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Desenrola participa do maior evento de tecnologia do Brasil nesta quinta-feira

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Com um bate papo formado por convidados que desenvolvem soluções tecnológicas nas periferias e favelas, o Desenrola vai discutir a importância das tecnologias de impacto social nesse momento da pandemia de coronavírus.

Foto: Thais Siqueira

Começa nesta terça-feira (23) e vai até o dia 25 de março, o The Developer’s Conference, evento dedicado a ditar tendências do setor de desenvolvimento de software no Brasil.  Ao longo dos três dias de programação, uma série de profissionais e formadores de opinião irão compartilhar suas visões de futuro sobre o universo da tecnologia.

Em parceria com UOL TILT, o Blog Quebrada Tech, iniciativa criada pelo Desenrola E Não Me Enrola para investigar o impacto da quarta revolução industrial no cotidiano dos moradores das periferias e favelas de São Paulo, será um dos destaques do evento. 

A importância das tecnologias de impacto social nas periferias e favelas é o tema de debate que acontece nesta quinta-feira, às 10h da manhã, mediado pelo editor Ronaldo Matos e a repórter Tamires Rodrigues do Desenrola E Não Me Enrola. O encontro pode ser acessado na plataforma do evento.

Juntos eles irão entrevistar Fábio Miranda, criador do Lab Periferia Sustentável, projeto que desenvolve tecnologias sustentáveis conectadas com energias renováveis, e Maria Dinha, que desenvolveu uma rede colaborativa de internet livre para moradores terem acesso a serviços públicos, como educação e o auxilio emergencial durante a pandemia.

O projeto Periferia Sustentável, criado pelo cientista Fábio Mirando será um dos destaques do bate papo. (Foto: Periferia Sustentável)

Ao longo do bate papo com os convidados, será abordado como essas experiências de soluções tecnológicas apoiam ações solidárias de enfrentamento à pandemia de covid-19, construindo uma intencionalidade tecnológica que se propõe a resolver problemas sociais estruturantes na vida de moradores de territórios com alta vulnerabilidade social.

Saiba mais:

Serviço: TDC Innovation 2021

Quando: De 23 a 25 de março de 2021, das 9h às 19h (horário de Brasília);

Ingressos: thedevconf.com/tdc/2021/innovation

Programação gratuita: promo.thedevelopersconference.com.br/tdc-2021-innovation

CyberFunk: conheça o futuro do funk nas periferias e favelas

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Movimento futurista criado por jovens da Brasilândia, zona norte de São Paulo, visa transformar o funk numa tecnologia de impacto social de geração de renda, trabalho e autoestima da juventude periférica.

Foto: Dan Fotografia

“Cada pessoa da quebrada é uma estrela, e o nosso baile é um sistema solar”. Essa é definição que o rapper Rincon Sapiência canta em sua música “Amor e Calor”. Essa referência musical inspirou jovens da Brasilândia, zona norte de São Paulo, a criar um novo imaginário sobre o futuro da cultura do Funk nas periferias, transformando os jovens em protagonistas desse cenário.

A partir destas experiências culturais, dois jovens moradores do território da zona norte criaram o Cyberfunk, uma tendência de tecnologias sociais que na visão deles irão transformar a relação das pessoas com o Funk,  diferente da forma como ele é conhecido nos dias atuais. 

Essa história começa a partir do trabalho cultural de Milena Fonseca, 21, moradora do Jardim Carumbé, bairro localizado no distrito da Brasilândia, zona norte da cidade. Ela é diretora criativa e produtora da festa Afrika Queens, um evento dedicado a resgatar e celebrar a ancestralidade e o protagonismo da mulher negra.

Junto com o fotógrafo Danilo Santos 21, morador de Taipas, bairro localizado em Pirituba, criaram um editorial fotográfico denominado CyberFunk, que segundo eles, é o ponto de partida para o movimento futurista ganhar uma estética e um significado popular e acessível a outros jovens das periferias, por meios das redes sociais.

O editorial retrata através da fotografia os cenários culturais que eles pretendem criar e estar no futuro do funk em suas quebradas. Para esse processo ser elaborado, eles imaginaram um futuro, onde o funk não seja só o movimento que agita as noites na quebrada, mas que também traga um protagonismo para juventude periférica.

“São jovens de vários lugares da cidade contribuindo para essas tendências, essas criações e movimentos” 

Milena Fonseca

“O Funk sempre foi popular, como DJ, eu posso dizer que o Funk é o que anima as festas sabe. Se tocar o Funk a festa vai animar na hora, é uma coisa que foge do nosso entendimento”, afirma a produtora cultural.

Ela não se compromete em trazer uma definição sobre o Funk, mas sim explorá-lo em suas diversas narrativas para criar vários imaginários de futuro. “Ele revoluciona, ele cria tendência sabe, ele dita muitas coisas na cidade, e é um movimento inteiro, são jovens de vários lugares da cidade contribuindo para essas tendências, essas criações e movimentos”, complementa.

Milena faz parte da direção criativa do editorial CyberFunk. Ela conta que teve a ideia de construir cenários de futuro para o Funk e para a juventude periférica quando se juntou com outros artistas envolvidos no projeto, como a Mc Luana, na qual, ela considera uma artista incrível que inspirou a desenvolver a ideia do funk futurista.

O próximo passo de Milena foi mergulhar em referências na internet para criar o nome e o conceito do projeto. “Surgiu esse nome Cyber por causa dessas novas tecnologias que a gente tá acessando e da nova era que a gente tá vivendo”, explica.

Danilo relembra o momento quando os jovens começaram a produzir o editorial CyberFunk, “Fiquei muito feliz nesse dia que ela me mandou toda a proposta, eu fiquei no pique de produzir. O resultado foi muito longe, se é louco”, elogia o fotógrafo, afirmando que os artistas envolvidos também ficaram satisfeitos com o resultado do trabalho.

O editorial CyberFunk pode ser acessado por meio do Instagram. Atualmente, os criadores do conceito futurista vêm utilizando seus perfis pessoais nas redes sociais para alcançar e se conectar com a juventude periférica, que enxerga no funk um movimento cultural transformador.

“Hoje a internet é o nosso maior transporte”, avalia a produtora executiva. Ela revela que o projeto irá ganhar novos formatos de conteúdo para abordar o tema CyberFunk.

A diretora relembra que esse movimento do CyberFunk vem na tentativa de modificar alguns conceitos que existem atualmente no Funk. “A cena do funk ainda é muito quadrada em relação às mulheres, em relação a identidade de gênero, em relação a várias coisas. Eu acredito que quem pode modificar isso somos nós”, acredita Milena.

O fotógrafo que é parceiro de Milena no projeto CyberFunk enfatiza a sua crença no Funk e ressalta como essa cultura está conectada com a transformação da juventude periférica. “O funk já passou o tempo de falar muita besteira sabe, hoje os moleques e as minas estão vindo pra revolucionar de verdade, eu acredito nisso, nessa melhoria sempre na área do Funk”.

Um dos propósitos do CyberFunk, segundo Danilo é abordar a autoestima da juventude periférica, para que as pessoas possam se reconhecer como parte deste movimento. “Nosso trampo tem tudo haver com autoestima, a pessoa não se vê como ela é, aí vendo uma foto que foi tirada ela fala: caramba eu sou bonita sim”, analisa o fotógrafo.

Para Danilo, conectar a arte da fotografia com a autoestima da pessoa logo após o fotógrafo ressalta que trazer esses temas para seus trabalhos se conecta com sua arte

“Eu gosto de levantar a autoestima da pessoa, meu trabalho é esse também. Eu acho que isso faz parte do Funk também”, acrescenta Danilo, destacando que o seu trabalho está crescendo e que ele começará a trabalhar também com artistas que cantam Funk agora. “Recentemente eu abri um canal no Youtube e vou começar a produzir clipe também, quero fazer isso”.

O Funk e a economia da quebrada 

Ao descrever a necessidade de trazer novas narrativas de futuro para uma cultura que sofre repressão dentro das periferias, Milena ressalta que além de um impacto cultural, o CyberFunk visa ter um impacto econômico na vida de diversos moradores das periferias, que muitas vezes se encontra sem perspectiva de futuro.

“É a porta de oportunidade para várias pessoas periféricas. Ser um MC e trampar com isso é um sonho que consome a juventude de verdade, em cada quebrada tem pessoas, tem artistas que subiram e conseguiram fazer uma grana e ser reconhecidos”, enfatiza Milena.

Foto: Dan Fotografia

Ela complementa sua visão de futuro afirmando a necessidade de criar uma identidade cultural aonde a periferia não ganhe apenas com a música, mas com todo o ecossistema que gira em torno dela. “Eu acho que a economia vira uma chave porque aí já é outra história, não necessariamente sendo MC, mas fazendo outras coisas”, explica.

Um dos cenários de futuro apontados por Milena para o desenvolvimento da economia do Funk nas periferias é a construção de uma rede social voltada para o movimento CyberFunk. “Imagino toda arte feita de neon, pessoas fabricando seus próprios kits, pessoas fabricando suas músicas e vendendo nesta rede social também”, vislumbra.

Ao lado da sua parceira de trabalho, Danilo ressalta a importante presença do Funk no ciberespaço, como uma das principais ferramentas de visibilidade para Mc’s, para além dos bailes de favela. “Mano o funk faz as pessoas se sentirem feliz, imagina quando isso melhorar ainda mais tá ligado? Tem vários menor que curte e quer fazer um som hoje em dia e que se vê na internet”, exclama o fotógrafo.

Com uma consciência crítica e bem apurada sobre a importância das tecnologias, os artistas afirmam que ela é um meio de comunicação eficiente e acessível para conseguir se expressar, mas ressaltam que não é um fim, e traz a necessidade de enxergar além dos algoritmos. “A internet aproxima e facilita nosso trabalho para que ele chegue mais longe, e o trabalho de outras pessoas que estão longe chegue até a gente, mas a arte tá quase em tudo, só ter a sensibilidade de enxergar, que você vai ver estar em tudo”, conclui Milena. 

Mulheres em lockdown

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Existe um lockdown invisível que atua sobre os corpos nas cidades, isolando e confinando em um estado de pobreza e sofrimento longe das boas novas da modernidade e do direito humano.

Foto: Juh na Varzea @juhnavarzea

No dia em que eu nasci minha mãe trabalhou na casa de sua patroa até a hora do meu parto. Dona Ana, portuguesa, levou minha mãe até o Amparo Maternal, que era para onde se encaminhava mães solteiras pobres em 1981. Minha mãe chegou cedo, mas eu resolvi nascer só às 14h30 da tarde, do dia 30 de julho, prolongando aquele misto de alegria e tristeza, abandono e chegada, medo e coragem que seguem uma mãe solo em sua trajetória.

Minha mãe pediu a nossa senhora Aparecida para que não morresse, pois sem ela, eu não teria como saber quem eu era, mesmo que esse ser fosse forjado pela sua mente sabida, eu seria. Minha mãe teve complicações na cesariana e ficou internada. Dona Ana, como boa patroa me levou para casa, que era dela. Minha mãe queria melhorar logo, dona Ana sempre anunciava lares adotivos ricos para minha melhor estadia.

Sabida também era dona Ana e me registrou em seu nome e em sua homenagem Anabela, nome português. Minha mãe viveu e eu me tornei Anabela Aparecida, pois era impossível mudar o primeiro nome naquela época, não era, mas minha mãe continuou trabalhando na casa de Dona Ana. Eu conheci a Senhora Dona Ana, das Barbies da sua filha Alexsandra que tinha o cabelo preto, diferente de Dona Ana que era loira. Talvez fosse como o pai. Apesar de quase morar no quarto de empregada de Dona Ana, nunca vi o marido dela, nem seu nome sabia. Quando ele chegava, tínhamos que silenciar. Isso foi antes da escola. Depois veio o Collor e Dona Ana voltou para Portugal, pois segundo ela o Brasil havia roubado seu dinheiro.

Nunca mais ouvi falar de Dona Ana, ela morava naquelas ruas atrás da Biblioteca Kennedy.

Meu irmão nasceu em 1983 e eu não me lembro como ele aparece, enfim, eu só tinha 2 anos quando ele chegou. Lembro da gente já grandinho, ainda dente de leite, mas já correndo pelos cortiços de Santo Amaro, ali bem do lado da casa amarela tinham muitos cortiços e amigas da minha mãe dividia quartos com ela. Minha mãe continuou doméstica de outras casas, nessas a gente não ia, ficava na casa de uma amiga da minha mãe, que morava na favela do Puma, era difícil, tínhamos pouca comida para dividir e sentia muita falta da minha mãe.

Até que veio meu pai, seu Antônio adotou a gente. Foi bom, nós começamos a ter paradeiro. Fomos para a favela Monte Azul e desde então, só quando jovem sai de lá.

Nunca se tem muitos sonhos quando se tem uma vida muito dura. Para minha mãe e meu pai, a educação era o caminho de diminuir a exploração do lombo. Não precisar trabalhar com peso ou depender de favor de patrão. Era necessária, importante. Não tinha a ver com faculdade ou outros lugares.

Depois que eu fui descobrindo o mundo, minha mãe foi conhecendo comigo as possibilidades, coisas que não existiam antes. Minha mãe sofreu muito na vida, perdeu minha Vó muito cedo, dona Ernestina, mulher indígena não aguentou por muito tempo 6 crianças e o moinho de cana. Um dia em Vitória da Conquista, Bahia, colhendo arroz na beira do poço teve um infarto e se foi, minha mãe lembra de como encontrou sua mãe e juntas passamos a lembrar de como morreu minha vó, antes que eu pudesse me ver através dela.

Mãe dizia que eu parecia com a Vó. Depois que ela morreu, meu avô, seu Onildo, deu todos os filhos, ficando apenas com o de colo. Minha mãe foi dada a um casal que vinha para São Paulo, ela trabalhou nessa casa como escrava doméstica até os 18 anos. Fugiu sem documentos, analfabeta, pelos conselhos das empregadas das casas vizinhas. Conseguiu morada na casa de uma colega. Tirou documento novo, criou o nome Maria Gonçalves Vaz, com sílabas que lembrava que já ouviu alguém dizer.

Minha mãe me ensinou muito sobre luta, dignidade e amor. Amor pelos filhos de forma incondicional que lhe trouxe muito sofrimento na vida.

Cada problema que temos traça um caminho, cada forma de resolver esse problema traça outro caminho, cada escolha determina como será o seu destino. Desse não se foge, ele só muda de cara com cada escolha.

Eu, como minha mãe fui mãe solteira e tive minha filha na maternidade de Interlagos em 2001, alguns destinos não se muda. Diferente de minha mãe, eu não trabalhei durante minha gestação. Eu não tive complicações em minha cesariana, como minha mãe teve. Voltei para minha casa com meu bebê no colo. Às vezes sinto o cheiro do quarto que fiquei com a Yasmin, do medo, da preocupação de como viver a partir dali.

Minha mãe morreu através de um infarto, não por causa dele, faz pouco. E às vezes tenho medo de morrer como elas, pois mudasse os caminhos, mas destino, esse é danado. Sei que o meu já é bem melhor que minha vó e minha mãe, pois eu vivo melhor. E sei que minha filha, bisneta de Ernestina, neta de Maria, filha de Anabela, viverá melhor que todas nós.

Eu recorro a minha história para falar das linhas da vida das mulheres, somos um trajeto de muita ancestralidade construída em uma dor recente, que ainda podemos ver viajando nos transportes públicos. O anúncio de uma história começa com um bom dia, uma boa noite ou um tudo bem.

Em tempos como esses de terrível crise cíclica do capitalismo anunciada desde 2008 e que foi intensificada e atrelada a uma pandemia para sobrevivência desse sistema de exploração primitiva dos pobres, eu penso em minha Vó e minha mãe.

Solenemente colho das minhas essências as histórias de sobrevivência para construir a minha.

Escrevo sobre minha favela, minha narrativa única que meus olhos traçaram, escrevo sobre o córrego que enredava minha casa e me atravessou na construção da minha auto estima, beleza, sonho e perspectiva de mundo.

Sou eu mulher que compreende as palavras e suas condutas, a primeira das minhas matriarcas que teve a caneta como materialização das ideias, posso mudar o destino?

Ainda em solo periférico, me penso, me questiono, às vezes me vejo vivendo como se não houvesse futuro. Pois, o futuro foi desenhado antes de mim. 

Qual o futuro de uma mulher? 

O passado foi masculino, foi patriarcado de exploração. O futuro espero que se construa pelas mãos das mulheres, que renasça em nossos ventres, mentes e úteros. Mulheres que nascem e outras que se tornam e capazes do ato de luta primordial que é se auto parir, criam um caminho de possibilidades políticas e sociais.

Nós sabemos, murmuramos e gritamos. Expressamos em nossa arte, escrita, trabalho e ciência que a liderança hegemônica do homem falhou em garantir a vida na terra.

Nós reinventamos o sentido da força, dando a ela mais que músculos, potência.

Os homens tentam conhecer nosso ser de força e sensitivo. Não é fácil, mas se não se nasce mulher, se torna como disse Simone, que eles se tornem mulheres.

Aqui nesse pedido não há nada de biológico, ou das identidades de gênero feminino construído para a masculinidade. Mas nascer mulher é reconhecer nosso subconsciente, nossa subjetividade, espiritualidade e a força presente no mais frágil ser.

O machismo e a masculinidade tóxica perpassam os corpos das mulheres, mas nossas dúvidas e lutas dentro da produtividade e produtividade fazem com que essas mazelas se tornem multáveis no nosso modo de vida.

Eu, como milhares de mulheres da minha geração, que nascem no processo de democratização brasileiro, no meio de muita violência forjada pela polícia e o tráfico de drogas, vimos como nós, a periferia crescer, a especulação imobiliária chegar, “shopping”, lojas de departamento, food se acomodar nas esquinas.

Mesmo que crescida e com várias mudanças na vida, a periferia ainda é uma viela e nós mulheres que por mais crescidas e sabidas que nos tornamos, nós e a periferia, ainda temos feridas abertas vindas desse passado recente de desinteresse do Estado e de invisibilidade econômica.

Audre Lorde diz em seu livro “Irmã Outsider”, que toda mudança implica crescimento, e crescer pode ser doloroso. Mas que aprimorar nossa autodefinição quando impormos nossa identidade no trabalho e na luta, saberemos que nós mulheres compartilhamos um objetivo comum e isso pode representar novos caminhos para nossa sobrevivência.

A força das mulheres está em reconhecer as diferenças entre nós como algo produtivo e defender sem culpa as distorções que herdamos, mas que podemos juntas transformar.

Eu retiro de mim toda culpa que eu carrego por ser muitas vezes obrigada a fortalecer essa sociedade, pela minha sobrevivência, pois minha, nossa missão é sobreviver.

Eu serei semente e desejo nesse março triste de morte humana, de valores humanos, de sonhos e destinos, que a força da luta das mulheres que vieram antes, em condições materiais e contextos mais difíceis que os nossos, sejam nossa lamparina nessa devastação da ética da vida.

Precisamos contar a história de nossos antepassados para fortalecer nossa humanidade, não vivemos só uma crise econômica, mas uma crise civilizatória, perdemos o rumo e precisamos reeducar os nossos sobre os valores ancestrais.

A educação é ferramenta transformadora e libertadora, mas não somente a educação formal que em certo sentido só prepara a gente para o trabalho. A educação familiar também prepara para a vida, hoje temos medo que as crianças fiquem em casa com suas famílias, pois acreditamos que o Estado é melhor cuidador. Confiamos em nossas mulheres, ou confiamos somente em nós mesmas e nossas crenças instituídas por uma epistemologia branca.

Audre Lorde também fala sobre a raiva que carregamos e como ela se manifesta brutalmente entre nós mulheres, como transformar essa raiva da pobreza e da violência em combustível de mudança social e não em algoz de nós mesmas.

Nesse momento em que esse texto se manifesta, muitas mulheres estão na luta pela sobrevivência sua e dos seus filhos, como diz Mariana Salomão, mãe correria, somos. Algumas ainda têm tempo para expressar sua raiva do sistema em escritas, poesias, arte, dança. Outras ainda aprisionadas pelo sistema de exploração e produção da vida, sonham quando podem, bebem para tentar sonhar e trabalham para não dormir com fome.

Existe um lockdown invisível que atua sobre os corpos nas cidades, isolando e confinando em um estado de pobreza e sofrimento longe das boas novas da modernidade e do direito humano.

Sinal de Nascença 

Sou negra,
sangue indígena,
brasileira
de trajetória
equilibrada na tragédia,
povo, laço, estupro,
miscigenação forjada no murro.
enfileiradas paulistanas,
desfile de trabalhadoras à deriva,
solavancos do transporte público.
mascaradas relembram,
o passado ancestral.
O medo nos olhos,
a fúria nas mãos.
Ladeiras acima, ladeiras abaixo,
seguimos, lenços no cabelo
colares sagrados no peito.
Observando esse filme coletivo,
do homem branco faminto
por sangue nativo,
uma ordem que não cessa,
segue com nome e sobrenome
de vírus,
uma reprise funesta
de antepassados desconhecidos,
mas sentidos, nas veias que nos restam.

Anabela Gonçalves

Uma dívida de “Dez Conto” é tema de curta metragem produzido por jovens da Vila Missionária

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O Grupo Tomada Periférica se inspira nos filmes de ação e velho oeste norte-americanos para contar a história de uma dívida que põe a vida dos personagens em perigo.  

As lajes da Vila Missionária, zona sul da cidade de São Paulo, são parte do cenário do curta-metragem “Dez Conto”, primeira produção audiovisual criada pelo grupo Tomada Periférica. A história ficcional de ação gira em torno de uma dívida de R$10, um fato comum aos personagens. O curta está disponível para ser assistido no canal do produtor audiovisual Bruno Maciel, que assina a direção da produção.

“Uma verdadeira história de cinema, só que muito longe dos cenários e sets de Hollywood”, define o diretor do curta, Bruno Maciel, sobre o enredo da produção. Lançado em julho do ano passado, o curta teve grande repercussão entre os moradores da Vila Missionária e em outros espaços: “Recentemente, a gente fez uma participação na Virada Cultural e também em uma Casa de Cultura. O curta ‘Dez Conto’ nos rendeu diversos convites e participação em mostras de cinema. Queremos mostrar nosso trabalho de cinema independente, contar histórias”, afirma ele. 

Assista! 

“Eu chamei os moleques pra tomar café, jogar um play[station]. Só que do nada o Bruno apareceu com uma câmera e falou: ‘estou com uma ideia aí, bora aí na laje gravar uma ceninha de luta”, conta o ator Luiz Gustavo, integrante do grupo Tomada Periférica, sobre como a ideia da produção surgiu e como começou a ser gravada.

Formado por moradores da Vila Missionária, o grupo Tomada Periférica tem por objetivo transmitir a experiência de como é uma produção audiovisual na periferia e incentivar o desenvolvimento de novos artistas e produtores audiovisuais.

Confira os bastidores da produção e entrevistas com os atores 

Professores dão aula de solidariedade nas ruas da zona sul de São Paulo

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Os professores Alessandro Rubens e Douglas Passos, estão dando aula de solidariedade, de compromisso com a periferia e com a população que mais necessita.

Alessandro Rubens, Douglas Passos, Rogério Leite e Rafael Sacramento.

Estamos vivendo um tempo de grandes incertezas e muita desesperança. Infelizmente o desgoverno Federal vem insistindo em uma política genocida: redução do auxílio emergencial, retirada de direitos, falta de mediação política para aquisição de vacinas, congelamento de orçamento para saúde e educação, sem falar na escancarada política do toma-lá-dá-cá para manter-se no poder. Obviamente a população mais carente é a que mais sente as dores dessa Necropolítica.

Diariamente, somos bombardeados com os números, com o avanço e as terríveis consequências da Pandemia do Covid-19. Os dados são assustadores, as mortes não param de crescer, o desemprego é o maior da nossa história, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), com 13,9 milhões de pessoas na fila por um trabalho. Inegavelmente, vivemos um período de muito desalento.

Contudo, quando aceitamos o desafio de escrever essa coluna o desejo era evidenciar projetos e movimentos que estão sendo experimentados e construídos nas periferias e/ou por sujeitos periféricos, que trazem esperança e as potencialidades das pessoas. Desta forma, eu trago para esse espaço uma experiência que estou acompanhando de longe, mas com coração cheio de alegria.

Os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelam que, no Brasil em março de 2020, havia aproximadamente 222 mil pessoas vivendo em situação de rua. Neste mesmo período, março de 2020, dois professores da Rede Ensino Pública Municipal de São Paulo estão levando carinho, acolhimento, roupas e alimentos para a população em situação de rua, que com o avanço da pandemia, cresceu e se tornou ainda mais vulnerável.

Os professores Alessandro Rubens e Douglas Passos, estão dando AULA DE SOLIDARIEDADE, de compromisso com a periferia e com a população que mais necessita.

Todas as sextas-feiras, religiosamente, eles saem às ruas da zona sul de São Paulo, para entregar marmitas com alimentos que eles mesmo cozinham para dezenas de homens e mulheres, que são desassistidos pelas políticas públicas governamentais. Durante todo este tempo já foram entregues milhares de marmitas, toneladas de alimentos e um sem número de roupas, inclusive roupas íntimas, muito solicitadas pelos cidadãos e cidadãs em situação de rua.

Nesse período, esses educadores têm vivenciado inúmeras experiências; encontraram inúmeros novos lugares, infelizmente os mais insalubres possíveis, onde esses moradores ficam para abrigarem-se do frio, da fome e mesmo das violências.

Recordo que ano passado, no dia mais frio do ano, eles recolheram cobertores e roupas de frio, que foram entregues juntamente com as marmitas. Eles percorrem as ruas da sul, desde o fundão da M’Boi Mirim, passando pelo Menininha, Jardim Ângela, Capão Redondo, Piraporinha, São Luiz, Campo Limpo até Socorro, Santo Amaro e Avenida Nossa Senhora de Sabará. Esse trabalho é feito dentro de uma van, toda adaptada para poder desenvolver esse trabalho incrível.

O exemplo e o compromisso desses educadores vêm sensibilizando inúmeros outros professores e professoras que ao longo desse período vem contribuindo de várias formas, com doações de alimentos, roupas e recursos, inclusive alguns juntaram-se a eles e estão indo às ruas semanalmente, como os professores Rafael Sacramento, Cínthya Contreira e Rogério Leite de Oliveira.

A coragem desses mestres fortalece nossas esperanças e nos dá disposição para continuarmos a lutar pelos nossos, lutar contra tanto desalento. 

Ações como a do Alessandro e do Douglas e de tantas outras pessoas pela cidade a fora, nos enchem de otimismo e como costuma dizer Frei Betto,

Vamos guardar o pessimismo para dias melhores

“O meu território de militância sempre foi a periferia”: o legado de Anabela Gonçalves

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Na segunda entrevista da série trajetória política, Anabela Gonçalves conta sua história dentro dos movimentos sociais do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, e como essa vivência contribuiu para a sua primeira participação em uma eleição municipal, por meio de uma candidatura coletiva. 

Em 2020, a socióloga Anabela Gonçalves, moradora do Jardim Ibirapuera, zona sul de São Paulo Paulo, participou da candidatura coletiva ‘Mais Direito à Cidade’, chapa formada por Nabil Bonduki, Beto Custódio, Evaniza Rodrigues, Gil Marçal, Iracema Araújo e Rayssa Cortez, pessoas que atravessam de forma direta ou indireta a sua atuação política nos territórios periféricos da cidade.

Em busca de ocupar um gabinete na Câmara Municipal de São Paulo, o grupo chegou a atingir mais 16 mil votos, mas não conseguiu se eleger para o legislativo municipal.

Com base no atual momento de crise econômica, social e política no qual os moradores das periferias vivem em seu cotidiano, Anabela enfatiza que essa condição impulsiona a presença e faz uma pressão para que lideranças comunitárias ocupem espaços de decisão dentro da câmara dos deputados e vereadores, como uma forma de garantia de direitos da população. 

“Eu nunca pensei em me candidatar, na verdade isso foi uma pressão comunitária”

Anabela Gonçalves

“Eu nunca pensei em me candidatar antes, isso nunca passou pela minha cabeça, na verdade isso foi uma pressão comunitária, uma coisa super nova. Eu recebi o convite do Nabil Bonduki para compor a chapa coletiva como representação feminista e periférica, e a ideia amadurece como uma possibilidade de construir uma ponte entre a política e a casa das pessoas, aí eu aceitei porque a gente vive em um momento político muito complicado e o atual presidente pressionou as lideranças das periferias a se candidatar politicamente na ideia de garantir alguns direitos, dentro da câmera dos vereadores e da câmera dos deputados, tentando de alguma forma ter alguma garantia de direitos”, afirma.

Anabela entende que há duas formas de vivenciar e fazer política em nossas vidas. Nessa linha de compreensão, ela define o voto como uma escolha ideológica e cultural sobre a organização política que queremos para a sociedade.

“Existe duas formas de política para mim: a política que move a sociedade que é como a gente dorme, como a gente come, como a gente lê, o que a gente lê, como a gente transa, como a gente casa, tudo isso é política né, é uma forma política de atuação, como é a nossa vida econômica; e existe quem organiza para que isso funcione, que supostamente seriam os órgãos públicos e a política brasileira. Votar significa escolher uma linha ideológica de como eu quero que essa cultura funcione dentro do país, e eu quero que a cultura que existe hoje permaneça ou se eu quero uma mudança cultural, uma transformação cultural do meu país”, explica.

Para a socióloga, uma das questões que mais a incomoda na política institucional é a pouca participação de mulheres negras, indígenas e periféricas dentro da política institucional, e como isso é uma potência para o vício político. “É assim que funciona a estrutura que está aí, seja ruim, seja boa, ela tá contaminada porque também existe uma baixa participação popular, ter mulheres negras, mulheres indígenas, a população que mais sofre com o desgoverno, com a falta da ação política institucional, é uma tentativa de fazer com que esse sistema funcione de uma forma melhor”.

Ela cita a importância de lutar por uma reforma política que represente as demandas e os interesses do povo. “Hoje temos um poder judiciário corrupto que estremece qualquer estrutura política porque sã eles quem de verdade deveria regulamentar e olhar o quanto isso está sendo feito e realizado conforme a lei ou não”, aponta ela.

Outro problema pontuado por Anabela é o cenário do vício político, da não rotatividade democrática, problemas que poderiam ser solucionados com mais participação popular e a mudança de perspectiva da população. “Cada vez mais o sistema brasileiro é mais viciado, os políticos ficam e se aposentam na política e isso promove um atraso no desenvolvimento brasileiro, no que diz respeito ao sistema cultural, do que a gente quer que transforme, é importante que candidatos mais jovens ou com outras ideias, outros sistemas circulem dentro do sistema administrativo político”, diz.

“Colocar mulheres na política é importante, se isso não acontece o sistema democrático é falho”

Anabela Gonçalves

Anabela faz uma análise da quantidade de mulheres, negras, indígenas e periféricas no Brasil em relação à quantidade que estão dentro da política institucional, e fala sobre a importância de ocupar esse espaço como uma forma de garantia de direitos que atendam toda a população. “Olha eu costumo dizer que no Brasil a maioria das mulheres são indígenas e negras, o número de mulheres brancas é muito reduzido em relação à população negra na cidade, então na verdade quando a gente elege mulheres negras e indígenas a gente consegue com que esses grupos sociais garantam seus direitos dentro da cidade, sendo maioria, porque não somos minoria, sendo maioria a gente consegue direitos para todos e todas”, analisa.

Anabela acredita que a inserção de mulheres negras e indígenas na política é uma maneira de combater o racismo e o machismo na democracia. “Colocar mulheres na legislatura política é importante por que é um direito da mulher ter participação política, e se isso não acontece significa que o sistema democrático é falho, não está funcionando, ele continua sendo racista, machista, preconceituoso, então pra dizer que o Brasil avança no que diz respeito a igualdade racial, igualdade de gênero, o primeiro lugar que tem que dar exemplo são os órgãos políticos e os setores públicos né, enquanto a gente não conseguir olhar para o setor público e ver um maior número de mulheres dentro da política significa que nosso país está muito distante de ser um país que alcançou a igualdade racial ou a de gênero”.

Movimento social orgânico 

Atuando como presidenta da organização social Bloco do Beco, a socióloga Anabela Gonçalves, 39, moradora do Jardim Ibirapuera, um dos bairros que formam o distrito do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, acumula um histórico de vida dedicado ao desenvolvimento e execução de projetos e programas sociais que possam melhorar a qualidade de vida e o acesso à cultura dos moradores das periferias.

O Bloco do Beco é uma Associação Cultural que atua desde 2002 no Jardim Ibirapuera. A relação de Anabela com a organização na qual ela é presidenta começou dentro da folia dos blocos de rua, e se prolongou para formações socioculturais.

“Minha relação com o Bloco do Beco começou pelo carnaval né, eu vinha nos blocos de carnaval e participava das ações sociais que eles promoviam aqui no Jardim Ibirapuera, e aí com o tempo nós fomos se aproximando e eu recebi o convite da organização para fazer formações dentro de um projeto que estava iniciando, que era o Bloquinho de Brincar, um espaço de infância dentro da favela da Erundina, depois o bloco me convidou para acompanhar um projeto de formação para jovens do Maracatu, com formação política, cultural, social e musical na área do Maracatu que foi uma forma de instrumentalizar o grupo de Maracatu que já tinha no bloco”, relembra a socióloga, afirmando que no final de 2019 foi convidada para ser presidenta do Bloco do Beco.

A educadora popular faz questão de registrar a importância histórica do Bloco do Beco e sua admiração pela organização que já tem quase 20 anos de atuação na zona sul de São Paulo. “O Bloco do Beco é uma organização que eu admiro muito, porque ela tem sua essência ainda no que a gente chama e reconhece como movimento social orgânico né, que está dentro da comunidade, é feito por quem está dentro da comunidade e é feito pra ela né, e a gente chama isso de movimento social orgânico. Ela nasce dos próprios moradores da comunidade”, avalia.

As raízes culturais de Anabela foram construídas em boa parte pelos vínculos sociais construídos pela sua trajetória de vida nos bairros do Jardim Ibirapuera e Jardim Monte Azul, territórios onde ela cresceu e continua morando até hoje. Antes de se candidatar pela primeira vez para ocupar um espaço de atuação na política institucional, sua trajetória política revela uma série de encontros com o fazer cultural e social nos movimentos sociais orgânicos das periferias.

Desde os 13 anos de idade, Gonçalves afirma que já se envolvia com iniciativas no meio político e cultural. “Com 13 anos eu tinha um grupo de teatro que se chamava Submundo de Teatro e um dos integrantes era o Gil Marçal, ele começou a fazer aula de piano com o professor Ralf Rickli, que tinha ideias de transformação social muito forte e eu comecei a fazer aula de voz com ele, e ele era uma pessoa muito engajada na formação política, social e cultural. A gente fez dessa convivência uma organização social que se chamava ‘Organização Sociocultural Tropis’, tropis é a quilha do barco, a madeira que dá a direção ao barco, com essa ideia de poder orientar e poder dar direção às ações e projetos dos jovens, mas possibilitando para eles a autonomia de navegar”, relembra.

Segundo a socióloga, a Associação Tropis foi formando-a politicamente e a tornou uma educadora, debatedora da política e ativista social. Em 1999, ano no qual ela estava chegando ao final do ensino médio, esta vivência colaborou para atuar profissionalmente em outras organizações.

Além do Bloco do Beco, a socióloga atuou no Instituto Sou da Paz, Projeto Guri, Fundação Julita, Ação Comunitária, Casa de Cultura do Campo Limpo e na Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo com a análise de programação cultural.

A identidade como formação política 

8mAnabela faz uma análise da sua identidade e expressão étnica, pontuando a miscigenação no Brasil e as dificuldades de se fazer um debate das etnias brasileiras. “eu sou uma mulher afro-índigena, é uma identidade, eu falo negraindigena, eu sou uma mulher de traços indígenas e negros, miscigenada da periferia, que reconhece nas duas etnias referências políticas e sociais que foram fundamentais para o fortalecimento da minha identidade, claro que eu vou falar que lá por 95, isso não era tão claro como bandeira como se tornou em 2000, isso se tornou mais forte principalmente por minha atuação ser muito forte como mulheres feministas”, conta ela.

Outro componente importante para a construção da identidade da socióloga foi a vivência com o feminismo nas periferias. “Pensar a atuação das mulheres e o feminismo na periferia me trouxe esse lugar, mas essa é uma discussão muito profunda, porque discutir o lugar da miscigenação é muito difícil no Brasil, ou você é negro, ou você é indígena, essa composição de uma mulher negra e indígena, é a ideia de que a minha miscigenação, o meu lugar de parda, é um lugar que recorre a duas grandes etnias brasileiras que formaram essa população, esse povo, e que tem raízes culturais muito fortes, de luta e que isso me inspirou para as lutas, para militância, para pro ativismo social”, explica.

Em sua trajetória Anabela sempre teve sua atuação e estudo de campo voltado ao território periférico dentro das organizações e movimentos sociais por onde atuou e se formou. “Eu nasci na periferia, sempre morei na favela, antes da favela, quando era muito pequena morava em cortiço, fui para favela Monte Azul, vivi minha vida lá, desde os meus dois anos de idade, morei a minha vida na beira do córrego, até ele ser canalizado, minha casa continua no mesmo lugar, então minhas referências sociais são as periferias”, destaca.

Ela conta que só saiu do território para estudar no centro da cidade. “Eu saí da periferia e fui para o centro para estudar durante um período da minha vida, para fazer a faculdade de sociologia na FESP, nesse período trabalhava na Secretaria de Cultura do Estado como analista de programação, mas para sustentar também esse processo de estudo. Quando terminei a faculdade, voltei para periferia, morando no Jardim São Luís, onde estão minhas referências, e é minha área de atuação propriamente dita que é a lutar né pela melhoria de condições aqui na periferia.”

A socióloga finaliza trazendo a importância de se lembrar das mulheres que vieram antes dela, de se tomar como referências essas vivências e heranças para sua trajetória política. “Uma das questões étnicas que eu carrego comigo nessa trajetória é que eu valorizo muito a trajetória das da minha mãe, da minha vó, que são lá de Vitória da Conquista, na Bahia, que é de onde vem minha herança materna né, matriarcal. Eu valorizo muito essas questões que estruturam a minha vida né, para pensar ações importantes e a cultura é uma das coisas que sempre foi o fio de costura, foi assim que eu parei no Bloco do Beco né, eu nasci da cultura, eu vim do teatro, era uma adolescente que fazia teatro no Centro da Juventude, me envolvi no movimento social e foi me levando para outras ações, para outros estudos, para aperfeiçoar essa atuação dentro da periferia, sempre com uma ideia de que a cultura é sim um fio provedor de transformação, e que nós atores, pessoas periféricas somos as principais ferramentas de transformação de tudo isso,” conclui.

Preço de combustíveis e internet ruim afeta entregadores de delivery na quebrada

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Entregadores afirmam que aplicativos de entrega não levam em consideração a qualidade da internet nas periferias. Além disso, eles contam que a alta demanda de entregadores e o crescente preço dos combustíveis tem precarizado ainda mais a remuneração e a qualidade de vida de quem trabalha com delivery na quebrada.

Brasilândia, zona norte de São Paulo (Foto: Dicampana Foto Coletivo)

Através de um anúncio nas redes sociais, Christopher Augusto, 22, morador do bairro Parque Santo Amaro, zona sul de São Paulo, conheceu as possibilidades de gerar renda se cadastrando nos aplicativos de delivery Lalamove, iFood e Uber Eats. O entregador descreve a ocasião do contato com o anúncio como “um anúncio chamativo e que nos oferece uma boa renda”.

Ele avalia essa descoberta não como uma escolha e sim como o único meio encontrado para não passar dificuldades diante de uma alta taxa de desemprego no país. “Em meio à pandemia, uma das soluções encontradas para não passar dificuldade, e sim à falta de emprego de carteira assinada, é uma das causas”, afirma o entregador.

Além de fazer entregas nos aplicativos durante o dia, Augusto trabalha em uma pizzaria a noite, pois ele acredita que a dependência do aplicativo afeta diretamente na sua qualidade de vida “Se formos depender só do aplicativo para sobreviver, nós vamos ter que trabalhar como um serviço de escravo, tá ligado”, define o entregador.

O argumento de Augusto se baseia na quantidade de horas necessárias para se ter uma renda média mensal que possa apoiar no pagamento dos boletos e gastos fixos com a família. “É preciso trabalhar de 12 a 14 horas por dia para poder manter um salário que possa nos ajudar a pagar nossas dívidas, entendeu?”.

Augusto explica que a concorrência por realização de entregas é outro fator que tem intensificado a precarização dos trabalhadores de aplicativos de delivery. “A demanda de motoboy está muito alta, querendo ou não se tornou uma concorrência tá ligado”.

Segundo Augusto, as despesas com gasolina e internet por mês giram em torno de 700 a 800 reais, sendo que seu salário no mês fora as despesas ficam em torno de 1.500 reais. O entregador ressalta que mesmo tendo um plano de internet para trabalhar, muitas vezes o serviço deixa a desejar, causando interrupção da sua rotina de trabalho.

O entregador faz questão de descrever como a internet ruim dificulta o seu trabalho. “Você chega à casa do cliente, no endereço determinado, quando você vai finalizar a entrega muitas vezes não tem internet não dá pra finalizar a corrida, muitas vezes a casa do cliente é em tal lugar e a localização dele é mais pra frente, aí você vai finalizar é não consegue também, então são algumas coisas que dificulta tá ligado, até mesmo da parte da plataforma dos aplicativos”, conta Augusto.

Outra dura realidade apontada por Augusto é o tratamento diferenciado vivenciado pelos entregadores com usuários de apps que vivem na região central de São Paulo e nas periferias. Ele relata que sua entrega nas periferias e no centro da cidade tem recepções totalmente diferentes, sendo que na quebrada o seu trabalho é mais valorizado.

“Nós sentimos que ao chegar à periferia você dá uma boa noite, bom dia ou boa tarde pro cliente, e já é automático que ele vai te responder, vai perguntar se você tá bem, não é criar uma amizade entre o cliente e um motoboy, é respeito é humildade”, conta Augusto, destacando que dá ponte pra lá o desprezo é uma constante na rotina dos entregadores.

“Eles enxergam a gente como escravos do sistema né, tipo eu to te pagando e você é obrigado a fazer isso, eu sou obrigado a falar com você e já era, até a forma de expressão da pessoa, o olhar da pessoa, entendeu pow, a cara de nojo, já na periferia não é assim, querendo ou não somos de dentro, então um tem que respeitar o outro”, descreve.

O preço dos combustíveis 

O entregador traz um questionamento importante, fazendo uma comparação com a alta dos preços de combustíveis e a estagnação do valor das taxas de entrega que não são corrigidas pelas empresas de delivery, fator que amplia a visão de Augusto sobre a exploração do seu trabalho. “Eu espero que eles percebam que todos nós tenhamos o serviço reconhecido, da mesma forma que teve aumento no combustível tenha um aumento nas nossas taxas de entrega. Sinceramente somos explorados”, avalia.

Mesmo os aplicativos não trazendo benefícios que garantam a segurança dos entregadores, Augusto conta que a própria comunidade se organiza em busca de auxiliar os entregadores a se manter em busca de seus direitos trabalhistas. “Temos uma comunicação um com os outros, agimos como uma família a fim de ajudar um ao outro, no entanto se nós nos deparamos com motoqueiro acidentado paramos para dar uma assistência”, revela.

Ao lembrar a importância dos direitos trabalhistas que ainda precisam ser conquistados, o entregador deixa um recado para os aplicativos de entrega: “gostaria que nossos serviços fossem reconhecidos, e que seja proporcionada mais segurança com uma demanda de tempo correta e uma assistência a todos para que possamos ir adiante sem tanta exploração”.

Jornada de trabalho 

Atuando como entregador nos aplicativos iFood e Uber Eats, Paulo Henrique, 25, morador do Parque Pinheiros, município de Taboão da serra, afirma que uns dos principais motivos para sair de um emprego com registro em carteira e se tornar entregador de aplicativos foi a possibilidade da autonomia na jornada de trabalho.

“Eu saí de um trabalho com carteira assinada só para fazer entregas pelo app. Posso não ter um salário e benefícios garantidos, mas a liberdade de autonomia é maravilhosa, trabalhar na hora e no dia que quero”, conta o entregador.

Durante o seu tempo livre, o morador de Taboão da Serra se dedica a desenvolver seu conhecimento com o audiovisual e a música. “Quero ser artista rico e famoso, mas até lá, preciso desenvolver muito minha arte, então por enquanto vou focar nas entregas”, comenta o motoboy, enfatizando não enxerga alternativa de geração de renda no momento até conseguir aperfeiçoar sua arte com horas de estudos.

Porém, Henrique sente as consequências da escolha pela autonomia de fazer o seu horário de trabalho. Sem uma segurança sobre o que será o presente e futuro, ele lista algumas dificuldades que ficam cada vez mais evidentes e caminham lado a lado com sua rotina de entregador. “Estar à mercê de vários fatores externos que podem me prejudicar, como chuva, enchentes, entregas em lugares perigosos e a falta de pedido que está acontecendo com freqüência”.

Em meio a essas adversidades, o entregador conta que foi se adaptando com os desafios impostos também pela tecnologia de geolocalização dos aplicativos, que em muitos casos é imprecisa. “Muitos estabelecimentos têm uma localização diferente da que mostra no app, daí até eu me acostumar com certos restaurantes eu passei alguns perrengues”.

Diferente da história do entregador Augusto, Paulo conta que utiliza um plano de internet bom, pois nunca teve problemas durante a entrega. “A internet está sempre disponível em todos os lugares”, afirma, mas quando se trata da recepção dos clientes em territórios da periferia e centro, as vivências dos entregadores não são muito diferentes.

“Bairro rico mal olha na minha cara, enquanto na periferia sou bem acolhido pelos clientes, aliás, o rango chegou não é mesmo? Aí eles ficam felizes e são bem legais comigo, dão boa noite, boa tarde”, descreve.

No final da entrevista Henrique nos conta uma dinâmica que normalmente acontece na rotina do motoboy e que representa mais um desafio imposto pelos aplicativos. “Às vezes quase não tem pedido em alguns aplicativos, e é comum o motoboy trabalhar para mais de uma plataforma. Eu mesmo faço entregas para o iFood, Uber e às vezes pra Rappi. Isso é bom porque assim são três vezes mais chances de eu ter entrega para fazer. Mas o ruim, é que alguns aplicativos não autorizam o mesmo motoboy trabalhar para o concorrente, então já até ouvi casos de motoboys serem bloqueados em certas plataformas por terem mais de um aplicativo de entrega”, diz o entregador.

Ela finaliza a entrevista fazendo um apelo para as empresas de aplicativo: “aumenta nosso salário poxa, vocês tiraram uma taxa que já era nossa, daí tá tudo mais difícil”.

Em 2020, a comunicação periférica fez registro histórico da pandemia

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Três iniciativas de comunicação realizaram documentários e webséries com depoimentos de moradores que expõem diversas reflexões políticas e históricas sobre os impactos do coronavírus na população periférica.  

Documentário da Periferia Em Movimento entrevistou diversos atores sociais das periferias durante a pandemia. (Foto: Aline Rodrigues)

Você já pensou em como as produções audiovisuais das quebradas tem registrado os atravessamentos das desigualdades sociais dentro das periferias em São Paulo? Em 2020, esses registros históricos foram produzidos pela produtora de jornalismo de quebrada Periferia Em Movimento, pela cineasta Nana Prudêncio e pela produtora audiovisual Fluxo Imagens.

À sua maneira, essas iniciativas estão produzindo e registrando os impactos do coronavírus nos territórios, corpos e mentes dos moradores das periferias e favelas de São Paulo. Entrevistamos três iniciativas de comunicação que produziram documentários e web-séries sobre o passado, presente,e o futuro da pandemia nas quebradas.

Com direção da cineasta Nana Prudêncio, a produtora independente Zalika Produções lançou o documentário “Pandemia do Sistema: O retrato da desigualdade na capital mais rica do Brasil”. O média metragem narra como as pessoas têm enfrentado a pandemia de coronavírus em diferentes regiões periféricas, retratando os efeitos da crise econômica e de saúde pública, que mostra uma clara diferença social e racial no Brasil.

A Periferia Em Movimento, produtora de jornalismo de quebrada, produziu o minidocumentário “Interrompemos a Programação?”, composto por uma série de entrevistas com personagens da quebrada que tiveram seus fazeres sociais impactados pela pandemia de coronavírus.

Já a produtora audiovisual Fluxo Imagens, apostou numa reflexão sobre o futuro da quebrada, após pandemia, para produzir a série “Cartas Para o futuro”, composta por uma série de entrevistas que relatam o olhar e a vivência dos moradores das periferias da zona sul e como eles imaginam o futuro de seus territórios após a pandemia.

“Eu sabia do coronavírus e que o bicho tava pegando, mas aí eu vi que a fome tava matando mais, a polícia estava matando mais e resolvi fazer o documentário” 

Naná Prudêncio

Naná Prudêncio é fotógrafa, videomaker e moradora do Parque Pinheiros, bairro do município de Taboão da Serra. Ela criou a Zalika Produções e em agosto de 2020, a cineasta lançou o média metragem “Pandemia do Sistema: O retrato da desigualdade na capital mais rica do Brasil” e comenta sobre suas motivações nesta produção.

“O média metragem surgiu quando eu comecei a acompanhar os meus companheiros, lideranças na quebrada e fui pessoalmente nas quebradas e vi que a situação era muito crítica, era mais do que coronavírus, eu não tava saindo de casa, então eu sabia que o coronavírus e que o bicho tava pegando, mas aí eu vi que a fome tava matando mais, a polícia estava matando mais, e resolvi fazer o documentário, em uma das voltas nessas ações que eu fui acompanhar aqui no Taboão”, lembra a cineasta.

Prudêncio comenta sobre a importância de fazer registros na quebrada e principalmente deste momento, criar evidências e narrativas sobre nós e nossos territórios. “A importância de registrar a pandemia dos sistema, de ter isso documentado, de agora, é mais um documento, mais uma ação que a gente tem para comprovar o quanto a desigualdade neste país é estancada, e que as pessoas da periferia elas sabiam, sabem em 2020 no meio de uma pandemia tudo o que tá acontecendo, é muito além do coronavírus, tem o lance da desigualdade, da fome, da miséria mesmo e quantas pessoas ganham grana com essa miséria”, argumenta ela.

Para a moradora de Taboão da Serra, a pandemia ajudou pessoas que ganham grana com essa miséria, mas deixou os pobres cada vez mais pobres. “Os miseráveis cada vez mais miseráveis, mais favelas nascendo, significa que a desigualdade é maior, mostrar esse histórico agora e tentar dialogar com mais pessoas sobre”..

A cineasta enfatiza a importância de escutar os moradores para garantir o protagonismo das vozes e das ideias dentro do média metragem. “Pensando nas vozes, eu quis protagonizar pessoas como mulheres da periferia que estão ali teoricamente anônimas, vivendo suas vidas, umas sustentando suas famílias sozinhas, outras não, mas sempre se virando, e eu queria mostrar para a própria periferia o quanto nós sabemos o que está acontecendo e o quanto nós naturalizamos tudo isso, naturalizou o racismo, naturalizou tudo isso, e a importância também de colocar essas mulheres em primeira pessoa e essas lideranças também em primeira pessoa, elas protagonizarem mesmo, eles falarem o que eles estão pensando, o que eles estão sentindo, o que estão vivendo, nada maquiado”, descreve.

Para Prudêncio, o poder público está ausente nas periferias, pelo fato de não ter visto nenhuma liderança comunitária sendo ajudada pelo governo. “Eu acho que o Governo né, o próprio sistema sabe que a pandemia é geral, que a pandemia não tá só no corona, há um plano de extermínio né, que eu acredito muito nesse plano, principalmente aqui na periferia, eu nasci na periferia, cresci na periferia, vivo na periferia, trabalho na periferia, eu sei que tem um plano perfeito, e esse plano dá certo, tem dado certo, as vezes dá uma escapada desse plano, ele é mundial, então o retrato, como o governo vai enxergar o documentário eu não sei, mas que ele sabe que essa pandemia é o sistema, ele sabe, ele planeja isso, ele articula e prática isso. E essa foi a treta mesmo”, opina a cineasta.

Segundo a videomaker é denunciar esse estado de abandono das periferias e favelas. “A ideia do filme é denunciar isso, mesmo que de diversas formas esse país é genocida, não precisa dar um tiro no peito do meu filho ou no meu peito para eles serem genocidas, ele pode me deixar sem emprego, me deixar sem moradia, na questão habitacional muita gente sem água que a gente fala no filme sobre a questão da água na periferia, que é bem difícil, muitas coisas que quando você tem, é vista até como privilegiadas, esse país é assim, se você tem água boa, você é privilegiado, mas não é seu direito sabe, e eu acho que vem nessa denúncia mesmo, para gente refletir e buscar alternativas sobre todas essas situações que é colocada a população preta e periférica”, finaliza.

“Nós, que lidamos como tecelões da memória coletiva, estamos construindo não só o futuro mas também o passado no presente”

Thiago Borges

A Periferia em Movimento completou 10 anos de existência atuando nas periferias de São Paulo em 2020, uma marca histórica tocada por pessoas que estão produzindo o jornalismo de quebrada, que busca a valorização e protagonismo de quem está nas frentes de luta pela garantia de direitos nas periferias.

Segundo Thiago Borges, 33, morador do Jardim dos Manacás no Grajaú e gestor de conteúdos da Periferia Em Movimento, o minidocumentário “Interrompemos a Programação?” surge com a proposta de refletir sobre esse momento, provocando um debate sobre a influência da mídia na formação da identidade de moradores e moradoras das periferias, e por outro lado, como o território e as relações sociais constituídas nele também influenciam nessa identidade.

Borges comenta que o caminho traçado pela Periferia Em Movimento foi entrevistar pessoas que estão em diferentes frentes de luta nas periferias paulistanas: contra o genocídio negro, o machismo e o racismo; que estão na resistência indígena; nas lutas LGBT, especialmente da população trans; dos direitos de pessoas vivendo com HIV; e pela ocupação da cidade em geral.

“A gente fez entrevistas com moradoras e moradores das periferias que têm uma atuação transformadora em seus territórios, e os relatos estavam confluindo para o ponto em que as narrativas periféricas geram algumas rachaduras no sistema, como se fosse um curso natural das coisas. Porém, a investigação foi interrompida em março de 2020 com a pandemia de coronavírus e necessidade de distanciamento social. A situação, que paralisou algumas ações e acelerou outras em toda a sociedade, refaz as nossas perguntas iniciais: qual é o papel da comunicação nesse momento?”, aponta o jornalista.

Em meio a esse trabalho investigativo, o jornalista ressalta como a pandemia atravessou a produção e o impacto deste momento nas mídias periféricas. “Os relatos estavam confluindo para chegarmos ao ponto de que a mídia em geral sempre teve impacto na nossa forma de ver o mundo, mas as manifestações periféricas desconstroem isso no cotidiano. O fortalecimento de mídias nas periferias ampliam as rachaduras nesse sistema imposto, como resultado de um processo que é antigo. Não é suficiente, mas tem um efeito”, avalia Borges.

Esse impacto da pandemia e do isolamento social foi sentido também na rotina de trabalho da Periferia Em Movimento. “Com a pandemia, tivemos que parar tudo como todo mundo. No início, percebemos um isolamento de fato dos sujeitos periféricos, refletindo sobre o que fazer nesse momento. No nosso caso, não foi diferente. Por outro lado, o momento se mostrou como ainda mais crucial o papel da mídia nas quebradas, da nossa dependência de acessar e distribuir informação útil e confiável para enfrentar esse momento. Então, entrevistamos novas pessoas e voltamos a entrevistar outras que já tinham falado pra colocar mais essa camada em discussão. Nós interrompemos de fato uma programação? Existe essa programação?”, questiona o comunicador.

Borges enfatiza outro ponto importante que foi abordado por Will Ferreira, ex-colaborador da Periferia Em Movimento. “O Will Ferreira apontou: ‘Não é simplesmente pegar o celular e fazer uma live. É pensar também como manter a comunicação com quem a internet não chega, não tem computador, e a gente precisa construir’. Nesse sentido, nós interrompemos de fato uma programação? Existia uma programação? Tudo isso mostra que não há uma linearidade, certo. Nós, que lidamos como tecelões da memória coletiva, estamos construindo não só o futuro mas também o passado no presente. São múltiplas camadas, algumas paralisadas aqui mas outras fluindo de forma completamente acelerada.

Outro integrante da Periferia Em Movimento, o produtor audiovisual Pedro Ariel Salvador, 19, morador do Parque São José, no Grajaú, comenta sobre a importância de registrar esse momento, para criar memória e mostrar o descaso do governo. “Desde o começo da quarentena, nós que somos da periferia pudemos ter mais certeza ainda do descaso do governo, paralelo a isso, também pudemos enxergar a importância da educação e da saúde e o quanto isso chega de maneira precária com quem vive nas margens. As quebradas estão sendo as mais afetadas durante esse período justamente pela falta de estrutura que nos é dada. São trabalhadores e trabalhadoras que precisam sair de casa para garantir o pão de cada dia, mães que precisam trabalhar e não podem deixar os filhos na escola, crianças e adolescentes que não conseguem estudar pela internet. Pessoas que tiveram o “privilégio” de trabalhar em casa, mas ao mesmo tempo não conseguem dar conta da demanda de trampo por simplesmente não ter um local adequado para se dedicar”, analisa.

Ariel faz um importante questionamento sobre a rotina do morador do quebrada que precisa ir trabalhar em meio à pandemia. “Quando saímos, corremos risco de ferir nossa saúde física, quando estamos em casa, corremos risco de ferir nossa saúde mental. Isso só mostra, mais uma vez, que no final de tudo, para quem tá no topo da pirâmide o que mais importa é o dinheiro, o capitalismo. Acho que de maneira geral, os impactos foram bem negativos, mas também consigo enxergar a potência da periferia quando a gente se junta para fazer algo, seja distribuindo cesta básica, marmita, máscaras ou álcool em gel. Isso me faz ter um fundinho de esperança e perceber que a gente tem que lutar sim, mas pra gente lutar, precisamos nos fortalecer antes”. 

“Precisamos tomar a frente das falas que se referem a nós”

Maxuel Mello

“A série, Cartas Para o Futuro, produzida pela Fluxo Imagens surge de uma inquietação do Nenê e minha, quanto às dúvidas sobre o futuro da quebrada e do nosso povo né, a galera que vemos todos os dias e que tanto nós nos identificamos né”, explica Maxuel Mello, 24, morador do Jardim Piracuama, zona sul da cidade. Ele atua como diretor de fotografia e editor na produtora audiovisual criada junto com seu irmão Marcelino Mello.

Juntamente com as inquietações e questionamentos que levaram a criação da série Cartas para o Futuro, Maxuel conta que outro fato muito triste contribuiu para a concepção do projeto: que é não existir registros de como as periferias passaram por outros momentos históricos, ou até mesmo o fato de esse registro ser muitas vezes feito a partir de um olhar branco, de um olhar de quem não vive na periferia, que coloca todo mundo que é de periferia em uma caixinha só.

“Até pouco tempo atrás pensando em tempos históricos, já se viveu outras pandemia, surtos virais e o Brasil também viveu estes surtos, e nesses tempos já existia periferia, já se existia favela, e não se tem registro disso, muito pouco se tem e quando tem é apenas estatístico, viramos números. Ter este registro hoje é garantir que não fique só nos números, que a periferia também tenha sua opinião registrada, no caso da série pensamos em trazer uma reflexão sobre o que será o pós pandemia, como estaremos né”, relata o cineasta da quebrada.

“Foi a partir disso que o Nenê e eu sentimos essa necessidade né, este incômodo, a série também surgiu em um momento de mais dúvidas, em que sabíamos menos ainda sobre o vírus, e o que ele viria a causar e tem causado. Nossa ideia não é responder como será o futuro, nem nada disso, a ideia é questionar o que cada pessoa pensa sobre o seu próprio futuro, desprendido de julgamentos”, conta o diretor de fotografia.

Maxuel enfatiza a importância de produzir a websérie e escutar dos moradores da quebrada como eles estão enxergando e pensando o futuro. “Precisamos tomar frente das falas que se referem a nós. Devemos ser protagonistas da nossa própria história e caminhada, nós que somos os especialistas em vida né, estamos vivos a quanto tempo! A gente gosta de estar vivo. Não é de hoje que se pensa o futuro, na periferia o futuro sempre foi pensado, desde o kit que o menor vai usar no baile, até a feira que a dona de casa e mãe solo planeja minuciosamente para que sobre ainda dinheiro pro gás, luz, água e as demais coisas tão necessárias para se viver. Não só como um registro ali do momento, mas também para que se possa olhar pra trás e ter algum panorama né”, explica ele.

O produtor audiovisual destaca a importância de retratar os corpos de quem vive nas quebradas, para que outros moradores se reconheçam nas histórias que eles contam. “Não se vê rostos pretos e periféricos, nem tão pouco a fala destas pessoas em posição de protagonismo, eu diria que isso vale para todos os meios de comunicação, a Internet nos dá esta possibilidade de mostrar pra mais gente a vastidão que é cada uma destas pessoas. Se ver é muito importante também, olhar alguém parecido contigo e poder ser espelho pra que outros também sejam, isso é lindo, e de novo, muito necessário, para que cada vez mais vejamos nós nos lugares inspirando outros”.

Para dar um tom realista e honesto às gravações da websérie Cartaz para o Futuro, Maxuel destaca que os personagens retratados são moradores da quebrada e foram entrevistados em sua rotina cotidiana. “Retratamos as pessoas do nosso dia a dia, amigos ou não, que topem conversar conosco, e é muito isso, é uma troca de idéia, às vezes chega a ser terapêutico, já ouvimos de algumas pessoas que conversar com a gente a fez bem, tirou a cabeça de um monte de notícia que acaba bombardeando todo dia, que já não se tem uma conversa daquelas de sentar na calçada com os amigos e nem ver o tempo passar. Quase que um suspiro, pra subir na arena de novo e voltar pra batalhar. Nós não direcionamos a fala, o que importa é o que aquela pessoa pensa da forma mais honesta, acho que está honestidade enriquece ainda mais cada um dos episódios”, finaliza. 

Uma carta para Emicida

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E para todas aquelas pessoas que são de quebrada e “ousam” sonhar.

Foto: Luiz Lucas

Peço licença que, na minha condição de jornalista, eu não esteja sendo nem um pouco profissional para usar minha coluna deste mês para escrever uma carta como fã. É que sei lá, eu acho que eu vindo aqui conversar com quem me lê faz mais sentido do que se eu tentar falar isso para o Leandro pessoalmente.

Racionais que me perdoem, mas a minha maior referência de rap nacional, internacional e intergaláctico é o Emicida. Óbvio, a primeira vez que eu escutei rap foi na voz do Mano Brown. O problema é que eu não sabia o que era aquilo e nem quem era aquele. Eu só sabia que estava numa rodinha de amigos com cinco, seis anos de idade escutando sobre a minha realidade.

De antemão eu já digo que não, meu sonho não é conhecer o Emicida. Por mais que eu admire seu trabalho desde 2010, que eu tenha várias tatuagens em referência às suas músicas e já gastei vários dins na Laboratório Fantasma, meu maior sonho é… continuar sonhando. Ter a capacidade de pensar para frente e vislumbrar um futuro é algo que, infelizmente, quem vem de onde a gente vem, às vezes não consegue.

Estamos muito ocupados sobrevivendo. A nossa mente até esquece de um cantinho que tem na nossa caixola chamado SONHOS. É tão complexo que, já que não dá para sonhar acordado, a gente tenta sonhar dormindo, mas nem tempo para dormir a gente tem. Então como faz? Eu me permito sonhar através da música. Pensando nisso, muitas canções do titio Emicida são engrenagens para os sonhos. “É o que eu digo e faço, não suponho, sou milionário do sonho”.

Crisântemo e Ooorra são as músicas que mais fazem sentido na minha vida. Sem pai, elas são trilhas sonoras de vários momentos que me sinto sozinho, perdido. E quem é de periferia sabe que esses momentos costumam ser mais longos do que gostaríamos. Para os momentos de revolta e reflexão temos Eminência Parda, Boa Esperança e Mandume. Para as glórias alcançadas temos Triunfo e Gueto. Para se conectar com nossa ancestralidade não pode faltar Ubuntu Fristaili. Tá, mas aonde entram os sonhos aí? Através das letras, existe uma identificação, onde quem canta, utiliza das suas vivências para girar a chave e zerar o game.

Vocês já tiveram sonhos? Vocês ainda têm sonhos? Se sim, Mas e aí, quebrada, vocês se permitem sonhar? Pode ser um sonho pequenininho ou grandão mesmo, não tem problema. Pode ser desde uma motoca para a criança até uma mansão para a sua véia. Uma viagem para Tóquio ou para a Praia Grande. Já que a gasolina tá cara, deixe que o sonho seja o nosso combustível.

Obrigado ao Emicida e obrigado a todas as pessoas que estão ao meu redor e me dão o alicerce para que eu possa sonhar. “Faz essa por nós, te vejo no pódio”.

Ano passado eu não morri e espero que esse ano eu não morra de novo. 

“O movimento mudou a minha vida”: conheça a trajetória política de Débora Pereira

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Na primeira entrevista da série trajetória política, Débora Pereira conta como o MTST mudou sua vida e a relação com a política institucional. Ao longo do mês de março, o Desenrola vai contar histórias de mulheres indígenas, negras e periféricas que se dedicaram a atuar na política, a partir das vivências em seus territórios. 

Enraizada nas lutas pelo direito à moradia junto a moradores da Ocupação Novo Pinheiro, localizada no município de Embu das Artes, Débora Pereira de Lima, 34, é uma mulher preta licenciada em Matemática pela Universidade Ibirapuera e integrante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Ela é moradora da Vila Aurora, bairro da região noroeste da cidade de São Paulo.

“Eu ajudo no levantamento das demandas em cada região e também na orientação de como pode se obter êxito nas suas reivindicações, cumprindo o papel de mediadora das demandas da comunidade em relação ao poder público”, explica Débora sobre a sua atuação no MTST.

Filha de mãe baiana e pai mineiro, Débora conta que o seu envolvimento com a participação política surgiu na juventude, quando era estudante de escola pública. “Lembro que na minha adolescência eu participei do grêmio estudantil na minha escola, também participei do núcleo da Educafro, coisas que eu só comecei a entender como política recentemente” relembra ela, enfatizando que hoje ela enxerga que a juventude vem cumprindo um papel importante de transformação da política.

Para ela, a política está presente no cotidiano das pessoas, seja nos meios de comunicação, na escola, quando um grupo resolve se organizar para reivindicar algo ou uma bandeira, está presente nos movimentos e nos coletivos. 

“O movimento mudou a minha vida”

Débora Pereira de Lima

A integrante do MTST conta como o movimento social foi importante na vida dela, para que ela começasse a entender e olhar a política com outro olhar. “Eu comecei a entender a política quando entrei para o MTST, antes disso eu não falava em espaços públicos, achava que mulheres não podiam estar nesses espaços. O movimento mudou a minha vida”, afirma.

Após esse processo de descoberta, Débora conta como a sua rotina se transformou. “Minha rotina se baseou em contribuir para luta por moradia nas ocupações, e ajudar na mobilização do nosso povo para as mais diversas atividades e ações e ainda tive a possibilidade de me candidatar como vereadora em uma chapa coletiva. Começar a entender de política me fez entender o meu lugar no mundo, o lugar que podemos ter no mundo e como podemos lutar para alcançá-lo”, descreve.

Em 2020, a trajetória de Débora foi marcada pela disputa das eleições municipais com a candidatura coletiva Juntas, composta por três mulheres que integram o MTST, que se dedicaram a concorrer a uma cadeira de vereador na Câmara Municipal de São Paulo.

Débora conta que a JUNTAS nasceu em 2019 com três objetivos principais: ter representatividade de mulheres negras da periferia; transformar a política atual; e aproximar a população das decisões das políticas institucionais. “Em 2019 realizamos o primeiro encontro de mulheres sem teto, e nesse encontro chegamos ao consenso de que o MTST precisava entrar na institucionalidade para que suas pautas fossem levadas diretamente. E nossa chapa teria que ser como a maioria do movimento é: mulher, preta e periférica”.

“A ideia de ser vereadora surgiu com debates dentro do MTST e dentro de uma reunião com mais de 600 mulheres do MTST. Nesta reunião debatemos a falta de representatividade nos espaços institucionais e a representatividade de mulheres negras da periferia”, relembra.

O ambiente de trocas de conhecimento do bate papo com mais de 600 mulheres foi fundamental para Débora se convencer da importância de ser co-vereadora de uma chapa coletiva. “O mandato nasce na ideia de como o MTST se organiza e como todas as decisões são tomadas de formas coletivas, então decidimos pegar nossa experiência para formar um mandato, e tivemos a referência de uma militante nossa que foi eleita em Pernambuco dentro de um mandato coletivo”, conta Débora, resgatando o nascimento do mandato coletivo e também sua participação.

(Foto: Tom Lopes)

“Queremos nosso mandato aproximando a população do debate político e institucional”

Débora Pereira de Lima

Ela ressalta a importância do mandato coletivo para o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. “Para nós, um mandato coletivo vai além da quantidade de pessoas que estão na disputa como co-vereadoras. Para nós, um mandato é coletivo a partir do momento que as decisões que são tomadas estão abertas para o debate, para a população discutir, para que a maioria construa as suas pautas, é assim que queremos nosso mandato, aproximando a população do debate político e institucional”, define.

Débora traz o sentimento de formar uma chapa coletiva e também as ideias sobre não ganhar nessa eleição, mas continuar dentro das lutas e mobilizações pelo direito a moradia. “Ser vereadora nessa cidade é legislar para o interesse da maioria, principalmente para os mais vulneráveis. Ser vereadora representaria um desafio para nós, pois são espaços historicamente negados. Portanto, representar nosso povo na maior casa legislativa do Brasil seria uma responsabilidade imensa”, avalia.

Atualmente, Débora continua com a fiscalização das políticas públicas destinadas à população mais vulnerável da cidade, acompanhando o trabalho do Gabinete Paralelo, uma iniciativa articulada por Guilherme Boulos, candidato a prefeito pelo PSOL nas eleições municipais de 2020, que faz balanços periódicos e proposições para a cidade, em oposição à gestão do atual prefeito Bruno Covas.

O mandado coletivo Juntas é composto por Débora, Jussara E Valdirene, mulheres que são lideranças do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. 

 Transformação da política institucional

Débora considera que a ocupação dos espaços políticos e de decisão dos rumos da sociedade por minorias sociais indicam um caminho de atuação, no qual, certos debates serão aprofundados socialmente via ação institucional.

“É difícil mudar algo estruturalmente seguindo a institucionalidade, mas entendemos que aumentar nossos números de representantes nesses espaços significa resistir e pautar um debate amplo, que nos faça crescer enquanto oposição e viabilize nossas ações transformadoras”, opina.

Ela finaliza a entrevista enfatizando a importância do voto no Brasil. “O voto significa exercer o seu direito como cidadão. Não é um direito simples, porque sabemos dos problemas da nossa democracia e do nosso processo eleitoral. Mas a conquista foi obtida pelo sangue e suor de muita gente, e devemos valorizá-lo. Não votar hoje, a depender do cenário, pode significar se omitir diante de um momento tão trágico no Brasil”, conclui.