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“É mais lucrativo para as empresas”, diz especialista em mobilidade urbana sobre precariedade do transporte na Grande SP

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Superlotação, tarifas altas, espera longa, veículos em condições precárias, falta de ônibus e de integração foram alguns dos desafios apontados por passageiros que utilizam diariamente o transporte intermunicipal. Esse é o caso do Henrique Carvalho, 42, morador do bairro e distrito Ermelino Matarazzo, na zona leste de São Paulo, que depende do transporte intermunicipal, de terça a domingo, para ir trabalhar em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo.

“É muito estressante por conta da confusão dos horários, você não tem certeza que horas vai passar o ônibus. Você já chega no trabalho cansado, estressado e também volta para casa cansado e estressado”, conta Henrique Carvalho, que trabalha como agente de atendimento em Guarulhos.

A linha 499, que faz o trajeto entre o Terminal Metropolitano Cecap, em Guarulhos, até a estação da CPTM Dom Bosco, é a que Henrique utiliza e a tarifa custa R$ 6,15. Ele conta que já passou mais de 40 minutos esperando pelo transporte e a situação piora aos finais de semana e feriados. 

Fila da linha 499, no Terminal Metropolitano Cecap. (Foto: Henrique Carvalho)

“Final de semana geralmente o ônibus é de hora em hora, se eu vacilo cinco minutos eu não consigo mais pegar o ônibus. Muitas vezes eu estava indo de Uber trabalhar”, comenta o agente de atendimento. Durante um tempo, usar transporte por aplicativo para evitar chegar atrasado no trabalho se tornou hábito para Henrique. “Eu gastava R$ 200 por mês, [isso] fazia uma diferença boa [financeiramente]”, afirma. 

Ele menciona que por causa dos atrasos gerados pela espera do ônibus, chegou a alterar o horário de entrada no trabalho, mudou de unidade e tem até planos de mudar de casa para facilitar o trajeto até o trabalho.

Outra solução encontrada por Henrique para lidar com a falta de ônibus intermunicipais nos fins de semana e feriados foi fazer um trajeto mais longo, o que inclui pegar ônibus, trem, metrô e uma lotação. “Esse trajeto demora 2 horas, mas eu prefiro fazer essas duas horas me movimentando do que ficar esperando mais de duas horas sem saber se o ônibus vai passar”.

Transporte público
Os ônibus 124, da EMTU, não circulam no domingo nem no feriado. (Foto: Viviane Lima)

Aos domingos e feriados, a auxiliar de enfermagem Regiane Lopes, 48, moradora do Jardim Santo Eduardo, em Embu das Artes, região metropolitana, precisa ajustar seu trajeto até o trabalho no Butantã, pois o ônibus 124, do qual depende, não circula nesses dias.

“Nos dias em que não funciona eu vou para o Jardim Vazame, tenho que ir de carona e pego [o ônibus] 510”, compartilha Regiane. Ela conta que as frotas de ônibus são reduzidas nos finais de semana e feriados, então os ônibus demoram mais para passar.

A demora também ocorre com a linha 124 durante a semana. Priscila Martins, 34, usa esse ônibus para ir trabalhar e relata que passa entre 40 minutos a uma hora esperando pelo transporte. Ela é moradora do Jardim Taima, no Embu das Artes e já levou advertências verbais no trabalho por chegar atrasada.

A tarifa da linha 124 do transporte intermunicipal custa R$ 5,85 e não conta com integração. (Foto: Viviane Lima)

Priscila é gerente administrativa no Shopping Frei Caneca e relata que o valor da tarifa também impacta no seu cotidiano, pois além do valor do ônibus que custa R$ 5,85, na estação Vila Sônia, ela precisa pagar mais R$ 3,80 para acessar o metrô. “Fica mais caro e a empresa às vezes acaba não cobrindo todo o gasto com vale-transporte”, conta a gerente.

A linha 124 conecta o bairro Jardim Santo Eduardo, localizado na cidade de Embu das Artes, à estação Vila Sônia, na zona oeste de São Paulo, o que representa 12 km de distância. Com a aproximação do metrô houveram mudanças no trajeto desse ônibus, que antes ia até o Hospital das Clínicas, na região central de São Paulo, percorrendo uma distância de 20km. Porém, Regiane e Priscila contam que a diminuição do trajeto não gerou redução no tempo de espera dos ônibus, nem no valor da tarifa. 

Fila do ônibus 124, no terminal Vila Sônia, na zona oeste de São Paulo. (Foto: Viviane Lima)

Elas também comentam que as condições dos ônibus da linha 124 são ruins, geralmente superlotados, poucos veículos possuem ar-condicionado e alguns têm problemas de estrutura.

“Já choveu dentro do ônibus e eu tive que levantar do assento. Aliás, isso é com frequência, quando chove você tem que abrir o guarda-chuva dentro do ônibus”.

Regiane Lopes, moradora do Jardim Santo Eduardo, em Embu das Artes.

Aumento na quantidade de veículos nas linhas, melhora na infraestrutura do ônibus, mais funcionários, fiscalização efetiva, menos tempo de espera e diminuição do valor da tarifa são as sugestões de melhorias com relação ao transporte intermunicipal dadas por Henrique, Priscila e Regiane.

Direito à cidade

Ao analisar o transporte como um serviço público essencial para a população, o geógrafo Ricardo Barbosa, que é professor do Instituto das Cidades, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador da Rede Mobilidade Periferias, pontua que a mobilidade urbana deveria ser organizada de modo integrado, sendo que essa integração também precisaria acontecer com relação à tarifa, aos transportes e ao território em si, mas que isso esbarra em questões políticas por interesses locais de empresas de transporte de famílias que dominam em determinados municípios e isso faz com que não haja um interesse político de resolver essas questões.

“Há interesses políticos de se manter o transporte e a mobilidade precária do jeito que ela é, porque é mais lucrativo para as empresas”, menciona Ricardo. Ele indica que a maneira mais adequada de pensar o transporte público seria com a integração dos transportes de modo que fosse efetivamente público. O pesquisador aponta a tarifa zero como algo fundamental para pensar um modelo democrático.

“É uma questão de justiça social e cidadania no território. Garantir acessibilidade é um instrumento fundamental para que a população consiga se desenvolver na sua plenitude”

Ricardo Barbosa, professor e coordenador da Rede Mobilidade Periferias, na Unifesp.

O professor coloca que os principais prejudicados com essa situação é a população pobre, periférica e negra, as que mais dependem desse meio de locomoção. Além disso, ressalta que o acesso ao transporte público de qualidade não deve se restringir apenas ao deslocamento para que as pessoas possam trabalhar, mas que contemple outras demandas cotidianas. 

Passageiros circulando no terminal Vila Sônia. (Foto: Viviane Lima)

“É importante que as pessoas possam garantir a realização da sua vida para além do trabalho. Elas também precisam ter acesso à cultura, ao lazer e acabam não acessando essa parte importante para formação delas enquanto indivíduos”, coloca Ricardo.

A falta de integração tarifária também é um ponto de atenção que Ricardo aponta interferir de forma negativa na mobilidade das pessoas que dependem do transporte público. “Tem o Bilhete Único de São Paulo e aí tinha o [cartão] Bom, que agora é o Top e vários municípios têm o seu [próprio] cartão, isso não faz o menor sentido do ponto de vista da integração tarifária”, diz o professor, também relacionando a lógica do transporte público como um mercado para as empresas.

TOP é o atual sistema de bilhetagem utilizado nos ônibus intermunicipais. (Foto: Viviane Lima)

Ricardo alerta que o formato de tarifa zero aos domingos, em vigor desde dezembro de 2023, na cidade de São Paulo, carrega questões, como a diminuição de frota que ocorre. “Tem que ser tarifa zero com transporte adequado [e] um serviço de qualidade”, comenta.

A política de gratuidade aos domingos na capital permite que a população utilize ônibus municipais sem custo nesse dia, mas não se estende para a população que depende do transporte intermunicipal, nas regiões metropolitanas de São Paulo. 

A EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo), que é a responsável pelo transporte intermunicipal das regiões metropolitanas, é controlada pelo Governo do Estado de São Paulo e vinculada à Secretaria de Estado dos Transportes Metropolitanos (STM), no entanto, afirmam que cabe às prefeituras locais a regulamentação do itinerário das linhas dentro de cada município, além da definição dos pontos de parada que atendem aos ônibus intermunicipais.

A linha 499 conecta o Terminal Metropolitano Cecap, em Guarulhos, à estação da CPTM Dom Bosco. (Foto: Henrique Carvalho)

A empresa também afirma que a extensão das linhas, o número de paradas e as características das vias influenciam na frequência dos ônibus. “O número de linhas metropolitanas, a quantidade de ônibus disponíveis em cada serviço, o número de viagens e o itinerário são definidas em conjunto [com] áreas da empresa, que coleta informações relacionadas à demanda de passageiros, solicitações formalizadas e ao atendimento já disponível em cada região por ligação intermunicipal”, diz a EMTU.

Sobre as tarifas, a empresa afirma que as linhas obedecem uma relação entre extensão e tarifa. Nos modos de pagamento, ressaltam que cada município tem autonomia para ter o seu próprio sistema de bilhetagem.

Com relação ao passe livre, pontuam se tratar de uma política tarifária adotada em alguns municípios da Grande São Paulo, mas que neste momento não faz parte do transporte metropolitano sobre pneus ou trilhos. Que há disponibilidade de bilhete do estudante e do professor, que garante gratuidade ou desconto, respectivamente. 

Ricardo aponta a necessidade de pensar o transporte de forma ampla, de modo que envolva uma integração tarifária efetiva, transportes mais justo e democrático que leve em conta os aspectos do território, para que assim garanta a cidadania. 

“Você não consegue resolver o problema do transporte só com uma política local [para a cidade de] São Paulo e eles [os gestores] sabem disso, só que há muitos interesses políticos e econômicos por trás das empresas de famílias que historicamente dominam o setor para manter a situação do jeito que está”, ressalta o professor.

Isso que chamam de amor é trabalho não pago e falta de política pública

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Há alguns meses, veio a público a triste história de Érika, que tentou pegar um empréstimo em nome de seu tio Paulo, falecido pouco antes de chegar ao banco. Mais recentemente, o filho do ex-boxeador Maguila, durante o velório do pai, defendeu a madrasta, Irani Pinheiro. Ela, que viveu com o atleta por 40 anos e cuidou dele até o fim de sua vida, passou anos sendo acusada de estar interessada em sua fama e dinheiro. 

Essas histórias, e o tema de redação do último Enem, trazem para fora do circuíto feminista o debate sobre trabalho de cuidado. 

Também chamado de trabalho reprodutivo (e às vezes até de trabalho improdutivo), trabalho de cuidado é tudo o que envolve a reprodução e manutenção da vida. Aquilo que a gente cresce ouvindo ser “coisa de mulher”: cuidar, lavar, limpar, cozinhar, ir à feira e ao mercado. 

A isso, se soma também todo o trabalho administrativo de ir ao banco, pagar contas, agendar e acompanhar consultas médicas, tratamentos, vacinas, reuniões e tarefas escolares; incluindo planejar, levar e buscar nessas e de quaisquer outras atividades, ou ficar em casa com crianças, pessoas idosas, doentes ou com deficiência, para que não estejam sozinhas. Uma lista (e uma carga mental) infinita. 

O trabalho de cuidado mantém a vida e carrega o mundo nas costas.

Nas quebradas do Brasil, majoritariamente negras, as meninas já crescem enredadas na função. Aptas a faxinar uma casa inteira muito antes dos 15 anos, são acusadas de preguiçosas no primeiro protesto. Os meninos, quando muito, são convocados a “ajudar” em pequenas tarefas – lavar ou guardar a louça, colocar o lixo para fora, mas nunca têm a responsabilidade pelo cuidado realmente dividida. 

Sem saber lavar banheiro, cozinhar feijão ou quantas bananas comprar para alimentar a família por uma semana, passam dos cuidados das mães e irmãs diretamente aos cuidados das esposas. Muitos crescem com uma enorme dificuldade em se tornar adultos autônomos e funcionais. Incapazes de ir à feira sozinhos, acusam as mulheres de gastadeiras. 

Quantas vezes você, mulher, foi almoçar na casa de alguém e te pediram para colocar a comida no prato pros homens da sua família? Eu, muitas.

O trabalho de cuidado gera até 39% do PIB no mundo, e chega a 13% no Brasil. Além de ser responsável não apenas pela reposição de mão de obra, mas também por garantir a sobrevida da já existente. Tudo isso, muitas vezes, de maneira gratuita ou altamente precarizada.

De um lado, as empregadas domésticas foram uma das últimas categorias a receber direitos trabalhistas e, assim como as cuidadoras, mesmo quando formalizadas, é comum que morem nas casas onde trabalham, com jornadas sem limites de horário, e até que vivam em situação análoga à escravidão ou sejam submetidas a abusos sexuais. Duas categorias profissionais compostas quase exclusivamente por mulheres negras e periféricas, importante lembrar.

Leia também:  “Eu já não sou mais a mesma”: trabalhadoras domésticas relatam desgastes em jornadas de trabalho

Por outro lado, a maioria das cuidadoras informais depende da renda de maridos, filhos ou das pessoas de quem cuidam – uma porta aberta para os mais variados abusos e vidas muito precárias. Várias delas vendem lanches, doces ou cosméticos em casa, cuidam de crianças da vizinhança. Toda rua tem uma tia do geladinho. Como esses trabalhos não têm contribuição à previdência, é difícil prever do que vão viver quando forem idosas.

No Rio de Janeiro, a ONG Favela Compassiva, atua na Rocinha e no Vidigal, contando com voluntariado que junta forças e tenta amenizar a ausência de políticas públicas, visitando pessoas doentes em casa. Embora bonita, essa iniciativa impõe a pergunta: por que essas pessoas não recebem visitas de enfermeiras ou auxiliares de enfermagem assalariadas pelo SUS? Pessoas com direitos trabalhistas, para dar banho, medir a diabetes, dar a medicação ou fazer curativos com estrutura e equipamentos adequados? Por que não existe um salário fixo para que as pessoas possam se dedicar ao cuidado de seus entes queridos quando necessário?

Em uma reportagem recente sobre a ONG, vemos a brutalidade da total ausência de políticas de cuidado para pessoas idosas. Uma das pacientes morava sozinha, estava deitada quando a equipe chegou, e ficaram sabendo que ela não consegue tomar a medicação sem ajuda. Outra, só tinha a filha com deficiência como apoio. Ambas moram em um morro, quem faz as compras para elas? Quem cozinha e lava as roupas delas? Todas as pessoas que cuidavam eram mulheres, as que pareciam não ter nem quem as ajudasse nem a tomar banho, também. 

As primeiras a cuidar, são também as menos cuidadas.

Mulheres são 6 vezes mais abandonadas quando adoecem. Antes que suas crianças com deficiência completem 5 anos, cerca de 78% das mães são deixadas pelos maridos. Talvez você também tenha reparado que as acompanhantes nos hospitais são sempre mulheres. Quem mais se sente na obrigação de largar tudo para cuidar de uma pessoa doente? E tudo quer dizer tudo mesmo: abandonar os estudos, o trabalho, mudar de casa, trazer a pessoa para sua casa. Fazer malabarismos, se adaptar para dar conta de um cuidar que absorve todos os âmbitos da vida.

Debaixo de tudo isso, ainda tem a culpa. Culpa por não ter feito mais ou por não ter percebido antes algum sintoma. Culpa por um acidente doméstico que se complicou. Culpa por sentir cansaço, por desejar fugir da responsabilidade que caiu em suas costas, por desejar poder fazer suas próprias escolhas. Culpa por querer ter sua vida de volta. 

Na vida adulta, aquele “preguiçosa” ouvido na infância ecoa em um olhar silencioso que diz: Mas se você não cuidar, quem é que vai? 

Politizar o cuidado é também um esforço de imaginação política para um mundo que respeita mais tanto as mulheres, quanto quem precisa de cuidados.

Esse não é um debate novo. Se você quiser saber mais sobre os movimentos de politização do trabalho de cuidado, dê uma olhada em O Ponto Zero da Revolução, de Silvia Federici, neste vídeo educativo do coletivo argentino Ecofeminista ou na página da Associação Yo Cuido, do Chile.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

“Carregar o pavilhão de uma comunidade de samba é muita responsabilidade”, diz porta-estandarte da comunidade Samba do Congo

Uma das marcas das comunidades de samba é a sua bandeira, também chamado de pavilhão, que representa as cores e valores daquela comunidade. Há oito anos, Nega Porta-Estandarte, 52, é quem carrega esse símbolo do grupo Samba do Congo. Modelo plus size, mãe e profissional da administração pública na área da cultura, Nega Porta-estandarte concilia sua trajetória pessoal de empoderamento enquanto modelo ao seu papel dentro da agremiação. 

Moradora do Horto Florestal, na zona norte de São Paulo, ela pontua que o samba é uma herança que precisa ser cultivada e um dos elementos que compõem esse movimento é a porta-estandarte, também chamada de porta-bandeira. É a partir dessa atuação que Nega Porta-estandarte se aproxima do Samba do Congo, comunidade criada no Morro Grande, região norte da capital paulista.

A partir da tradição popular das comunidades negras, o samba se popularizou, principalmente em territórios periféricos ao se tornar também um movimento de expressão de identidades. Nega Porta-estandarte fala sobre essa herança histórica na construção de futuros através do samba. 

O que você sente ao carregar essa bandeira? Qual mensagem que você tenta transmitir nesse momento?

Carregar um pavilhão, seja ele num bloco de uma comunidade de samba ou uma agremiação de uma escola de samba, é muita responsabilidade. Você traz consigo todo o peso da comunidade porque é o símbolo maior daquele coletivo que você está representando. É um orgulho imenso, um amor imensurável. É o respeito e a honra, além das obrigações a cumprir. Normalmente, uma porta-estandarte não bebe, está sempre de saia ou alguma coisa representativa que honre o Pavilhão. É maravilhoso. É uma representatividade única que só vivendo para ter o entendimento da força que têm carregar o estandarte. É uma coisa de dentro para fora, como o Fernando [integrante do Samba do Congo] diz. Você acaba se apaixonando, a porta-estandarte é realmente apaixonada pelo seu pavilhão. Os olhos dela brilham quando ela impõe o pavilhão. 

Quais são os valores e os ensinamentos que o samba traz não só para sua vida, mas também para a comunidade? 

O samba traz essa liturgia, essa herança que precisa ser cultivada e não esquecida pelos nossos, sendo na zona norte, na zona sul, onde for. Precisamos reverenciar os que vieram antes e entender essa pavimentação para perpetuar a história. O cordão do Samba do Congo, por exemplo, na condição de carnaval de rua, tem a função de trazer as pessoas para fortalecer o coletivo. Porque você traz o idoso, a criança, isso é muito rico. As pessoas se sentem pertencentes e a função do coletivo é essa. No meu caso, como porta-estandarte. O Fernando, como compositor e administrador do Samba do Congo.

De que maneira a sua carreira como modelo pode impactar o senso de identificação e consequentemente empoderamento de outras mulheres, principalmente negras e periféricas? 

A função da porta-estandarte ou da porta-bandeira, é carregar o Pavilhão com elegância e isso entra em sintonia com a carreira de modelo. Porque quando você faz o curso de passarela, de foto, existem estigmas que você tem que seguir. Você tem que ser elegante, posturada, empoderada. Isso você consegue trazer para sua vida e para o exercício de porta-estandarte. Por ser uma mulher preta e periférica, me vejo como referência para meninas negras e para futuras porta-estandartes, que acabam se enxergando em mim. Quando estou nos ensaios das quadras da periferia, as crianças dizem que querem ser como eu. E eu mostro a elas que é possível chegar no lugar que eu estou, independente da cor de pele. Com postura, posicionamento e claro, capacitação. Afinal, fazemos cursos oficiais para nos profissionalizar na Fábrica do Samba, na AMESPBEESP, associações ligadas ao UESP (União das Escolas de Samba Paulistanas). Estudar para estar à frente.

O que você identifica como ponto crucial para manutenção e preservação do movimento samba, uma vez reconhecida a herança geracional que ele carrega até aqui?

Acho importante não esquecer a nossa ancestralidade, de onde nós viemos. Quando eu falo de liturgia, é sobre a história do samba. Na década de 40, os estandartes principais eram homens, eles que defendiam bravamente o seu Pavilhão. Precisamos dessa base histórica para olhar para o futuro e inovar para os próximos. A liturgia do samba tem muito para ser estudada e passada adiante. Ao falar de resistência, é preciso prestar atenção no que está atrás e ter exemplos, como o Mestre Gabi, que hoje é referência entre mestre-sala e porta-bandeira. 

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

O transcendente e seu mistério sagrado  

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Como sabem, sou psicóloga e tenho um olhar voltado para as ciências humanas. Porém, costumo dizer que sou muitas outras coisas e não me fechei para uma única verdade. Desconstruir paradigmas, ler e entender mais sobre nós, para mim, vai para além e também pode ser muito curativo. E isso é o que tenho buscado em minha existência, tenho procurado comungar desse olhar com vocês.

Como já citei em artigos anteriores, as ciências da biomedicina não resolvem problemas de cunho espiritual, que era um problema para mim desde a infância, e as medicinas tradicionais me ajudaram a aliviar e curar a minha jornada.

No dia dos Ibejis, resolvi contar o que vivi e posso afirmar que as medicinas tradicionais são poderosas, curativas e resgatam quem somos e nos fortalece interiormente.

No dia 15 de setembro de 2024, celebramos em minha casa o meu Ọdún Èje, ou seja, meus sete anos de iniciação para o Orixá Ọ̀ṣọ́ọ̀sì. Tudo foi único, lindo e muito emocionante.

Mas o quero compartilhar são as experiências e o impacto espiritual dessa conexão que posso nomear como uma essência divinizada. Também viver e sentir na pele o que os ancestrais viveram é muito potente. 

Estou num período de preceito, que seria um tempo fora de circulação, simplificando muito. Tempo este que pude refletir sobre a forma que cumprimos esse período, me remeteu a séculos passados quando os nossos antepassados viveram. São percepções de uma conexão sutil, desde a maneira de asseio ao corpo, como as vestimentas e inúmeras outras coisas que me levaram a fazer essa ligação.

Obviamente, passar pelos processos de uma religião tradicional de matriz africana já tem esse intuito que é resgatar a cultura do nosso povo. Como é viver essa  preservação da matriz, do culto aos Orixás no corpo me levou a pensar nestas particularidades tão remotas no tempo e desta maneira tão espiritual de como me sinto agora, após o processo.


Tudo me levou a esse tempo remoto, minha conexão com os ancestrais e isso está sendo muito especial para mim. Porque não estou sofrendo, muito pelo contrário, estou vivendo tudo isso com muita gratidão por ter sido escolhida para este novo papel que após os sete anos essa religião nos leva, que é ser uma Yalorixá, o que eu temia tanto.


As regras exigidas, após iniciação, me davam medo do desconhecido, causava dores pelo corpo e desconforto por estar ali dormindo numa esteira, tendo alguém para te alimentar e rezar a cada refeição. Hoje posso dizer que viver isso novamente foi muito prazeroso, entender essa conexão e experimentar esse modo de vida em pleno século XXI, isso é muito precioso. 

Acessar a força dessa potência que é Orixá, olhar para trás e viver na pele, no corpo e na vida o que eles viveram é de uma magia tão intensa e transformadora que é inevitável mudar de dentro para fora.

Como é grandioso e importante o momento que temos junto com ELES, e deu aquele insight onde descobrimos o que precisamos fazer para transformar e curar uma dor emocional dessa existência tão cheia de traumas. Experiências difíceis que me faziam sentir desamparada e solitária, e como essas vivências me transformaram em uma outra pessoa. Tudo isso é mágico, vibrante, intenso, profundo, inteligível, imaterial, sensível, tocante, marcante, curativo e de um profundo cuidado ancestral.

Sinto que ao nascer para Orixá eu tive a oportunidade de recomeçar uma vida nova, Orixá trouxe caminho, saúde, força, crescimento durante estes sete anos, me deu o que eu não tive durante uma vida inteira. 

Realizando uma profunda e crescente transformação em minha essência que não consegui superar até agora, foram em pequenas doses, mas numa constância, entendendo que as sessões terapêuticas são um complemento, tudo é integrado e faz parte do autocuidado.

É um processo que não está separado, vivemos a vida como se vivêssemos adormecidos e Orixá nos desperta para enxergar a si e ao outro em sua mais profunda verdade.

É um caminho de mergulho profundo como nas águas e como se lá no fundo você pudesse encontrar os tesouros, mas para isso, não podemos temer. Temos que nos entregar e acreditar que estamos seguros. Que mãos misteriosas estão te direcionando e levando a se conhecer tão profundamente que ao voltar a superfície, você é capaz de enxergar com nitidez a sua vida e o que precisa ser feito para seguir adiante.

Transformar a sua vida e a de outras pessoas com essa força ancestral e curativa num lugar que não tem escrita e nem palavras para descrever, só vivendo e sentindo para saber do que estou falando.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Assessora de incidência política comenta desafios de participação social nas periferias após eleições

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O período eleitoral é um dos principais momentos em que a população consegue identificar diretamente como o ato de votar está vinculado ao exercício da cidadania. Após as eleições, a ideia de participação política se perde na realidade de muitos brasileiros, é o que afirma Richelle Costa. “As pessoas estão saindo de casa de madrugada e voltando tarde da noite tentando buscar o mínimo. Elas não têm tempo e não acreditam que vale a pena se engajar na política”, diz Richelle, estudante de ciências sociais, articuladora política, assessora de incidência política e advocacy do movimento Mulheres Negras Decidem (MND).

Assessora de incidência política comenta desafios de participação social nas periferias após eleições
Richelle Costa é articuladora política, assessora de incidência política e advocacy do movimento Mulheres Negras Decidem. (Foto: arquivo pessoal)

A assessora pontua que participação popular na política vai além do voto e que a atuação da sociedade civil deve se estender para a construção de políticas públicas junto com as candidaturas eleitas. Ela também observa que, em geral, as pessoas não se mobilizam para acompanhar e cobrar os eleitos sobre suas propostas de governo, o que afirma estar associado à falta de educação política.

“Enquanto a educação básica não abarcar o que é a pessoa exercer o voto, o que é a política institucional e como ela reflete nas nossas vidas, as pessoas vão continuar votando por obrigação, trocando o voto por algum benefício próprio e sem responsabilidade, sem entender que a gente tem o direito de ter políticas que beneficiam a nossa vida e a sociedade no geral.”

Richelle Costa, articuladora política do Mulheres Negras Decidem.

Para a articuladora, nas periferias, por vezes essa falta de engajamento se dá também por motivos específicos, entre eles a falta de identificação do povo com os eleitos, a vinculação que se faz entre política e corrupção, além da disseminação da ideia de que melhorias para a sociedade em geral não podem ser alcançadas por meio de políticas públicas.

“A gente tem a política institucional como um lugar completamente distante da população [e] isso fala muito sobre quem está lá. A quem é interessante que o povo não participe? [É] o mesmo grupo [de] homens, brancos, ricos e velhos que ocupam em maioria a política”, analisa a articuladora política do Mulheres Negras Decidem. 

Ação do movimento Mulheres Negras Decidem (MND), no Rio de Janeiro, reivindicando a participação de uma mulher negra como Ministra da Suprema Corte. (Foto: arquivo pessoal)

Em contrapartida, Richelle dá exemplos de alguns mandatos de mulheres negras que estão desenvolvendo tecnologias para aproximar a população da política, como o formato gabinete aberto. “O gabinete tem um dia específico de atendimento em determinado território, tem um mobilizador no território e ele é [a] referência no gabinete para acolher as demandas da população ou a própria parlamentar vai até os territórios”.

Prestação pública de contas e manter contato com a população via redes sociais e aplicativos de mensagem também são alguns diferenciais desses mandatos citados por Richelle.

Propostas de governo

Outra forma de acompanhar o que as candidaturas eleitas estão fazendo é através dos sites institucionais da Câmara Municipal, do Congresso Nacional ou das Assembleias Legislativas. Richelle também indica o site Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais, da Justiça Eleitoral, que, desde 2004, reúne a ficha de todos os candidatos do Brasil, e algumas contêm as propostas de governo. 

No entanto, ela aponta que o acesso a essas informações por vezes não estão disponíveis. “Eu fiz um levantamento nas Câmaras Municipais de todo o Rio de Janeiro para ter informações dos vereadores eleitos e isso foi uma dificuldade enorme, tem cidade que eu não sei quem está eleito, porque no site da Câmara não tem.”

Segundo Richelle, mesmo que seja possível encontrar as propostas protocoladas, o cruzamento entre o plano de governo e a realização da proposta é algo que a própria população teria que tentar fazer acompanhando as páginas e redes sociais da candidatura eleita.

Legalmente a pessoa eleita não é obrigada a cumprir suas propostas de campanha, mas a assessora indica que caso alguém queira fazer cobranças nesse sentido, pode buscar dialogar com o político e caso isso não seja efetivo, é possível procurar as ouvidorias das Casas Legislativas e a Defensoria Pública, pois podem tirar dúvidas e dar instruções. Além do Ministério Público que tem como uma de suas funções fiscalizar o poder público. Richelle também indica o site da Controladoria Geral da União, que tem o passo a passo de como fazer uma denúncia.

Participação de Richelle na mesa de abertura do Programa nacional de equidade de gênero, raça, etnia e valorização das trabalhadoras no SUS. (Foto: Nina Camelo)

“Enquanto cidadãos [o ideal seria que] a gente conseguisse chegar até eles [os eleitos] de forma mais prática, mais acessível, conseguisse ligar, marcar uma reunião. [Que] uma associação de moradores, a partir dali conseguisse ampliar e levar essa demanda para os gabinetes”, menciona a assessora.

Outra indicação dada por Richelle é que a pessoa que tem interesse em efetuar uma denúncia contra um eleito que não está cumprindo com as propostas de governo, é que ela procure um parlamentar. “No caso, um opositor, de preferência, para que [ele] te ajude e coloque o mandato a essa disposição para que você consiga denunciar”.

Ainda na perspectiva de participação, ela salienta que as desigualdades influenciam, inclusive, nos direitos da população, ao exemplificar que muitas pessoas não sabem que podem ir até a Câmara Municipal. “No mundo ideal o que a gente gostaria é ter as portas abertas e ter essa tradução da linguagem [institucional], que é você construir junto com o parlamentar, conseguir acessar o gabinete dele, ter um problema no bairro e conseguir conversar.”

Richelle atuou, em 2024, na campanha política de Camila Moradia e, durante esse período, não pôde visitar a família que mora em um território diferente do da candidata. (Foto: arquivo pessoal)

Entretanto, Richelli ressalta que diante da realidade de algumas favelas e periferias, cobranças direcionadas a políticos envolvem outras questões, ap exemplificar que em muitas casas legislativas existem pessoas envolvidas com a milícia e com o tráfico, o que interfere no fato dos moradores desses territórios não poderem desenvolver nenhum tipo de crítica ou cobrança direta. Em alguns territórios, em caso de denúncia o morador pode passar por retaliações como agressão, expulsão do local ou até morte.

Segundo ela, isso reforça a importância do voto consciente em candidatos comprometidos com a criação de políticas públicas que representem e busquem os interesses coletivos da maioria da população brasileira, que é negra e periférica. 

“Ser eleito quer dizer representar todas as pessoas. Independente se eu votei ou não no eleito, ele tem o dever e o compromisso de legislar para mim e para todas as pessoas igualmente. Esse é o processo democrático de ser eleito para representar o povo”, ressalta Richelle.

“É tudo graças ao tambor”: cofundador do coletivo Mucambos de Raiz Nagô conta sobre o impacto do Maracatu na vida das crianças

Apresentações musicais, intervenções literárias, oficinas de argila, lanche coletivo e um bom toque de Maracatu agitaram um grupo com cerca de 20 crianças que participaram da Festa do Dia das Crianças, realizada no último sábado (19), pelo coletivo Mucambos de Raiz Nagô, no espaço cultural do grupo localizado no Jabaquara, zona sul de São Paulo. 

Enquanto as crianças corriam e brincavam pelo espaço cultural do coletivo, Adalcir Vieira, também conhecido como Índio, um dos fundadores da iniciativa, organizava o som, microfones, cabos, puxava a água da chuva e recebia os pais e mães que chegavam ao local com seus filhos para participar das atividades culturais dedicadas às crianças.

Durante a entrevista para o Você Repórter da Periferia, Índio conta que o coletivo tem uma vocação para trabalhar com crianças, e que elas não foram implementadas no projeto como público, mas sim, que as crianças nasceram no projeto, então os filhos dos organizadores e moradores do território foram compondo as atividades do coletivo, com isso, ao longo do tempo o coletivo passou a convidar cuidadores, mães e pais que têm filhos, para participar dos encontros do grupo de Maracatu.

Além de organizar o espaço cultural do coletivo, Adalcir Vieira realiza oficinas de Maracatu para as crianças, pais e mães que frequentam o projetos do coletivo Mucambos de Raiz Nagô. Foto: Ana Vitória

VCRP: Além de ser um dos fundadores, quais são as funções que você tem dentro do projeto?

Eu ajudo na produção dos eventos. Eu sou aquele que faço o contato com os grupos, parte da produção executiva eu que cuido do espaço, ajudo a cuidar dos tambores do Maracatu, ajudo a construir os tambores de Maracatu e realizo oficinas de percussão de Maracatu.

VCRP: Como surgiu a ideia de trazer as crianças para o projeto?

Na verdade não surgiu uma ideia de trazer as crianças para o projeto, as crianças que são filhas dos integrantes foram nascendo. Então a gente precisava de um espaço para acolher as crianças. Então quando nasceu a nossa primeira criança, o meu filho, vimos que não dava mais pra ficar em um lugar aberto. Neste processo, fomos então para a Barroca Zona Sul, escola de samba. A gente ocupou aquele espaço durante 7 meses, aí depois fomos para o Centro de Culturas Negras. E esse ano a gente inaugurou esse espaço nessa intenção de que as crianças possam conviver juntas, convivendo e brincando no Maracatu. Hoje é tudo graças ao tambor, tudo graças ao Maracatu e o que está acontecendo é espelho disso.

VCRP: Como é a autonomia das crianças dentro do projeto?

Elas não têm obrigação, a gente quer que elas façam as coisas e tenham amor, que façam por ternura naquilo que estão fazendo,  porque se fizerem por si mesmos a gente entende que é uma possibilidade delas tomarem melhores decisões, quando forem  adultos. A gente está sempre fazendo reunião, conversando, amparando, e garantindo que eles tenham  um pouquinho mais de responsabilidade e respeito com eles mesmos. Eu não posso escolher para o meu filho que ele seja um músico porque seu pai toca tambor e você tem que fazer música, se ele prefere fazer uma outra coisa, por exemplo, né?  É muito mais fácil dele ser um adulto melhor do que eu, e que ele seja um adulto com suas próprias responsabilidades, que faça boas escolhas na sua vida e que vá por um caminho bacana, essa nossa perspectiva é o que estamos tentando fazer.

VCRP: Como vocês pensam na programação cultural das crianças?

Nós  idealizamos algumas ideias, mas de acordo com elas. Porque tem coisas que dá para fazerem e outras não, porque a mente da criança também voa longe, no universo deles e tem coisas que a gente é limitado a fazer. Hoje mesmo se não estivesse chovendo a rua estaria fechada e a gente ia jogar futebol na rua com a ideia de resgatar um pouco dessa dessa infância que foi deixada um pouquinho lá para trás. Então a gente tá trazendo ali umas brincadeiras, não tá usando aparelhos eletrônicos, o único recurso eletrônico que a gente tá trazendo é a música. É importante que eles entendam que elas são protagonistas desses acordos pra gente não frustrar elas.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.


“Inserir uma criança em um coletivo desenvolve um senso de pertencimento”, diz Matheus Barbosa, psicólogo e arte educador

Através de ritmos e a força coletiva do Maracatu, crianças da zona sul de São Paulo estão encontrando um caminho para expressar seus sentimentos e superar transtornos como a ansiedade e a depressão. Mateus Barbosa, 27 anos, psicólogo e membro do coletivo Mucambos de Raiz Nagô, vem desenvolvendo um trabalho de arte, educação e saúde mental que integra a psicologia com a arte do Maracatu, para promover o desenvolvimento pessoal e social dessas crianças​.

A Musicoterapia, campo de pesquisa e conhecimento que procura observar os efeitos de experiências musicais, resultantes de encontro entre o musicoterapeuta e as pessoas assistidas é uma das práticas citadas por Barbosa, que vem sendo utilizada para trabalhar com a crianças questões cognitivas, motoras ou emocionais, beneficiando o autoconhecimento e bem-estar.

Em entrevista ao Você Repórter da Periferia, o psicólogo e arte educador conta como essas experiências estão sendo adaptadas e aplicadas nos projetos culturais realizados pelo coletivo, para conectar crianças com o Maracatu e a partir desta prática de cultura ancestral conectar o desenvolvimento pessoal e emocional com a arte e a saúde mental.

Uma das ferramentas pedagógicas e lúdicas utilizadas pelo arte educador é a musicoterapia, para envolver coletivamente as crianças nos ritmos e sons do Maracatu. Foto: Zaya da Silva.

VCRP: Como você relaciona os aspectos da psicologia com a arte em seu trabalho de arte educação com crianças?

São coisas que estão intrinsecamente ligadas. Quando a gente pega os modelos de terapia complementar, a gente vê que tem um potencial gigantesco, né? Às vezes, quando a gente pensa em terapia, a gente só pensa no padrão convencional: o analista em uma cadeira, o paciente em outra, aquela troca, mas eu acho que a gente pode expandir as formas de terapias complementares, que já foram aprovadas também pelo Ministério da Saúde. Isso potencializa a comunicação e a verbalização de conteúdo que muitas vezes não conseguem ser acessados através de formas convencionais. Eu acho que a arte, de uma forma geral, como questões de musicoterapia, consegue acessar o indivíduo de uma forma mais fácil e mais horizontal.

VCRP: Você poderia citar alguma linguagem artística ou movimento cultural que possa impactar positivamente a saúde mental de uma pessoa?

O próprio Maracatu, que é a linguagem principal do grupo Mucambos de Raiz Nagô, pode ser explorado. É uma linguagem que vem das brincadeiras da cultura popular, enraizada no senso de coletivo, de estar ali pelo outro, sem a questão de querer que alguém se destaque mais que o outro. A cultura popular se manifesta dessa forma. Então, o próprio Maracatu, pela linguagem, características e funções que são ministradas, tem essa questão de você estar atento ao que o outro está fazendo para que as coisas fluam de forma coordenada. É uma linguagem muito potente.

VCRP: Você acredita que o Maracatu contribui com o autoconhecimento e o bem-estar das crianças?

O Maracatu ajuda muito nesse sentido. Temos um exemplo muito claro com as crianças do coletivo, que já cresceram nesse modo de fluidez. Inserir uma criança em um coletivo oferece espaço para que ela desenvolva um senso de pertencimento, algo que é essencial, principalmente quando falamos de crianças em situação de vulnerabilidade social. Se essa criança teve algum direito violado, ao entrar em um ambiente coletivo, ela passa a fazer parte de um espaço saudável, focado em promover o bem-estar. A presença de um grupo ao qual pertencer é fundamental para que essa criança consiga projetar um futuro melhor. Quando ela encontra modelos dentro desse ambiente, como um batuqueiro, por exemplo, ela pode se inspirar e pensar: “Eu quero tocar igual a ele” ou “Quero dar uma oficina como ele faz”. Esse tipo de exposição abre caminhos para que a criança desenvolva uma perspectiva de futuro mais saudável.

VCRP: Quais são os desafios e as oportunidades de unir uma abordagem terapêutica com uma prática cultural?

A rede pública de saúde e seus equipamentos ainda estão muito ligados a uma visão preconceituosa. Quando falamos de uma manifestação cultural de matriz africana, como o Maracatu, já existe todo um preconceito por trás. Se linguagens como a musicoterapia enfrentam barreiras, quando falamos de expressões da cultura popular, como o Maracatu, essas barreiras são ainda maiores. Além disso, essas manifestações não são muito presentes nas escolas, o que é preocupante, pois estamos falando da nossa cultura. O papel dos educadores é central nesse processo. Muitas crianças se sentem atraídas por culturas de fora, mas, se apresentarmos Maracatu, Ciranda ou Boi nas escolas, elas podem se conectar e se interessar. Essas práticas não são apenas uma promoção de saúde, mas também uma forma de aproximação e comunicação. Quando olhamos para uma pessoa, precisamos analisar o seu contexto biopsicossocial, e não apenas um sintoma isolado. Uma criança, por exemplo, pode chegar em uma roda de Maracatu, começar a se expressar e contar sua história, o que abre caminho para intervenções, talvez até interrompendo ciclos de violência. A cultura é um elemento fundamental para a formação da nossa sociedade, se a gente tira a cultura, acabou.

VCRP: Além do Maracatu, qual outra ferramenta pedagógica pode ser usada no desenvolvimento emocional e social das crianças?

Quando olhamos, por exemplo, para o efeito da linguagem da musicoterapia e analisamos os dados, vemos que a depressão acomete 4,4% da população mundial, o que é significativo. Nesse sentido, é importante reconhecer que a musicoterapia ajuda tanto na redução dos sintomas quanto na abertura para o outro. Através dessa linguagem, conseguimos acessar a pessoa de uma forma mais horizontal e transparente, eliminando alguns filtros. Um exemplo disso é quando um psicólogo chega ao CAPS e encontra um paciente. Antes do atendimento, ele pode ter um prontuário que já traz uma série de rótulos, muitas vezes sem a certeza de que aquilo foi diagnosticado corretamente, a gente não sabe se é um transtorno ou se é um sintoma da sociedade, que são coisas muito diferentes. E é muito mais fácil rotular do que entender a origem dos problemas. A musicoterapia, como uma linguagem complementar, permite acessar a pessoa como ela se apresenta, sem os rótulos.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Médico de família e comunidade aponta reflexos do racismo na saúde de pessoas negras

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Indignação, raiva e dor, foram os sentimentos citados por Eva Marta, 47, ao relatar situações de negligência médica pelas quais ela tem passado desde 2019, quando começou a procurar ajuda para lidar com dores constantes que sente desde 2016. Eva tem artrite, artrose, tendinite, bursite no ombro direito e esporão nos pés. Devido às dores, desde 2020, ela é dona de casa, mas seu último emprego foi como trabalhadora doméstica.

Moradora do bairro São Marcos, na cidade de Embu das Artes, São Paulo, em uma das crises de dores que teve, Eva menciona que procurou o pronto-socorro do bairro, pois não tinha como pagar por uma consulta particular, e levou seis horas para ser atendida.  

Eva Marta é dona de casa, sofre com dores crônicas e mora no bairro São Marcos, em Embu das Artes. (Foto: Viviane Lima)

“Ele [o médico] falou, ‘a verdade é que isso não tem cura, não sara, a senhora tem que se acostumar com a dor’. Aí eu respondi, ‘você fala isso porque não é com o senhor’”. Eva compartilha que queria ao menos que a sua dor fosse respeitada e o que recebeu foi a alegação, por parte do médico, de que ela estava nervosa. 

Situações muito parecidas também aconteceram com Fátima Martins, 43, moradora do bairro Jardim Zaira, na cidade de Mauá, em São Paulo. Fátima é assistente social em uma UBS e também trabalha como técnica de enfermagem. “Certeza que foi uma questão racial, não tinha mais nenhum preto ali, só eu. Quando eu e meu marido chegamos, a única coisa que recebemos foram olhares diferentes”, conta sobre o ocorrido no atendimento pelo convênio médico. 

Fátima Martins é assistente social, técnica de enfermagem e moradora de Mauá. (Foto: arquivo pessoal)

A assistente social diz que procurou o pronto-socorro após sentir uma dormência na mão. Ao realizar o ultrassom e ser diagnosticada com síndrome do túnel do carpo, foi encaminhada para uma consulta com o ortopedista. Ela relembra que no dia da consulta estava acompanhada do marido, José Adriano, pois ele tinha sofrido um acidente e também precisava ir ao ortopedista. 

“Ele disse, ‘você precisa fazer outros exames, não está quebrado, é tendinite’. Aí eu questionei ele, porque eu sabia que [a questão] veio do trauma de um acidente de moto. [E o ortopedista respondeu], ‘eu sou o médico, se eu estou falando que é, é porque é’”, recorda Fátima sobre a abordagem do médico ao passar o diagnóstico do seu companheiro, José Adriano. Ao consultar outro médico, o casal soube que o problema na realidade era uma fratura.

Já no seu atendimento, com o mesmo profissional, Fátima conta que mostrou seu ultrassom e explicou que estava sentindo dores. “Ele [o ortopedista] falou, ‘isso daí vai ser para sempre, você aguenta, você é forte’”, relata a assistente social.

“Eu me senti diminuída como se eu não precisasse de atendimento nenhum, como se eu tivesse que engolir calada, como se qualquer dor para mim fosse pouco. Como se qualquer coisa que venha para melhorar a vida e trazer qualidade, eu não mereça. O meu primeiro sentimento foi de impotência. Porque ele é o médico pode falar como quiser com as pessoas?”

Fátima Martins, assistente social, técnica de enfermagem e moradora de Mauá.

Ao procurar outro profissional de saúde, Fátima constatou que existiam outras soluções para a sua dor e iniciou a fisioterapia, acupuntura e o uso de medicação. 

José Adriano é morador de Mauá e passou por racismo durante consulta médica. (Foto: arquivo pessoal)

As situações relatadas não foram casos isolados. Eva, por exemplo, diz que em outra ida ao pronto-socorro avisou que era alérgica à corticóide, mas mesmo assim foi parar na emergência por negligência médica. Já José Adriano conta que em outra consulta foi questionado inúmeras vezes se já tinha usado drogas, mesmo ele afirmando que não. “Ficou uma coisa bem constrangedora, porque é chato você ser taxado só por ser preto, pobre e favelado, é horrível isso”, afirma. 

Racismo

Diversos estudos reforçam a presença do racismo em atendimentos médicos, seja em consultas, internações e em forma de violência obstétrica. Em casos de internações, por exemplo, o Boletim Saúde da População Negra, do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e do Instituto Çarê, mostra que, no Brasil, entre 2010 a 2021, foram 66.496 registros de internações com situações de erros médicos devido a acidentes ou à negligência profissional. 

“A medicina [ocidental] como esse cuidado em saúde é criada e feita do branco para cuidar a partir do branco. Se o branco pratica racismo e se beneficia do racismo em todos os outros aspectos da sociedade, não seria nesse cuidado que isso seria diferente”, pontua Thiago Santos, médico especialista em família e comunidade. 

Thiago trabalha no Centro Municipal de Saúde Mário Olinto de Oliveira, no bairro Cascadura, que fica no distrito de Madureira, na zona norte do Rio de Janeiro, e pontua que no aspecto da saúde, os dados de violência obstétrica são os mais nítidos. “A mulher negra no trabalho de parto recebe menos analgesia. [Esse] é um dos campos em que a saúde realmente é mais racista”, menciona o médico. 

“Em todas as instituições do nosso Estado [o racismo] é sempre mais velado. Existem algumas estratégias, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que foi implementada em 2009”, coloca. O especialista comenta que essa política tem bons dados, mas que não teve acesso a ela durante a graduação. “Essas ações, que muitas vezes o governo faz no sentido anti-racista, não são aplicadas. [Na] prática não soa como uma das prioridades”.

Outra falha que potencializa a negligência médica no atendimento à população negra, conforme aponta Thiago, é a superlotação dos centros médicos. “A distribuição das clínicas, o acesso aos profissionais, isso já é um fator que o racismo opera. Na Grande Tijuca, que é uma região de classe média, a gente tem 100% de cobertura. E a população que não é coberta é justamente de uma área mais distante, é uma população mais preta”, analisa o especialista.  

O médico ressalta que o racismo afeta a saúde e diminui a expectativa de vida das pessoas negras por terem menos acesso a diagnósticos, tratamentos e centros de saúde. Além do aspecto da saúde mental, taxa de suicídio e violência. “Se a gente sabe que o homem negro jovem suicida mais, a gente precisa ter um olhar mais atento para quando ele chega no consultório com uma queixa de saúde mental”, exemplifica.

Grupo de saúde mental que Thiago organizou no Centro Municipal de Saúde Salles Netto. (Foto: arquivo pessoal)

Thiago é especialista na estratégia de saúde da família e comunidade, área que abrange diversos aspectos das relações sociais. “A gente faz um diagnóstico comunitário para entender como é a dinâmica da região, como ela funciona e como a relação da comunidade com o território influencia na saúde”, explica o médico.

Elementos culturais e os recursos sociais que a população tem a disposição para promover saúde também são levados em consideração nesse tipo de atendimento médico. “A gente vai levantar quantas igrejas têm na região, quantos terreiros, como é a relação dessa população com o tráfico”, exemplifica Thiago sobre alguns aspectos de abordagem que a medicina de família e comunidade abrange.

“A medicina de família aqui do Brasil tenta sair um pouco dessa questão de causa de doença para resolução [e busca] olhar a pessoa como um todo. Entender além da doença, como essa doença implica para ela”, aponta o médico.

Segundo ele, em muitos casos pessoas negras não vão ao médico para evitar situações de racismo. Mas há quem não perceba essas violências, “se você não prestar atenção é imperceptível”, comenta Fátima. Como assistente social do SUS, ela diz que considerar a história e a vivência do paciente, junto com uma educação antirracista continuada no setor da saúde são pontos fundamentais para a melhoria no atendimento.

Eva conta que não tomou nenhuma providência diante das situações pelas quais passou. Fátima pretende denunciar o ortopedista por racismo para o Conselho Regional de Medicina (CRM) e para o convênio. 

“Quando você denuncia, você mostra que esse profissional, essa instituição está com um tratamento inadequado, isso protege outras pessoas e a gente, enquanto povo negro, precisamos aprender a se proteger cada vez mais”, destaca Thiago.

Thiago Santos é médico especialista em medicina de família e comunidade (MFC), no Rio de Janeiro. (Foto: arquivo pessoal)

Thiago menciona que não há uma normativa ou protocolo de atendimento pelo qual seja possível identificar uma conduta racista no âmbito da saúde. “A forma disso acontecer menos [é] divulgar [para o médico] o que é esperado de uma consulta. [Estar atento a] como que a gente deve ser tratado, não só dentro da saúde, mas em qualquer lugar, o respeito que a gente merece”, menciona o médico.

Em termos de denúncia, ele indica que a pessoa que passou por uma situação de racismo em um centro médico procure as ouvidorias locais de saúde e comunique o ocorrido para o gestor responsável pelo local. “Lembrando que racismo é crime, se realmente você está sentindo que sofreu essa violência não está errado acionar os meios legais, acionar a polícia”. 

Apesar de ainda ser a minoria, Thiago coloca que ter profissionais negros e com consciência racial na área da saúde ajuda a diminuir os impactos que esse racismo institucional pode causar. “Que a gente enquanto povo esteja cada vez mais apto para cuidar da gente mesmo. Quando eu atendo uma senhora preta dá esse sentimento de estar atendendo a minha vó e da forma que eu gostaria que ela fosse atendida, isso faz uma diferença grande nesse sentido”, finaliza o médico.

Sorrisos na quebrada

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Estamos chegando na reta final do ano. Em Taipas e várias outras comunidades, projetos sociais, ONGs e times de futebol se unem para fazer a alegria dos pequenos. Eles organizam festas, distribuição de brinquedos e eventos que transformam os espaços da comunidade em lugares de pura diversão. 

Aqui na quebrada já vai criando aquele clima dahora, todo mundo já se organizando e se juntando para ajudar no partilhar com todos. 

Nesse mês de outubro, devido ao dia das crianças, diversos projetos estão proporcionando muita diversão para a molecada. O time Unidos do Jd Brasília proporcionou uma tarde de muita diversão, lanches e brinquedos para as crianças do Jd Brasília. 

O Projeto Social Quadra F Mirim também organizou o evento que aconteceu dia 20 de outubro, na Cohab Brasilândia. Além de toda diversão, comidas e brincadeiras eles também realizaram sorteio de bicicletas para a criançada da comunidade, um dia de lazer que fica registrado eternamente na memória delas. 

A galera do projeto semente do amanhã sempre se organizou em prol da festa das crianças e fazem um grande e lindo evento na Cohab Taipas, muitas crianças de até bairros mais próximos participam e se divertem. 

Esses eventos são muito mais do que uma simples comemoração, são momentos de inclusão, onde crianças que muitas vezes não têm acesso a brinquedos e doces podem vivenciar um dia de felicidade e encantamento.

Isso mostra  o poder de união da quebrada, onde o coletivo se fortalece, garantindo que cada criança tenha seu dia de alegria, sorrisos e muito amor. 

Que a gente sempre pense e reflita todos os dias sobre cuidar, acolher e mostrar que cada criança merece ser feliz.  

Já dizia Racionais: “Olhe as crianças que é o futuro e a esperança, que ainda não conhece, não sente o que é ódio e ganância!”

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Krystal Fokatrua apresenta Capoeira Vogue como movimento de resistência cultural

Envolvida com a prática da capoeira desde os 7 anos, e com a dança vogue a partir do 13 anos de idade, Krystal Fokatrua, 26, uniu as duas linguagens, e a partir dos seus estudos passou a dar aulas de Capoeira Vogue na USP (Universidade de São Paulo). Além de instrutora da prática, Krystal é chef de cozinha e atualmente trabalha em um restaurante no centro de São Paulo.

Nascida em Além Paraíba, município de Minas Gerais, após passar por muitos estados, a artista se mudou para São Paulo aos 17 anos, mas conta que foi em 2022, que decidiu superar as estatísticas que limitam a existência de pessoas trans e indígenas. 

Krystal compartilha sobre as dificuldades desde a infância, incluindo viver em situação de rua ao retornar para São Paulo, e como se envolveu em atividades culturais, como produção de festivais, eventos artísticos e a influência da capoeira vogue na construção de sua identidade.

Como você começou a se envolver com a Capoeira Vogue e como isso conecta a sua trajetória?

A capoeira eu comecei a estudar de sete para oito anos de idade e o Vogue eu comecei a estudar com 13 anos. Desde que eu comecei a estudar o Vogue também conhecia a dança contemporânea que me trouxe uma possibilidade de mesclar ritmos [e] culturas. Minha mestra me [mostrou] um vídeo de [outro] mestre de capoeira [que juntava] capoeira com dança contemporânea [aí] me veio a ideia de trazer a Capoeira Vogue também. Entendendo que era a corporeidade que o meu corpo se expressava, que as pessoas apontavam ‘você está fazendo Capoeira Vogue’, que não é só Capoeira e não é só Vogue, tem uma conexão, uma junção, uma fluidez entre uma coisa e outra que é nítida de se ver.

Como a estética e o ritmo da Capoeira e do Vogue se complementam em uma apresentação?

Quando as batidas tocam. Acredito que quando o movimento vem de dentro ele só acontece quando a gente sente tanto [o] feeling de um, como outro. E como também os instrumentais se conectam de uma forma que faz com que o corpo se mova.

De que forma a capoeira vogue está ligada a outras lutas sociais e políticas da comunidade LGBTQIAPN+ nas periferias?

No grito por existência, por pertencimento, por se entender em um lugar de que você resgata a sua ancestralidade através da sua corporeidade, através daquilo que você é, não através daquilo que te atacam para ser e todas essas culturas elas trazem isso à tona em todos os seus gestos, movimentos, histórias e fundamentos. Como elas foram fundamentais com gestos de resistência, de luta e de pertencimento à própria existência.

Como essa prática pode ser uma forma de resistência e empoderamento para a comunidade  LGBTQIAPN+?

Como estratégia de jogo, de marketing, de ser malandra, de ser fluída, sensível, mas também de ser bruta, de saber quebrar o aço, se defender quando necessário. Então é importante no empoderamento social, onde a gente vive um país que mais massacra tanto pessoas periféricas negras, trans, indígenas. É parte dessa pluralidade de entender que você não está só, que você tem a possibilidade e a capacidade de se manter existindo.

Como a presença da capoeira vogue em eventos periféricos pode abrir discussões sobre raça, gênero e sexualidade?

Com certeza a partir do momento que a gente pensa e aceita que cada ser é um ser. Tanto na Capoeira como no Vogue a gente aprende que você tem o seu jogo, o seu gingado, o seu Kant. É aquilo que você desperta em você, aquilo que você vai acordando em você de acordo com a sua convivência social, de acordo com aquilo que a gente pode estar coletivamente criando estratégias para poder estar resistindo e prevalecendo no sentido de só existir.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.