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Quebrada Maps reúne jovens e crianças para criar uma nova geografia de SP

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Com a educação e o direito à cidade como principal foco de discussões, o projeto reúne professores, jovens e crianças das periferias de São Paulo, para investigar a história de bairros, utilizando ferramentas educativas de mapeamentos cartográficos e geolocalização. 

Foto: Thais Cerqueira

O professor de geografia Wellington Fernandes, 34, transformou sua pesquisa de mestrado em uma metodologia pedagógica capaz de compartilhar técnicas de produção de cartografia e mapeamentos para jovens e crianças, visando contar histórias invisíveis sobre os bairros periféricos de São Paulo, onde os participantes das atividades do projeto residem.

Fernandes conta que o mestrado possui um guia que mostra como trabalhar com mapas, pensando especificamente nas periferias. Uma das inspirações do professor é baseada na cartografia indígena, que traz em sua essência uma linguagem de disputa por território. Logo ele viu que poderia implementar essa lógica, para construir uma nova geografia da cidade.

“Uma geografia conectada com a periferia, conectada com o conteúdo”, define o criador do projeto Quebrada Maps. Ele enfatiza que a partir desse propósito, decidiu levar sua pesquisa para além dos espaços acadêmicos, tornando a escola pública da quebrada em um dos espaços de atuação.

“A cartografia hegemônica não dá conta de contar nossas histórias, aí no rolê com a juventude na escola, a gente chegou aí com a galera do quebrada maps”, afirma ele, relembrando que esse foi o processo para o desenvolvimento da pesquisa até ela ganhar o nome: Quebrada Maps .

Fernandes faz questão de relembrar o momento que entendeu junto com os estudantes qual seria o objetivo da existência do Quebrada Maps. “Vamos por em tona todas as nossas territorialidades das nossas quebradas e nossos lugares no mapa, só que mano o trampo é grande, pois nós temos muita história”, diz.

Ele complementa afirmando a prioridade de disseminar essa metodologia na quebrada. “O lance é que mais pessoas possam fazer isso, então além de fazer um exercício de contar outras histórias, também é de fortalecer que outras pessoas contem a história”.

O processo de desenvolvimento de uma nova cartografia que fale sobre o território passa por uma dinâmica que usa soluções tecnologias de mapeamento e geolocalização vai da teoria à prática. “A gente usa o Google Maps pra fazer as edições necessárias. Quando dá a gente também usa o Open Street Map, que é uma base aberta de dados livres, onde você consegue também editar a base de uma maneira muito mais ampla do que no Google”.

A vivência com os moradores das periferias também se torna um grande diferencial para tornar a cartografia com a cara da quebrada. “A gente fala: aonde você comprou doce tá aí no mapa? Vocês acham que a tia que vende coxinha aqui na frente da escola ia curtir estar no mapa” De repente, a gente pode até perguntar pra ela”, explica o professor, que a partir dessa concepção começa criar um mapa colaborativo com alunos de escolas públicas. 

 “A gente rompe o muro da escola e vai pros galpão de construção dos prédios na favela” 

 “Ao mesmo tempo o fortalecimento da autoestima dos alunos, mas também da construção do sujeito político dele, tipo as meninas que participam , como elas conseguem pensar no mapa a partir do gênero, como ela consegue pensar o mapa a partir de um lugar de cuidado, ou a partir de um lugar de insegurança, é como a gente vai construindo o conteúdo a partir desses indivíduos”, explica Jéssica Cerqueira , 28, moradora do São Miguel Paulista, e uma das educadoras que ministra oficinas no projeto.

Os educadores procuram levar o Quebrada Maps para além dos muros das escolas, para que os estudantes possam falar com mais pessoas, e desta forma, construir e transportar histórias cartográficas do território periférico para o mundo virtual.

Um desses territórios é a Favela do Sapé, localizada no distrito do Rio Pequeno. O bairro passa por um forte processo de especulação imobiliária e isso reflete na qualidade de vida dos moradores da região. “A gente fazia a formação dentro do galpão de construção dos prédios, com a galera ali da região e da Raposo Tavares, a gente rompe o muro da escola e vai pros galpão de construção dos prédios na favela para conseguir dialogar com o território além da escola”, relata Jéssica.

Ao relembrar sobre esse momento ela define: “foi potente demais a gente estar discutindo sobre um lugar que tinha não problemas, como a verticalização da favela do Sapé”.

Um dos motivos dos educadores para desenvolver essa metodologia de mapeamento com que constrói uma linguagem cartográfica da periferia foi justamente o fato de refletir sobre a desigualdade digital , que afeta os moradores das periferias e favelas.

“Se a gente quisesse por exemplo fazer uma trampo do Quebrada Maps de forma digital com os alunos, talvez vários deles não poderia acessar, porque nem todos tem internet. Às vezes demora vários dias pra responder porque tava sem internet”, contextualiza Cerqueira.

Através desta percepção de realidade dos estudantes sobre inclusão digital nas periferias, ela faz um relato sobre um acontecimento na formação com um dos seus alunos. “Eu lembro que na oficina a gente tirava duas ou três fotos e travava grande parte dos jovens, só quem tinha internet na hora chegava na oficina”, relembra a educadora, ressaltando que esse fator acabava distanciando os alunos que não tem plano de celular ou que só coloca crédito a cada seis meses para não perder o número.

A educadora entende que o papel do Quebrada Maps vai além de uma metodologia, mas sim um espaço para criação de repositório de dados cartográficos. Ela já consegue prever em quais situações esses dados poderiam ser utilizados. “Em 2021, é o ano do plano diretor da cidade né e como que a gente consegue de repente reverberar nessa construção, como que a gente discute a cidade como periferia não sendo só o fundão, só aonde as pessoas chegam pra dormir e tomar banho”, questiona. 

 “Eu não sabia o que era o Google Maps até entrar no Quebrada Maps” 

“Eu não sabia o que era o Google Maps até entrar no Quebrada Maps”, relata Júlia Isabel, 15, uma das alunas do projeto. Junto com a descoberta das ferramentas de cartografia e suas funções sociais, a estudante também explorou histórias do seu bairro. O primeiro mapa construído por ela gerou um grande impacto ao perceber a importância dos moradores para o território.

“Através desse mapa eu conheci história da dona Lourdes, que usa plantas medicinais como remédio para fortalecer sua comunidade dentre várias outras história de resistência periférica”, conta Julia, destacando que essa percepção veio logo no primeiro contato prático com a produção de um mapa que ganhou o nome de ‘Revanche da Quebrada’.

Outra estudante, Jennifer Paiva, relembra como ela e seu grupo ficaram chocados quando descobriram a falta de visibilidade de seu território em cartografias virtuais. “Eu me senti desvalorizada, eu fiquei chocada no primeiro momento, e me perguntava por que meu território não estava no mapa, sendo que ela não está no mapa, mas está em quase todos os jornais”, questiona.

A partir desta experiência de se sentir fora do mapa, ele questiona ainda mais o motivo pelo qual seu bairro fica em evidência em programas de noticiário policialescos, mas não aparece no Google Maps. “Eu me vi perguntando também por que ele não aparece no mapa, como aparece no jornal, eles querem mostrar só o que é ruim, não o que é bom, e no mapa a gente pode mostrar o que é bom”, acredita.

Conselheiros de saúde brigam por acesso a direitos no fundão da M´Boi Mirim

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Durante a pandemia, os conselheiros de saúde fiscalizam os serviços públicos em diversos bairros da região para assegurar acesso a direitos sociais básicos para a população local.

Durante a pandemia de coronavírus, os moradores do Fundão da M´Boi Mirim, região do distrito do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, que abriga os bairros de Jardim Capela, Vera Cruz, Horizonte Azul, Vila Calu, Parque Cerejeira e Vila do Sol, presenciaram mais uma vez a triste realidade das periferias e favelas que é o descaso do poder público para fornecer serviços públicos de qualidade.

Em época de eleição municipal, candidatos a ocupar os cargos de prefeito e vereador aparecem em massa nas periferias e favelas para realizar campanha eleitoral e dialogar sobre as demandas da população local. Mas passado esse período, os moradores relatam com indignação que esses representantes do poder público somem dos territórios.

Foi a partir desta consciência política que o articulador comunitário Genésio da Silva, 51, se tornou conselheiro de saúde para fiscalizar equipamento públicos localizados no Fundão da M´Boi Mirim, ele afirma que precisa fazer esse trabalho, porque os moradores não conhecem seus direitos e deveres.

“Eu entrei no conselho participativo da saúde porque eu via uma necessidade da população. As pessoas não têm conhecimento sobre quais são seus direitos, a gente tá tentando sensibilizar as pessoas para mostrar os direitos que temos, e também reconhecer nossos deveres como comunidade, a gente conversa muito com as pessoas que o governo não dá nada de graça para ninguém. Ele apenas retorna com os impostos que pagamos”, afirma.

O conselheiro de saúde atua como articulador comunitário no Jardim Capela, um dos bairros que compõem a região do Fundão da M´Boi Mirim. Ele comenta que o conselho participativo é um dos resultados das lutas por direitos que existem no território há quase duas décadas.

“O conselho participativo nasceu ali por 2002, por lutas nossas, onde entendemos a necessidade de existir um conselho gestor participativo da saúde e nos mobilizamos para enviar a documentação pra secretaria de saúde para poder ser aprovado, e foi”, relembra Silva.

Ela explica que para ser conselheiro é necessário ser eleito pela sociedade civil organizada, a fim de coletar as demandas dos moradores do territórios e tentar resolver junto ao poder público. “A participação do conselho gestor é de extrema importância, porque até então é a pessoa que fica sabendo tudo que acontece, temos a autonomia de fiscalizar os equipamentos, de chegar a um hospital e fiscalizar, de ver o que está acontecendo. É como um fiscalizador da saúde representando o seu território”.

O conselheiro complementa afirmando que a fiscalização foca principalmente na qualidade do atendimento médico oferecido pelas unidades de saúde localizadas nas periferias. “Nós fiscalizamos as unidades de saúde. Nossa discussão é principalmente relacionada às unidades de saúde se tá faltando médico, se está acontecendo a limpeza direito, se está tendo atendimento correto, nós levamos as demandas e tentamos juntos melhorar os equipamentos dos nossos bairros”. 

Como funciona o conselho gestor de saúde no território

Sob administração da Subprefeitura do M’Boi Mirim há cerca de 31 Unidades Básicas de Saúde (UBS), 9 postos de Assistência Médica Ambulatorial (AMA), 3 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e 2 Prontos Socorros, para atender uma população superior a 560 mil habitantes, formada por moradores dos distritos do Jardim Ângela e Jardim São Luís.

Em meio à pandemia de coronavírus, como ficou a fiscalização do funcionamento e atendimento dos moradores nesses equipamentos públicos? Os conselhos gestores de saúde existem para fazer essa fiscalização e a mediação do atendimento, a partir das demandas de cada território.

O conselho gestor funciona no formato tripartite, ou seja, é dividido em três partes, sendo composto por 50% de representantes da sociedade civil, os usuários, 25% de funcionários públicos dos equipamentos e 25% da administração pública.

A cidade de São Paulo possui uma estrutura forte quando o assunto é conselho de saúde. O município conta com o Conselho Municipal de Saúde, Fundo Municipal de Saúde, a Conferência de Saúde Municipal, as Audiências Públicas de Saúde e os Conselhos Gestores das Unidades de Saúde, que foi promulgado em 1999 e é a instância máxima de política pública dentro dos territórios periféricos.

Outro conselheiro de saúde do Fundão da M’Boi Mirim é o Gilberto Pereira Da Silva, 56, com um histórico de 18 anos atuando pela garantia de direitos sociais para a população local, ele detalha o passo a passo sobre a fiscalização de problemas nos serviços dos equipamentos de saúde. “Essa fiscalização se torna documentos que a gente leva para supervisão técnica de saúde que é nossa supervisão M’Boi Mirim e isso é encaminhado para coordenadoria e chega até Secretaria de Saúde. Nós pedimos as respostas no máximo entre 5 e 10 dias para devolver ao conselho, se não chegar, nos organizamos para ir em grupo na Secretaria da Saúde discutir essa demanda diretamente lá com o secretário do município”.

Ele também explica que devido à pandemia, em alguns casos a fiscalização dos serviços públicos de saúde está acontecendo à distância, mas que isso não impede o diálogo com as unidades de saúde. “Com a pandemia a gente vem fiscalizando à distância. Uma vez ou outra a gente vai na unidade, aqueles conselheiros que podem vão com mais freqüência, mas mesmo assim eu vou sempre que posso e o nosso diálogo é com o responsável pelo equipamento de saúde, ou seja, cada equipamento é composto de um gerente que é responsável por todo aquele equipamento e esse gerente é o presidente do conselho”. 

“O poder público não é atuante na região, normalmente quando aparece é em momento de eleição”

O conselheiro Genésio da Silva comenta sobre as dificuldades que ainda enfrenta dentro do bairro e como isso permanece invisível para o poder público. “O bairro onde eu moro ainda faltam muitas coisas para nossos jovens, nossas crianças, nossos idosos, nós temos poucos acesso à cultura, lazer e esporte, o poder público olha pouco para nós”.

Ela ressalta que os bairros do Jardim Capela, Vila Calu, Vera Cruz, Horizonte Azul, Parque Cerejeira e Vila do Sol são os territórios onde ele atua e que por sinal, representam áreas onde o poder público está mais presente na questão de saúde.

“A gente está em cima, mas falta muito na questão da educação, transporte e principalmente no meio ambiente, nossas áreas verdes estão abandonadas aqui, eu também faço parte do conselho gestor de meio ambiente da subprefeitura M’Boi Mirim, onde a gente tem muita dificuldade para cuidar das nossas praças que já são poucas, mas que temos, não temos zeladoria adequada, limpeza de córrego não temos, temos bastante dificuldade mesmo aqui na região e tudo isso é saúde também, o poder público não é atuante na região, normalmente quando aparece é em momento de eleição”.

Ela enfatiza que quando os conselheiros se unem para fazer reivindicações o poder público se torna omisso. “Quando estamos reivindicando nossas demandas dificilmente somos atendidos pelo poder público aqui na nossa região”.

“Perdemos entes queridos por causa da falta de equipamentos de saúde pública aqui na região”

O conselheiro Genésio comenta sobre o impacto que pandemia trouxe para o território e dentro das unidades de saúde. “Perdemos vários entes queridos por causa da falta de equipamentos de saúde pública aqui na região e em muitos outros territórios de periferia. Estava falando com a gerente da UBS e eu soube que tivemos 1007 infectados somente na área de abrangência de uma unidade com 207 óbitos e com 300 em tratamento, isto é, estamos falando de pessoas cadastradas na unidade que a gente tem acesso e as pessoas que a gente não tem acesso, a ‘população invisível’ que são as pessoas das ocupações desordenadas que temos aqui na região, então esse número hoje é muito maior, e isso é muito preocupante. Temos que nos sensibilizar, fazemos ações para melhorar isso”.

Embora as ações de fiscalização dos serviços de saúde sejam essenciais, o conselheiro conta que o período da pandemia de coronavírus e o estado de abandono dos serviços públicos na região do Fundão da M´Boi Mirim exigiu dele e de outros conselheiros que atuam no bairro uma organização coletiva para realizar uma série de ações de conscientização da população local.

“A gente faz ações de conscientização, estamos nos reunindo entre três e quatro conselheiros para se organizar e preparar nossas ações, a gente está fiscalizando os atendimentos, tanto os voltados para covid-19 quanto os outros. Chegou um ponto que não tinha atendimento nenhum que não fosse para covid, que fechou os equipamentos e não é assim, daí fizemos uma reunião e fomos para cima deles”, relata Silva.

Ele faz questão de ressaltar que a pandemia existe, mas que a população local ainda sofre com doenças crônicas que também levam ao óbito. ” Se não tiver tratamento como por exemplo do câncer, diabetes, depressão, precisa de um acompanhamento, ultimamente estamos discutindo também sobre outras demandas que ainda tem no território e não pode deixar de ter atendimento como dengue e DST´s”. 

 “Aqueles trabalhadores que utilizam o serviço de saúde local conseguem ir à UBS na quinta-feira às 10h ou às 14h?” 

Com um cotidiano devastado por uma série de desigualdades sociais, como falta de direito à cidade, trabalho e renda, saúde, segurança pública, cultura e educação, os moradores das periferias enfrentam outra dificuldade que é ter tempo para participar desses espaços que ajudam a construir melhores rumos para os serviços públicos no território.

“Aqueles trabalhadores que utilizam o serviço de saúde local conseguem ir à UBS na quinta – feira às 10h ou às 14h? A definição da agenda de atividades não é um importante instrumento de viabilização dessas reuniões? A juventude se interessa pelo formato de reunião de 2h sem muitas vezes ter pauta definida de maneira coletiva?”, questiona a pesquisadora Tatiana Montório, 36, moradora de Veleiros, bairro da zona sul de São Paulo, que integra o grupo de pesquisa 3PAC (Política, Políticas Públicas e Ação Coletiva) da Universidade Federal do ABC (UFABC).

Segundo a pesquisadora, os conselhos precisam repensar o modelo de participação popular e acolhimento de novos atores. “Obviamente que contar com esses espaços de participação são ganhos na história da participação do Brasil e da cidade de São Paulo, mas há de se repensar um modelo que de fato promova a participação e incentivam o surgimento de novos atores”.

Mesmo com uma visão crítica em relação ao modelo de participação popular dos moradores das periferias nos conselhos participativos, Montório reafirma a importância dos conselhos de saúde para a cidade, enfatizando como os movimentos sociais de saúde foram precursores na luta pelo SUS e participação política.

“Na história dos conselhos do município de São Paulo, o movimento popular de saúde foi precursor dos debates sobre participação e um importante input na luta pela seguridade básica de saúde, na luta pelo SUS”, afirma a pesquisadora, explicando como isso impactou a Constituição Federal de 1988. “A promulgação da Constituição deixa claro que se o município quer receber recursos financeiros do Ministério Da Saúde é obrigado a ter seu conselho municipal, ou seja, caso o município não tenha esse espaço e todo o regramento exigido como composição, atas, balanços, etc, ele não receberá recursos financeiros para atuar”.

Ela ressalta que há municípios que não valorizam como deveria a participação dos conselhos para decidir o rumo dos serviços e políticas públicas. “Não estamos aqui falando de uma variável apenas, participação social nas políticas de saúde, estamos deixando claro que mesmo aquela municipalidade que não ‘gosta de conselheiros’, porque já ouvi isso, não tem opção de se desfazer do espaço. As arenas, as disputas e o jogo político se fazem muito presentes aqui”.

A pesquisadora afirma que o funcionamento do conselho pode mudar, a depender da cultura de participação popular e gestão pública de cada território. “Seu funcionamento se distingue de território para território, o entendimento sobre a importância e impacto nas decisões também muda a depender de muitos fatores e eu destaco aqui, o perfil do conselheiro, movimentos sociais nos bairros e suas conquistas, lutas e interesses dos gestores públicos locais nesses espaços”.

Outro ponto bem importante abordado pela pesquisadora é a necessidade de existir um volume de publicidade para divulgar o papel dos conselhos para a população, a fim de atrair novos perfis de conselheiros. “Destaco que a horizontalidade e a chamada pública com a publicidade é um fator importante na atração de conselheiros interessados e quem sabe estudantes, pesquisadores, conhecedores do tema. E quando de fato, você consegue ter esse público deliberado, podemos assistir conquistas muito importantes, como a implementação dos CAPS nos territórios, ou ainda o alinhamento com os temas de educação e assistência social, cujas políticas públicas fazem intersecção em diferentes atividades”.

Ela lembra que acompanha o trabalho de alguns conselhos que a partir do seu espaço de participação popular conseguem conquistas importantes para políticas públicas, mas que ainda há a necessidade de fomentar a diversidade de conselheiros nos espaços de participação. “Assistimos alguns conselhos que sem vazão a sua voz, buscam através do Ministério Público a judicialização de políticas públicas. Temos unidades que conseguiram distinta ampliação no apoio maternal e fortaleceram as políticas de planejamento familiar. Claro que os territórios ganham, mas a falta de publicidade e de incentivos a essa participação distanciam o usuário padrão dessas instâncias participativas”. 

Centro de Estudos Periféricos defende a criação das Casas de Conselho

Recentemente o Centro de Pesquisas Periféricos colocou no mundo a Agenda Propositiva Das Periferias, e dentro do eixo de Participação Popular abordou a importância de fomentar a criação das Casas de Conselhos nos territórios periféricos. O professor e coordenador da pesquisa Tiaraju Pablo comentou sobre como pode surgir esses espaços de organização social dentro dos territórios.

“As Casas de Conselho seriam espaços autônomos em relação ao Estado. Como um local onde a população discute seus problemas e se organiza, talvez as Casas de Conselho funcionem como um espaço onde surjam questões que não funcionam no bairro, como os Conselhos de Saúde. Logo, as Casas de Conselho poderiam servir como espaços de pressão”, define o pesquisador.

De acordo com os estudos apontados na pesquisa, esses espaços seriam uma forma de valorizar e resgatar uma organização de participação popular que já era utilizado nos quilombos durante o período do Brasil colônia. “As Casas de Conselho propostas estão baseadas nas Casas de Conselhos que já existiam nos quilombos do Brasil. Eram locais onde a população fazia assembleias, discutia seus problemas e tentava viabilizar soluções”, explica.

Segundo o coordenador da pesquisa, as Casas de Conselho poderiam ser organizadas como locais onde a população de um determinado território possa se encontrar para conversar sobre seus problemas locais e para pensar também os problemas do mundo. “Essas Casas de Conselhos poderiam funcionar em domicílios dos próprios moradores, em associações de moradores, em coletivos culturais ou mesmo em espaços ociosos”.

D’Andrea finaliza detalhando como esses espaços de participação e escuta da população periférica poderia atuar na sociedade. “Um dos principais objetivos é romper com o individualismo e reforçar os laços de sociabilidade. Pensamos as Casas de Conselhos como uma estrela de quatro pontas: 1) o lado material, distribuindo cestas básicas ou alguma refeição, pois sem alimento ninguém vive, ainda mais em tempos de crise como estes que estamos vivendo; 2) o lado educativo, formando jovens e ensinando sobre o funcionamento da sociedade; 3) o lado artístico, pois a arte desperta a sensibilidade humana; e o 4) o lado afetivo, pois o afeto é revolucionário”.

Mais de 150 mil famílias em luto, inclusive a nossa.

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Por aqui, a família de um integrante do Desenrola é a família de todos do Desenrola. Para nós é assim: não é só trabalho, é afeto, é cuidado, é família, seja de sangue ou de coração. Hoje vamos falar da nossa família, que assim como outras milhares perderam e tem perdido pessoas amadas, seja pela bala, pela fome ou pela covid-19. 

Flavia, Thais e Fabiana.

Assim que começou o isolamento social devido a pandemia em março deste ano, fechamos nosso espaço, o Centro de Mídia M’Boi Mirim, e passamos a trabalhar de casa para ajudar a conter a proliferação do vírus que já fazia milhares de vítimas ao redor do mundo. Em maio, a irmã e a mãe da Flavinha contraíram a Covid-19, mas conseguiram se curar e hoje estão bem. O mesmo não aconteceu com as irmãs da Thais.

Pessoas mais próximas já sabem que esse mês foi muito doloroso para nós. Nas últimas semanas, perdemos Fabiana e Flávia, nossas queridas familiares. Irmãs da Thais, mulheres negras e periféricas, Fabiana e Flávia estavam sempre presentes em nossas vidas.

Ambas foram internadas, uma no hospital Parelheiros e outra na Santa Casa da Bela Vista. Com poucos dias de internação, nenhuma das duas resistiu. O falecimento da Fabiana aconteceu no dia 05 e o da Flávia no dia 14 de outubro.

Nossa intenção é compartilhar a importância das duas na vida da família e daqueles que tinham a sorte de tê-las por perto. Por aqui, a família de um de nós do Desenrola é a família de todos do Desenrola. Para nós, é assim: não é só trabalho, é afeto, é cuidado, é família, seja de sangue ou de coração.

A Fabiana sempre cedeu sua casa e suas panelas quando a gente e os jovens atendidos no nosso programa de formação, o Você Repórter da Periferia, estávamos fazendo reportagens no Grajaú. A casa dela era parada obrigatória e o almoço sempre era o macarrão do Desenrola.

A Flávia fez orações assim que alugamos o espaço do Centro de Mídia na intenção de que nossa atuação ali sempre trouxesse prosperidade. Falando nisso, elas sempre que conseguiam estavam por lá, participando da nossa inauguração e de outros eventos.

Há 500 anos estamos morrendo: de fome, de bala e agora também de covid-19

A pandemia nunca parou tudo de fato, principalmente para quem mora nos territórios periféricos. Nunca tivemos em um isolamento adequado, até porque sabemos de onde vem as pessoas que de fato fazem os serviços e a cidade acontecer todos os dias.

Quantos pessoas da sua família de fato puderam ficar em casa e no final do mês ter seu dinheiro garantido? Quantas pessoas que você conhece se sentiam seguras em casa? Pensa em quantos conhecidos e amigos continuaram a trabalhar durante todo esse tempo. Já se perguntou por que isso aconteceu?

Nossa morte, a morte de quem é preto, periférico, pobre, lgbtqia+ não é um problema para quem governa e para a burguesia. Nossas mortes não tem relevância para eles, mas para nós sim. As mais de 150 mil famílias em luto importam para nós.

Hoje, segundo o IBGE, temos 10 milhões de brasileiros passando fome e 13,8% da população está desempregada. Em 2016, quase 75% das mortes violentas eram de jovens negros. Fome, desemprego e morte: é o que esse modelo socioeconômico tem oferecido à nós, pretos, pobres, periféricos.

Nossas famílias sofrem há muito tempo, choram em um luto permanente. Nossos ancestrais foram arrancados de seus territórios e escravizados, a maioria dos que se revoltaram foi dizimada. De geração em geração, da colonização ao século XXI, nossa dor se mantém.

É por nós e por muito mais que seguimos acreditando na comunicação periférica como umas das ferramentas da nossa revolução e independência. Para que o genocídio pela fome, pela bala, pela covid-19 entre tantas outras, parem de interromper brutalmente nossas vidas e os nossos sonhos.

Aqui fica nosso abraço e agradecimento pela passagem da Fabiana e da Flavia nesse mundo e abraço a todas as famílias que perderam pessoas queridas. 

A periferia é o nosso centro!

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Na contrapartida do que a mídia hegemônica insiste em representar a periferia é também espaço possibilidades, de lutas, de esperança e de solidariedade! 

Foto: @menino_do_drone

“Para nós, a periferia é um país”. 

Sérgio Vaz

A periferia é para milhões de brasileiros periféricos um espaço geográfico marcado não só pela distância em relação ao centro, mas sim, pela relação de vivência, pela construção diária de significados, pelas caminhadas e brincadeiras nas ruas e vielas, pelas trocas e aprendizagens nas escolas, praças, campo de futebol e nas igrejas; um lugar de afetos, conflitos, relacionamentos e de solidariedade, como muitos dizem “minha comunidade”. Desta forma a periferia não é o nosso centro apenas simbolicamente.

Na literatura acadêmica a periferia caminha com seu par dialético centro, mais especificamente como o negativo do centro, um lugar afastado resultante do processo de metropolização das grandes cidades. O que de fato o é! Mas não o é, apenas, não o é para todos. Para muitos a periferia é o próprio centro da vida! O conceito de centro é entendido como local de trabalho, de compras, de decisões de poder, de pluralidade cultural.

Neste sentido, já faz tempo que as periferias tornaram espaços de possibilidades e de emprego para milhares de pessoas, centro de compras e de um comércio diversificado, embrionária de muitas lutas sociais, como um dos maiores movimentos feministas do Brasil, os Clubes de Mães da zona Sul, que balançou as estruturas da ditadura militar e, que dizer da cena cultural da periferia, com suas rodas de samba, grafites, saraus, batalhas de rima, bailes funks. Retomando o poeta fundador da Cooperifa, Sérgio Vaz, “a periferia é um país”!

De fato, apesar da complexidade e diversidade das periferias, esse espaço também é marcado por contradições, que pode sim ser entendido como a marca visível das contradições e desigualdades da sociedade capitalista. Os grandes veículos de comunicação não nos deixam esquecer isso, reforçam diariamente os estereótipos da periferia como lugar natural de violências e desta forma constroem no imaginário dos brasileiros, inclusive dos que vivem na periferia ideia de um lugar negativo.

Na contrapartida do que a mídia hegemônica insiste em representar a periferia é também espaço possibilidades, de lutas, de esperança e de solidariedade! Por esse motivo, iremos nos apropriar deste veículo de comunicação periférico, para discutir e apresentar essas questões tão esquecidas dos grandes meios de comunicação, que noticiam apenas os problemas das quebradas. 

Nas próximas colunas traremos à baila, as lutas, os abandonos do estado em relação a periferia, mas como freirianos, iremos anunciar também as potências revolucionários das quebradas, as experiências de engajamentos sociais, os projetos de sustentabilidades e de relação socioambiental, a potência da educação popular em espaços formais e informais.

Espaço Cultural CITA teme despejo em meio à pandemia

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A ocupação no Campo Limpo que conta com uma trajetória de nove anos, promovendo arte em diversas linguagens e articulando os agentes locais, corre o risco de despejo e encerramento de suas atividades

Mais de 200 costureiras de periferias da Zona Sul de São Paulo confeccionam máscaras de tecido que são distribuídas a agentes públicos, como bombeiros, policiais ou profissionais da saúde. Mas o projeto corre risco de parar por ação do próprio poder público.

A iniciativa, que gera renda às trabalhadoras e contribui com a prevenção ao coronavírus, é bancada pelo programa “Costurando pela Vida” da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico da Prefeitura paulistana e conta com a articulação do Espaço Cultural CITA. Contraditoriamente, esse mesmo espaço está sob ameaça de desocupação por outro órgão municipal: a Subprefeitura do Campo Limpo. 

“Não faz sentido nenhum os caras quererem tirar a gente daqui”, explica Junin, produtor cultural do CITA que aguarda a chegada de uma ordem de despejo prometida para a próxima semana.

Que lugar é esse? 

 Desde 2011, o Espaço Cultural CITA ocupa parte de um terreno nas proximidades da praça e do terminal de ônibus do Campo Limpo. Segundo Junin, esse terreno teria sido doado por uma família para a Prefeitura para instalação de equipamentos de saúde, educação e cultura. Atualmente, o quarteirão conta com serviços como creche, casa de cultura, Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e Serviço de Assistência Especializada (SAE) em infecções sexualmente transmissíveis e Aids.

O CITA reúne artistas, agentes comunitários e articuladores culturais independentes interessados em desenvolver pesquisas e trabalhos na esfera cultural.

Hoje, mais de uma centena de trabalhadores da área ocupam o espaço em 10 coletivos de diferentes vertentes que atua em eixos como Artes Cênicas (com Bando Trapos, Cia Diversidança, Clã do Jabuti e Via Vento), Saraus, Culturas Populares (com o Maracatu Ouro de Congo, Baque Mulher e Candongueiros do Campo Limpo), Permacultura (com os coletivos Megê Design Sustentável e NUPECI – Núcleo de Permacultura do CITA) e Formação (com o coletivo C9 Iluminação).

Apesar de ter fechado as portas ao público por conta da pandemia de coronavírus, o espaço continuou na ativa com a reorganização dos coletivos residentes e doações de cestas básicas, por exemplo.

“Atualmente, estamos com 4 projetos financiados por editais públicos acontecendo”, explica Junin.

Além do edital para costureiras, há projetos que recebem recursos do governo do estado (via ProAc e Pontos de Cultura) e recentemente o grupo também foi contemplado em um chamamento da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo para reconhecimento de ocupações culturais autônomas.

A ameaça 

O grupo relata que, no dia 06/10 recebeu a visita da chefe de fiscalização da Subprefeitura do Campo Limpo acompanhada da Polícia Militar. A justificativa seria a denúncia de uma suposta “invasão” do espaço por pessoas em situação de rua, que foi negada pelos agentes culturais.

No dia seguinte, a servidora identificada apenas como Elaine retornou ao espaço e pediu a documentação que comprovasse autorização para a presença do grupo no local, além de informar que foi realizado um laudo que apontava situação de risco do espaço.

“Deixamos aqui evidente que o Espaço Cultural CITA não solicitou ou recebeu oficialmente a visita de um Engenheiro Civil ou Bombeiro Militar enviado pela Subprefeitura do Campo Limpo, e também não teve acesso ao Laudo do Engenheiro ou AVCB (Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros) citado pela chefe da fiscalização”, dizem os agentes culturais em comunicado.

Eles citam ainda que, há anos, o espaço recebe avisos da Secretaria Municipal da Saúde, que teria planos de usar a área atualmente ocupada. Apontam também que, desde 2011, há um processo de Cessão de Uso do Espaço protocolado junto à Secretaria Municipal de Cultura para viabilizar a permanência do grupo no local. Esse processo estaria desaparecido no órgão municipal.

Durante a visita, a chefe de fiscalização disse ainda que, em até 10 dias úteis, o CITA receberia uma ordem de despejo. Desde então, os trabalhadores da cultura do espaço se articulam com parlamentares e membros do poder executivo para continuarem no local. Também já coletaram mais de 5 mil assinaturas neste abaixo-assinado.

Junin lembra que o CITA não é a única ocupação ameaçada. A Casa de Cultura do Jaçanã e o Espaço Cultural Jardim Damasceno (na Zona Norte), a Okupação Cultural Coragem e o Reação Arte e Cultura (na Zona Leste) são outros pontos que correm risco de despejo, mesmo tendo projetos que são ou foram financiados pelo poder público.

Outro lado 

A Periferia em Movimento entrou em contato por e-mail com as assessorias de imprensa da Secretaria Municipal de Subprefeituras, da Subprefeitura do Campo Limpo, da Secretaria Municipal da Saúde e Secretaria Municipal de Cultura. Na noite de sexta-feira (9/10), a Secretaria de Comunicação (Secom) da Prefeitura enviou a seguinte nota:

“A Prefeitura de São Paulo, por meio da Subprefeitura Campo Limpo, informa que esteve no local no último dia 7. O pedido de concessão para o uso do espaço citado se encontra vencido, não tendo mais valor legal. Foi lavrado um auto de interdição e desocupação da área. O prazo para cumprimento é de 10 dias”.

Educação de qualidade: Algo que poucos podem comprar

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Em meio à crise educacional causada pelo descaso do governo com a segurança e saúde da população das periferias, problemas que antes eram escondidos por trás de um discurso onde os professores eram vilões, que iriam ensinar o comunismo começaram a mostrar sua verdadeira face, talvez só um prédio não seja uma escola.  

Feira de profissões realizada pelo Cursinho Popular Carolina de Jesus.(Foto: Você Repórter da Periferia)

A educação de qualidade tem um preço e poucos podem comprar, com o ensino remoto podemos observar melhor o que já era realidade a muito tempo, os alunos da rede pública vivem em descaso constante e não possuem ferramentas de estudo, assim como os professores que trabalham sem parar e não recebem nem um salário que possa pagar as próprias contas, muito pelo contrário, a realidade são professores exaustos com depressão, ansiedade e morrendo aos poucos na frente de seus alunos.

Enquanto o governo mostra alunos com notebooks de 12 mil reais, brancos e com quartos individuais, a realidade mostra alunos precisando trabalhar no meio de uma pandemia, vivendo em condições precárias ou de constante sobrevivência e sem recursos para acompanhar as aulas.

O governo mostra professores do Estado ora como pessoas que trabalham por amor, ora pessoas que são demoníacas e vão levar seu filho para o comunismo! A realidade mostra professores adoecendo mais a cada ano, sacrificando seu salário para comprar material para aula, sem perspectiva de futuro, pois a cada ano as categorias aumentam e nada de concursos, o salário é baixo e a exaustão é alta para lidar com várias salas de 40 alunos cada. Parece que o amor acaba mais cedo ou mais tarde sob essas condições.

Então as pessoas deveriam lutar mais? Cobrar mais? Ora vamos lá perder o olho, levar bomba na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) ! O buraco é muito mais fundo, embora professores permaneçam lutando e resistindo, o Estado retribui sempre com gás de pimenta, tiro de bala de borracha e depois diz que não sabia, diz que os professores eram baderneiros! Nossa que baderneiros horríveis!

Numa realidade onde a escola não tem papel higiênico, nem sabão, uma realidade onde existem meses que eu no ensino médio só comia biscoito de água e sal, uma realidade onde nosso governador quis dar ração para as crianças, somos animais para este governo, um lote inteiro que só não precisa morrer todos juntos!

Essa escrita parece ácida e triste, mas eu não gosto de escrever com rodeios, de um lado temos uma pressão para esses professores permanecerem na luta, de outro um estado que não se importa em colocar sua polícia para espancar professores, a exaustão aumenta, o estresse aumenta, o amor acaba, o amor tá tentando continuar…

Mas então tudo o que é público é ruim? Não. É necessário reafirmar que a educação pública é necessária, mas além de universal deve ter qualidade e estar aliada a outras políticas públicas, a educação vive e reflete a sociedade então a mudança deve ser muito mais profunda.

Além do problema dentro da escola temos a realidade cruel onde o maior fator para abandono escolar é trabalho. Segundo o IBGE 10,1 milhões de jovens não completaram sequer a educação básica, pesquisas nos mostram também que a maior parte dos jovens de periferia tem o primeiro contato com um trabalho precário. 

A culpa não é deles! 

Tive o privilégio de terminar o ensino médio e entrar numa universidade, mas acompanhei muitas histórias ao meu lado diferentes, muitos jovens indo do trabalho para a escola, muitos jovens sem acesso a contraceptivos e engravidando na adolescência, muitos que se viam como “burros”, quando eu entrei nas salas de aula como estagiária vi a mesma história, era como reviver meus anos de ensino médio.

A maior parte dos alunos não se sente capaz, muitos trabalham desde os 14 anos, desde infância, se tornaram adultos enquanto eram crianças, e de que vale a pena continuar estudando? Essa pergunta ronda muitas cabeças onde a prioridade é não passar fome.

Tudo isso acontece pelo descaso com a educação e com a juventude que ao longo dos anos vem aumentando, a realidade é cruel. Alunos passando fome por dependerem da merenda escolar, e segundo dados da Fundação Abrinq, em 2019 60,3 milhões de pessoas declaram viver com renda per capita de meio salário-mínimo, R$, 499 e 26,3 milhões declararam viver com metade disto, apenas R$ 249,50.

Esse cenário fica mais triste quando os dados mostram que 18,8 milhões de crianças até 14 anos vivem em condição de baixa renda, destes 5,3 milhões estão em São Paulo. 

Como querer estudar se eu não comi nada hoje?  

Se alguém souber como, por favor, explique, pois eu acho impossível, além disso, o governo não faz nenhuma política concreta de permanência escolar, ou seja, esses alunos vivem num constante limbo.

Nem a pandemia, nem a vida são iguais para todos e a educação de qualidade passa a ser algo que poucos podem comprar, nessa sociedade onde te ensinam que existe mérito e se você não conquistou algo é culpa sua. A educação é uma mercadoria para se vender, mas sabemos que tudo isso é conversa para boi dormir!

Contudo, eu ainda sigo afirmando que Paulo Freire não errou, devemos esperançar para não desistir e lutar, assim já tomamos nossos espaços e devemos continuar para que possamos um dia mudar os dados onde apenas 36% dos alunos de ensino superior vieram de escola pública, não somos números, nem saco de pancada, somos histórias e potencial. Todavia o projeto continua sendo ter sempre uma crise na educação, cortar asas para que pássaros não possam voar.

Apesar de ver tudo isso, eu também noto nos jovens uma esperança, o acesso lhes deu a oportunidade de se reconhecer, eles questionam muito mais do que eu vivenciei há três anos atrás quando eu estava no ensino médio. Todos os dados tristes que trouxe nesse texto foi a fim de propor uma reflexão sobre a realidade ao redor e sobre os nossos, relembrar é preciso, transformar é uma necessidade.

A periferia segue sendo uma potência, um lugar do qual eu tenho orgulho de viver e que me inspira a partir das pessoas que vivem e resistem nela, e com certeza se fomos perguntar a nossos pais eles diriam que as coisas melhoraram, a partir de muita luta.

Nós não fracassamos, nós na realidade estamos levantando a nós mesmos e aos nossos por meio de redes de apoio, cursinhos populares, iniciativas de bairro, um jornal da própria quebrada. Agora somos nós que vamos escrever nossas histórias.

“Pobreza não quero mais

A caneta é meu troféu

Borda as palavras no papel

É tudo o que quero dizer…”

-Tula Pilar, Sou uma Carolina.

Copa das Favelas de Free Fire quer fortalecer a cultura gamer da quebrada

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 A competição está com inscrições abertas entre os dias 16 de setembro e 7 de novembro. O objetivo é reunir jogadores de 100 favelas de todo o Brasil.

 Produzida de maneira independente pelas iniciativas de cultura nerd e gamer Black Rocket, Matiz Gestão Criativa, Perifacon, e Afrogames, a primeira edição da Copa das Favelas de Free Fire tem o objetivo de valorizar jovens talentos que estão movimentando e difundindo a cultura de jogos eletrônicos nas periferias e favelas.

O Free Fire é um jogo eletrônico mobile de ação e aventura que faz parte do cotidiano de jovens e crianças que moram nas periferias e favelas, pelo fato dele incentivar a criação de comunidades virtuais, proporcionar experiências coletivas e fomentar a cultura gamer na quebrada.

Ao todo serão 12 equipes que irão representar a sua quebrada na competição, que terá dois dias de duração. O time vencedor da Copa das Favelas terá uma premiação de R$4.000 em equipamentos eletrônicos, e para o 1º lugar um auxílio na carreira com jogadores profissionais.

Para a youtuber Andreza Delgado, 25, uma das organizadoras do Perifacon e da Perifa Gamer, o primeiro campeonato de Free fire das favelas do Brasil é fruto da inquietação social dos organizadores sobre o acesso a cultura gamer na favela.

“Cara, os jogos , toda discussão de entretenimento, tudo que tem haver com diversão mesmo da periferia, é uma coisa distante, e eu digo distante no sentido que as pessoas de favela tem direito a lazer, ou o lazer não chega nas pessoas de favela”, afirma a organizadora.

Para o evento chegar à primeira edição, a parceria com outros coletivos e projetos de cultura nerd e gamer foi fundamental para tirar a ideia do papel. “Tiramos grana do bolso e falamos: vamos fazer porque a gente acredita entendeu”, relata Andreza, ressaltando que foi necessário elaborar  um planejamento que teve a participação de todos os envolvidos até chegar a fase de divulgação do evento.

 Retratar o imagético da periferia de uma maneira criativa

Em 29 de agosto a equipe começou a produção, focando em uma comunicação que dialogue com a linguagem de um jovem gamer periférico, e retrate o cotidiano dele. “Quando a gente tá pensando na comunicação é na estrutura é exatamente para atender todo mundo”, avalia Andreza. Ela complementa que retratar o imagético da periferia de uma maneira criativa e de qualidade usando uma comunicação estratégica é uma das suas prioridades em seus trabalhos.

“Uma coisa que sempre penso nos trampos que to fazendo é que não vou fazer uma parada hollywoodiana, mas eu também quero entregar uma parada bonita e bem feita”.

Delgado reconhece a dificuldade de acesso que a periferia tem com equipamentos tecnológicos. A opção pelo Free Fire foi uma estratégia para trazer maior acessibilidade para o campeonato, que foi levando em conta também a falta de conexão com uma internet de qualidade. “O jogo que a gente escolheu não é só por ele ser jogado pelo celular, e ele não precisar de um internet hiper boa, de uma velocidade excepcional, que é igual os outros jogos que a gente vê de computador “, explica.

A organizadora da primeira Copa das Favelas de Free Fire está atenta ao fato de que existe muitos profissionais na área de jogos eletrônicos nas periferias, porém eles precisam de oportunidade e patrocínio para conseguir se auto sustentar como gamer. “É um novo mercado de trabalho dos jogos , que a gente possa apresentar essa possibilidade para periferia, eu acho injusto que cada vez mais o mercado de jogos eletrônicos cresce no Brasil e a favela seja impedida de acessar “.

Ela acredita que além da possibilidade de jogar, há outras questões relacionadas a oportunidades de trabalho e desenvolvimento econômico. “O momento que um jovem da quebrada recebe a oportunidade de trabalhar com o celular dele, com o computador dele, streamando é um novo nicho de oportunidade”, acredita Delgado.

Durante o processo de divulgação os organizadores estão procurando patrocinadores que possam aumentar a possibilidade e perspectivas de mais jovens da quebrada acessar o universo gamer. “A gente está exatamente nesse processo de procurar parceiros e empresas que queiram apostar nesse evento”, diz Andreza.

Ela finaliza apontando a importância de sonhar com um futuro sem barreiras sociais para o universo gamer. “Essa coisa da impossibilidade de sonhar com o futuro é complicado entendeu, e eu acho que essa coisa de eu trabalhar com entretenimento, tem haver com isso, o quanto eu gosto de imaginar, sonhar, ficcionar um mundo melhor, uma vida melhor e eu acho que as pessoas têm direito de conhecer tudo isso e essas possibilidades”.

Juventude periférica: Eu sou o meu lugar

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Como me descobri um sujeito periférico e o que isso quer dizer para mim e para as juventudes das periferias de São Paulo. 

Luiz Lucas em vivencia de jornalismo nas periferias do Grajaú, extremo sul de São Paulo. (Foto: Vinícius Cordeiro)

Salve, quebrada! Eu não sei muito bem como devo começar essa coluna, mas citando já de cara o mestre Emicida: “é necessário voltar ao começo”. Sou morador do Jardim Aracati, no distrito do Jardim Ângela, extremo sul da cidade de São Paulo, mas nasci em São Roque, interior de São Paulo, em 1997. Só fui até lá nascer mesmo. Segundo minha mãe, todas as maternidades dos hospitais públicos aqui da capital estavam lotadas.

Quando criança, vivia aquela vida que só quem mora nas “bordas” conhece: jogava futebol descalço na rua e o “golzinho” de chinelo; pipa no alto, pipa nos fios, tênis nos fios, “gato” nos fios; som alto; funk, rap, forró… Eu poderia escrever uma página inteira só sobre essas vivências, mas acho que deu para entender.

Comecei a trabalhar aos 16 anos e só então eu percebi o motivo diário das reclamações da minha mãe: “estamos longe de tudo!”. Até então meu tudo era aquele bairro. Por causa do trabalho e da escola, saía muito cedo de casa e voltava muito tarde.

Foi quando um sentimento de revolta começou a bater. Estávamos realmente longe de tudo. Mas o que era “tudo”? Passado alguns anos, entendi que esse tudo era muita coisa, desde um caixa eletrônico até uma estação de metrô. Me acostumei com a rotina, acabei a escola e já engatei na faculdade. Não podia parar justo na hora que eu entendi o que era “tudo”.

No segundo ano da faculdade de jornalismo, conheci o Desenrola e participei do Você Repórter da Periferia. A partir daí o meu entendimento como sujeito periférico, ou periferiano, aconteceu. Ok, mas por qual motivo eu expliquei tudo isso?

Foi essa atmosfera que fez eu me entender como periferiano e me deu a oportunidade de escrever aqui, e que eu e você somos o nosso lugar. Que as periferias são diversas e ao mesmo tempo únicas. Que produzimos e consumimos nossa própria cultura, em nosso próprio universo.

Fugindo da lógica da pirâmide invertida do jornalismo, onde a informação mais importante vem primeiro, só quem leu até aqui vai saber o propósito dessa coluna mensal.

A ideia é conversar com os jovens para que se enxerguem também pertencentes à nação periférica e entendam toda a potência e referências desses lugares, através de textos como: as influências do rap e do funk para as quebradas; o empreendedorismo sem mesmo saber o que é isso; a autoestima de quem mora na periferia e outros assuntos que forem surgindo ao longo da minha estadia aqui nesse espaço.

Um jeito que eu arrumei para expressar toda a minha angústia e passar os tempos nos “busões da vida” foi escrevendo poesias sobre meu cotidiano. E aqui vai uma delas:

Sou da cor do talvez

Talvez polícia

Talvez ladrão

Talvez papai

Talvez irmão

Talvez rico

Talvez pobre

Talvez branco

Talvez negro

Talvez de quebrada

Talvez de condomínio

A única certeza

É que eu sou o meu lugar

Jardim Ângela vive em mim

Eu vivo nele

Ele tá na pele

Ele tá nos olhos

No busão lotado

No futebol de rua

No joelho ralado

O centro do mundo

Do meu mundo

Quebrada é mato

Eu mato e morro

Por ela.

“Lésbicas existem o ano inteiro”: o significado do mês da visibilidade lésbica na quebrada

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Como o mês da visibilidade lésbica atravessa os processos de descoberta e a vida de duas mulheres que moram nas periferias da zona sul de São Paulo? Além da questão geracional, elas compartilham como é o processo de autoafirmação entre família, amigos e a vivência nos territórios.  

Jessica Campos, moradora do Capão Redondo (Foto: JEFF)

Hoje, 29 de setembro faz um mês que foi celebrado o marco nacional da visibilidade lésbica. A data estabelecida no Brasil foi criada por ativistas brasileiras e dedicada ao dia em que aconteceu o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas, realizado em 1996. Agosto é um mês voltado para lembrar a existência da mulher lésbica, as violências sofridas por elas e as pautas que o movimento reivindica.

O que é ser lésbica e moradora de quebrada? O que é ser lésbica e morar nas periferias do Jardim Ângela e Capão Redondo? Essa visibilidade existe para mulheres lésbicas, pretas e mães? Ela existe só em Agosto ou o ano inteiro? Conversamos com mulheres que irão nos responder essas e outras questões sobre a visibilidade lésbica nas periferias e favelas.

Quando tinha 18 anos Gisiane Gonçalves, 31, uma mulher lésbica e mãe, moradora do distrito do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, lembra como foi o processo de descoberta da sua sexualidade.

“Com 18 anos eu já sabia o que eu era e o que eu queria, mas eu não queria aceitar de jeito nenhum, eu achava que era uma fase, que ia passar, e que era coisa da minha cabeça”, conta ela.

Apesar de ter se descoberto com 18 anos, só com 28 ela se reconheceu pra si e para o mundo como uma mulher lésbica. Durante esse tempo ela negava quem ela era e como se sentia na sua própria convivência. “Eu tentei bastante me esconder por muitos anos, mas tem uma hora que a gente não consegue mais”, afirma.

Outro relato que reforça a importância da visibilidade lésbica nas periferias é o de Jessica Campos, 21, moradora do Jardim Caiçara, no Capão Redondo. Ela é organizadora do Sarau do Capão e educadora do cursinho popular Carolina de Jesus.

Ela relata que o seu processo de descoberta se conecta também com questões ligadas ao território onde mora e a cor da sua pele. “Meu processo de descoberta com a minha sexualidade foi uma mistura de reconhecimento próprio e construção do meu ser né, isso é muito louco, acho que se reconhecer mulher é muito complexo, aí se reconhecer mulher preta, periférica e lésbica é um combo grandíssimo e cheio de complexidades”.

Campos afirma que esse processo de autoconhecimento foi importante para formar sua identidade. “Eu fui me construindo aos poucos, porque foi um processo todo esse reconhecimento, de conseguir chegar e falar hoje ‘eu sou Jéssica, uma mulher preta, moradora do Capão Redondo e lésbica’, até conseguir entender que sou uma mulher que tem voz, se colocar, ser vista e escutada”.

A educadora relata que a cultura de escrever poesias foi uma importante aliada para fortalecer esse processo de autoafirmação. “A escrita foi uma das coisas que fez com que eu conseguisse me localizar no mundo, colocar minhas angústias para fora, e eu acho que isso é um ponto muito importante quando a gente fala da escrita, o quanto a escrita é um potencial dentro da periferia, a gente traz a poesia marginal como um escudo e como um portador da nossa voz em outros espaços”, conta.

“Quando a gente tem a família do nosso lado a gente consegue dar a cara a tapa sem se preocupar”

Gisiane Gonçalves, moradora do Jardim Ângela. (Foto: Monique Menezes)

Gonçalves ressalta que o fato de ela não conseguir verbalizar sobre quem ela é publicamente, veio pela falta de conhecimento sobre si mesma, de entender o que ela sentia, e o que é ser lésbica. “Foi muito difícil, porque a gente já nasce assim, a gente sabe o que é, mas a gente não quer aceitar”.

Para ela, o processo de aceitação começou em superar as dificuldades internas, para conseguir enfrentar as externas. “Eu ficava escondida com as meninas, só que eu não tinha um relacionamento sério”. Gisiane desabafa que uma das suas maiores dificuldades era “não ter alguém assim próximo, pra conversar, pra se espelhar, e você ser a primeira de tudo na família”.

Após passar um bom tempo fortalecendo sua coragem, Gisiane conheceu uma mulher e se apaixonou, naquele momento ela viu que não fazia mais sentido se esconder. “Quando eu me apaixonei aí não tinha mais como esconder, porque eu queria estar com a pessoa, eu queria que a pessoa tivesse com minha família, e ela me deu uma força e eu tive coragem de contar”, relata.

Ao recordar sobre o processo de autoconhecimento e afirmação do seu afeto por mulheres, ela comenta sobre a facilidade de aceitação de sua família. “Minha família é muito cabeça fechada, é muito certinha, foi uma surpresa de verdade, eu fiquei bem feliz”, retrata Gisiane, afirmando que seus maiores medos relacionados à forma da sua família iria reagir foram criados por ela mesmo.

Hoje, ela olha a questão da aceitação da família de outra forma. “Quando a gente tem a família do nosso lado, a gente consegue dar a cara a tapa sem se preocupar. E fui vendo como era o mundo real fora da minha bolha, que eu achava segura só comigo mesmo e eu fui expandindo”.

Gisiane tem uma filha de nove anos, fruto do seu antigo relacionamento com um homem e considera que umas das maiores dificuldade no seu processo de reconhecimento da sua sexualidade foi contar para sua filha. “Desconstruir e contar pra ela foi o mais difícil, foi o mais marcante porque ela aceitou tão bem, que eu acho que eu já deveria ter contado a muitos anos atrás”.

Gonçalves descreve as cenas desse momento, afirmando que utilizou algumas cena de um filme sobre relacionamento afetivo entre duas mulheres, para confidenciar seu amor por uma mulher

“Eu falei para ela: ‘a mamãe gosta de meninas, a mamãe devia gostar de meninos, mas a mamãe gosta de meninas’. E ela foi super de boa, falou para mim: ‘é eu percebi que você anda muito com a tia’, aí eu falei: ‘mas você sabe o que é isso?’, e ela: ‘sim, você namora’. Eu falei: ‘mas você tá de boa com isso?’ e ela: ‘se você está feliz, eu estou feliz”.

Quanto mais Gisiane se reconhece mais os assédios e a insegurança de circular pelos territórios aumentam, porém ela conta que nada mais faz ela voltar atrás. “Eu sou muito feliz com a pessoa que eu sou, e tive coragem de mostrar pro mundo quem eu sou, e a gente não precisa de um homem do lado da gente pra gente ser capaz, para criar uma filha, pra fazer qualquer coisa”. 

“É muito louco ser uma mulher lésbica e morar no Capão Redondo”

Jessica Campos é poeta a educadora no Cursinho Carolina de Jesus. (Foto_Mariana Smania)

A poeta e educadora que mora no Capão Redondo conta as dificuldades de pautar sexualidade dentro do território, onde mora e atua nos seus projetos de cultura e educação. “Acho que é muito louco ser uma mulher lésbica e morar no Capão Redondo porque minimamente a nossa dificuldade de acesso limita até os nossos afetos né, acho que um dos podcasts que a gente produziu no cursinho fala muito sobre isso, quando a gente tá falando da visibilidade lésbica na quebrada, porque a dificuldade de acesso à informação faz com que a gente tenha dificuldade de se reconhecer como uma mulher lésbica”.

Para Campos, a mulher já tem a heterossexualidade compulsória. “A gente se enxergue só se relacionando com um cara, onde a gente não vê a possibilidade de se relacionar com uma mulher e eu acho que essa é uma das limitações né, e a gente vai encontrando as maiores dificuldades em não se sentir abraçada ou reconhecida no seu próprio território, por essa dificuldade de acesso de informação, então acho que esse é um dos maiores obstáculos que a gente passa e vai quebrando essa barreira aos poucos né. Morar na quebrada é uma construção e desconstrução constante com as pessoas que estão ao seu redor, mas como relacionar nossa sexualidade com o território?”, questiona ela.

Ao relembrar as memórias que a marcaram e a ajudaram entender quem ela é hoje, a moradora comenta sobre seus medos. “Acho que uma das coisas que mais me marcaram na construção de quem eu sou hoje foi quando eu parei em um momento da minha vida onde eu tinha começado a me relacionar com mulheres, e eu comecei a olhar para trás, do tipo quem eram minhas amigas mais próximas, as pessoas que eu queria está mais perto, o que eu sentia por essas mulheres, acho que isso fez com que eu conseguisse reconhecer quem eu sou, e perceber que é uma coisa que está comigo desde muito tempo, eu só não conseguia ver”.

Ela recorda que muitas vezes teve que fugir de situações que a fariam pensar sobre a sua sexualidade. “Eu saia desses espaços para não parar e pensar ‘será que eu sou lésbica? ‘, porque vai que eu sou e no fundo eu era. A gente só se questiona nesse sentido quando tem dúvida, e a gente não é ensinada a investigar essas dúvidas como legítimas”.

Para Jéssica, a descoberta do afeto entre mulheres foi outro processo bem importante e demorado. “Quando eu descobri o que era afeto entre mulheres, eu fui explorando isso, mas é muito difícil dada a sociedade que a gente vive, do tipo de olhares, da galera que não quer que a gente fique junto, a galera que fica incomodada quando estamos andando de mãos dadas, acho que é um processo muito louco, mas hoje eu não me limito mais, eu sempre estou atenta ao espaço, ao território que eu estou, sempre com muito cuidado, mas nunca me limitando”.

Em meio a esse processo, ela compartilha a sensação de dividir um espaço e a companhia com a sua companheira. “Estar acompanhada com a sua companheira é uma coisa de respeito mesmo, eu não quero colocar alguma coisa na minha vida onde eu não possa demonstrar amor a ela, eu quero demonstrar amor a ela em todos os espaços”, comenta Jéssica, abordando as dificuldades de demonstrar amor em público e sobre as formas que ela foi entendendo o afeto em sua trajetória

A poeta também reflete sobre o significado do Mês da Visibilidade Lésbica em sua vida, e a influência que teve em sua trajetória. “Faz pouco tempo que eu tenho contato com o mês da visibilidade lésbica, isso é muito louco né, porque mulheres se reconhecem lésbicas há muito tempo, desde que nascem, mas se reconhecer politicamente como lésbica é diferente, acho que o mês traz bastante significância, mas ao mesmo tempo afirmo que lésbicas existem o ano inteiro, assim como a galera preta, nós pretos e pretas não existimos só em novembro, e lésbicas não existem só em agosto, lésbicas não existem só na adolescência, mulheres lésbicas, são lésbicas quando crianças, adolescentes e também quando envelhecem”, afirma.

Sobre o amor lésbico, Jéssica comenta que ele é sempre taxado como algo impossível e doloroso, quando na realidade não é bem assim. “A gente sempre tem que pensar que nós estamos aqui hoje, se reconhecendo como lésbicas hoje, porque lá atrás tiveram pessoas que fizeram coisas para que nós estejamos aqui hoje, então o mês da visibilidade lésbica reforça que nossa luta é constante, mas nossa luta não tem que ser só sobre dor, é sobre amor também, sobre afeto e ver que é possível ser lésbica e ter um amor tranquilo. Então o mês da visibilidade lésbica ele me traz essa tranquilidade de que a gente tem luta, a gente tem força, de que a gente sempre esteve colocada nos espaços e de que a gente é muito mais do que só lutar”.

Ela finaliza a entrevista enfatizando a importância da sua relação com a poesia e como isso ajudou no seu processo de se olhar, se ouvir e se ver. “Meu primeiro contato com a poesia foi no cursinho popular Carolina de Jesus, lá tem muitos saraus, muito incentivo a escrita, lá que eu comecei a escrever, o meu professor, o Gabriel pediu para escrever uma poesia para recitar na aula, e foi ali que eu comecei a colocar minha vida para fora, a partir daí eu comecei a me reconhecer como quem eu sou hoje, a partir dali comecei a me construir e a me ler né, porque quando eu coloco para fora eu to lendo quem eu sou, e tinha muita coisa entalada, então eu consegui a partir da escrita me reconhecer como uma mulher preta, pobre, periférica, lésbica e o peso que isso traz por morar no Capão Redondo que sei lá, nos anos 90 era um dos lugares que mais morria preto, que mais morria gente. Tudo que eu sou hoje é pela escrita”.

Oficinas online de Guarani estão com inscrições abertas

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 As oficinas trazem educadores que estudam e vivenciam as línguas e culturas Yorubá e Guarani e sua importância na formação sociocultural brasileira.

Aulas de Guarani por Tupã Sérgio e Tapaiyuna dos Santos kitãulhu, ambos da Aldeia Tape Mirim (Tenondé Porã), em Parelheiros.

Coletiva Tear & Poesia de Arte Têxtil Preta Nativa está com inscrições abertas para as oficinas de língua e cultura Guarani. Diante da pandemia, todas elas acontecem gratuitamente de forma virtual entre os dias 19 a 22 de outubro (mais informações abaixo).

As aulas trazem a importância dos idiomas na formação sociocultural do país, mostrando suas influências nos hábitos e costumes da população brasileira, seja na língua, alimentação, religião ou nas artes.

As oficinas serão transmitidas por meio de vídeos gravados previamente. As de Yorubá, que já estão com as inscrições finalizadas, iniciaram no dia 5/10 e seguem até 13/10, às 19h30, sendo dois dias reservados para tirar dúvidas, e ministradas pelo nigeriano Prince Adewale Adefioye Adimula. Já as de Guarani, com inscrições abertas, serão realizadas entre os dias 19 e 22/10, também às 19h30, com Tupã Sérgio e Tapaiyuna dos Santos kitãulhu, ambos da Aldeia Tape Mirim, que integra as terras indígenas de Parelheiros (SP). (Faça aqui a inscrição da oficina de guarani).

Idealizados por mulheres reunidas na Coletiva Tear e Poesia, que existe na zona sul de São Paulo há 20 anos, os encontros online integram o ‘Projeto Pangeia Entre Elos: Palavra de Mulher’, que tem como objetivo pesquisar as teorias da pangeia e a relação dos grafismos africanos com os grafismos nativos das populações indígenas brasileiras.

Chama-se pangeia o fenômeno ocorrido há mais de 200 milhões de anos, quando os continentes formavam uma única massa. O “supercontinente” foi pouco a pouco se separando em pedaços, a partir de acontecimentos naturais, transformando-se no que hoje conhecemos.

Segundo Rita Maria, coordenadora da coletiva, o intuito com as oficinas é dar uma base cultural e linguística às pesquisas que a organização realiza em 2020 sobre as similaridades entre esses grafismos. Até o fim do ano a coletiva pretende também lançar um livro em bordados e textos trazendo a pesquisa da ancestralidade africana e indígena e como se relacionam às vivências das mulheres nas periferias. Bordam em forma de luta por igualdade e valorização das identidades negras e indígenas.

“Temos como foco dialogar com a mulher em diáspora, tanto imigrantes africanas quanto latino-americanas e caribenhas, mostrando também semelhanças entre grafismos nativos brasileiros, indígenas, e africanos, buscando identificar similitudes sutis pouco estudadas e menos difundidas entre culturas originárias daqui e de África”, diz Rita. 

O Yorubá e sua importância no Brasil  

As oficinas de Yorubá, que já iniciaram,  serão ministradas por Prince Adewale Adefioye Adimula, 50. Nascido na cidade de Ilê Ifé, estado Osun da Nigéria, Prince chegou no país em 2001 e, em 2019, também naturalizou-se brasileiro. Desde a chegada, é sacerdote Baba Adimula em casas de religião de matriz-africana.

É líder de jovens africanos da Comunidade Yorubá de São Paulo e atua, ainda, no Centro Cultural Adimula Oodua, promovendo o intercâmbio cultural e histórico entre brasileiros e nigerianos, trazendo importantes figuras religiosas para cá ou realizando excursões para distintas regiões da Nigéria. “O Yorubá é muito usado no Brasil como ferramenta da liturgia nos cultos de Candomblé. A raiz é única, mas há particularidades que recebeu em território brasileiro, se diferenciando daquele que é falado na Nigéria, Benin ou Costa do Marfim”. 

A importância da língua e cultura Guarani 

 As oficinas de Guarani serão orientadas por Tupã Sérgio e Tapaiyuna dos Santos kitãulhu, ambos da Aldeia Tape Mirim (Tenondé Porã), em Parelheiros, zona sul de SP. Agricultor, Tupã Sérgio entende que “a cultura brasileira é a cultura guarani”.

Para ele, aprender a língua é uma forma de colaborar com as lutas dos povos indígenas, já que ainda há muitos preconceitos e estereótipos ligados aos povos que vivem em regiões urbanas. “É importante aprender para também ter respeito e valorizar a nossa cultura. Uma pessoa veio aqui e disse que éramos ‘modernos’ porque tínhamos celular e vestíamos roupas”, explica.

Para Tupã Sérgio, um dos maiores ensinamentos que obteve com seus mais velhos foi o Xondaro, conhecida como a arte marcial dos guaranis, servido também como um ritual de transição da adolescência para a vida adulta dos indígenas guaranis, com aspectos tanto físicos, quanto comportamentais e espirituais. “Isso me influenciou bastante. Na prática do Xondaro, aprendi a plantar, respeitar a natureza, os animais e as crianças”, diz. 

Sobre a coletiva Tear e Poesia

A Coletiva Tear & Poesia de Arte Têxtil Preta Nativa é constituída por mulheres residentes da periferia da zona sul da cidade de São Paulo, que atuam há mais de 20 anos na região, com uma trajetória de participações em eventos, espaços e atividades como ilustração do livro Santo Amaro em Rede do SESC; Virada Cultural, Programa Pétala por Pétala – SESC Interlagos; Saraus e Feiras Literárias. Bordam em estilo ancestral como forma de luta por igualdade de oportunidades e direitos e valorização da beleza e identidades de negras e indígenas. Se autodenominam “tecelãs do verso”, pois bordam poemas e histórias ligadas à memória afetiva e herança cultural feminina, com questões ligadas às mulheres negras e indígenas, as crianças, a natureza, a culturas populares, tendo cantos, danças tradicionais e brincadeiras da cultura popular como estimuladores em suas oficinas.

Sobre o projeto ‘Pangeia Entre Elos: Palavra de Mulher’
O projeto “Pangeia Entre Elos – Palavra de Mulher” foi criado a partir de um processo de pesquisa sobre cultura, idioma e grafismos dos povos indígenas e africanos, com o objetivo de perceber na identidade brasileira as raízes profundas com essas tradições. Por meio da arte têxtil, a coletiva quer conectar mulheres bordadeiras com suas ancestralidades. O processo original de trabalho envolve encontros de bordados e a produção de um livro coletivo, mas diante do isolamento social em decorrência da pandemia do novo coronavírus, as oficinas estão sendo ministradas de maneira virtual. Saiba mais: 

 Serviço

Oficinas de Língua e Cultura Guarani
Data: 19, 20, 21 e 22/10 (Guarani)
Horário: sempre às 19h30
Quem pode participar: livre para todos os públicos

Link para inscrições em Guarani: http://bit.ly/oficina-cultura-lingua-guarani

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