Marcia Marci, 30, produtora cultural, jornalista e moradora do Jardim Icaraí, bairro do distrito do Grajaú, na zona sul de São Paulo, a materialização do Sarau Travas da Sul, uma iniciativa que segundo ela sempre foi seu sonho. “Para mim é materialização de um sonho, criar um cenário que é possível de se habitar, que seja menos perigoso, que a gente possa falar sem ter receio ou medo de existir”.

Ela explica que o anoitecer na periferia possui significados simbólicos quando se é travesti na quebrada. “Muitas vezes eu me sinto segura só à noite, só quero sair de noite, então o sarau vem para tirar a gente da noite, dos guetos, e ocupar a cidade enquanto direito sendo uma trava, uma bicha, um gay, uma sapatão, sendo o que quisermos ser”.

Neste universo, Marci surge protagonizando a criação de encontros literários, como a realização do Sarau Travas da Sul, iniciativa que nasce para ser um espaço para preservar e valorizar a liberdade de expressão e acolhimento da comunidade LGBTQI+, através da difusão de trocas de afeto, vivências políticas e construção de senso crítico.

“Eu quero que as pessoas venham aqui e mostrem seus trabalhos, sua arte e também trazer essas pessoas para serem produtoras culturais”, argumenta, enfatizando que esses espaços coletivos como o Sarau Travas da Sul e o coletivo Coiote lhe ensinaram muito sobre brigas, respeito, cultivar os afetos e principalmente a celebrar a vida, de acordo com o que ela se identifica.

Jovens participam do Sarau das Travas (Foto: Distrava Okê)

O trabalho da produtora cultural vai além do movimento cultural, político e afetivo com a comunidade LGBTQI+. Ela também está em busca de criar outros imaginários de vida, a partir da importância de celebrar a identidade nesses espaços coletivos.

“Esse processo todo de trabalhar com a cultura, entender a articulação de território, entender a comunidade do sexo dissidente acaba chegando ao sarau, nesse lugar de diversas linguagens e narrativas que são produzidas pela comunidade de sexo dissidente no geral”, conta ela.

Marci lembra que o seu passado foi marcado por muitos atritos com a família e com o bairro onde ela mora, mas que hoje, a cultura lhe possibilita outras leituras de mundo. “Tinha uma relação muito difícil com a minha família, com meu território e comigo mesma, mas agora consigo viver e criar outras possibilidades, e sempre dialogando com a quebrada a questão da travestilidade, como essas discussões acontecem nas periferias, como é entender que a travesti não é trans, mas é uma mulher e também não é cisgênera”.

 Território e identidade travesti

Ao entender o contexto de ser travesti na quebrada, Marci usa várias linguagens e narrativas que atravessam a sua existência, para distribuir pelo Grajaú e pelas periferias de São Paulo suas inquietações, com sua escrita e sua fala, a fim de alcançar outras pessoas, pautada pela criação de outras perspectivas sobre ser LGBTQI+ nas bordas da cidade.

Ela também questiona o termo ‘trans’ e devido à reprodução de narrativas, a produtora cultural ressalta que há uma necessidade de compartilhar conhecimento de forma coletiva no território e traduzir alguns conceitos ainda pouco difundidos na quebrada. “Como as pessoas falam essas narrativas nas periferias? Aprendi tudo isso e tento passar. Hoje eu sou uma mulher travesti no Grajaú e me sinto muito mais segura aqui e nas quebradas de São Paulo do que no centro da cidade”.

Marci explica que ser travesti não é ser trans. Segundo ela, isso abarca transgêneridades, pois trans é uma palavra que vem da Europa, desse sistema médico e jurídico para normatizar, falar o que é, e inclusive como tratar isso. “Eu me reconheço como travesti, me sinto bem como travesti, e me sinto bem como travesti no Grajaú”.

Para a produtora cultural, o direito à cidade e principalmente o direito ao território é algo distante na vida de muitos moradores da periferia que vive a rotina de correr do trabalho pra casa, e muitas vezes do trabalho para o lugar que estuda e só depois para casa. Ela acredita que essa rotina atrasou a construção de sua identidade e raízes, a partir do convívio nas periferias do Grajaú.

“Com uns dezoito ou vinte, comecei a estudar jornalismo e logo consegui um estágio na área e eu ficava o dia inteiro fora. Nesta época comecei a estudar gênero, e eu me entendia enquanto homem gay. Minha sexualidade vem mais tarde e a minha identidade eu escondi de mim mesma por muito tempo”.

relembra.

Ao entender o contexto de ser travesti na quebrada, Marci usa várias linguagens e narrativas que atravessam a sua existência, para distribuir pelo Grajaú e pelas periferias de São Paulo suas inquietações, com sua escrita e sua fala, a fim de alcançar outras pessoas, pautada pela criação de outras perspectivas sobre ser LGBTQI+ nas bordas da cidade.

Ela também questiona o termo ‘trans’ e devido à reprodução de narrativas, a produtora cultural ressalta que há uma necessidade de compartilhar conhecimento de forma coletiva no território e traduzir alguns conceitos ainda pouco difundidos na quebrada. “Como as pessoas falam essas narrativas nas periferias? Aprendi tudo isso e tento passar. Hoje eu sou uma mulher travesti no Grajaú e me sinto muito mais segura aqui e nas quebradas de São Paulo do que no centro da cidade”.

Marci explica que ser travesti não é ser trans. Segundo ela, isso abarca transgêneridades, pois trans é uma palavra que vem da Europa, desse sistema médico e jurídico para normatizar, falar o que é, e inclusive como tratar isso. “Eu me reconheço como travesti, me sinto bem como travesti, e me sinto bem como travesti no Grajaú”.

Para a produtora cultural, o direito à cidade e principalmente o direito ao território é algo distante na vida de muitos moradores da periferia que vive a rotina de correr do trabalho pra casa, e muitas vezes do trabalho para o lugar que estuda e só depois para casa. Ela acredita que essa rotina atrasou a construção de sua identidade e raízes, a partir do convívio nas periferias do Grajaú.

“Com uns dezoito ou vinte, comecei a estudar jornalismo e logo consegui um estágio na área e eu ficava o dia inteiro fora. Nesta época comecei a estudar gênero, e eu me entendia enquanto homem gay. Minha sexualidade vem mais tarde e a minha identidade eu escondi de mim mesma por muito tempo”, relembra.

Marcia Marci é uma das criadoras do Sarau Travas da Sul, realizado no Grajaú, zona sul de São Paulo. (Foto: Ric Galego)

A articuladora cultural conta que começou a viajar pelo Brasil com o coletivo Coiote, fazendo atividades de literatura libertária, lendo textos e causando discussões sobre gênero, feminismo e educação e nesse processo ela consegue se desprender do padrão do gênero masculino e se reconhecer como Marci, uma mulher travesti.

“Comecei a viajar com o pessoal do Coletivo Coiote, trabalhando com a leitura e discussão de textos libertários, fazendo fanzine e tudo. Aí nesse período foi quando me percebi saindo do padrão desse gênero, quando eu usei saia, quando eu me questionei enquanto homem”, afirma.

Este processo trouxe várias memórias de sua infância quando ela já sentia que não queria ser o menino que todos enxergavam nela. “Eu me lembrei de quando eu ganhei cueca no meu aniversário de criança. Eu chorei muito, muito, muito, e as pessoas preocupadas, perguntando por que eu tava chorando e eu dizendo que queria ganhar tudo menos uma cueca”.

A partir do momento que se abandona essa identidade masculina, ela começa a se ver como uma mulher travesti e não uma pessoa trans, relatando que trans é uma palavra trazida da Europa, usada para normalizar os corpos. “É importante deixar claro que não me reconheço como uma mulher trans, mas sim como travesti, porque existe um apagamento da identidade travesti, assim como as ‘Muxes’ no México são identidades não cisgêneras. As travestis são identidades não cisgênera, então quando a palavra trans vem é pra colonizar um corpo não cisgênero”, conclui.

“Minha intenção é fazer com que o favelado se imagine como filósofo”, diz youtuber

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Jovem da periferia da Paulínia criou um canal que traduz pensamentos de filósofos que marcaram época utilizando exemplos do cotidiano de moradores da quebrada.

Estudante de história, Marcelo Marques criou o canal Aldino Vilão para traduz ideias de pensadores (Foto: Marcelo Marques)

Em menos de um mês, o canal de YouTube ‘Audino Vilão’ ganhou mais de 70 mil inscritos. Criada pelo youtuber Marcelo Marques, 18, morador do bairro Vida Nova, localizado na periferia de Paulínia, a iniciativa utiliza a linguagem periférica, formada por gírias e jargões populares elaborados por moradores, para traduzir ideias de pensadores e filósofos que marcaram época e moldam a forma de pensar da sociedade.

Um dos vídeos publicados recentemente aborda o tema ‘Traduzindo karl Marx para gírias paulistas’, viralizou em redes sociais como Facebook e Instagran, rompendo as barreiras do YouTube e alcançou 190 mil visualizações na plataforma de compartilhamento de vídeos do Google.

Marques afirma que a Filosofia tem o poder de cativar as pessoas a produzir conhecimento. Ele relembra que essa descoberta veio de maneira espontânea, através de um professor que dava aula para ele na metade do ensino médio. “Eu não tive incentivo na escola, porque quando estudei filosofia mal tinha aula. Eu tive aula realmente de filosofia só na metade do segundo ano do ensino médio”, lembra o youtuber.

Em busca de cativar outras pessoas, o jovem cursa atualmente licenciatura em História no formato EAD. Ele utiliza os conteúdos baixados durantes aulas online para elaborar os roteiros dos vídeos publicados no canal.

“Como eu faço EAD eu tenho as aulas de filosofia todas baixadas. Eu dou uma revisada, converso com alguns professores que eu tenho contato e elaboro o roteiro tá ligado?”, descreve Marques, relatando o processo criativo para criação dos vídeos. A partir deste trabalho, um dos objetivos do youtuber é se tornar o que ele define como “vilão do conhecimento”.

Segundo Marques, o seu canal nasceu para utilizar os conteúdos e a plataforma das redes sociais como um meio de despertar o questionamento filosófico na vida das pessoas com uma linguagem acessível que chega às quebradas. Ele acredita que essa é uma das maneiras de “distribuir para a favela no pique Robin hood”.

O trabalho dedicado a produzir vídeo para o Youtube não é uma atividade recente na vida do jovem morador de Campinas. Ele recorda que antes de destacar a filosofia como principal tema das produções, ela produzia vídeos com outros conteúdos, porém foi falando sobre pensadores e filósofos que ele descobriu um novo jeito de elaborar os conteúdos para o canal.

“Eu mudei o formato do vídeo por causa da demanda, o pessoal começou a gostar”, conta ele, justificando que o vídeo sobre o “veinho gordinho e rouba brisa” foi uma tentativa de tornar cômico os pensamentos de Karl Marx.

“Eu gravei o vídeo de Karl Marx na intenção de ser uma comédia, de ser uma negócio um pouco mais engraçado, mas quando eu fui ver o vídeo, que eu sempre assisto meus vídeos antes de postar, eu vi que ficou algo bem didático, ai eu falei mano porque não postar?”

Marques revela que não edita seus vídeos. Ele apenas grava no seu celular, aprova a estética e publica na plataforma de compartilhamento de vídeos. “Eu não tenho equipamento pra isso né. Eu tenho meu notebook, que coitado tá veinho, não aguenta rodar Sony Vegas, nem After Effects e Premiere. Não aguenta não”, explica.

Neste momento, onde o canal começa a dar sinais de mais engajamento para o seu público, o youtuber diz que está fazendo uma vakinha online para investir em equipamentos que vão aprimorar a ambientação dos seus vídeos.

“Minha dificuldade mesmo é às vezes minha mãe me chamar no meio de uma gravação, um bagulho assim”. Ele explica que a ambientação ajudará na elaboração dos seus vídeos, bem como na construção da identidade do conteúdo. “os caras passando cortando de giro, o carro do ovo, essas coisas. Mas isso também ajuda na ambientação da favela, pra gente se sentir bastante acolhido, pra gente se sentir encaixado no vídeo”, complementa Marques.

Os seguidores do canal têm uma forte influência na seleção dos assuntos abordados em cada vídeo produzido pelo youtuber. “Eu to atendendo alguns pedidos, tipo Espinoza. Espinoza foi muito pedido. Segunda-feira vai ter de Bauman, tem muita gente me pedindo e eu vou atender esses pedidos”, conta ele, afirmando que vem percebendo o crescimento de uma grande demanda de estudantes que estão se preparando pro Enem, e isso o deixa atento para atender esse público de inscritos no canal.

“Boa pra quem tem cursinho pago online, boa pra quem o EAD funciona quem mora na roça se deu mal, porque não chega nem sinal de celular, imagina de internet, quem não tem a condição de ter wi-fi em casa também se deu mal, então o governo não está nem aí, não tá dando base pro estudo. Então acho importante estudar pela internet, vou tentar fazer o máximo de filósofos mainstream”, argumenta.

O youtuber revela uma lista de pensadores que serão tema dos próximos episódios de vídeos em seu canal. “Kant, Hume, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, já fechei a trilha dos socráticos, vou ver se eu trago os pré-socráticos”, conta ele, demostrando uma consciência sobre o descaso do poder público com a educação.

Para dar sua contribuição para quem esta se preparando para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), ele está elaborando conteúdos que vão impactar uma parcela considerável de estudantes das periferias, que tem dificuldade para compreender e fazer uma leitura de mundo, a partir da obras destes pensadores.

A leitura do mundo periférico

“Eu pego a ideia do cara e falo mano, como isso aqui tá no meu dia dia? Como isso tá no dia dia dos meus amigos? Dos meus parças? Por exemplo, hoje eu falei do Dualismo Cartesiano, aí eu falei mano vou comparar com WhatsApp, porque faz sentido, é um bagulho que todo mundo vê, todo mundo tem, um bagulho assim”, analisa Marques, ressaltando que o canal serve para provocar uma leitura de mundo atual, através da interpretação do passado.

O Jovem carrega suas provocações abusando da interpretação da linguagem utilizando a dialética periférica para isso. Aproveitando uma frase famosa no cotidianos com seus parças, ele mostra que o conhecimento existe, mas com interpretações de mundo diferente. “A favela também tem várias frases entendeu, que os moleques carregam tipo ‘comigo quem quiser, contra mim quem puder’. Poow!, super Maquiavel isso ai, ta ligado?”, explica Marques.

O youtuber traz essa releitura da rotina dos moradores da periferia, pelo fato de perceber que é dentro da rotina desses moradores que está à acomodação. Ele conclui que é nela que se faz o sujeito periférico não refletir sobre sua atual condição dentro do seu território.

“No meu caso, eu faço muito mais voltado para a reflexão e atitude dentro da favela, para você quebrar esse cotidiano, para você fazer mais que só suas tarefas, que você faça suas tarefas pensando”, diz o youtuber, destacando o seu sonho de quem um dia a sua mensagem chegue nas casas de várias quebradas do Brasil.

“Minha intenção é essa: fazer com que os favelados, os mandrake, nós se imagine como filósofo, tomando as atitudes desses caras, que a favela também detenha o conhecimento de filosofia, mas também sai filósofo da favela, que o bagulho não fique só naqueles velhinho barbudo elitista cheio de dinheiro, que vai fazer um doutorado na gringa. A favela também pode ter filosofia”, finaliza Marques.

Pandemia aproxima empresa comunitária de internet de moradores da Cidade Ademar

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Graças aos serviços prestados por uma empresa que fornece fibra óptica nas periferias de Diadema e em bairros da Cidade Ademar, zona sul da cidade de São Paulo, moradores relatam que conseguiram emprego e acesso a entretenimento durante a pandemia. 

O departamento de atendimento e vendas da empresa é formado somente por moradoras do bairro. (Foto: Tamires Rodrigues)

Além da pandemia de coronavírus, outro fator importante para gerar aumento nas vendas de planos de internet da VeloxNet, uma pequena empresa comunitária que fornece fibra óptica no distrito da Cidade Ademar, zona sul de São Paulo e nas periferias de Diadema, município do ABC paulista, foi o desinteresse das grandes operadoras de telecom em atender os moradores da região.

Moradores, comércio local e serviços essenciais conseguiram acesso a internet para manter uma rotina de trabalho graças aos serviços oferecidos pela empresa. “A gente percebe o quanto o morador da periferia é deficiente da parte de tecnologia, de internet, a gente vê um pré-conceitos das grandes operadoras,” relata Marcelo Vicente, 52, um dos sócio-fundadores da empresa.

Vicente conta que tem ciência que nesse momento de pandemia a empresa está prestando um serviço essencial para moradores das periferias, e o cuidado e a escuta está sendo o melhor meio de comunicação entre a empresa e o cliente. “No meio da pandemia estamos com um serviço de extrema necessidade e tivemos que nos proteger, tivemos que entender e conversar com nossos funcionários dizendo: ‘todo mundo vai precisar da gente’, então a gente fez aqui um protocolo anti-Covid”.

O sócio fundador acredita que a empresa precisa se adaptar ao ritmo dos moradores para pensar não só em lucro, mas também em suas necessidades básicas. “A gente acha que assim, independente de nós termos uma empresa, que ela é fins lucrativos , ela é uma empresa que precisa gerar lucros, mas a gente entende também que a gente vive em um outro mercado, um mercado que a gente tem que ter hoje um entendimento de duas mãos”.

Assim que iniciou a pandemia, a empresa começou a adaptar os prazos de pagamento, dando um prazo maior para os clientes que ia 30 a 60 dias para pagar as mensalidades pendentes. Com essa medida, Vicente relata que muitos moradores conseguiram se adequar ao pagamento e o consumo até aumentou.

“O consumo na pandemia triplicou. Todo mundo em casa, todo mundo necessitado de usar internet , muitas pessoas trabalhando em casa, as crianças que não iam pra escola precisando de internet”, avalia o sócio-fundador da VeoxNet, justificando a alta demanda pelo fato da pandemia aumentar a concentração de moradores confinados em suas casas nos bairros atendidos.

“No pior período da pandemia, entre Março e Abril, nós isentamos a taxa de ativação, e colocamos taxa zero para pessoa só ter a despesa após 30 dias de utilização”, ressalta Vicente, afirmando que ao sentir o crescimento da demanda, a empresa tentou entender as necessidades dos moradores para flexibilizar formas de pagamento.

Atualmente a empresa oferece planos com velocidades de 20, 30, 45, 70 e 120 megas. Os preços variam entre 69,90 e 129,90. Outra media para atender o aumento nas vendas e instalação foi estender o horário de funcionamento, fazendo plantões de suporte aos moradores aos domingos e aumentando o quadro de funcionários.

Nos últimos 60 dias, a empresa contratou 10 funcionários novos para ajudar a organizar as demandas. “Hoje em nossa política de trabalho, nós só pegamos pessoas para trabalhar conosco da comunidade, mesmo que não tenham experiência, pegamos e treinamos”, diz Vicente.

Letícia Abrahão, 22, é moradora do Jardim Ubirajara, um dos bairros que fazem parte distrito da Cidade Ademar, território onde a VeloxNet atua. Ela foi contratada pela empresa há 30 dias para trabalhar no setor de vendas e recepção. Ela conta que já estava atrás de emprego até essa oportunidade aparecer, por meio de uma amiga.

“Tava atrás há muito tempo, foi difícil, mas consegui”, conta Letícia, lembrando que antes da pandemia já estava frustrada por não ser contratada em nenhum lugar e complementa: “foi bem difícil quase ninguém tava contratando”.

Ao descrever sua rotina e as facilidades sobre o que é trabalhar perto de casa, Letícia enfatiza algumas vantagens. “Muito bom não acordar muito cedo assim, e fazemos os nossos deveres”. Atualmente a moradora leva no seu percurso de casa para seu trabalho 20 minutos. Mas relembra que nem sempre foi assim e já chegou a passar uma hora e meia para chegar ao antigo trabalho. Ela relembra essa experiência e descreve que era “cansativo demais”.

O sócio fundador acredita que esse impacto na vida da colabora tem uma conexão direta com o fato de a empresa apoiar o desenvolvimento da economia local. “A gente vai almoçar no bar da esquina, a gente vai arrumar o pneu no borracheiro da esquina, a gente vai trocar um vidro no vidraceiro da esquina, hoje nós somos consumidores do bairro também, não saímos daqui pra fazer nada, entendeu?”, finaliza Vicente.

“Eu usava a Vivo, uma empresa que faz descaso com o cliente”

Morador do bairro Cidade Julia, localizado no distrito de Cidade Ademar, Robson Willian, 27, é cliente há nove meses da VeloxNet. “Eu a conheci através de um amigo que postou em uma rede social sobre como ela era estável e a primeira internet de fibra da região”, relembra o morador.

Robson só assinou o plano de internet com a VeloxNet , pois a antiga empresa que fornecia internet em sua casa fazia total descaso dos serviços prestados.

“Eu usava a Vivo, uma empresa que faz descaso com o cliente. Ela não atendia, não dava suporte. A internet era muito ruim. Aqui na região antigamente só existia a Vivo, então nós ficávamos muito limitados em realizar algumas tarefas , até pra assistir filmes no Netflix, só poderia se alguém não estivesse navegando em nada”, conta o morador.

Robson ressalta que a falta de investimento de outras empresas na região possibilitou que ele e outros moradores do bairro consumissem uma internet de má qualidade, pra ter o mínimo de acesso digital.

O morador faz uma comparação com a empresa que prestava serviço antigamente e a de hoje. “Além da qualidade absurda do serviço, o preço é acessível, o suporte é rápido, eles são flexíveis em questão de datas onde você pode negociar a data que gostaria do pagamento. São coisas que a outra empresa não fornecia, agora se eu estivesse com a Vivo, não estaria fazendo nem um terço do que estou fazendo”.

Robson utiliza a internet para gerar renda produzindo lives de jogos online nas redes sociais.

Nesse momento, Robson está passando a maior parte do tempo em casa. Consciente da importância de estar conectado com o mundo digital, ele não consegue imaginar como seria ficar sem acesso à internet durante a pandemia. Hoje, ele depende da internet para desenvolver a sua vida profissional, focada na produção de streaming de jogos em seu canal na Twitch TV.

“Fui demitido no início da quarentena e estou procurando emprego”, diz o morador, que utiliza a internet para gerar renda e acessar entretenimento. “Meu maior consumo é na realização de streaming, além de levar um entretenimento legal pra galera, consigo alguns trocados para ajudar nas contas de casa, uso também para games online e alguns cursos”.

Essa semana Robson diz que teve um incidente em seu bairro, no qual um caminhão passou e arrebentou o fio da fibra e em consequência desse fato ele ficou sem acesso à internet. “Isso quebrou uma sequência de lives que eu estava fazendo”, afirma ele, enfatizando que devido a pandemia houve uma demora maior que a normal para solucionar o problema, porém o suporte já foi em sua casa e restabeleceu a velocidade contratada no plano. “Entendemos que não tem como fazer suporte 100% em tempos de quarentena”, conclui o morador, destacando que está feliz por poder retomar a sua rotina de realização de streaming em seu canal de games.