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Eleições 2020: Quilombo Periférico levará para a Câmara Municipal de SP a tradição de se aquilombar

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Elaine Mineiro, Alex Barcelos, Débora Dias, Júlio Cesar, Erick Ovelha e Samara Sosthenes integram a chapa Quilombo Periférico (PSOL), eleita neste domingo com 22.742 votos.

A moradora da Cidade Tiradentes, Elaine Mineiro no centro da foto, foi a representante oficial da chapa nas urnas.

Com uma campanha abraçada por diversos setores da sociedade civil, como o movimento negro, educação popular e cultura periférica, a Chapa Quilombo Periférico levará para a câmara Municipal de SP a cultura de se “aquilombar”.

“Isso não é um projeto só de São Paulo. Isso é um projeto de nação de um povo. É muito importante que as pessoas entendem que quando a gente fala aquilombe-se é para se aquilombar. É para abrir esse gabinete para as pessoas saberem como funciona. É para politizar e trazer consciência e socialização da política para o nosso povo e para nossa quebrada”, explica Alex Barcelos, um dos integrantes do mandato coletivo.

A chapa Quilombo Periférico é composta por moradores de territórios periféricos localizados no Jardim São Luís, Campo Limpo, Sapopemba, “Esse é um mandato que tem cor, ancestralidade e raiz”Guaianases, Cidade Tiradentes e Centro. 

Esse é um mandato que tem cor, ancestralidade e raiz

Alex Barcelos

O mandato coletivo chega com a promessa de inovar o fazer político na Câmara Municipal de São Paulo, pelo fato de ter representantes do mandato compromissados e engajados na luta por direitos sociais em diferentes territórios, mudando a lógica de atuação dos vereadores que tem uma atuação focada em apenas uma determinada região da cidade.

Alex enfatiza que o mandato foi construído por diversão mãos, corpos, olhos, bocas e ouvidos. “Esse é um mandato que tem cor, ancestralidade e raiz. É uma construção que só faz sentido porque ela é coletiva e em rede, com pessoas que existem e circulam por lugares que em muitas vezes são desconsiderados pelo próprio sistema”. 

Em post no perfil oficial do Facebook, o Quilombo Periférico pediu aos seguidores para colocar Racionais MC´s para  celebrar a conquista histórica. 

A gente vai escrever outra história com territorialidade, ancestralidade e feita pelo povo

Alex Barcelos

Sem depender do apoio do Governo e sem mesmo ocupar cargos na política institucional, os membros da chapa Quilombo Periférico carregam consigo a cultura política de criar soluções criativas e coletivas para solucionar problemas estruturais causados pela ausência do Estado e de políticas públicas que deveriam atender os problemas e demandas dos moradores das periferias e favelas de São Paulo.

Em 2021, quando ocorrer a posse de vereadores na Câmara Municipal de São Paulo, a chapa Quilombo Periférico buscará representar os moradores que vivem às margens da sociedade nas periferias e favelas. “Na situação econômica e política deste país e cidade se faz necessário um mandato igual ao Quilombo Periférico, que represente as margens, periferias, vielas, quebradas, favelas, com seis corpos que constroem lastro nas ruas, pisando no barro e estando próximo ao povo”, afirma Barcelos.

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Coletivos debatem eleições nas redes sociais com moradores da quebrada

 A partir da valorização da micropolítica, iniciativas de movimentos sociais e de educação popular estão transformando as plataformas digitais em locais para discutir a cidade e exercer a participação política nas periferias de São Paulo.


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O educador e produtor cultural têm um histórico de atuação frente a projetos de geração de renda e trabalho para juventudes, artistas e empreendedores locais. À base dos ensinamentos da economia solidária, ele vem buscando formas de estruturar um ecossistema social que valoriza o fluxo de recursos financeiros que circulam pelos bairros e que podem gerar trabalho e renda aos moradores, que historicamente vivenciam a dura realidade do desemprego.

“A gente vai escrever outra história com territorialidade, ancestralidade e feita pelo povo, para fazer reparação histórica na cidade mais racista do país, onde se constroem praças, ruas e monumentos dos brancos racistas”, conclui o futuro co-vereador do Quilombo Periférico. 

Empreender na crise é tema do segundo episódio do Empreende Aí Cast

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 Lançado nesta sexta, dia 13, o episódio traz como convidada Ana Fontes, moradora de Diadema e fundadora da Rede Mulher Empreendedora

“Quando não foi um momento turbulento para empreender nas quebradas?”, questiona Luís Coelho, cofundador da Empreende Aí, escola de negócios da periferia e para a periferia. O segundo episódio do Empreende Aí Cast vai abordar os desafios e aprendizados de quem busca empreender em momentos de crise.

A primeira temporada do Empreende Aí Cast conta com oito convidadas para compartilharem sua trajetória no empreendedorismo. A convidada deste episódio é Ana Fontes, mulher negra e nordestina que mora no município de Diadema. Ela é fundadora da Rede Mulher Empreendedora, que há 10 anos atua em prol do empreendedorismo feminino no país. 

Em 2007, pedi para sair da grande corporação que eu trabalhava e resolvi empreender. Dei meu salto de fé para tentar para tentar abrir um negócio em 2008. Cometi todos os erros possíveis e imagináveis, acho muito importante a gente falar sobre isso porque as pessoas só falam da parte boa e não da parte ruim. E no meio desse processo de erros e acertos, sociedade que não deu certo, veio a inspiração de criar a Rede Mulher Empreendedora

Ana Fontes

Neste episódio, Ana destaca também os desafios que mulheres das periferias precisam superar para se dedicarem a si e ao seu negócio, principalmente em momentos de grande instabilidade política e econômica.

Compartilhando histórias de mulheres inspiradoras 

Com o objetivo de auxiliar as empreendedoras das quebradas com histórias inspiradoras de mulheres que criaram o seu próprio negócio e também compartilhar dicas práticas para executarem em seus negócios, a Empreende Aí (Escola de Negócios da Periferia para Periferia) lança seu primeiro podcast nas plataformas do Spotify e do Youtube, o Empreende Aí Cast.

O podcast é um formato de conteúdo por áudio, que vem ganhando força nos últimos anos e se assemelha muito aos antigos programas de rádio. Esta primeira temporada conta com oito episódios, que serão lançados entre novembro deste ano e fevereiro de 2021.

Criado por Luís Coelho e Jennifer Rodrigues, moradores da periferia do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, a Empreende Aí é uma iniciativa que busca motivar pessoas das quebradas na criação de seus negócios e na sua capacitação profissional no mundo do empreendedorismo. Neste conteúdo em formato podcast, a ideia é inspirar quem já pensa em criar seu próprio negócio ou quem deseja aprender como melhorá-lo.

Com mais de cinco anos de atuação, o Empreende Aí já realizou diversos cursos e palestras nas periferias e conta com a parceria do Itaú Mulher Empreendedora e a International Finance Corporation (IFC), organismo do Grupo Banco Mundial, para a realização do Empreende Aí Cast.

Coletivos debatem eleições nas redes sociais com moradores da quebrada

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 A partir da valorização da micropolítica, iniciativas de movimentos sociais e de educação popular estão transformando as plataformas digitais em locais para discutir a cidade e exercer a participação política nas periferias de São Paulo.

Plataforma Vote Perifa nasceu da iniciativa de dois moradores da Vila Inglesa, zona sul de São Paulo
Imagem: Sophia Caruso

A partir do entendimento de que os corpos periféricos precisam ocupar espaços políticos institucionais para construir um diálogo mais qualificado com os moradores da quebrada, utilizando práticas de participação social, como a escuta coletiva dos sujeitos que são invisíveis para o poder público, as iniciativas Vote Periferia e o Café Filosófico da Periferia, deram inicio a realização de uma série de debates com candidatos a vereadores que não tem o perfil dos políticos tradicionais, conhecidos no Brasil, com o propósito de disseminar uma maior conscientização sobre a importância do voto nos territórios periféricos.

A Vote Periferia é uma plataforma que surge como um Movimento Popular para compartilhar candidaturas da periferia de São Paulo. Já o Café Filosófico da Periferia atua como um grupo formado por educadores, artistas e coletivos culturais, que promove discussões sobre educação popular e produção de conhecimento nas periferias da zona sul da cidade.

Com a pandemia, essas iniciativas deixaram de realizar suas atividades em espaços físicos, para ocupar as diversas plataformas digitais e as redes sociais, passando a organizar encontros em ambientes virtuais, através de grupos de Facebook e Whatsapp. “A gente tem um grupo no whatsapp e tem um grupo no facebook, e esses grupos também são impulsionadores de outras discussões”, explica Wellington Amorim, 25 , morador do Vila Remo, bairro da zona sul de São Paulo, que atua como um dos organizadores do coletivo Café Filosófico da Periferia.

Amorim ressalta o quanto é necessário esses espaços de discussões, principalmente no cenário atual político, onde a mídia televisiva recusa a realizar debates eleitorais em São Paulo. “O Café Filosófico se propõe a ser um espaço de troca e de reflexão e num momento de eleições como esse, que a gente vê emissoras de televisão se negando a fazer discussões entre os candidatos, sobre política e sobre qual é o projeto de cidade que cada um tá apresentando, a gente entende o Café Filosófico como este espaço que precisa se colocar à disposição das pessoas da quebrada pra refletir, sobre o voto”.

No último encontro do Café filosófico, o grupo debateu sobre a construção de candidaturas coletivas nas periferias durante uma live que teve grande nível de interação dos moradores e seguidores, porém o organizador ainda demonstra sua insatisfação.

“A gente tem tido uma grande dificuldade para fazer esses papos virtuais e tudo mais”, diz Amorim, trazendo uma questão muito presente na vida de moradores das periferias que é a falta de internet ou de uma rede de qualidade, que proporciona uma desconexão da periferia com o mundo virtual. “A forma como a gente tem lidado hoje é com muita paciência, pedindo a compreensão das pessoas, e também tentar que as pessoas acessem esses conteúdos, compartilhando em todas as redes, então isso tem questões de fato que a gente consegue resolver”.

Ele reforça que a internet se tornou um instrumento fundamental e básico para a sobrevivência da população periférica. “Nesse momento de pandemia a internet ela foi colocada como item de direito básico pra gente sobreviver, e a gente não tem acesso a esse direito”, argumenta o integrante do Café Filosófico.

Através de uma observação sobre as necessidades do seu território, que não é colocada nos planos políticos na maioria dos candidatos que estão presente nas mídias tradicionais, ele sugere que umas das soluções encontradas pelo grupo para mudar esse cenários é inserir pessoas periféricas para ocupar esses espaços políticos de poder. “As pessoas precisam ser vistas como corpos políticos, isso é fundamental. Se as pessoas tivessem mais acessos a esses espaços de formação, a discussão, através de tecnologia, sem dúvida elas também participariam dessas questões colocadas para elas”, aponta ele.

O Café Filosófico entende que uma das características das quebradas é o potencial de engajamento das comunidades através do afeto e das relações pessoais construídas nos bairros. Eles utilizaram isso como estratégia para acessar moradores das periferias. “Quando a gente usa essa rede para reflexão e para construção de uma política pública de um processo de construção coletiva, que precisa para aquele bairro, eu acho que é ai que ta a potência, que a gente de fato consegue se relacionar , com o que mais tem haver com sua vivência “, avalia Amorim.

Considerado pelos seus criadores um movimento popular virtual e suprapartidário, o Vote Perifa foi criado por Rafael Shouz, 25, e Willian Dantas, 28, moradores da Vila Inglesa, periferia da zona sul de São Paulo, para fomentar uma plataforma que promove debates com candidaturas periféricas. A partir desta compreensão, eles articularam parcerias e campanhas nas redes sociais para entrevistar candidatos a vereador que são oriundos de territórios periféricos.

“O Vote Perifa é uma ideia prematura, mas que já tem levantado bons vôos. Nasceu em Junho deste ano, quando voltando para a casa da minha mãe na quebrada percebemos que tinham muitas outras candidaturas da periferia e que isso precisava ser propagado. Daí vem a ideia de gerar visibilidade e engajar o voto da quebrada também”, conta Dantas, um dos criadores, afirmando que entendeu que poderia usar de estratégias digitais para promover candidaturas periféricas.

O coletivo enxergou essa urgência de criar novos meios de comunicação que vá além da tradicional televisão, rádio, jornal e canais populares nas redes sociais, observando o descaso que os políticos que ganham voto nas periferias tem com o território depois de eleito. “Só quem veio da periferia sabe quais são as demandas que a periferia precisa. Só quem sentiu na pele a falta de acesso à políticas públicas vai entender a importância”, diz Rafael.

Pensando nisso, os criadores se tornaram produtores de conteúdos digitais, tendo como seu principal meio de divulgação uma conta no instagram da @vote.perifa. “Estamos tentando alavancar e dar visibilidade para os candidatos de outras formas. Começamos a compartilhar os candidatos que fazem parte do movimento e optamos pelas lives também. Para que não houvesse qualquer parcialidade, convidamos coletivos da quebrada para fazerem as mediações. A ideia é que esses convidados apresentem, mas também questionem os candidatos enquanto sujeitos que são da periferia também”, complementa William.

Porém ainda Rafael lembra sobre as maiores dificuldade de se produzir conteúdo para a periferia, é a exclusão tecnológica no qual ela está inserida “Usar o campo digital para chegar na periferia é uma possibilidade, mas também um desafio. Quando você fala em periferia, você fala da falta de acessos e precisa entender que as demandas mudam de território para território.” É diante dessa reflexão ele Relata “Nós precisamos democratizar o acesso digital antes de falarmos sobre a possibilidade de voto online, como estão querendo testar por aqui”.

 Contexto histórico

Durante as manifestações que explodiram pela cidade de São Paulo em junho de 2013, com a mobilização popular sobre o debate do preço da tarifa do transporte público para estudantes, nasce uma iniciativas de jovens da quebrada: o Café filosófico da Periferia, um espaço de reflexão sobre questões que atravessam vivências periféricas, conectando política, cotidiano na periferia e filosofia, cujo objetivo é a construção de troca de saberes por meio de debates e intervenções artísticas.

“Buscamos trazer pras pessoas a possibilidade de pensar e reconstruir primeiro essa relação com o território, e como eu olho pro meu bairro como um lugar potente”, explica o produtor audiovisual Wellington Amorim, 25 , morador do Vila Remo, bairro da zona sul de São Paulo, que atua como um dos organizadores do coletivo Café Filosófico da Periferia. Ele enfatiza que o “café filosófico é um lugar que a gente também busca mostrar que essa potência existe a partir da reflexão das pessoas que moram aqui”.

Diante deste espaço livre e democrático para participação e reflexão dos moradores sobre as nuances sociais dos territórios, o coletivo propõe um diálogo de escuta e provocações para as pessoas que vivem nas periferias, para assim construir saberes que todos possam participar no processo de elaboração.

“Tem um ensinamento do Café Filosófico que a gente aprende com o outro, independente se ele concorda ou não com a gente, a gente tá na busca de construção desse processo coletivo, ainda que a gente tenha posições diferentes”, conta Amorim, questionando logo em seguida: “o que nos une? como a gente torna essa união uma potência?”.

Legado

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Comunidade, esse mês foi difícil escrever, primeiro pela diversidade de assuntos que poderia conter nesse texto. Minha cocandidatura política, COVID-19, política brasileira, machismo estrutural, futebol e privilegio branco que vivemos. Enfim, muitos temas, todos mergulhados em uma mulher negra indígena e periférica, que nasceu na periferia e foi criada na favela.

Foto: DiCampanaFotoColetivo (Vale das Virtudes, Campo Limpo – Zona Sul – SP/2017)

Eu tenho muitos pontos cegos dentro de mim e em minha consciência, pois ainda não existe condições estruturais para esquecer tudo que passou pela minha história e de tantas e tantos que eu conheço, mas sabemos que todas as tragédias instituídas em nossas vidas me trouxe para luta social, cultural e política.

Eu gostaria de ter mais lembranças felizes da minha infância, mas minha família não tinha máquina fotográfica para registrar esses momentos, então eles vivem em outras pessoas, eles a possuem e nesses momentos eu não sou protagonista. Mas me lembro bem do que é morar a beira de um córrego, pois em fim, mesmo que canalizado (em partes) ele continua lá exalando seu poder. Eu não vivi muito alagamentos, pois meu pai e vizinhos cuidavam mensalmente do lixo e escavavam para que ele não alagasse nossa casa. Essa é a realidade de muitos brasileiros e foi a minha. A urbanização da favela veio quando eu não morava mais lá, meus pais ficaram felizes e eu também pela melhoria do ambiente da minha casa, minha casa propriedade da minha família na favela, pois onde vivo hoje estou de passagem, pois o aluguel depende de trabalho.

Minha família também não foi diferente da maioria das famílias nos anos 90, violenta com os filhos por medo da violência, não compreendia nossa vida artística ou nossas baladas. Apanhei bastante para entender que só o trabalho seria uma forma digna de vida, mas quem não fica violento com a falta de dinheiro e a demanda de trabalho. Passamos, todos os meus amigos por momentos de violência que se misturava com amor e carinho, muita terapia para não ligar amor a violência, muita poesia para trazer de volta algo possível para além da violência vivida e vista entre crimes, corpos, toque de recolher e toda guerra que presenciamos na adolescência.

Ninguém me contou essa história, eu vivi enquanto crescia, muitas coisas estão nesse ponto cego outras são objetivas e sei que criei várias fugas de momentos econômicos difíceis. A escola foi minha fuga, minha fortaleza, quando aprendi a ler, aprendi o teletransporte, aprendi com os livros que poderia esconder minha pobreza em belas redações, em falas e respostas difíceis para minha idade, em ser educada e ser firme. Uma menina firme, uma mulher firme me salvou de diversos abusos e problemas.

Ser uma menina firme, me fez não sofrer em não ser escolhida na “salada mista” ou miss caipirinha, mas estar feliz em ser a oradora do grêmio, em sair sozinha, andar com os garotos, em ser a metida sabe tudo, mas que me trouxe amizades que tenho até hoje.

Existem diversos caminhos para as mulheres na periferia, mas muitas vezes tudo parece um grande labirinto que nos leva ao mesmo lugar, a maternidade. Na verdade essa foi a única vez que achei que de verdade não haveria chance e que minha vida não teria outra estrada, além de aceitar o trajeto. Mas eu sempre fui firme, e mesmo que quase perdendo o tempo eu segurei a estrada e me fiz a primeira mulher formada no ensino superior na minha família, prêmio? Não, revanche!

Não consegui ir muito mais longe que isso no que se refere a instituição, mas essa passagem foi combustível suficiente para que minhas palavras fossem ações conectadas às lutas das quais eu pertencia e da análise de tempos tão distantes e tão presentes no território periférico.

Cada fala do ser periférico me transporta para um pedaço, um dia, uma hora da minha vida, absolutamente nada me traz estranheza, hoje faço o teletransporte ao contrário, mais forte consigo olhar de frente para a vida construída nas condições em que vivemos.

Somos sobreviventes, da falta, de saneamento básico, alimentação saudável, como se diz hoje, da falta de segurança e planejamento do nosso trajeto. Mas precisamos ser firmes, nossos ancestrais foram em condições muito piores. Minha mãe veio para São Paulo como escrava doméstica e hoje eu estou aqui, escrevendo, isso é legado.

Saúdo aqui todas que vieram antes de mim e me colocaram aqui hoje periferia é matéria que transborda memórias de sobrevivência.

Sinal de nascença 
Sou  negra,
sangue indígena, brasileira,
de trajetória equilibrada na tragédia, 
povo, laço, estupro, miscigenação forçada no murro.
Enfileiradas paulistanas,
desfile de trabalhadoras à deriva, 
solavancos do transporte público.
Mascaradas relembram,
o passado ancestral.
O medo nos olhos, a fúria nas mãos.
Ladeiras acima, ladeiras a baixo, seguimos, lenços nos cabelos, colares sagrados no peito.
Observando esse filme coletivo do homem branco faminto por sangue nativo,
Uma ordem que não cessa, 
Segue com nome e sobrenome
De vírus,
uma reprise funesta de antepassados, desconhecidos,
mas sentidos nas veias que nos restam.

Anabela Gonçalves

Sobre quando não amei essa criança

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Uma semana antes de termos a certeza pelo teste rápido eu havia sonhado com ele: alto, com uns dois metros de altura, quase como quando sonho com os Orixás, ele era um D’us negro, seu corpo a minha frente se derreteu como sorvete na frente da fogueira e se transformou em um bebê que saiu engatinhando pela sala. 

Foto: Léu Brito

Quase dez anos até aqui, quanta expectativa criada, imagens projetadas.

Uma semana antes de termos a certeza pelo teste rápido eu havia sonhado com ele: alto, com uns dois metros de altura, quase como quando sonho com os Orixás, ele era um D’us negro, seu corpo a minha frente se derreteu como sorvete na frente da fogueira e se transformou em um bebê que saiu engatinhando pela sala. Não tive dúvida, ele estava chegando.

Nos primeiros dias não sabia muito o que dizer, como me posicionar, aquele era um dos maiores sonhos da minha vida e ao mesmo tempo queria respeitar a escolha da companheira, sem fazer ela achar que tanto fazia pra mim, um lugar que ainda hoje não sei como faria de novo.

Então começou a brincadeira, alimentação, exercícios físicos, doula, sim doula, tão bom e importante.

Nesses anos de expectativa, andei por ai curiando essa parada, desde parteiras tradicionais até a doulagem, como esse universo tão nosso (preto, periférico, amerindio) foi se tornando algo desconhecido e distante da nossa realidade? Ser acompanhada por uma pessoa experiente e acolhedora a todo tipo de situação que iremos, sem saber, passar, isso ajuda muito nas doideras e cuidarmos do que importa.

Nos colocamos a cuidar da nossa gestação de toda forma que sabíamos e desejávamos. Cantava pra ele, já mandando uns jongos, pra ficar ligeiro na sua pretitude rs; Com carinho fazia o som do tambor na barriga, trocamos ideia com ele, contávamos histórias, fazíamos carinhos e a mamãe tomava água de coco, muita, mas muita água de coco, já que não tinha a breja né kkk (esse menino hoje ama coco, óleo de coco, coco ralado, leite de coco, água de coco, se tem coco, é com ele mesmo).

Foi um processo de gestação com suas delícias, sem tirar nem por as exaustões e dores, principalmente da parte da mãe, as do pai eram por sedentarismo mesmo! (parágrafo curto porque me perdi rindo)

Quero dizer com tudo isso que fui nutrindo cada vez mais amor, não tinha expectativa de nascer logo, de ser menino ou menina, mesmo tendo a intuição por causa do sonho que seria menino, mas o espírito dele podia vir no corpo de menina e por ai vai, não é!?

Eis então, conseguimos ir numa casa de parto (Sapopemba), fomos belamente acompanhadas e também fomos pesquisar sobre o plano B, o hospital do Ipiranga, ficamos muito animadas com a sala de parto humanizado que possuem, com a equipe médica e tenho que dizer, demos uma sorte de encontrar uma equipe maravilhosa, disponível, acolhedora… por que no final das contas tivemos que ir pra lá.

Depois das 41 semanas a recomendação da casa de parto era que fossemos para o hospital pois a gravidez poderia ter complicações, até porque estávamos lá, na 42° semana e nada desse menino vir gente!

Ruma pro hospital, sim as contrações do prelúdio haviam começado, fomos para a sala de parto, cada uma em seu processo único ali, muitos sentimentos, medos, dúvidas, de todas as partes atravessando o processo e os sentimentos da mãe. Muita responsa né e desafiador pra cada uma entender e conseguir por o seu melhor pra colaborar com o momento da mãe. As vezes tá todo mundo sem saber o que fazer, com seus medos e histórias, mas ta ai o desafio, de oferecermos o melhor de nossa energia pra mãe.

E foi tenso e intenso, a criança não virava, a barriga ainda alta como todos os outros dias, as médicas cochicharam entre si e da melhor forma que podiam nos convidaram para fazer a cesariana, entendemos que seria aquele caminho mesmo, mesmo com todas as expectativas criadas de termos de forma natural, aquela seria nossa história, aquela era a história do Malik.

Então corre daqui, corre de lá, sala preparada, equipe aprumada (só não precisava da médica chefe estar presente, um desconforto começou ali).

Antes de entrar pra sala de parto ouvi na minha cabeça: ele irá nascer semi morto! Bom pra quem tem intuição acho que vai me entender, ‘da hora’ saber algumas coisas antes que aconteçam, outras nem tanto, comecei a ter medo ali, ao invés de aproveitar a dica pra me acalmar, a frase não dizia, vai ser assim ou assado, só aquilo mesmo, então fiquei na nóia de que ele poderia não sobreviver e como foi difícil aquele sentimento me tomando…

Enfim, lá estava, na sala com a compa, mãozinhas dadas e se apoiando… Eis que pegam o bebê, sem choro, parecia que um silêncio tinha imperado, ela rapidamente olha pra mim e diz que vai ficar tudo bem, já tinha me sacado e tava lá lidando com os sentimentos meus e dela também.

Vi ele saindo da sala sem nem ser aproximado de nós, com uma cor cinza e verde escuro, bizarro… ele havia aspirado mecônio, não tava no filme isso, ninguém tinha nos preparado para aquela situação.

Me chamaram e eu fui lá: pai, estamos fazendo as manobras, houveram complicações e ele irá precisar ficar na UTI com a pediatra. Bom demoro, mas ele vai ficar vivo né? Ela lindamente e nada acolhedora respondeu: não sei, não posso dizer, ‘não sei o que vocês fizeram pra ter ocorrido isso’. Fiz a sonsa, voltei pra sala, conversamos entre nós que iria ficar tudo bem, não sei com que palavras, e fui pra sala de parto humanizado, buscar nossas coisas…

Ali me deixei desmontar, aquele choro descomunal, que eu nem sabia que tinha, chamei até a espiritualidade na chincha, não aceitaria uma situação de não vida, por toda correria que a gente faz na vida, aquele amor, aquela relação, não iria abrir mão… a médica me achou, me tirou do chão, eu já devia estar quase nadando nas lágrimas

Ela me explicou que aspirar mecônio não era algo raro, depois até fomos descobrir várias outras histórias, até quem dizia que a criança ficava com a imunidade reforçada depois de uma dessas!

Ainda assim, controlado, mas não menos surtado, tivemos que aguardar quase 4 horas pra saber como ele estava, tendo nascido lá pelas 6 horas, fui vê-lo só depois das 9hrs… foram 5 dias de UTI, indo e voltando, não podendo dormir com a compa, tendo que ver ele dentro de um acrílico, até que começou a ficar num bercinho aberto, todo entubado ainda e já podíamos pegar no colo, ela dar de mama e tirarmos umas fotos escondidos 🙂

Ao todo foram uns dez dias na UTI!

O evento do parto, acho que foi o ponto principal do que quero colocar, o susto, a tensão, a dor, o medo, angústia, uma série de sentimentos que dominaram meu corpo, em meio a isso fomos aprovados em um edital e não conseguia dar conta, me sentia culpado de não corresponder às demandas do processo do edital (formativo), mas só depois de 3 meses passados, até mais, comecei a me dar conta que eu estava em uma depressão profunda, olhava pra ele e não sentia nada e não entendia como aquilo era possível.

Eu sei chorei horrores, claro que o amava, mas pensava coisas do tipo: devo ter chorado por posse, medo de perder algo, uma propriedade, não me via sentindo amor, aquele avassalador que esperava ter, logo que nascesse e aquilo me assustava.

Fui ler sobre e não falamos muito disso no nosso dia a dia, nem sabia que existia, mas a depressão pós parto é tão comum nos homens quanto nas mulheres, nós homens somos condicionados a não demonstrar os sentimentos, sermos fortes, seguros e tudo o mais que a masculinidade tóxica nos oferece e adoece, ai sê já tá lá, cagado, com essas determinações da sociedade e não tem pra quem recorrer parece, à compa você precisa se colocar à disposição de nutrir, cuidar, zelar, fortalecer. E nessa de se reservar, você se abre com quem? Se expõe pra quem? Isso vai mudar algo do que ta sentindo? Quase que toma um “se liga negão, esse não é seu momento!”

Foram meses amargos e felizes, era doido, aos poucos, uma coisa por vez, tempo ao tempo, ali na pele com pele, no convívio, um dia depois do outro algo foi brotando, eu não sei se era brotar, acho que era outra coisa, algo foi desanuviando, as raivas, medos, angústias se dissipando, o choque daquele susto já podendo se contar sem reviver o medo e cair em lágrimas

É muito doido, os processos químicos que as emoções geram na gente, tiram a cor das coisas, o sabor, a poesia. Fico pensando para além das escolhas ruins que fazemos dentro da masculinidade: de não aceitar que parimos também; que quem teve um filho não foi a mulher, mas nós, eu e ela, você e ela, você e ele… o quanto as vezes nos deparamos com a falta do sentir, amor, apego, carinho, afeto, dengo, magnetismo, atração e isso tudo é uma diminuição na produção das químicas da alegria e do prazer geradas pelo nosso corpo, as: serotonina, dopamina, endorfina e ocitocina. Aumentam-se os medos, angústias, desânimo e ai travestidos de segurança, certeza, acrescidos de irritabilidade e buscando certa racionalidade, decidimos não estarmos naquela relação: com a mãe, com a criança, com a família.

Sabe aquele prazer de postar foto nas redes sociais, mas não conseguir ficar uma hora direto focados na criança? Porque as redes sociais, nos enganam, dando pequenos goles das químicas que falei. E a relação humana é mais complexa, ela requer tempo e esse tempo devolve pequenos encantamentos, satisfações de coisa que plantou a dias ou a anos e o amor parental só vai crescendo, mesmo misturado com as dificuldades.

Mas vale pensar, pedir ajuda, reconhecermos nossas fragilidades, mesmo com toda pressão e demanda de ser o negão incólume, não alcançável por qualquer dor ou medo. E se dar esse tempo de mesmo na visão turva e dolorida de se aproximar ao invés de se afastar, tem uma força que brota e uma magia que rola nos encontros, não sei, eu não saberia viver sem essa relação eu tenho muita vontade desse amor entre eu e a cria!

Empreende Aí apresenta podcast sobre empreendedorismo para mulheres das periferias

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Beatriz Santos, pesquisadora e diretora executiva da Barkus Educação Financeira, é a convidada do primeiro episódio desta temporada e vai dividir seus conhecimentos sobre finanças pessoais.

Luís Coelho e Jennifer Rodrigues | Foto de Thays Bittar

Com o objetivo de auxiliar as empreendedoras das quebradas com histórias inspiradoras de mulheres empreendedoras e também compartilhar dicas práticas para executarem em seus negócios, a Empreende Aí (Escola de Negócios da Periferia para Periferia) lança seu primeiro podcast nas plataformas do Spotify e do Youtube, o Empreende Aí Cast.

O podcast é um formato de conteúdo por áudio, que vem ganhando força nos últimos anos e se assemelha muito aos antigos programas de rádio. Esta primeira temporada conta com oito episódios, que serão lançados entre novembro deste ano e fevereiro de 2021.

No episódio de estreia, Beatriz Santos compartilha suas experiências e conhecimentos sobre como controlar os gastos pessoais. A jovem carioca tem graduação em Administração pela UFRJ e Universidade do Porto – UPorto e é pós-graduada em História e Cultura Africana e Afro-brasileira pelo Instituto Pretos Novos, pesquisando diversidade organizacional e finanças com foco em questões raciais. É também diretora executiva da Barkus Educacional, um negócio de impacto social, sendo responsável pela gestão e área comercial. 

Histórias inspiradoras e empreendedoras nas periferias 

Criado por Luís Coelho e Jennifer Rodrigues, moradores da periferia do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, a Empreende Aí é uma iniciativa que busca motivar pessoas das quebradas na criação de seus negócios e na sua capacitação profissional no mundo do empreendedorismo. Neste conteúdo em formato podcast, a ideia é inspirar quem já pensa em criar seu próprio negócio ou quem deseja aprender como melhorá-lo.

“Agora, vamos poder levar este conteúdo para milhares de mulheres de uma forma descontraída, mas oferecendo muito conhecimento e experiências que deram e dão muito certo até hoje”, reforça Luis, sócio fundador da escola de negócios. Ele também conta que os próximos episódios incluem os temas de gestão do negócio em momentos de crise, uso de redes sociais e técnicas para o aumento das vendas.

Entre as convidadas para os próximos episódios estão: Eliane Dias, empresária e advogada à frente da gestão da carreira dos Racionais MC’s; Michelle Fernandes, sócia proprietária da grife Boutique de Krioula; Débora Luz, empresária e fundadora do Clube da Preta; Viviane Duarte, jornalista e fundadora do Plano de Menina; e Ana Fontes, eleita uma das 20 mulheres mais poderosas do Brasil pela revista Forbes em 2019.

Com mais de cinco anos de atuação, o Empreende Aí já realizou diversos cursos e palestras nas periferias e conta com a parceria do Itaú Mulher Empreendedora e a International Finance Corporation (IFC), organismo do Grupo Banco Mundial, para a realização do Empreende Aí Cast.

A periferia do esperançar

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Em um dos momentos mais difíceis que já vivemos na periferia a esperança floresce, ela tem rostos, tem histórias, tem lágrimas e tem muitas mãos. 
Foto: Pedro Oliveira

Mês passado, tivemos a comemoração dos 99 anos de Paulo Freire na América Latina, mesmo remotamente pude observar e refletir que a periferia exerce na prática esse esperançar, somos as manifestações mais puras do não desistir, do lutar, de pensar coletivo.

Ano passado, observei muita desesperança. As pessoas viam uma perspectiva onde tudo só poderia piorar. Contudo, com tantos jovens de periferia na universidade, com tudo que os coletivos conseguiram mobilizar para manter a periferia viva neste momento, com tantas histórias que não estão na televisão porque não falam de morte, não falam dos nossos números de morte, eu não acredito que tudo acabou.

Relembrando a construção da periferia vemos que construímos tudo sozinhos, nossas casas, nossas ruas e nossos comércios, na década de 90 o Jardim Ângela foi considerado o bairro mais violento do mundo pela Organização das Nações Unidas (ONU) com uma taxa de homicídio de 98 para cada 100 mil habitantes. A partir de iniciativas dos próprios moradores e de instituições como a Sociedade Santos Mártires, CDHEP – Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo e organizações como associações de bairro a violência diminuiu e foi possível sonhar com mais calma.

Desde lá conquistamos muito e nos tornamos referência em cultura, em luta popular e agora podemos ver os nossos também na universidade. Quando relembro tudo isso só penso em Paulo Freire. O que mais seria o seu legado se não luta, educação popular e coletivo? A esperança mora no olhar dos jovens vendo seus amigos na universidade, no cuidado dos pais que choram ao ver que seu filho realizou um sonho mesmo sendo difícil e na nossa constância de revidar as violências do Estado de forma forte, prática e ativa.

Na periferia mora também a filosofia Ubuntu, uma filosofia africana que fala sobre a humanidade ser o coração da unidade, a periferia é seu próprio coração e pulsar, somos coletivo e por isso ainda estamos lutando para que os nossos vivam. Nós ainda vivemos a incerteza e tristeza da falta de políticas públicas, contudo também enxergamos uma luz por todas as conquistas que já tivemos.

A esperança mora em cada beco e viela onde crianças correm, riem e brincam, onde jovens felizes voltam para casa, onde pais voltam cansados do trabalho.

É difícil ter esperança vendo que ainda somos os que mais morrem, os que mais lutam e os que estão no fronte da vida, porém a esperança de Freire nos trará justamente essa perspectiva de não desistir, de continuar e transformar no coletivo. Esse texto além de ser uma forma de lembrar o legado da Educação Popular que valoriza os saberes da periferia e que se constrói com lutas, é também um texto para que não esqueçamos que o opressor já não domina completamente nossos corpos, não ficamos parados, a periferia jamais parou.

O único violento é o Estado!

Em 2020, tivemos um recorde de mortos pela PM, mesmo com a quarentena que retirou boa parte da população das ruas o Estado seguia matando pela falta de assistência no combate ao COVID-19 e também nas abordagens policiais que inclusive foram violentamente feitas contra crianças negras. Nessa história, a periferia nunca foi a fonte da violência e sim o Estado. Parece estranho pensar que o governo durante uma pandemia se ocupou em privilegiar empresários e quem supriu as necessidades da periferia foram organizações voltadas e construídas para e por ela.

Em meio a tanta violência ainda é possível sonhar? Apesar de todas essas violências acontecendo juntas eu vejo uma esperança muito grande no que já fizemos e estamos fazendo. Semana passada ouvi um audiolivro feito pelo coletivo O Corre que se chama “O inimigo invisível” e conta uma história que em meio a uma pandemia possuí esperança. Além disso ele informa as pessoas e promove um reconhecimento. Eu me vi em cada personagem da história e isso não poderia me gerar outro sentimento que não esperança.

Em meio à crise causada pelo descaso do governo, os cursinhos populares fizeram um trabalho potente em manter a esperança viva e eu vi Paulo Freire em cada um desses coletivos, eu vi o esperançar em cada uma dessas quebradas, nós somos uma potência!

Eu insisto em dizer que o sonho mora aqui, o sonho mora no Jardim Vera Cruz, no Jardim Horizonte Azul, Jardim Capela, Jardim Jacira, Jardim São Luís, Capão Redondo, Morro do Índio, Campo Limpo e em tantas outras quebradas do sul, leste, oeste e norte.

A esperança mora em você que tirou um tempo para ler até o final. O esperançar de Freire vive e cresce na periferia! Somos luta, coração e transformação.

Pessoas pretas e periféricas irão transformar a indústria da tecnologia

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Conheça os ‘devs periféricos’, jovens moradores de periferias e favelas que estão tendo a oportunidade de compreender como as questões de raça, classe, gênero e território irão moldar o pensamento e a atuação profissional de uma nova geração de profissionais de tecnologia da informação.

Gilmar Cintra, programador e estudante de engenharia da computação.

Ao relembrar a infância vivida na Brasilândia, distrito da zona norte de São Paulo, o programador e estudante engenharia da computação Gilmar Cintra , 32, afirma que o tradicional futebol na quadra com os amigos era deixado de lado para conhecer e vivenciar os primeiros contatos com a ciência e a tecnologia. “Em vez de ir em uma quadra com meus amigos, a gente ia em uma estação de ciência”, conta ele.

Após esse primeiro contato com o universo da tecnologia, Cintra afirma que foi na infância que surgiu o interesse pela ciência da computação. “Aí surgiu essa paixão por computação e quando você acha que acabou, que é só aquilo sempre surge algo novo”, complementa a recordação.

Porém a paixão pela ciência da computação de Gilmar vem acompanhada de uma frustração. Ele acredita que a tecnologia que poderia ser usada para resolver problemas da sociedade, no entanto, ela está sendo utilizada para produzir ainda mais desigualdades sociais, criando uma falsa sensação de evolução e ignorando problemas básicos.

“A gente tem famílias que ainda passa fome. E tem gente que ainda quer fazer entrega de drone. A gente precisa primeiro resolver esses problemas, que eles são uma coisa básica que não deveria nem existir”, ressalta o programador.

Após essa crítica sobre o mercado da tecnologia, o programador levanta outro questionamento: “como que a gente vai pra frente se tem muita gente que não tem nem saneamento básico?”

Diante das vivências e questionamentos do programador, outros aspectos importantes do processo de formação de profissionais de tecnologia vêm à tona, como por exemplo, o ambiente universitário que forma os profissionais do futuro, mas ainda pecam nas questões de diversidade. “Todos meus professores são brancos, em grande maioria homem, só vejo três professoras mulheres dentro do curso e reforço, todos são brancos”, afirma Gleyce Karen, 19, moradora de Poá, cidade da região Metropolitana de São Paulo.

A estudante de Sistemas de Informação conta que a falta de representatividade no curso também é outro problema que gera impacto no aprendizado. “Tenho dois professores que são de outros países, países vizinhos do Brasil e falam espanhol. Más dentro do curso não há diversidade e isso me entristece, pois não me vejo representada”.

Karen se mudou de Poá para a cidade de Dourados, em Mato Grosso do Sul, para estudar na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Ela relata que mora em um bairro rico na cultura indígena, mas o racismo velado dos moradores brancos ainda a persegue. Em 2019, assim que ela chegou à cidade, a estudante estava passando em uma das ruas do território e viu uma senhora olharem sua direção e falar para uma pessoa próxima a ela: “olha a negrinha” e dar risada na sequência.

Após vivenciar essa situação, Karen relembra que pensou seriamente em desistir dos estudos. “Pensei em voltar para São Paulo e desistir de tudo, más se desistisse seria menos uma mulher preta ocupando um espaço onde majoritariamente é composto por homens brancos, então permaneci e resisti assim como meus ancestrais”, argumenta.

Tais fatos relatados pela estudante sobre a discriminação racial que vivenciou contribuem diretamente com a permanência ou não de pessoas negras nesses lugares. Karen atribui sua insistência de permanecer na cidade e na faculdade onde não consegue se reconhecer nos professores e também nos estudantes ao objetivo de desenvolver suas habilidades como programadora.

“Eu gosto muito de programar, desenvolver um software, ver que um programa que eu me esforcei pra fazer está rodando bonitinho”, diz a estudante de forma entusiasmada, enfatizando que acredita que esses aprendizados podem mudar as quebrada e os moradores. “Acredito que a tecnologia muda o mundo, transforma e ajuda pessoas de várias formas e eu sempre vi a necessidade de fazer algo pelas pessoas de onde eu vim e no meu território. Encontrei na área de tecnologia da informação essa possibilidade”.

Algoritmo racista

Ao falar sobre as propagações de ódio e o viés do algoritmo que a partir da coleta de dados dos usuários aprende preconceitos com a ajuda da inteligência artificial, formando um algoritmo preconceituoso, o programador morador da Brasilândia afirma que isso só acontece por que a sociedade é racista. “Isso é uma evidência que nossa sociedade realmente é racista, não tem como negar isso”, comenta o programador morador da Brasilândia.

Uma das propostas pensada pelo desenvolvedor para lidar com esse tipo de problema é criar programas que aprendem e falam como a periferia. “A única forma de uma maneira concreta seria desenvolver uma inteligência artificial através dos inputs das pessoas que realmente moram em zonas periféricas”, conta Gilmar.

Ele propõe em construir um programa que aprenda o comportamento de moradores da periferia e transforma isso em dados que alimenta a inteligência artificial. “Se você pegar realmente as pessoas que moram nesses lugares, ou somente as pessoas negras, você consegue desenvolver uma inteligência artificial que não seja racista, que não é racista, porque espera-se que não seja inputs racistas e através desse aprendizado não racista a gente consegue desenvolver uma inteligência artificial que não seja racista e não fique julgando”.

Quando pensa na junção de suas vivências como morador da periferia com seus conhecimentos como desenvolvedor, o programador ressalta que os moradores possuem uma ferramenta muito importante para mudar a vida na periferia. “Eu imagino as comunidade no futuro com um projeto de reurbanização, ela tendo cabeamento elétrico, fibra ótica, telefonia, tudo embaixo da terra, um sistema de transporte eficiente”, imagina o desenvolvedor, fazendo uma releitura de como a tecnologias voltadas para as periferias pode impactar no seu desenvolvimento no futuro.

Já para a estudante de Sistemas de Informação do Mato Grosso do Sul, a imaginação do programador da Brasilândia só se tornará realidade se mais pessoas pretas atuarem no mercado da tecnologia da informação. “Com certeza acredito que com mais pessoas pretas dentro da área, o povo preto teria mais acesso à internet, teríamos mais aplicativos voltados para nós, aplicativos que facilitam ainda mais as nossas vidas”.

Ela finaliza a entrevista afirmando que outro passo fundamental para concretizar esse futuro para a quebrada é criar uma rede de ‘devs periféricos’ para construir, disseminar e ensinar novas tecnologias. “Acredito que o meu dever é repassar conhecimento a todos e inserir outras pessoas pretas da periferia e das favelas dentro da área tecnologia”.

Empreendedorismo sem mesmo saber o que é isso

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 Da panfletagem nos portões aos grupos do Face, a periferia arruma uma forma de mostrar serviço e fomentar o comércio local.

Jardim Ibirapuera – Zona Sul – SP/18 – Foto: DiCampana Foto Coletivo

“Trabalhe enquanto eles dormem”. A frase que virou meme já é praticada na quebrada desde o início dos tempos. Seja com o deslocamento das bordas até o centro para trabalhar nas empresas ou com uma banquinha de verdura no ponto de ônibus, a quebrada sempre buscou formas de arrecadar a renda para manter as contas em dia, se alimentar e tirar um lazer. Hoje o espaço fica reservado para falar dessa segunda opção. O nome dela? Empreendedorismo. 

Dados são importantes, mas não precisa ir muito longe para ver que o empreendedorismo local cresceu (e muito), em virtude do índice de desemprego causado pela pandemia. Garagens de casa deram lugar a mercadinhos, barbearias, adegas e todos os comércios que se possa imaginar. E como mostrar serviço com a concorrência entre vizinhos e vizinhas aumentando? Em tempos não tão distantes era muito comum ver folhetinhos de pizzarias e mercadinhos pendurados no portão. Isso ainda é bem comum, mas, partindo do princípio que até para imprimir esses papeizinhos custam uma grana, o jeito é usar o boca-a-boca, ou a “rede-a-rede”. Nesse caso a rede social.

Talvez eu tenha chegado um pouco tarde e isso que estou relatando não seja nenhuma novidade, mas eu fiquei encantado quando, durante a pandemia, me colocaram em um grupo do Facebook que levava o nome do bairro vizinho de onde eu moro: “Cidade Ipava”. Apesar de números de 2019 mostrarem constante quedas nos números de usuários (5% de usuários a menos em relação ao ano de 2017, segundo o Datafolha) , aqui para esses lados quem empreende não está muito afim de sair de lá não. 

A troca parece justa: ao mesmo tempo que muitas pessoas aparecem pedindo dicas de lugares que entregam comidas específicas pelo bairro, os comércios fazem suas postagens oferecendo seus produtos. E comentários não faltam, seja para elogiar, aprovar e comprovar que o serviço oferecido é bacana, ou até mesmo críticas construtivas sobre tempo de entrega, etc, a população está unida, ali naquele espaço digital, para se fortalecer. O grupo não é exclusivo apenas para isso, sempre aparece por lá gente que achou documento em algum lugar, que está procurando um cachorrinho perdido…Mas o que mais bomba são os comércios.

Esse relato é para mostrar que, cabe a nós de periferia, fortalecer o comércio local, seja o vizinho que cresceu com a gente e sonhou a vida toda em abrir seu próprio negócio ou a mãe de família que saía cedo para pegar ônibus para trabalhar e agora fez da sua casa seu comércio. Não é sobre dores e perdas, mas sobre as potências criadas quando a periferia se une.

“Eu e você juntos somos nóis
Nós que ninguém desata.
A rua é nóiz

Emicida

Privatização do SUS prejudica população preta e periférica

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O movimento popular fez avançar os debates para a universalização da saúde e conquista do SUS. Mas a luta pela saúde continua, agora contra a tentativa de transformar em mercadoria um direito fundamental da população, especialmente das periferias

Em julho deste ano, no meio da pandemia de coronavírus, funcionários do Hospital Municipal do Campo Limpo ocuparam a Estrada de Itapecerica para fazer um protesto. Eles se manifestaram contra a terceirização do equipamento de saúde, que deve passar da Prefeitura de São Paulo para a organização social do Hospital Israelita Albert Einstein. Não é a primeira vez que isso acontece: essa possibilidade existe há anos e reflete as tentativas de privatização da saúde pública.

O PAS, Plano de Atendimento à Saúde, foi criado em 1995 pelo então prefeito Paulo Maluf e possibilitava que cooperativas médicas atuassem no serviço público de saúde.

“Já teve outras [tentativas de privatização], mais ou menos há 20 anos, na época do PAS, e de lá pra cá a gente não tem sossego. Sempre estão falando: ‘a OS vai entrar, a OS vai entrar’. Isso é constante, a gente não tem paz”, relata uma auxiliar de enfermagem que trabalha há mais de 22 anos no hospital e que preferiu não ser identificada.

Funcionários do Hospital do Campo Limpo durante a manifestação no dia 14/07/2020

A profissional ficou sabendo da possibilidade do Einstein assumir o hospital na periferia da zona Sul de São Paulo em uma reunião feita pelas gerências. “Por enquanto, ainda não mudou nada. A mudança lá é só por causa da reforma”, explica. “Com a privatização, a gente não sabe ainda se vai continuar no hospital, se não vai”.

Em resposta à manifestação, a Prefeitura de São Paulo divulgou uma nota onde afirma que nenhum funcionário seria demitido ou transferido. Para a auxiliar de enfermagem, isso não é uma certeza. “É claro que o Einstein não vai querer ninguém lá, né? Então, vai mandar a gente para outros lugares”, reflete a funcionária, que diz que ninguém tem garantias de continuidade no trabalho. “Dizem que até dezembro a gente vai continuar lá. Depois, não se sabe”.

O Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch (M’Boi Mirim) tem sua gestão estabelecida por meio de parceria entre a Organização Social de Saúde CEJAM (Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim) e o Hospital Israelita Albert Einstein.

Para a auxiliar de enfermagem, a qualidade do atendimento também pode cair. E ela usa o exemplo de outro equipamento de saúde da região, que atualmente é gerido por uma OS: o Hospital M’Boi Mirim. “No M’Boi Mirim é assim: se precisa de um neuroclínico, vem procurar onde? No Campo Limpo. E quando o Campo Limpo estiver privatizado, vai mandar a população para onde?”, questiona a auxiliar, que já foi contaminada pela covid-19 e se recuperou.

Para o biólogo e professor José Henrique Viégas Lemos, a pandemia de coronavírus evidenciou o problema – e, se não fosse o SUS, o número de mortes poderia ser ainda maior.

“Vimos ainda que nos hospitais classe ‘A’, a porcentagem de mortos é menor do que nos hospitais públicos. Vimos ainda que os convênios estavam fazendo corpo mole para fazer os testes rápidos para detecção da covid-19 e que foi necessária a intervenção do governo para exigir com critérios. Houve até a possibilidade de lista única para internação (utilizaria os leitos privados mais os públicos), pois enquanto nos públicos não tínhamos leitos, nos privados estavam sobrando”, compartilha o professor, que hoje é coordenador na rede de cursinhos populares Uneafro Brasil.

Para quem mora nas periferias da cidade, esse processo de privatização pode interferir em várias camadas.

A população pobre, preta e periférica não pergunta se o médico é do Estado ou da OS, se é concursado ou contratado. Ela quer ser bem atendida, seja por quem for. Infelizmente, ao deixar de fazer esta exigência ideológica, ela permite o avanço da privatização e como conclusão o serviço público privatizado não melhorou. Hoje, a maioria dos hospitais da periferia é gerida por OS ou outro ente privado, e o atendimento continua ruim

José Henrique

Uma conquista em risco

O ano de 1988 é um dos principais marcos na saúde pública do Brasil. Com a promulgação da Constituição Federal, que possuía o objetivo de garantir maior liberdade e direitos aos cidadãos brasileiros, o setor da saúde também garantiu seu espaço como um direito de todos e dever do Estado. Nasceu, assim, o Sistema Único de Saúde (SUS), fruto de muita luta popular.

Segundo o Ministério da Saúde, em 2006, 70% da população brasileira dependia exclusivamente do SUS. Neste mesmo ano, foram realizados 2,3 bilhões de procedimentos ambulatoriais e mais de 300 milhões de consultas médicas.

Mais de 30 anos depois e com muitos avanços, ainda não é possível afirmar que toda a população é beneficiada adequadamente. E a busca para melhorar o serviço bate de frente com os interesses do setor privado, que tem o lucro como objetivo e se aproveita de brechas na lei para transformar esse direito fundamental em mercadoria por meio da terceirização ou privatização dos serviços.

Para Ana Paula Oliveira, psicóloga e pesquisadora do eixo de saúde do Centro de Estudos Periféricos da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), a terceirização dos hospitais públicos significa tirar a responsabilidade do governo.

“Você coloca [o serviço] na mão de uma [organização] parceira, e essa parceira decide como é o jeito que ela quer fazer. Existe pouca supervisão dos hospitais ou mesmo dos serviços de saúde privatizados. Acontece do jeito que eles querem, não como de fato preconiza”, observa Ana Paula.

Segundo informações da Secretaria Estadual de Saúde e do Portal da Transparência, o Estado de São Paulo tem 38 unidades hospitalares com administração direta (pública) e 13 hospitais geridos por 10 OSS – é quase um terço

A legislação permitia que o Estado terceirizasse atividades que não são finalidade do SUS, isto é, aquilo que não diz respeito ao atendimento direto à saúde do usuário – como portaria, cozinha, segurança, etc. Mas a iniciativa privada se aproveitou das brechas criadas pelo governo federal durante a Reforma do Estado, entre 1994 e 1995, e também da Lei federal 9.637/1998 e da Lei Complementar estadual 846/1998, que possibilitaram a criação de figuras jurídicas privadas sem fins lucrativos, que são chamadas de Organizações Sociais de Saúde – as OSS, ou mais conhecidas apenas como OS.

“O objetivo seria ‘agilizar’ o gerenciamento do equipamento público (hospital ou posto de saúde) contratando sem concurso, captando verba do governo federal e até destinando parte dos leitos e atendimentos aos convênios e medicinas de grupo”, comenta José Henrique.

“A população, que nos anos 1980 brigou pelo SUS, se ‘desarmou’ e pouco se mobiliza juntamente com os trabalhadores. O que temos são hospitais fechando e dando lugar a shoppings”.

José Henrique

José Henrique recorda-se que médicos que ocupavam a direção do Instituto Dante Pazzanese, um equipamento público, também estavam na diretoria da organização privada Fundação Adib Jatene.

“Na época, anos 1980, 1990, 2000, inúmeras denúncias surgiram nos jornais e até no Ministério Público Federal acerca da malversação de verbas que eram destinadas a várias fundações existentes nos hospitais públicos em São Paulo. Apesar disto tudo, as fundações estão firmes e fortes”, lembra ele, que já foi perseguido por denunciar a privatização via fundações privadas neste e em outros hospitais.

A situação dos profissionais na área da saúde

A pesquisadora Ana Paula explica que uma das justificativas para o processo de privatização está ligada à contratação de trabalhadores. “O que muda é que a gestão do Estado é muito precária, porque os concursos públicos são escassos. Ou seja, não tem material humano. Essa é a grande desculpa. Não quer dizer que não tenha dinheiro. Dinheiro tem, mas não tem material humano para poder executar o trabalho, então fica um trabalho sucateado”, conta a pesquisadora.

“Essa é a principal diferença e é a desculpa que o governo tem para poder privatizar. Que eles não conseguem colocar mais pessoas porque tem que ser por concurso”

Ana Paula, pesquisadora do eixo de saúdo do Centro de Estudos Periféricos da Unifesp

Para José Henrique, a presença da iniciativa privada na gestão de equipamentos que antes eram de responsabilidade total do Estado desarticula a luta dos trabalhadores. “O que acontece é que os funcionários são impedidos de [fazer] organização sindical e manifestação contra as injustiças como longas jornadas, sobrecargas de serviço, baixos salários, etc”, conta.

“O serviço público de saúde é uma conquista dos trabalhadores sindicalizados e dos movimentos populares, mulheres principalmente. As campanhas de vacinação, de saneamento básico e de alimentação nas escolas foram 100% financiadas por recursos públicos e patrocinados pelo setor público. Foi isto que permitiu a redução das taxas de mortalidade infantil, principalmente nas comunidades pobres e periféricas”

José Henrique

Um projeto de saúde preto e periférico

Saúde não é apenas ausência de doença. Mas a precarização do atendimento causa o afastamento das pessoas dos serviços de atenção básica, deixando para buscar auxílio médico em casos graves, como conta Ana Paula.

“Procurar um médico é sinal de morte. Então, o sujeito periférico só vai procurar o serviço de urgência e emergência”, diz ele, se referindo aos hospitais. A pesquisadora complementa: “Aí, chega lá em uma situação da qual pouco se dá pra fazer porque não fez promoção e nem prevenção de saúde”. Ela ainda enfatiza sobre os procedimentos de um hospital serem mais caros do que os procedimentos de uma unidade básica de saúde (UBS).

 “Existe, principalmente agora por causa da covid-19, um aumento da necessidade de ter hospital de urgência e emergência e um pouco investimento em unidade básica de saúde para fazer promoção e prevenção. Então, privatizar os hospitais não é resolver, porque o nosso problema de saúde não está na urgência e emergência. Nosso problema de saúde está na atenção básica.”

Ana Paula Oliveira

Historicamente, o acesso ao serviço de saúde pública faz parte da conquista de muitos movimentos. Com 32 anos de existência, o SUS já possibilitou o acesso a saúde a muitos moradores dos territórios periféricos, mas ainda há muito para se garantir.

A pesquisadora afirma que se analisarmos a construção do SUS, concluímos que é um dos melhores do mundo e que hoje perde apenas para Cuba, onde o poder público possui uma função e lógica diferente.

“Mas o poder público não está interessado [em colocar o projeto em prática], porque o sujeito periférico é [considerado] massa de manobra. Ele não está ali para poder fazer de fato a diferença. Então, quanto mais gente pobre, periférica e preta morrer, melhor para o Estado”, analisa Ana Paula.

Ela também defende a inclusão da perspectiva racial dentro das questões da saúde.

“Nós temos doenças da nossa raça que estão lá no indicador, tem uma portaria falando sobre isso, mas a enfermeira do seu território nunca te perguntou se você tinha essa doença porque ela parte do pressuposto de que todo mundo tem as mesmas doenças na questão da universalidade”, afirma a pesquisadora.

Os caminhos para a construção de um serviço de saúde eficaz para as pessoas, segundo a pesquisadora, passa por pensar o sistema de saúde a partir dos territórios – algo que também é ameaçado com a terceirização e privatização da saúde.

“Você tem o [Programa] Saúde da Família, que você vai ter um médico da sua família, que vai pessoalizar a relação. [Assim,] contempla-se de que as pessoas são diferentes. Mas quando a gente terceiriza o serviço, o objetivo é o que? É produção, é meta para bater, não é saúde para promover”, finaliza Ana Paula.

Ao longo dos anos, a saúde pública no país deixou de ser um privilégio para poucos, e com apoio da luta popular passa a ser entendida como um direito de todos. Hoje, ainda existem caminhos a serem a percorridos na busca da garantia desse direito que, além de ser de livre acesso, também precisa atender às características e demandas periféricas.

Esta reportagem faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização das iniciativas de comunicação Alma Preta, Desenrola e Não me Enrola, Embarque no Direito, Nós, Mulheres da Periferia, Periferia em Movimento, Preto Império e TV Grajaú, com patrocínio da Fundação Tide Setubal.