Existe um lockdown invisível que atua sobre os corpos nas cidades, isolando e confinando em um estado de pobreza e sofrimento longe das boas novas da modernidade e do direito humano.
No dia em que eu nasci minha mãe trabalhou na casa de sua patroa até a hora do meu parto. Dona Ana, portuguesa, levou minha mãe até o Amparo Maternal, que era para onde se encaminhava mães solteiras pobres em 1981. Minha mãe chegou cedo, mas eu resolvi nascer só às 14h30 da tarde, do dia 30 de julho, prolongando aquele misto de alegria e tristeza, abandono e chegada, medo e coragem que seguem uma mãe solo em sua trajetória.
Minha mãe pediu a nossa senhora Aparecida para que não morresse, pois sem ela, eu não teria como saber quem eu era, mesmo que esse ser fosse forjado pela sua mente sabida, eu seria. Minha mãe teve complicações na cesariana e ficou internada. Dona Ana, como boa patroa me levou para casa, que era dela. Minha mãe queria melhorar logo, dona Ana sempre anunciava lares adotivos ricos para minha melhor estadia.
Sabida também era dona Ana e me registrou em seu nome e em sua homenagem Anabela, nome português. Minha mãe viveu e eu me tornei Anabela Aparecida, pois era impossível mudar o primeiro nome naquela época, não era, mas minha mãe continuou trabalhando na casa de Dona Ana. Eu conheci a Senhora Dona Ana, das Barbies da sua filha Alexsandra que tinha o cabelo preto, diferente de Dona Ana que era loira. Talvez fosse como o pai. Apesar de quase morar no quarto de empregada de Dona Ana, nunca vi o marido dela, nem seu nome sabia. Quando ele chegava, tínhamos que silenciar. Isso foi antes da escola. Depois veio o Collor e Dona Ana voltou para Portugal, pois segundo ela o Brasil havia roubado seu dinheiro.
Nunca mais ouvi falar de Dona Ana, ela morava naquelas ruas atrás da Biblioteca Kennedy.
Meu irmão nasceu em 1983 e eu não me lembro como ele aparece, enfim, eu só tinha 2 anos quando ele chegou. Lembro da gente já grandinho, ainda dente de leite, mas já correndo pelos cortiços de Santo Amaro, ali bem do lado da casa amarela tinham muitos cortiços e amigas da minha mãe dividia quartos com ela. Minha mãe continuou doméstica de outras casas, nessas a gente não ia, ficava na casa de uma amiga da minha mãe, que morava na favela do Puma, era difícil, tínhamos pouca comida para dividir e sentia muita falta da minha mãe.
Até que veio meu pai, seu Antônio adotou a gente. Foi bom, nós começamos a ter paradeiro. Fomos para a favela Monte Azul e desde então, só quando jovem sai de lá.
Nunca se tem muitos sonhos quando se tem uma vida muito dura. Para minha mãe e meu pai, a educação era o caminho de diminuir a exploração do lombo. Não precisar trabalhar com peso ou depender de favor de patrão. Era necessária, importante. Não tinha a ver com faculdade ou outros lugares.
Depois que eu fui descobrindo o mundo, minha mãe foi conhecendo comigo as possibilidades, coisas que não existiam antes. Minha mãe sofreu muito na vida, perdeu minha Vó muito cedo, dona Ernestina, mulher indígena não aguentou por muito tempo 6 crianças e o moinho de cana. Um dia em Vitória da Conquista, Bahia, colhendo arroz na beira do poço teve um infarto e se foi, minha mãe lembra de como encontrou sua mãe e juntas passamos a lembrar de como morreu minha vó, antes que eu pudesse me ver através dela.
Mãe dizia que eu parecia com a Vó. Depois que ela morreu, meu avô, seu Onildo, deu todos os filhos, ficando apenas com o de colo. Minha mãe foi dada a um casal que vinha para São Paulo, ela trabalhou nessa casa como escrava doméstica até os 18 anos. Fugiu sem documentos, analfabeta, pelos conselhos das empregadas das casas vizinhas. Conseguiu morada na casa de uma colega. Tirou documento novo, criou o nome Maria Gonçalves Vaz, com sílabas que lembrava que já ouviu alguém dizer.
Minha mãe me ensinou muito sobre luta, dignidade e amor. Amor pelos filhos de forma incondicional que lhe trouxe muito sofrimento na vida.
Cada problema que temos traça um caminho, cada forma de resolver esse problema traça outro caminho, cada escolha determina como será o seu destino. Desse não se foge, ele só muda de cara com cada escolha.
Eu, como minha mãe fui mãe solteira e tive minha filha na maternidade de Interlagos em 2001, alguns destinos não se muda. Diferente de minha mãe, eu não trabalhei durante minha gestação. Eu não tive complicações em minha cesariana, como minha mãe teve. Voltei para minha casa com meu bebê no colo. Às vezes sinto o cheiro do quarto que fiquei com a Yasmin, do medo, da preocupação de como viver a partir dali.
Minha mãe morreu através de um infarto, não por causa dele, faz pouco. E às vezes tenho medo de morrer como elas, pois mudasse os caminhos, mas destino, esse é danado. Sei que o meu já é bem melhor que minha vó e minha mãe, pois eu vivo melhor. E sei que minha filha, bisneta de Ernestina, neta de Maria, filha de Anabela, viverá melhor que todas nós.
Eu recorro a minha história para falar das linhas da vida das mulheres, somos um trajeto de muita ancestralidade construída em uma dor recente, que ainda podemos ver viajando nos transportes públicos. O anúncio de uma história começa com um bom dia, uma boa noite ou um tudo bem.
Em tempos como esses de terrível crise cíclica do capitalismo anunciada desde 2008 e que foi intensificada e atrelada a uma pandemia para sobrevivência desse sistema de exploração primitiva dos pobres, eu penso em minha Vó e minha mãe.
Solenemente colho das minhas essências as histórias de sobrevivência para construir a minha.
Escrevo sobre minha favela, minha narrativa única que meus olhos traçaram, escrevo sobre o córrego que enredava minha casa e me atravessou na construção da minha auto estima, beleza, sonho e perspectiva de mundo.
Sou eu mulher que compreende as palavras e suas condutas, a primeira das minhas matriarcas que teve a caneta como materialização das ideias, posso mudar o destino?
Ainda em solo periférico, me penso, me questiono, às vezes me vejo vivendo como se não houvesse futuro. Pois, o futuro foi desenhado antes de mim.
Qual o futuro de uma mulher?
O passado foi masculino, foi patriarcado de exploração. O futuro espero que se construa pelas mãos das mulheres, que renasça em nossos ventres, mentes e úteros. Mulheres que nascem e outras que se tornam e capazes do ato de luta primordial que é se auto parir, criam um caminho de possibilidades políticas e sociais.
Nós sabemos, murmuramos e gritamos. Expressamos em nossa arte, escrita, trabalho e ciência que a liderança hegemônica do homem falhou em garantir a vida na terra.
Nós reinventamos o sentido da força, dando a ela mais que músculos, potência.
Os homens tentam conhecer nosso ser de força e sensitivo. Não é fácil, mas se não se nasce mulher, se torna como disse Simone, que eles se tornem mulheres.
Aqui nesse pedido não há nada de biológico, ou das identidades de gênero feminino construído para a masculinidade. Mas nascer mulher é reconhecer nosso subconsciente, nossa subjetividade, espiritualidade e a força presente no mais frágil ser.
O machismo e a masculinidade tóxica perpassam os corpos das mulheres, mas nossas dúvidas e lutas dentro da produtividade e produtividade fazem com que essas mazelas se tornem multáveis no nosso modo de vida.
Eu, como milhares de mulheres da minha geração, que nascem no processo de democratização brasileiro, no meio de muita violência forjada pela polícia e o tráfico de drogas, vimos como nós, a periferia crescer, a especulação imobiliária chegar, “shopping”, lojas de departamento, food se acomodar nas esquinas.
Mesmo que crescida e com várias mudanças na vida, a periferia ainda é uma viela e nós mulheres que por mais crescidas e sabidas que nos tornamos, nós e a periferia, ainda temos feridas abertas vindas desse passado recente de desinteresse do Estado e de invisibilidade econômica.
Audre Lorde diz em seu livro “Irmã Outsider”, que toda mudança implica crescimento, e crescer pode ser doloroso. Mas que aprimorar nossa autodefinição quando impormos nossa identidade no trabalho e na luta, saberemos que nós mulheres compartilhamos um objetivo comum e isso pode representar novos caminhos para nossa sobrevivência.
A força das mulheres está em reconhecer as diferenças entre nós como algo produtivo e defender sem culpa as distorções que herdamos, mas que podemos juntas transformar.
Eu retiro de mim toda culpa que eu carrego por ser muitas vezes obrigada a fortalecer essa sociedade, pela minha sobrevivência, pois minha, nossa missão é sobreviver.
Eu serei semente e desejo nesse março triste de morte humana, de valores humanos, de sonhos e destinos, que a força da luta das mulheres que vieram antes, em condições materiais e contextos mais difíceis que os nossos, sejam nossa lamparina nessa devastação da ética da vida.
Precisamos contar a história de nossos antepassados para fortalecer nossa humanidade, não vivemos só uma crise econômica, mas uma crise civilizatória, perdemos o rumo e precisamos reeducar os nossos sobre os valores ancestrais.
A educação é ferramenta transformadora e libertadora, mas não somente a educação formal que em certo sentido só prepara a gente para o trabalho. A educação familiar também prepara para a vida, hoje temos medo que as crianças fiquem em casa com suas famílias, pois acreditamos que o Estado é melhor cuidador. Confiamos em nossas mulheres, ou confiamos somente em nós mesmas e nossas crenças instituídas por uma epistemologia branca.
Audre Lorde também fala sobre a raiva que carregamos e como ela se manifesta brutalmente entre nós mulheres, como transformar essa raiva da pobreza e da violência em combustível de mudança social e não em algoz de nós mesmas.
Nesse momento em que esse texto se manifesta, muitas mulheres estão na luta pela sobrevivência sua e dos seus filhos, como diz Mariana Salomão, mãe correria, somos. Algumas ainda têm tempo para expressar sua raiva do sistema em escritas, poesias, arte, dança. Outras ainda aprisionadas pelo sistema de exploração e produção da vida, sonham quando podem, bebem para tentar sonhar e trabalham para não dormir com fome.
Existe um lockdown invisível que atua sobre os corpos nas cidades, isolando e confinando em um estado de pobreza e sofrimento longe das boas novas da modernidade e do direito humano.
Sinal de Nascença
Sou negra,
sangue indígena,
brasileira
de trajetória
equilibrada na tragédia,
povo, laço, estupro,
miscigenação forjada no murro.
enfileiradas paulistanas,
desfile de trabalhadoras à deriva,
solavancos do transporte público.
mascaradas relembram,
o passado ancestral.
O medo nos olhos,
a fúria nas mãos.
Ladeiras acima, ladeiras abaixo,
seguimos, lenços no cabelo
colares sagrados no peito.
Observando esse filme coletivo,
do homem branco faminto
por sangue nativo,
uma ordem que não cessa,
segue com nome e sobrenome
de vírus,
uma reprise funesta
de antepassados desconhecidos,
mas sentidos, nas veias que nos restam.Anabela Gonçalves