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O silêncio ancestral como estratégia de cura e resistência

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Nesta sessão, proponho uma reflexão sobre o silêncio — esse movimento interno que muitas vezes nasce de incômodos, dores ou sentimentos que preferimos não revelar. Contudo, para além dessa dimensão, o silêncio pode também ser compreendido como um espaço fértil de introspecção e autoconhecimento. Ele nos conduz a um encontro profundo com nós mesmos e com uma força ancestral que costumo evocar em nossas sessões, onde a escrita se torna ferramenta para compreender outras dimensões de nossa cultura e resgate de memória.

Muitos de nós não cultivamos o hábito de reservar tempo para o recolhimento, porque vivemos em uma sociedade que não nos permite parar. 

Nesse ponto, o silêncio também ganha um aspecto cultural e religioso. Recordo, por exemplo, a experiência do roncó, em que o recolhimento ritualístico convida à introspecção diante do sagrado. Nesses momentos, aprendemos a não permitir que o mundo externo invada nosso espaço interno, preservando-o como território de cuidado, cura e ressignificação.

O silenciar, portanto, pode ser compreendido como prática de cura interior, capaz de nos elevar a um grau mais profundo de autoconhecimento e de conexão com o sagrado. É também um modo de lidar com dores que não conseguimos verbalizar de imediato, criando espaço para sua transformação.

Entretanto, como psicóloga, não posso deixar de observar o silêncio que se impõe às mulheres diante das violências sofridas. Muitas vezes, o que não é dito se prende na garganta, sufocado pela vergonha, pela humilhação ou pelo medo. 

Esse silêncio, que deveria ser refúgio, torna-se também mecanismo de sobrevivência diante das tantas violências que atingem os mais vulneráveis. Até mesmo no espaço terapêutico — pensado como seguro — nem sempre é simples romper esse silêncio que guarda feridas de infância, de mulheres, ou mesmo de homens ensinados a suportar em silêncio como prova de força.

O silêncio, portanto, é ambivalente: pode ser fonte de poder interior, mas também de auto penalidade. É complexo e multifacetado, exigindo de nós sabedoria para discernir quando calar e quando falar.

Assim como o caçador que, na paciência silenciosa, consegue atingir seu objetivo, precisamos aprender a usar o silêncio como estratégia para ir mais longe. Há momentos em que calar é contemplar o sagrado, ouvir a alma, reconhecer o próprio tempo de amadurecimento. Em outros, é necessário romper o silêncio, erguer a voz e enfrentar os algozes.

Percebo, portanto, que o silêncio é parte constitutiva de nós. Ele se revela quando falamos demais sem nos ouvir, quando precisamos aprender a escutar a nós mesmos para lapidar nosso caráter. Ele também se manifesta como gesto de respeito, reverência e conexão com o sagrado — como nos ensinaram nossos ancestrais.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

“O Movimento Negro Unificado é uma escola de formação”,  destacam ativistas sobre protagonismo do MNU na luta contra o racismo no Brasil

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Greves, marchas, ocupações, denúncias e centenas de mobilizações foram encabeçadas ao longo de mais de quatro décadas pelo Movimento Negro Unificado (MNU), que nasceu em 1978, em resposta às violências intensificadas pela ditadura militar no Brasil. A geógrafa especialista em educação para as relação étnico-raciais, ativista e intelectual Regina Lúcia, uma das militantes que compõem a vanguarda do MNU, relembra sua trajetória, destaca retrocessos e principais marcos, especialmente para as pessoas negras periféricas.

“Estes 47 anos foram, em primeiro momento, um desvelamento do racismo no Brasil, desmascarando a dita democracia racial e colocando às claras que o Brasil era um país racista. O MNU foi sempre ponta de lança para as lutas e conquistas”, afirma Regina ao relembrar momentos que marcaram a história da luta negra.

Segundo a ativista, muitas conquistas do movimento negro chegaram às periferias. “Foi [muito importante] para a população negra, pobre, periférica, poder sonhar e ver seus filhos entrarem nas universidades. A briga pela regularização dos quilombos, a propagação da cultura negra e a lei 10.639, que embora ainda não esteja sendo aplicada na sua totalidade, já produziu muito material retratando acerca da nossa história e de nossa contribuição neste país, mas também para a história mundial”, lembra.

Ela também cita as cotas no serviço público, nas universidades públicas e privadas e a política de atenção integral à saúde da população negra. “Tudo isso configura conquistas, mas ainda existe luta para ser feita”, acrescenta a militante, que destaca o genocídio contra a população negra como, ainda, o mais importante desafio.

“[O] genocídio não está só na morte pela bala da polícia, do Estado, mas na negação à saúde, à alimentação. E há um fenômeno mais recente, um fato que tem se agravado: o suicídio, em especial, de homens negros jovens, muitos já chegando na fase da universidade. O suicídio é mais um produto do projeto de genocídio”. Regina Lúcia, ativista e intelectual do Movimento Negro Unificado (MNU).

A tomada de uma consciência crítica racial que contemple todas as dimensões e que desenhe futuros possíveis a partir da luta coletiva, é o que Regina espera ver garantido para seus netos.

“Eu já ouvi muito dos meus filhos, há alguns anos, que estava na hora de parar, que eu já tinha lutado muito, mas hoje eles entendem que não dá para parar. Já participei de muita luta, de muitas construções, mas o que [sigo acreditando] é que não dá para retroceder”, afirma Regina que já possui mais de 50 anos de militância política, sendo 30 anos de militância no movimento negro organizado.

Estrutura organizada a partir de territórios

A compreensão de que a população negra é diversa — seja em termos territoriais, educacionais ou políticos — foi o fio condutor que guiou a organização político-social do movimento, buscando dar conta dessa pluralidade presente no Brasil conforme as transformações históricas ao longo dos anos. A estrutura se organiza a partir do território em que cada militante está inserido, seja no trabalho, na educação ou em outras frentes de atuação. 

A partir daí, a mobilização permanece nos municípios e nos estados brasileiros, com distribuição de núcleos temáticos que possuem independência de ação, mas que seguem diretrizes bem delimitadas para incidir nacionalmente, inclusive, na política institucional.

Já no campo internacional, o movimento constrói articulações diversas, especialmente com organizações negras, coletivos de vítimas da negligência e violência de Estado, como movimentos de mães que perderam seus filhos e também aquelas que lutam pela libertação de familiares, inclusive do cárcere, em diferentes partes do mundo. 

Nesse sentido, Regina ressalta que, para o movimento social, estas alianças são compromissos inegociáveis de solidariedade e unidade na luta: “Precisamos derrotar o racismo enquanto política de controle da humanidade e enquanto política de reprodução do capital”, diz.

“Temos nos engajado em todas as lutas na defesa da vida, especialmente, das mulheres negras no Parlamento, pela indicação de mulheres negras ao STF, ao STJ, por exemplo”.

Regina Lúcia, liderança no Movimento Negro Unificado (MNU).

Nova geração, luta antiga

Aos 25 anos, a jovem estudante de Ciências Sociais da Universidade de Brasília (UNB) e pesquisadora sobre trabalho escravo contemporâneo, Brenna Vilanova, representa uma nova geração de militantes do MNU. Filha de uma trabalhadora doméstica e neta de nordestinos, ela diz que carrega na própria história a marca das desigualdades que atravessam a população negra brasileira.

Durante a pandemia de covid-19, a aproximação se estreitou. Em 2022, oficializou então sua filiação ao Movimento Negro Unificado em uma data simbólica. “Fiz a filiação em uma comemoração do dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra). Foi uma experiência muito gostosa de viver, não porque seja gostoso militar, pois a gente lida com muita dor, mas porque simbolizou um acolhimento, uma reconstrução de casa, de lar, que nós, pessoas negras, precisamos”, relembra.

Desde então, tem se dedicado especialmente a organizar a juventude negra dentro do movimento social Brasiliense. “Faço parte desta geração mais nova e tenho conseguido trazer outros jovens para dentro do MNU, [articulando] essa perspectiva de continuidade. Aprendo, todos os dias, com os mais velhos, mas também puxo os meus iguais e os meus mais novos. É isso que repito muito e sempre: o MNU, para mim, é uma escola de formação. Quando a gente aprende, a gente também tem que ensinar. É essa continuidade do legado, sem mudar a essência do MNU, mas renovando a forma de se organizar conforme o tempo em que a gente vive”.

“Temos dificuldade de trazer esses meninos negros para organização [político-social] que estão expostos à precarização do trabalho, falta de tempo. Ao mesmo tempo em que conseguimos colocar jovens negros dentro da academia, ainda falta alcançar muita gente que está nas quebradas: as mães negras, aquelas trabalhadoras que seguram tudo sozinhas”.

Brenna Vilanova, militante pelo MNU, estudante de Ciências Sociais e pesquisadora sobre trabalho escravo contemporâneo.

A compreensão da luta coletiva e construção de conhecimento faz parte do repertório da pesquisadora ao citar a ex-coordenadora nacional do MNU, Ieda Leal: “Certa vez, Ieda falou algo que me marcou profundamente: ‘eu não estava na escadaria em 1978, mas eu estava na carta de princípios’. Eu também me sinto assim. Nunca estive nas escadarias do Theatro Municipal junto com o MNU, em seu começo, mas sempre me senti pertencente”, compartilha. 

“Quando o movimento escreveu sobre a criança negra, sobre a juventude negra brasileira, sobre trabalho digno, eu estava ali. Eu sou fruto desse diálogo potente que o MNU faz”, destaca a jovem se referindo ao ato de fundação do MNU, realizado no dia 7 de julho de 1978, nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo.

Brenna menciona os contextos que representaram gargalos ao longo das décadas de construção coletiva, bem como os desafios atuais e futuros que enxerga com preocupação. “O MNU se funda denunciando o namoro do Brasil com o Apartheid. E até hoje a gente segue nessa estratégia internacional. O problema é que, ao mesmo tempo em que avançamos devagar no combate ao racismo, surge essa onda da extrema-direita, que é a nossa principal ameaça”, coloca.

“Quando você flexibiliza o discurso, quando libera conteúdo racista nas redes sociais, como o Elon Musk fez, por exemplo, isso se transforma em violência concreta nas periferias. Onde corpos negros não têm proteção social nem judicial, a violência aumenta”, ressalta Brenna sobre o avanço da extrema-direita.

Mesmo reconhecendo conquistas, como a lei de cotas e sua recente renovação, a ativista chama atenção para contradições existentes, inclusive, em governos progressistas. “Foi com o presidente Lula que [sancionamos] as ações afirmativas, mas, ao mesmo tempo, houve frustração quando não houve a indicação de uma mulher negra ao TSE. Mais uma vez ficamos de fora. Isso mostra como o povo negro no Brasil ainda precisa construir sua política sozinho”, observa.

“O Movimento Negro Unificado é uma escola de formação, e que a gente construa com os nossos mais velhos, com os nossos anciães, mas também com a juventude e com as crianças negras, pois é isso que irá garantir a continuidade dessa luta”.

Brenna Vilanova, militante pelo MNU, estudante de Ciências Sociais e pesquisadora sobre trabalho escravo contemporâneo.

Para ela, é a memória, somada à resistência que renova a esperança do povo negro para o fim do racismo como estrutura social. “Para quem veio antes, é só saudação e gratidão. Eu piso devagarinho neste caminho que foi aberto. E para quem está chegando, digo que o importante é pisar também, ocupar o lugar, se organizar”, finaliza.

Retrato de um punk, preto e periférico

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Como seu próprio vulgo indica, Regicida (matador de reis) nunca se acomodou ao lado dos poderosos, não fez e não faz concessão quando o assunto é o enfrentamento das desigualdades e da cultura racista e nazifacista que sempre rondou sua existência e a própria construção desse país.

Na matéria de hoje, na coluna que eu, Daniel Fagundes, mantenho aqui no Desenrola, decidi fazer de um modo diferente e entrevistar, dessa vez sem câmeras, esse jovem tiozinho de 40 anos, referência do nosso cinema periférico, preto e anarquista. Um importante realizador do que chamamos de cinema nacional, aquele cinema que revela as entranhas de um país que o nega historicamente em suas narrativas. Um cinema que não para, tendo ou não tendo recursos, pois a urgência das histórias e da forma de agir com a câmera não é pautada pelas armadilhas do capital.

Regicida é pai do Oruan, nasceu em Salto de Pirapora, mas cresceu na periferia da capital paulista, especificamente no bairro da Brasilândia, onde conheceu a cena cultural e de onde apontou pela primeira vez suas lentes para enaltecer o povo de luta do seu bairro e de outras quebradas. Entre seus filmes estão “Unindo Quebradas”, “25 de Julho – Feminismo Negro Contado em Primeira Pessoa”, “Metaleiras Negras”,  “Um Breve Relato” e “Confluências”, esse último, além de ser seu mais recente trabalho, é uma obra que resume de forma brilhante o pensamento do mestre quilombola Antônio Bispo e por consequência resume também a proposta política do cinema do próprio autor, confluir favelas, quilombos e aldeias. E como diria Nego Bispo, quando isso acontecer o ‘asfalto vai derreter!’.

Foto: Arquivo Regicida

Como iniciou nas artes, qual o primeiro contato com o mundo cultural?

Iniciei nas artes a partir do desenho, na escola eu era bastante dedicado nas aulas de artes e pegava tarefas extras com a professora que era desenhista, aprendi técnicas diferentes das que haviam no currículo escolar, disso caminhei para observar mais pinturas e fotografias.

Cabe comentar aqui que no ano de 2015 Regicida desenvolveu junto de Sônia Bischain e Enver Padovezzi o livro “Olhares da Brasa – Fotografia, Cultura Daqui”, uma linda homenagem em fotografias do território da Brasilândia. Conheça no link: (CLIQUE AQUI)

Como ingressou no movimento anarcopunk?

Desde muito cedo eu conheci o rolê Punk por estar nas ruas com o pessoal do Hip-Hop, andei com os UBC e alguns pixadores do bairro, na época sentia falta de um grupo organizadamente anarquista, logo me vi fazendo rolê com os punks e com isso me inseri nos ativismos políticos e manifestações de rua, onde fui inserido nos conceitos do AnarcoPunk.

Como iniciou a caminhada no audiovisual?

Audiovisual sempre foi para mim a ferramenta mais eficaz para acessar as pessoas, em comparação ao livro ou ao teatro e assim como as rádios, entendi que para falar com as pessoas eu precisava usar dessas ferramentas. Já fui zineiro, dos meus 13 anos de idade até os 26 produzi e co-produzi 4 zines e cada um com muitas edições. Com a gana de acessar mais pessoas resolvi encarar o caminho de aprender a gravar, roteirizar e editar, sou autodidata e com meu primeiro filme “Unindo Quebradas- AnarcoRap em São Paulo” vi que tinha potencial em acessar lugares e pessoas que meus zines ainda não haviam alcançado. Sempre destacando que a linguagem é uma poderosa ferramenta pedagógica e por trabalhar com educação popular e social sempre tenho audiovisual junto comigo nesses momentos.

Foto: Sonia Regina Bischain/Arquivo Regicida

Como vem pensando sua atuação no audiovisual desde o começo até agora? Quais os avanços e quais os principais desafios?

Eu começo no audiovisual de forma autodidata e forjando meus equipamentos para as produções acontecerem, passo por me estruturar e fundar uma produtora periférica e afro-indígena de audiovisual libertário a Do Morro Produções. Observando meus passos e refletindo sobre eles consigo criar métodos de ação e estruturo o ciclo de roteirizar assuntos, produzir gravações e exibir para o público, pois além de tudo venho conseguindo manter durante alguns anos um cineclube aqui na norte.

Entendendo a diferença que os cineclubes fazem na difusão das produções periféricas e mesmo contraculturais como as feitas por punks, pessoas do Hip-Hop e grupos ativistas no geral, nesse processo me desafiei a fundar um festival internacional de filmes, junto com minha irmã Marina Knup, o “Festival do Filme Anarquista e Punk de São Paulo”.

Nesses meus quase 20 anos de produções e organizando espaços voltados para a linguagem, percebi que os formatos mudaram bastante e as pessoas que querem acessar essas produções são outras, se mantivermos os mesmos costumes da minha geração e das gerações que vieram antes de mim, vamos acabar falando para nós mesmos e esse é um desafio que venho tentando enfrentar.

De que forma o seu envolvimento com a cultura anarcopunk é importante para o que você produz no campo audiovisual?

Alguns fundamentos que trago do AnarcoPunk me balizam para caminhar com minhas criações no audiovisual, e não falo apenas sobre os filmes. Fundar o Festival em São Paulo foi importante para diversas movidas pelo mundo, o que Marina Knup e eu iniciamos em 2012, de fundar o primeiro festival no Brasil voltado para produções punks e contraculturais, acabou inspirando outras organizações a entenderem que também podiam e hoje temos diversos outros festivais e mostras de audiovisual pela América Latina, que difundem material audiovisual punk, anarquista ou mesmo libertário.

Aproveite e fale mais do festival do filme anarquista e punk de São Paulo.

Então, como eu disse, o Festival surgiu em 2012 e o encerramos na sua 11ª edição, no ano passado [2024]. Anualmente reunimos de 30 a 40 produções de todo o planeta, alguns materiais que nunca haviam sido exibidos no Brasil foram trazidos para cá por nós, porque os parceiros mundo afora viram no festival um espaço potente onde poderiam exibir com qualidade seus filmes. Vimos coletivos de vídeo sendo criados para poderem produzir e exibir conosco, alimentamos uma chama que nossos cineclubes não estavam mais alcançando. Junto com Elaine Campos, Juliano Angelin, Ruivo Lopes, Clayton João e Joaquim Santos mantivemos uma boa bagunça todo mês de dezembro, mês que acontecia o festival.

O que você pensa sobre o discurso comum que coloca o punk e até a cena rock de forma mais ampla como um movimento de maioria branca?

Quem não conhece a própria história não saberá de onde veio e até mesmo para onde pode caminhar. O Rock é preto, nascido do Blues e desenvolvido por Sister Rosetta, tudo que se criou depois dela é uma disputa de discurso. Assim como o samba, a capoeira, a religiosidade e as tecnologias civilizatórias, tudo que foi concebido pelos africanos e as africanas em diáspora acabou sendo cooptado, de forma a se dizer que é branco para ser aceito pelos brancos e eles poderem consumir sem assumir o quanto temos a oferecer de cultura, história e filosofia.

Logo, acreditar nesse discurso de que o rock é musica de jovens brancos e o punk é uma cena de homens brancos é só mais uma idealização de consumo para mercantilizar fenômenos culturais de potência que são feitos por não brancos, e quem pensa o contrário está de chapéu atolado.

Como você tem feito o enfrentamento do racismo na sociedade pelo lugar do anarcopunk?

Meu enfrentamento vem através do resistir cotidianamente de cabeça erguida, Punk é ação direta e dá o exemplo prático sobre como existir sem se render a cultura do consumo, ir contra as relações mercadológicas e toda cosmofobia instaurada a gerações em nossas mentes.

Nem sempre estou blindado às questões que me atravessam, da mesma forma que atravessam meus pares e parentes pretos, indígenas e periféricos, mas sigo vivo com a Do Morro Produções, onde tenho esse foco no registro arquivista das memórias de militâncias periféricas libertárias.

E o Coletivo Malungo que se organiza a partir do propósito de forjar ambientes pedagógicos para se pensar sobre o quanto o racismo e a cosmofobia está impregnada nas estruturas educacionais e criar meios legais e até ilegais para a superação da visão  eurocêntrica que banaliza nossas vidas  cotidianamente, principalmente na educação e nas instituições escolares.

Você está há 17 anos no audiovisual, fazendo trabalhos autorais e colaborando com outras produções do cinemão também. Faça um levantamento breve dos principais trabalhos que você realizou e destes outros que atuou e, se possível, diga quais obras que mais curtiu trabalhar.

Assino meu primeiro trampo solo em 2008 e de lá para cá tenho cerca de 30 produções minhas ou que fiz parte. Unindo Quebradas (2008) é uma das que mais me marcaram, não apenas por ser minha primeira, mas também por ter conhecido muita gente durante as gravações (um dia lanço a continuação já gravada, mas nunca editada).

Feminismo Negro Contado em Primeira Pessoa (2013) é meu maior trabalho até hoje, me levou para lugares que nunca pensei estar e me fez crescer um pouco mais como ser humano. Tenho um curta sobre minha mãe onde me vi num desafio de registrar uma das pessoas que mais admiro, mas esse trabalho não quis lançar abertamente. Fiz fotografia para produções que estão na Netflix, Amazon e GloboPlay e me orgulho disso, assim como estar no catálogo da TodesPlay e AfroFlix. Poderia citar algumas produções feitas junto a grupo de jovens durante os cursos que promovo, mas deixo aqui a curiosidade para quem está lendo ir atrás.

No momento, meu último trabalho lançado é um curta que produzi sobre Antonio Bispo a partir do convívio que tive com ele. Fui feliz em ter durante alguns anos esse mano para trocar ideias, tomar cachaça, discutir e discordar em vários pontos, mas sempre aprendendo algo novo, com isso consegui registrar um pouco do Bispo lavrador, pai, avô e querido na cidade que morava, e não apenas o quilombola pensador cosmológico que nos deixou um grande legado em seus livros. “Confluências” (2020) trás parte desses registros que fiz em sua comunidade no Piauí, espero conseguir lançar um próximo trabalho mais amplo, que terá mais um pouco desses momentos que gravei com ele em vida.

Assista “Confluências”: https://www.youtube.com/watch?v=fi-4T8tdYDY

No momento político atual, como você acha que o audiovisual, o cineclubismo, a comunicação independente podem ampliar possibilidades de engajamento social nas quebradas? Quais experiências você tem conhecimento hoje que são boas referências nesse sentido?

Poderia citar algumas referências sobre como as quebradas estão avançando, mas quero pontuar apenas a APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro), pois mais pessoas precisam ter ciência que esse espaço existe e está muito ativo. Não vou comentar o que é a APAN, porque novamente quero que as mentes curiosas que estão lendo esse meu relato corram atrás de saber.

Quais os planos futuros de trabalho, de carreira, o que você tem pensado deste ponto em diante?

O futuro é algo que pouco penso sobre como será enquanto Do Morro Produções, pois vejo que se não mudar a forma de se fazer ficarei nostálgico e não é meu objetivo, quero falar para as gerações mais novas e talvez artisticamente não consiga, mas sei que tenho algo a dizer que os interessam, qual vai ser o formato ou a linguagem ainda estou tentando formular, mas passado um longo processo de depressão e agora recém saído desse buraco que a doença nos coloca, me vejo de novo nas pistas e disposto a voltar a botar fogo por aí, pois o regicídio está por vir.

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“Isso tem a ver com o fato de ser um projeto periférico”: pesquisa aponta centralização de recursos culturais na cidade de São Paulo

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Sentados no chão, reunidos em círculo, um dos jovens se direciona até o centro da roda para apresentar sua fala. Quem está ao redor observa e incentiva, assim o espaço vai ganhando movimento e forma. Essa é parte da rotina de apresentação teatral dos integrantes do coletivo Usina dos Atos, que mesmo com o desafio do financiamento, desde 2009, desenvolve projetos que unem arte, formação e impacto social na região da Cidade Tiradentes, Guaianases e São Mateus. 

A principal atividade do grupo é o Projeto Primeira Cena, criado em 2010, que envolve formação de jovens a partir de técnicas de teatro e dança, com duração de um ano. Em paralelo, participam de oficinas de política, comunicação e literatura.

Cai Teixeira, articuladora cultural e um dos mobilizadores, conta que já realizaram sete edições, com 17 turmas e 19 trabalhos artísticos circulando por diferentes territórios, com jovens da Cidade Tiradentes, Grajaú, Sapopemba e Campo Limpo. Muitas ações aconteceram no que chama de “guerrilha cultural”, sem recursos. “A última edição com recurso foi a sétima, entre 2022 e 2023. De 2009 a 2019, praticamente não tivemos financiamento, apenas em 2012 conseguimos algum apoio. Nesse período, tudo que fizemos foi na base de mobilização própria”.

Em 2019, a maioria das pessoas do coletivo conciliava outros trabalhos com as atividades do grupo, ano que Cai saiu do emprego fixo para se dedicar integralmente à iniciativa. Foi nesse momento que a produtora passou a estudar sobre captação de recursos.

O coletivo existe há 16 anos, sendo 11 registrado com CNPJ, pensado para captação. As atividades acontecem em parceria com espaços públicos ou ocupações. O Primeira Cena, projeto de arte-educação, ocorre principalmente no CEU Inácio Monteiro, na zona leste, parceiro desde 2011 e considerado o mais constante. Ao longo dos anos, as ações também já passaram por outros equipamentos, como o CEU Cidade Dutra, CEU Três Lagos, CEU Casa Blanca e a EMEF Miguel Ferreira, na zona sul, além da ocupação Mateus Santos, em Ermelino Matarazzo. 

“Começamos a buscar cursos e certificações importantes para acessar editais e financiamentos. A partir daí, conseguimos recursos algumas vezes e, em 2022 e 2023, acessamos o FUMCAD, que é um recurso muito bom, mas difícil [de acessar]. Com ele, conseguimos implementar o projeto em quatro regiões diferentes, atingindo o maior número de jovens simultaneamente”, relembra Cai.

Com acesso ao financiamento, as ações do grupo expandiram: realizaram a publicação de dramaturgias, lançamento do podcast “Diversamente” e estruturação de uma biblioteca digital, mesmo o valor não sendo suficiente para garantir recurso fixo aos jovens e para manter a sustentabilidade de todas as atividades. Um exemplo é o livro digital Periferia Esperança, que reúne a peça criada por jovens do Projeto 1ª CENA, da Usina dos Atos. A publicação funciona como registro e divulgação da dramaturgia periférica.

O FUMCAD é um fundo municipal voltado a projetos sociais que atendam especificamente crianças e adolescentes, com recursos destinados por pessoas físicas e jurídicas via imposto de renda e gestão do conselho municipal. Diferente da Rouanet, que é uma lei federal de incentivo à cultura e permite que empresas e pessoas físicas apoiem diretamente projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura, com foco na produção e difusão artística.

O coletivo já escreveu para ambos, mas não obteve aprovação nas etapas finais da Rouanet. “O Primeira Cena foi aprovado pelo Ministério da Cultura, via Lei Rouanet, mas travou justamente na etapa de captação do recurso, o que mostra que, de fato, o [dinheiro] não chega para nós, na periferia. O projeto é de cerca de 2 milhões de reais, um recurso bastante significativo, só que não conseguimos atrair empresas para apoiar. Quando chega nesta etapa, e inclusive ainda está apto para captar e temos tentado articular, não avançamos”, diz. 

“Isso tem tudo a ver com o fato de ser um projeto periférico, de não ter a visibilidade de artistas conhecidos ou de alguma instituição com nome mais forte e reconhecido”. Cai Teixeira, articuladora cultural e uma das mobilizadoras

Desigualdades no acesso à incentivos culturais

Maior concentração de recursos voltados à cultura no centro de São Paulo. É isso que os dados da pesquisa realizada pela Associação Cultural, Recreativa e Esportiva Bloco do Beco e o Observatório Ibira 30 mostram. O material traz um mapeamento sobre a distribuição dos recursos captados pela Lei Rouanet – mecanismo federal de incentivo cultural via renúncia fiscal, na cidade de São Paulo, entre 2014 e 2023, criado em parceria com a Fundação ABH e com a Universidade Federal do ABC (UFABC).

Entre os indicadores que evidenciam os padrões estruturais do financiamento cultural, é possível identificar que 88,86% dos recursos foram captados por projetos de regiões centrais da cidade de São Paulo, que abrigam 17% da população. Já nas periferias, onde vivem mais da metade dos paulistanos, foi distribuído 1,38% do total de recursos.

Segundo o estudo, projetos periféricos sofrem disparidades desde a submissão das propostas até a aprovação e captação de recursos, o que se relaciona com barreiras técnicas e institucionais. Ou seja, a lei existe, mas praticamente não chega. Quando chega, não é na sua totalidade.

Marcelo Zarzuela, um dos pesquisadores do Ibira 30, aponta que as leis de incentivo, em especial a Rouanet, precisam ser repensadas para incluir quem está fora do radar e promover soluções protagonizadas pelos territórios. “De fato, existe uma desigualdade imensa. A gente imaginava que ela estaria mais centro-periferia, mas não esperávamos que fosse tão grande. Essa concentração acontece em regiões específicas, como o chamado ‘corredor da cultura’, onde estão localizados os grandes centros culturais que ditam muito do que é cultura em São Paulo”, afirma ao citar sobre áreas periféricas que recebem 1,38% de todo o recurso, mesmo representando 50% da população da cidade. 

O pesquisador destaca que apesar do recurso ser público, quem decide para onde vai o dinheiro são as empresas. Em razão dessa estrutura, os equipamentos de maior porte não apenas são os maiores da cidade em termos de visibilidade, mas também os mais articulados com as empresas incentivadoras neste processo.

“Se a empresa decide para onde vai o dinheiro e esses equipamentos conseguem dar mais qualidade para contrapartida do que uma organização de periferia, com certeza o recurso será alocado lá, pois as empresas também trabalham com essa perspectiva da visibilidade [dos seus negócios]”, explica Marcelo sobre o processo que reforça os ciclos de exclusão cultural.

“Não se pode pensar que uma lei existe para reproduzir as mesmas desigualdades que a gente enxerga na cidade. Essa [Rouanet] é uma lei que está reproduzindo, historicamente, as mesmas desigualdades que a gente tem e já conhece”. Marcelo Zarzuela, pesquisador e um dos coordenadores da pesquisa desenvolvida pelo Ibira 30.

O pesquisador aponta que, a partir do cruzamento de dados, identificaram os locais de concentração do recurso. “Percebemos que as coisas se casam: domicílio em situação de precariedade é onde não se capta Rouanet. Educação de mais qualidade é onde se capta mais”.

Fatores raciais cruzam com marcadores socioeconômicos. Bairros periféricos identificados com alto índice de pobreza e infraestrutura precária, como Cidade Tiradentes, São Mateus e Jardim Ângela, concentram a maior parte das favelas, enquanto distritos centrais recebem a maior parte dos recursos. No Jardim Ângela, 53,3% das residências são favelas; em Moema, 0%. Pinheiros (IDH 0,942) captou R$ 1,2 bilhão, enquanto Parelheiros (IDH 0,680) não teve projetos aprovados.

A pesquisa aponta a divisão da cidade de São Paulo que está organizada em 96 distritos, distribuídos em 32 subprefeituras. São mais de 11 milhões de habitantes e cerca de 570 mil (média de 5%) vivem na região do M’Boi Mirim, território em que a pesquisa se aprofunda, que inclui os distritos Jardim São Luís e Jardim Ângela. 

A região do M’Boi Mirim, registrou 10 projetos que captaram recursos na última década, sendo 0,02% do total da cidade. Capão Redondo e Campo Limpo, que abrigam 9,39% da população, representam menos de 1% do montante arrecadado, com 35 projetos que captaram.

A concentração de recursos se dá principalmente em um raio de 5 km ao redor do centro expandido de São Paulo, o que representa 98% do total investido, com destaque para Pinheiros, que entre 2014 a 2023, responde por 20,36% de toda a captação municipal. 

A Lei de Fomento à Cultura da Periferia, resultado da luta dos movimentos culturais periféricos, busca um modelo oposto: 70% dos recursos devem ser alocados à Área 3 (regiões periféricas com alta vulnerabilidade social e domicílios com baixa renda); 23% à Área 2 (regiões intermediárias em termos de domicílios de baixa renda) e 7% às Áreas 1 e 4 (centro e demais regiões com menor vulnerabilidade), com redistribuição conforme vulnerabilidade social.

Na prática, em São Paulo, existem territórios que recebem maior apoio estatal. Exemplos de grandes proponentes na Rouanet incluem: MASP – Museu de Arte de São Paulo (R$ 235,7 mi), Fundação OSESP (R$ 190,7 mi), Fundação de Apoio à USP (R$ 176,5 mi), Fundação Bienal (R$ 154,2 mi), Museu de Arte Moderna de São Paulo (R$ 113,4 mi), todos localizados na área 1. 

Após aprovação, os projetos entram na fase de captação de recursos privados, etapa que depende da mobilização do proponente. A efetivação do recurso favorece quem tem redes consolidadas e conhecimento dos circuitos culturais. Mesmo São Paulo, que lidera nacionalmente em captação, apresenta grandes desigualdades territoriais. O Mapa da Desigualdade mostra que viver em certos distritos impacta diretamente o acesso a direitos básicos e serviços públicos.

Marcelo ressalta que muitas pessoas nas periferias deixaram de escrever projetos para a Lei Rouanet, pois até tiveram ações aprovadas, mas sem captação, isso pela dificuldade de ter acesso a um portfólio de empresas. 

“Um passo importante é uma coalizão pensando em ajudar a mobilizar as organizações periféricas a voltarem a escrever projetos para a Lei Rouanet”, sugere. Outro fator que o pesquisador coloca é que, a desigualdade constatada através da pesquisa, também tem relação com o que é considerado ou não cultura. 

Cai, da Usina dos Atos, afirma que existe uma tendência de enxergar arte apenas como grandes shows e eventos, o que apaga outras linguagens. Para ela, é necessário políticas públicas que incluam todas as formas de expressão artística, especialmente aquelas produzidas nas periferias. “Apesar de ser importante, a Lei Rouanet é muito excludente. Para muitas pessoas, ela parece tão complexa que nem tentam enviar projetos”. 

“O poder público, especialmente as prefeituras que deveriam investir mais em ações formativas voltadas para os artistas e coletivos, oferecendo espaços para que eles aprendam a elaborar projetos e entendam os processos necessários. Em paralelo, [as organizações] têm um papel fundamental neste processo, apoiando artistas e coletivos a se desenvolverem na arte e na cultura”, avalia a articuladora cultural.

Ela aponta que o movimento e agentes culturais periféricos se organizam em busca de políticas públicas que têm sofrido cortes, atrasos e descontinuidades.“Em paralelo, não deixamos de produzir nossa arte e cultura. Continuamos fazendo e existindo, muitas vezes com recursos próprios, juntando um pouco daqui, um pouco dali, ou mesmo sem edital, resistindo e promovendo transformação nas periferias, a partir daquilo em que acreditamos”. 

“No sentido financeiro ainda é difícil, porque as pessoas merecem receber pelo trabalho que realizam. Mas, felizmente, resistimos. Continuamos produzindo, fazendo arte, transformando, educando pessoas, construindo [novos olhares] e exercendo incidência política-cultural”, finaliza.

IA, plataformização e automação: O impacto colonial nas periferias 

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Oprê! Salve amigles, faz tempo, né? Estou aqui para tentar arranhar (ou manchar) as certezas do progresso, deixando aqui as minhas dúvidas de pobre preto e periférico. Trago aqui um tema grande, que eu não ouso esgotar, e para o qual quero olhar a partir de uma perspectiva cultural contra-colonial. 

Eu sou um usuário ativo de tecnologia, mas preciso escrever que o que eu vejo crescendo por aí é roubo colonial travestido de novidade. Na prática, há uma sofisticação do capitalismo para a tragédia de uma maioria pobre e não-branca das periferias do mundo. 

O que segue nos parágrafos seguintes pode parecer uma grande salada de confusão, e é isso mesmo. Estou confuso também. Talvez eu seja mais uma vítima da infodemia na rede mundial de internet.

Acho interessante descrever como me ocorreu escrever isso aqui. Eu estava no mercado, depois de correr pela quebrada e fazer meus exercícios. Fui comprar umas paradas para fazer uma canjica, adoro comer canjica no frio. Chegando no caixa do mercado para pagar, vejo que no local onde na semana anterior haviam cerca de oito funcionárias, tinham só duas. O restante dos espaços foram preenchidos por máquinas de autoatendimento. 

Bem, quem já me leu por aqui já deve saber, mas não custa lembrar: eu sou socialista, pan-afrikano, preto e periférico. 

De cara me ocorreu perguntar para algumas funcionárias, enquanto apontava para as máquinas: “Você não tem medo de perder seu trampo por causa disso não?”. As respostas me deixaram um tanto preocupado. Uma disse: “Para quem quer ser mandada embora isso é ótimo!”. Outra justificou: “Tem muita gente que falta bastante, daí o mercado resolveu testar”. Uma outra ainda afirmou: “Não tem volta. É o futuro”. 

As falas e a atmosfera meio que ecoaram algo que a gente vive ouvindo por aí: “Não dá para voltar para trás”, “não se pode evitar o futuro”, “é a inovação”, “é preciso otimizar o trabalho” e outros blá blá blá, que diga-se aqui são discursos derivados de propagandas que não foram criadas por pessoas pobres e periféricas do Sul Global. 

Essas são pseudo-verdades repetidas para vender na nossa sociedade que esse é o ÚNICO progresso possível. Essa propaganda é gringa, burguesa e brankkka – geralmente bilionária.

Voltei para casa e me peguei lembrando da Tereza, minha professora de História e da Sigrid, minha professora de Geografia. Lembro que as duas me influenciaram MUITO a ler um livro que foi importante na minha formação como pessoa: A invasão cultural Norte-Americana, de Júlia Falivene Alves. 

Um livro que detalha como a cultura estadunidense era nos anos 90, vendida como se fosse um avanço, a modernidade, e como essa venda de ideal era uma armadilha para nos colonizar culturalmente. 

E porque lembro desse livro? Acho que mesmo estando agora numa era de hiperinformação, temos pouco incentivo a optar por uma contranarrativa de defesa efetiva contra uma visão colonial. Nisso temos sido influenciades, cada vez mais, pelo pensamento estadunidense, colonial, que tende a vender que tudo que vem de fora é melhor. Não considerando a realidade local e nossas diferentes necessidades ou potencialidades em nosso território. 

Este livro citado, foi escrito no contexto da guerra fria dos anos 90, período em que Estados Unidos e Rússia disputavam a hegemonia bélica no mundo. Esse livro era uma das contra narrativas possíveis naquele tempo. Uma das que tive acesso nos anos 90. 

Hoje a disputa global é outra e tem novos protagonistas. Além de poder militar, as maiores potências disputam poder de influência cultural e algo ainda mais valioso: o acesso aos nossos dados nas redes. 

Voltando do mercado, pensava alto: Onde essas pessoas irão trabalhar? Como irão comer? Quais contra narrativas possíveis hoje? Spoiler: não tenho todas as respostas e você pode colaborar comentando esse texto. Agradeço!

Ao meu ver há dois sensos comuns no “Brasil” (sempre entre aspas), que nos deixam muito vulneráveis a influências externas. A primeira, é a Lei de Gerson, uma forma de agir tirando vantagem de tudo, que foi incutida na mente do povo “brasileiro” através da publicidade de uma marca de cigarros lá na década de 70. Essa forma de pensar, fez e faz com que muitas pessoas no “Brasil” queiram até hoje tirar o máximo de vantagens das situações do cotidiano, mesmo que isso seja desonesto, ou no fim, prejudicial à coletividade. 

Outro senso comum da “brasilidade” é o do complexo de “vira-lata”, que é o rebaixamento das pessoas daqui ao acharem que as melhores soluções tecnológicas vêm de fora do país, geralmente da Europa ou dos Estados Unidos. Partindo dessa lógica de rebaixamento, o que vem de fora é sempre melhor, superior, mais tecnológico, sendo um progresso “inevitável” e “desejável”, ainda mais num mundo globalizado como é hoje. 

Esses dois sensos comuns têm sido articulados pela extrema direita sobre as cabeças dos povos do chamado “terceiro mundo” (nós), e infelizmente essas duas visões de mundo são comuns e são difundidas e impulsionadas na mídia e nas redes sociais todos os dias.

Minha tese aqui é que essas duas paradas se articulam muito na cultural local do Brasil atual numa intensidade tanta, que mesmo entre as pessoas diretamente prejudicadas, há quem enxergue uma falsa praticidade na automação, na plataformização e nessa modernização desenfreada. Como se esses fenômenos fossem conjuntamente o anúncio de um único futuro possível, mesmo que, para isso, estejam perdendo empregos e entregando todos seus dados digitais aos países ricos do globo. 

Cedemos diariamente dados nas redes sociais, nos métodos de pagamento, nos streamings de vídeo, em todos cadastros feitos na internet, quando usamos ferramentas de inteligência artificial. 

Essa tem sido uma forma cotidiana das pessoas das periferias do mundo serem colonizadas, roubadas e extorquidas novamente, só que a distância, via internet banda larga e pagando por isso – logo, pagando duas vezes. 

Afinal, pensem comigo: Quem são as detentoras das tecnologias de automação e plataformas digitais e seus respectivos bancos de dados? São grandes empresas, geralmente do Norte global, que fazem a gestão dos bancos de dados e de toda informação que transita nesses serviços de pagamento automatizado e nos apps que usamos diariamente sem pensar nos efeitos colaterais coletivos. 

Deixo dúvidas aqui: Para que e a quem servem esses acúmulos de dados? Quem tem hegemonia sobre eles? Quem afinal lucra? São muitas perguntas e respostas possíveis, mas o dinheiro, no final, vai para fora do nosso país. Por fim, a “vantagem” é de quem coloniza. Sempre. A globalização faz e fez bem às chamadas “potências mundiais”, não a nós que somos parte da periferia do mundo. 

Dado importante, as principais empresas de banco de dados no Brasil atuam com tecnologias da Oracle (EUA), Microsoft (EUA) e MySQL (vendida à Oracle em 2010). No caso das redes sociais, a META lidera (também dos EUA e responsável pelo Instagram e WhatsApp). 

Resumo: fomos colônia de Portugal na nossa “fundação” e atualmente somos colônia digital dos Estados Unidos. Por isso a resistência da extrema direita mundial a regulamentação das redes sociais e internet. 

A digitalização de vários aspectos da vida cotidiana, que foi alardeada nos anos 2000 como sendo liberdade e modernidade, hoje visa apenas o lucro bilionário de poucos e a exploração de bilhões de pessoas. Sobretudo pessoas que vivem nas periferias do mundo, pessoas que não tem acesso a alta-tecnologia sendo agentes ativos e conscientes, mas sim sendo fonte, cobaia de experimentos sociais complexos que produzem escassez de trabalhos, solidão e uma crescente onda de problemas na saúde mental coletiva. 

Essa extrema digitalização não gera prosperidade, segue portanto projetando um cenário de crise no senso de coletividade e por isso vem causando diminuição crítica da capacidade de articulação coletiva. 

Pense, por exemplo, em como ficamos presos sozinhes em timelines infinitas e em como os algoritmos nos manipulam para cairmos em eternas propagandas de produtos inúteis ou de cursos fúteis e de baixa profundidade. 

Outro dado importante: o Brasil é o terceiro maior em acesso a redes sociais no mundo. Pense bem, esse não é um método cruel de desarticulação dos pobres e oprimidos de sempre, nós? 

Não é à toa que as lideranças das grandes empresas de tecnologia estadunidenses, as chamadas big techs, estavam e estão ao lado do presidente imperialista Donald Trump. Não à toa também que a maioria desses líderes são homens brankkkos bilionários. 

Se no contexto da guerra fria (anos 90), a briga entre Estados Unidos e Rússia era pela hegemonia global baseada em poderio cultural e militar, hoje, Estados Unidos e China disputam a hegemonia sobre matérias-primas minerais, essenciais para produtos tecnológicos, e uma hegemonia cultural e digital. Essa disputa chega nos fundões da periferia diariamente, através das redes sociais, aplicativos, serviços digitais e também das novas inteligências artificiais generativas.

Lembre por aí, nos últimos meses, quantas foram as tecnologias de inteligência artificial sendo divulgadas nas suas redes sociais, em links patrocinados ou em vídeos virais, como forma de tornar esse “futuro” mais atraente para você. Do filtro para transformar suas fotos em desenho animado, passando por vídeos gerados por IA, chegando até a criação de músicas e memes diversos. 

As grandes empresas de tecnologia dos bilionários, lembrando, geralmente ricos e brankkkos, cedem acessos “gratuitos” para que cada vez mais corpas e mentes sejam seduzidas pela “facilidade e praticidade”. Enquanto cedemos gentilmente nossos dados, informações sensíveis, direitos intelectuais e o mais importante, enquanto nos tornamos pessoas seduzidas a não pensar coletivamente sobre a importância da regulamentação para proteger empregos e proteger nossas mentes da fragilidade crescente em estarmos nos tornando pessoas cada vez menos capazes de conseguir construir relações humanas saudáveis presencialmente.

É importante lembrar que as relações humanas, geram, há milênios, a construção de habilidades sociais e culturais essenciais para a vida em sociedade e para resistência a sistemas autoritários.

Essa automação desenfreada, a inteligência artificial e a plataformização digital reproduz desigualdades seculares, rouba propriedades intelectuais, acelera a crise climática e não tem feito a classe trabalhadora e pobre trabalhar menos. Pelo contrário, a automação e a inteligência artificial tem diminuído, e muito, a renda das famílias periféricas. Tem gerado insegurança para o futuro de jovens, que muitas vezes não se vêem motivades a aprofundar estudos em áreas de atuação que são ameaçadas constantemente pela substituição digital que dizem que “vem por aí” e que “não tem volta”. 

Essa semana você já deve ter recebido um vídeo qualquer sobre como aprender a nova forma de trabalho revolucionária, que vai te fazer enriquecer ser sair de casa e sem ter que conviver com pessoas. Lembra? 

Pode parecer teoria da conspiração, mas é uma triste realidade. Vários dos bilionários americanos acreditam no transhumanismo, conceito para o qual o humano está em processo de superação do humano atual, para o alcance de uma transcendência, uma superação da criação de Deus através da tecnologia criada por bilionários. 

Ellon Musk, CEO da Tesla, é um dos que crêem nessa teoria. Essa “transcendência” idealizada por esses bilionários, segue a preceitos coloniais e eugenistas e por isso corpas racializadas, mulheres, povos originários são e serão descartados como a branquitude tanto tentou no século 18 e 19. 

Não à toa a grande briga dos países poderosos como os Estados Unidos é combater a regulamentação de ferramentas digitais. Esses “nobres senhores” trabalham para acabar com a soberania dos territórios periféricos por dentro, via influência através das redes e das “novas tecnologias”. Nessa era do capitalismo, é preciso haver regulação e, além disso, precisamos ter soberania de dados, ou seja, nossos próprios bancos de dados nacionais.

É algo um tanto quanto macabro. Procure por aí no Google como a mais avançada inteligência artificial, o GROK, de Elon Musk, classificou Hitler e o nazismo e se preocupe aqui junto comigo se for possível. Em notícia recente, o GROK fez apologias diretas ao nazismo e a supremacia brankkka

As inteligências artificiais mais avançadas e as grandes empresas de tecnologia tem donos que não estão pensando em ninguém além deles mesmos, no lucro e acúmulo de dinheiro, informação privilegiada e controle comportamental. 

Vale a pena pensarmos coletivamente sobre o uso moderado e ético da IA, problematizar a automação desenfreada e pensar em como governos e sociedades de países do Sul Global precisarão se debruçar com cuidado sobre a criação de bancos de dados soberanos, proteção de dados e de empregos. Legislações diversas que podem ser articuladas para proteger as novas gerações de uma pandemia de desigualdade social, de agravamento da violência e de reprodução generalizada e normalizada de opressões históricas, como racismo, xenofobia, machismo, lgbtqiapn+fobia, capacitismo, etc.

Importante que você saiba, que segundo matéria recente da TAB UOL, atualmente, no “Brasil”, mais de 12 milhões de pessoas têm usado a inteligência artificial para apoio psicológico. Ou seja, o que pode estar acontecendo é que uma pessoa que passa por diversos problemas pessoais e sociais, agravados pela solidão e pelo uso impensado de redes sociais, chega a recorrer por ferramentas digitais que podem e provavelmente vão piorar sua condição, enquanto privam essa pessoa de qualquer convívio saudável com pessoas de carne e osso. 

Em suma: eles vendem o problema e a “solução”. Isso não é teoria ou conspiração. Isso já está acontecendo.

Como eu disse no início desse texto, não tenho a pretensão de esgotar esse assunto, mas escrevo para me indignar e ressaltar a urgência de regulamentação das redes sociais. A urgência de dialogarmos sobre uso responsável, para que possamos refletir sobre como o capitalismo atual vem nos privando de direitos básicos como a convivência saudável, emprego e saúde mental. 

O campo da esquerda e do progressismo “brasileiro” não vem discutindo isso de forma ampla ou aprofundada. Muitas das lideranças inclusive caem no discurso fácil do “futuro inevitável”. 

A falsa praticidade aponta para algo mais complexo e profundo. Aponta para um capitalismo que quer te privar de ter casa, água, saúde mental, privacidade de dados e que quer te privar de uma real autonomia para fazer suas decisões, sejam de compra e de vida. 

Quando você for usar uma ferramenta de inteligência artificial, quando for usar da facilidade da automação ou quando for pedir algo pelo aplicativo, lembre que grande parte dessas tecnologias são, na verdade, velhas ferramentas coloniais que visam gerar lucro, exploração e o acúmulo de dinheiro na mão de poucas pessoas endinheiradas e encasteladas em ar condicionado. Provavelmente pessoas de fora do seu território mãe. Isso é colonialismo digital

Estamos em guerra. Precisamos pensar e agir sobre essa trincheira! Sua filha, sua sobrinha e seus descendentes diretos terão empregos e direitos garantidos se seguirmos teclando e cedendo nossos dados sem pensar?   

Saravá as mudanças!

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.


Oyá (Iansã) e Xangô: Orixás da transformação e força

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Nesta sessão, trago reflexões a partir do olhar ancestral que temos cultivado por aqui. Seguimos sendo surpreendidos por mudanças de rota, por caminhos que se desfazem e se refazem diante de nós. Tenho compartilhado minha visão sobre as forças que nos atravessam e nos convocam a novos desafios.

Como as águas, precisamos aprender a fluir, entregando-nos ao movimento, para então compreender o poder do fogo, que queima, transforma e nos empurra para grandes mudanças.

Hoje, convido à reflexão sobre o poder das divindades Oyá (Iansã) e Xangô.

Quem nunca se angustiou diante de um relâmpago cortando o céu, anunciando uma tempestade por meio de estrondosos trovões?

Diante de tamanha força, só nos resta reconhecer a grandiosidade do que nos transcende. Essas manifestações anunciam que algo será transformado, a vida como a conhecemos pode ser desfeita num sopro, e não temos controle sobre isso. Resta-nos apenas a consciência de nossa pequenez diante da força sagrada.

Quando criança, eu temia as tempestades. Queria me esconder, e o fazia: fechava os olhos e me cobria com o que acreditava ser proteção. Na inocência, pensava estar segura, quando, na verdade, apenas me refugiava no imaginário de uma segurança que não existia.

Na vida adulta, já sabemos que não há como se esconder das tempestades que a existência nos impõe. Somos chamados a encarar os ventos, os raios, a destruição e a transformação.

Não somos mais crianças, e fingir que tudo está sob controle é ilusão. Precisamos entender que não dominamos tudo. A vida exige entrega, fé, coragem e confiança na força dessas energias ancestrais que nos guiam.

As grandes mudanças, muitas vezes, vêm com dor. Quando a justiça não é ouvida, quando o entendimento nos escapa, quando tudo parece ruir, talvez não caiba buscar respostas imediatas, mas sim cultivar coragem para recomeçar, resiliência para reconstruir e sabedoria para seguir.

As tempestades, físicas ou simbólicas, sempre trazem um chamado: olhar para os erros, aprender com eles e seguir com mais equilíbrio e consciência.

Os ensinamentos que vêm da destruição e da reconstrução são regidos por forças que assustam, mas que também amam profundamente. O amor e a justiça de Oyá e Xangô, que regem o mês de julho, nos ensinam que há proteção, mesmo no caos. Que há amor, mesmo na dor. Que há justiça, mesmo quando tudo parece injusto.

Eparrey, Oyá! Kaô Kabecilê, Xangô!

Que nunca nos esqueçamos de que temos com quem contar, mesmo nos momentos mais difíceis. Sigo confiando no amor e na sabedoria de adulta, com o coração de uma criança.

Essa mesma força que parece destruir também é a que media as ações humanas e fortalece nossos passos. A analogia da tempestade nos ajuda a compreender os sinais da Terra, ventos, trovões e enchentes revelam não apenas as mudanças em nossas vidas, mas também as consequências de como tratamos o planeta. E sabemos: são sempre os mais vulneráveis que sofrem primeiro.

Na infância, escondíamo-nos sob os lençóis; na vida adulta, aprendemos ser preciso coragem. Coragem para olhar para dentro, descobrir a própria força e mudar de rota quando o caminho já não nos serve mais. Muitas vezes, somos perseguidos não pelos nossos erros, mas por nossa verdade, por aquilo que não está à venda, que resiste.

Xangô e Oyá cuidam dos seus. Protegem, mas também ensinam. Nos chamam à escuta, ao planejamento, à consciência espiritual e material. Nos convidam a desenvolver autoconfiança e a lutar por justiça, a nossa e a do mundo. Mas tudo isso só é possível quando nos abrimos para sentir, compreender e agir em alinhamento com essas forças.

Por fim, deixo mais uma imagem: a da tempestade que nos dilacera, mas também nos cura. Quando sentimos que tudo está desmoronando, é preciso lembrar que os trovões anunciam movimento. Que os relâmpagos revelam o que estava oculto. E que, após a tempestade, há sempre a possibilidade da bonança. Que venha o novo. Que venha a paz. Que venha a transformação.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

“A feira fez de mim uma pessoa melhor”: trabalhadores falam sobre feiras livres como espaço de geração de renda e coletividade

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Seja uma parada para comer aquele pastel com caldo de cana ou para comprar as frutas e legumes da semana, a feira livre é um ponto de encontro para muitos moradores das quebradas. Presente em diversos territórios, manter esse funcionamento depende de muitos trabalhadores que acordam cedo para abrir suas barracas e garantir a chegada de alimentos em diferentes casas. Atualmente são mais de 1 mil feiras espalhadas só na capital, o que soma mais de 70 mil empregos diretos, de acordo com a Secretaria Municipal das Subprefeituras.

Continuidade de um ciclo familiar, a primeira oportunidade de trabalho, o gosto por trabalhar com pessoas, por necessidade ou por escolha. São várias as histórias e motivações dos feirantes que percorrem a cidade com suas caixas de alimentos.

No Dia do Feirante, comemorado em 25 de agosto, trabalhadores destacam os laços criados através das feiras livres, além da geração de renda, que foi mudando ao longo dos anos. Mais atratividade e segurança nas ruas são citadas como fundamentais para que possam continuar atuando. 

Feirante desde os 13 anos, Charles Alves, 43, morador do bairro Jardim Mituzi, trabalha em Taboão da Serra, Região Metropolitana de São Paulo, e conta que a troca com as pessoas é uma experiência contínua de aprendizado e conhecimento. 

“Eu amo essa profissão. Já tentei sair, mas não consigo, me apeguei. Meu filho de 15 anos também trabalha na feira e ele gosta. Meu ex-patrão, que já faleceu, foi sempre muito importante [na minha trajetória]. Foi ele quem me ensinou tudo que sei hoje. Ver meu filho na mesma profissão me traz o sentimento de que estou ensinando a ele o caminho certo”. Charles Alves, trabalha na feira livre do Jardim Mituzi, em Taboão da Serra, São Paulo.

Paulo Shigeru, 42, morador de Taboão da Serra, conta que começou a trabalhar nas feiras de Garça, no interior de São Paulo, quando era mais jovem. Sua família foi uma das primeiras a inaugurar as feiras populares da região. “A gente começou com alguns vendendo frutas, verduras e outros pastéis, mas praticamente toda minha família é de feirante”, compartilha. 

“Na feira sentimos liberdade para trabalhar e lidar com as pessoas. Nossa energia faz toda a diferença na venda. Se chegar cabisbaixo é difícil de vender. Quando possível, é legal também dar um desconto, abaixando um ou dois reais. Tudo isso aproxima a gente dos nossos clientes.” Paulo Shigeru, 42, trabalha na feira livre do Jardim Mituzi, em Taboão da Serra, São Paulo.

Paulo conta que os preços dos alimentos variam dependendo do local. Na feira em que trabalha toda quarta e domingo, tem pessoas que saem de outras regiões até Taboão, por conta do valor. “Sei de duas moças que moram no Morumbi e se deslocam para cá só para comprar porque por lá os preços são bem mais altos. Aqui temos essa pegada de ser algo mais popular”.

“O mercado é muito relativo. Hoje a concorrência é grande, tem mercado, sacolão, até delivery de frutas e verduras. Sinto que é importante abrir espaço para outras oportunidades, diversificando o trabalho e por isso também faço entregas, pensando justamente em uma atuação diversificada, só que isso sem perder a essência [da rua]”. Paulo Shigeru, 42, trabalha na feira livre do Jardim Mituzi, em Taboão da Serra, São Paulo. 

No Jardim São Carlos, distrito de Guaianases, zona leste de São Paulo, a feirante Letícia Batista, que é moradora de Itaim Paulista, trabalha na área há mais de 20 anos e, para ela, um dos pontos de melhoria para os trabalhadores das feiras é com relação à segurança.


“Minha família inteira trabalha na feira, desde os pequenos até os mais velhos. Isso vem desde o ventre mesmo. Fora que os amigos que a gente faz aqui também acabam se tornando família”. Letícia Batista, trabalha na feira do Jardim São Carlos, na zona leste de São Paulo. 

Letícia Batista, vende legumes variados na feira do Jardim São Carlos, zona leste de São Paulo. Foto: João Santos/Desenrola.

Anitta Dourado, 51, feirante no Jardim São Carlos, reforça os desafios atuais. 

“Espero que o cenário melhore, que as coisas abaixem o preço pra gente poder voltar à movimentação que tinha antes. Antes era tão cheio que quase não tinha espaço [para circular]. Não é fácil, a gente pega chuva, pega sol, mas seguimos na luta”. Anitta Dourado, 51, é responsável pela barraca de ovos na feira de Jardim São Carlos.

Também na feira do Jardim São Carlos, a pasteleira Fabia José, 47, fala sobre as dificuldades de garantir qualidade ao consumidor e a diferença de lucro em comparação com alguns anos atrás. 

“A feira já não tem o mesmo rendimento de antes, principalmente depois da pandemia [da covid-19] e com a concorrência dos hortifrutis nos mercados. Ainda assim, eu amo o que faço. A gente passa mais tempo com o pessoal da feira do que com nossa família, criamos laços de carinho no dia a dia”. Fábia José, 47, pasteleira na feira de Jardim São Carlos, zona leste de São Paulo.

Junto dela trabalha Joyce Karin que, orgulhosa, compartilha o que aprendeu na rua.“Hoje sei tratar melhor as pessoas, ouvir, acolher. Tenho um carinho enorme pela comunidade que está sempre presente, chegando para conversar e comer um pastel com caldo de cana”, diz.

“Eu até poderia ter seguido outro caminho, arrumar um serviço diferente, porque concluí os meus estudos, mas escolho estar aqui. A feira me transformou, me ensinou a ser uma pessoa melhor. Eu era muito ignorante, fechada no meu jeito, e com o tempo aprendi a mudar, a crescer como ser humano”. Joyce Karin trabalha na barraca de pastel na feira do Jardim São Carlos, zona leste de São Paulo.

Cerca de 35km separam a feira do Jardim São Carlos, na zona Leste, do bairro Jardim Tiro ao Pombo, no distrito da Brasilândia, zona norte, local em que toda semana está Carlos Eduardo Bueno, 19, na barraca do morango.

“Tenho seis anos de feira, comecei [por influência da família] e desde então aprendi muita coisa. Comecei nas verduras, depois fui para os legumes e hoje estou nas frutas. Sempre tem mercadoria nova, sempre uma novidade. Sou muito grato, porque sem nossos clientes não somos nada”. Carlos Eduardo Bueno, 19, é morador do Jardim Guarani e trabalha na barraca de morango, no bairro Jardim Tiro ao Pombo, na Brasilândia, zona norte de São Paulo.

Coletividade, cooperação e pertencimento são falas e gestos comuns entre os trabalhadores das feiras e, aos fins de semana, espaço de distração para os moradores. É o que conta Gleice Kelly Rocha, que trabalha há 17 anos na feira.  

“Domingo, principalmente, é o dia de tomar aquele caldinho de cana e comer um pastelzinho. É o dia do povo. É o momento de se distrair. Apesar dos desafios do dia a dia [e de passar quase 24 horas juntos] a gente se entende e se respeita muito. Vamos revezando e sempre pensando em não deixar [a barraca] parar.” Gleice Kelly Rocha, moradora do bairro Casa Verde e dona de barraca de caldo de cana na feira do bairro Jardim Maria Luiza, no Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo.

“Não podemos continuar sendo colocados na esteira para morrer primeiro”: Lideranças defendem adaptação climática com pessoas e territórios no centro do debate

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O debate acerca das mudanças climáticas tem ganhado cada vez mais força nos espaços acadêmicos, políticos, sociais e culturais, mas ainda encontra resistência, sobretudo, por parte de países do Norte Global, que negam o reconhecimento da escalada da crise climática e sua responsabilidade histórica. 

A criação de uma agenda socioambiental com foco na atuação do Brasil e outros países da América Latina, foi um dos destaques do Fórum Movimentos Pela Regeneração – Em Direção à COP30, realizado entre os dias 07 a 10 de agosto, no Sesc Pinheiros. Através de debates, oficinas e vivências o público pôde refletir sobre a necessidade de conservação da biodiversidade por meio de processos regenerativos. 

Práticas educacionais, de sustentabilidade e artísticas foram centrais ao longo do Fórum, que promoveu encontros entre especialistas e lideranças, como Cristiane Takuá, Naine Terena, André Baniwa e Thaynah Gutierrez.

No Brasil, os impactos da crise climática variam conforme as características de cada bioma e atinge diretamente comunidades tradicionais, favelas, periferias e territórios urbanos de maneiras distintas. 

Mata Atlântica

A artesã, teórica decolonial, ativista, educadora e pesquisadora indígena, Cristiane Takuá, afirma que, historicamente, as comunidades tradicionais são as primeiras a sentir os efeitos da crise ambiental. “De modo geral, nós que somos povos da Mata Atlântica, tanto Maxakalí, Guarani, Krenak, temos sentido profundamente esse impacto há mais de 500 anos, ou seja, desde o início da colonização, quando a Mata Atlântica foi invadida”. 

Cristine é da etnia Maxakali e moradora da Terra Indígena Ribeirão Silveira, que fica entre Bertioga e São Sebastião, litoral norte de São Paulo, e conta que o desmatamento é outro fator que potencializa os impactos na Mata Atlântica. Apesar de compartilharem a tarefa de regulação e equilíbrio climático do bioma, os seres vegetais e animais frequentemente são esquecidos. “Ainda hoje sentimos isso de forma profunda no próprio território que nos cerca, nos rios soterrados, nas terras perfuradas pela mineração e pelo agronegócio que segue rompendo barreiras escancaradamente e sem pedir licença, porque dinheiro não pede licença, ele compra, ele paga”, coloca.

A educadora, que vive, pensa e produz a partir do seu território, valoriza os saberes ancestrais como tecnologias de mitigação e regeneração essenciais para o enfrentamento coletivo da crise. “No mundo de hoje, onde as inteligências artificiais imperam, tenho refletido muito sobre as inteligências naturais. Aquelas que nossos avós sempre dominaram. E é justamente por isso que venho questionando o modelo escolar tradicional [com suas limitações], já que o processo educativo atual é baseado em dados rígidos”, diz ao citar sobre o papel da educação no cenário ambiental. 

Ela destaca que é preciso resistir à escalada da degradação ambiental e que a luta por justiça climática é inseparável da luta pela garantia de vida que resta nos territórios e às comunidades. Nesse sentido, Cristiane é coordenadora da iniciativa Escolas Vivas, projeto que promove diálogos acerca dos saberes e práticas dos povos tradicionais, apoiando ações locais com o objetivo de, através da educação, fomentar essa conscientização. As escolas vivas têm servido como um importante instrumento de denúncia, mobilização e resistência contra o sistema hegemônico e colonizador. 

“Há muitos anos tenho me dedicado a isso e é muito triste assistir tanta destruição. [Inclusive], por conta das Escolas Vivas, caminho por territórios devastados pela mineração, onde não há mais rio limpo nem floresta de pé, e as crianças não podem viver em paz. Como podem homens de poder aprovar leis [como a PL da Devastação] que estupram o direito à vida? Isso é um estupro. Quando digo que o útero da Terra está ferido, é porque esse estupro vem de muitos anos”, afirma.

“Se nos reconectarmos com as tecnologias naturais, talvez o mundo tenha a possibilidade de se regenerar e de se reconstituir. Esperançar é um verbo que deve ser conjugado por todos, mas precisamos buscar a semeadura dentro das nossas palavras e dentro das nossas ações”. Cristiane Takuá, artesã, teórica decolonial, ativista, educadora e pesquisadora indígena. 

Ela enfatiza que a luta dos povos indígenas é para que todas as formas de vida possam coexistir em harmonia. “Não é uma luta apenas para nós, humanos”, e ressalta que as tecnologias naturais e ancestrais são as principais respostas às emergências climáticas. “São elas que podem contribuir para enfrentar o que vivemos hoje nesse mundo climático em chamas, porque conseguem acessar camadas mais profundas da sustentabilidade”.

Pantanal

Presente majoritariamente nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no Pantanal, o avanço do desmatamento tem aumentado rapidamente. A pesquisadora e ativista Naine Terena, aponta que o bioma possui características próprias. “Uma seca drástica no Pantanal muda totalmente os processos de plantio e colheita, assim como as queimadas no Cerrado, que impossibilitam que o solo também se regenere”.  

Naine Terena, pesquisadora e ativista.

A gestão das águas, o aterramento, a seca de rios e a poluição são afetados pelo avanço de empreendimentos que utilizam insumos agrícolas tóxicos, como aponta Naine. O empobrecimento do solo e a redução das chuvas também têm comprometido diretamente o ciclo do plantio. Nos estados da região, há forte influência do agronegócio, principal dificultador da luta pela preservação do bioma. Demarcação de terras, criação de leis e legislações, são formas institucionais para a preservação do território, cita Naine. 

O Estado do Mato Grosso do Sul, uns dos territórios tradicionais do povo Terena, depende do Aquífero Guarani, uma das principais reservas de água, cuja degradação ameaça o abastecimento e a sobrevivência das comunidades locais. Para frear esses impactos, a pesquisadora conta que o povo Terena pensa o Bem-Viver como um caminho de resistência e preservação. 

“Embora não possa falar por todo o povo Terena, pois as demandas são múltiplas, a participação ativa política e social, como do movimento de mulheres terenas, têm incidido sobre pautas fundamentais para o movimento indígena, buscando fortalecer o bem-viver e preservar os modos de vida tradicionais”. Naine Terena, arte-educadora, doutora em educação e professora.

Diversos grupos indígenas têm buscado representação direta nas articulações da COP 30, mas Naine conta que ainda precisam avançar para além das estruturas formais que já existem dentro da conferência. “[Somos] base do Conselho Terena e do grupo de mulheres terenas, seguindo orientações do movimento indígena para que a gente possa prospectar apoiadores e pensar em políticas públicas de fortalecimento, que sobretudo mantenham ritmos e fluxos de vida”, compartilha. 

Além da defesa dos modos de vida nos territórios, articulam diversas manifestações e movimentos de conscientização sobre o que é o agronegócio. “O estudo que vem sendo feito traz muitos embates contra as leis e todas as formas de proposições que tentam afrouxar a legislação ambiental do país, e é basicamente sobre isso que temos atuado, tanto juridicamente quanto pelas políticas públicas”, conta. 

Floresta Amazônica

Um dos indicadores das mudanças climáticas no bioma amazônico é a água, que de acordo com o professor, pesquisador e ativista André Baniwa, é fundamental para a manutenção da terra e continuidade das aldeias indígenas. A falta d’água facilita as queimadas da Amazônia e agrava a seca prolongada, que afeta diretamente quem vive e depende da floresta. 

Já o excesso de chuvas provoca alagamentos e destrói as roças, o que dificulta a manutenção do sistema alimentar. A seca extrema causa fome, tanto para as pessoas, quanto para os animais. “Antes, isso não acontecia. Períodos de floração, colheita e plantio também mudaram drasticamente. Até o horário de ir para a roça mudou: se antes era por volta das 8h ou 9h, agora é preciso começar às 5h da manhã, porque o calor fica insuportável até as 9h, e o trabalho só pode ser retomado no fim da tarde”, exemplifica.

“O sumiço da água no bioma faz a terra secar. A água é um ser, um espírito, e está fugindo. Ela reaparece nas chuvas, em abundância, como se dissesse: ‘Eu estou aqui, me perceba’. Isso aparece em várias mitologias e histórias de criação”. André Baniwa, professor, pesquisador e consultor em Medicinas Indígenas.

A situação traz ainda reflexos na saúde pública. André, que é consultor técnico da Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, diz que o impacto das mudanças climáticas afetam, primeiramente, a saúde mental dos povos indígenas, que precisam lidar com as incertezas do futuro. Doenças como HIV/Aids, tuberculose, malária, entre outras, são exemplos crescentes nos territórios indígenas da Amazônia. 

“A primeira coisa que afeta a vida das pessoas é o pensamento e o coração. Elas passam a se questionar: como é que vou viver dali para frente? Os jovens crescem ouvindo, desde a infância, que o mundo vai acabar. Dessa forma, como é que você se questiona sobre o objetivo de estar presente no mundo? Como ter coragem de casar, ter filhos, pensar no futuro?”, questiona o pesquisador.

Na cultura do povo Baniwa, o Bem Viver é uma prática que envolve ações na convivência com amigos, família e comunidade. Diferente do termo Bem-Estar, antes usado com cautela por pressões externas, a ideia de Bem Viver é adotado por 123 povos indígenas do Rio Negro e por todo o Brasil como um conceito essencial de vida. Para os Baniwa, esse entendimento deve influenciar na formulação de políticas públicas.

André destaca que, na contramão da lógica da crise climática, os Baniwa constroem ações sustentáveis, tendo como ponto de partida a valorização das relações, por meio da oralidade e da vida em comunidade. 

Segundo ele, as práticas refletem no cuidado com a terra, no uso equilibrado dos recursos e no fortalecimento comunitário. “Para nós, povo Baniwa, o Bem Viver e o cuidado com a natureza começam a partir da reflexão, seja pela oralidade diária, pelas trocas com a família, com os amigos e com a comunidade, para que possamos nos realizar bem. É nosso conceito próprio de vida”, compartilha.

Acúmulo de desigualdades

Entender a adaptação climática como caminho para proteger os territórios passa pelo reconhecimento das desigualdades acumulativas, é o que afirma a pesquisadora, ativista e ambientalista Thaynah Gutierrez. Nesse sentido, adaptação climática é uma forma de tratar dessas desigualdades que deixam certas populações mais vulneráveis. 

“Por muito tempo a agenda priorizou a mitigação, que controla as emissões de gases que elevam a temperatura. Mas como não foi possível evitar o aumento, tornou-se urgente a adaptação para evitar mortes nos extremos climáticos”, pontua a pesquisadora.

Ela coloca que o impacto climático nas periferias e quilombos urbanos surge como uma cadeia de devastação ambiental. Áreas preservadas, que equilibram o clima, quando afetadas por grandes projetos, criam um efeito dominó que atinge os mais vulneráveis. “Periferias não recebem diretamente os projetos, mas sofrem seus impactos indiretos que aumentam a vulnerabilidade a desastres”, destaca. 

A participação em espaços de debate e negociações climáticas é um passo importante, mas Thaynah afirma que a presença dos grupos mais afetados ainda é limitada por barreiras diplomáticas, como o idioma. “Na pré-conferência que aconteceu em Bonn, na Alemanha, pela primeira vez, conseguimos inserir as populações afrodescendentes em dois textos de negociação, graças à articulação do movimento negro brasileiro. Isso também reforça o reconhecimento das periferias, onde vive a maior parte da população negra urbana do país”, analisa.

“Quem é preto, pobre e marginalizado não pode continuar sendo colocado na esteira para morrer primeiro. É preciso cobrar dos governadores respostas que não [sejam só] emergenciais, mas obrigatórias diante do avanço climático” – Thaynah Gutierrez, administradora pública, ativista ambiental e pesquisadora sobre periferias e justiça climática.

Thaynah destaca que a questão prioritária para a população preta e periférica segue sendo a regularização fundiária. “O que a população mais sofre nas periferias são as ilhas de calor, porque vivemos mal em cômodos de 20, 30 metros quadrados, com 5, 6 pessoas, em infraestruturas precárias, em espaços que não foram feitos para moradia, mas que as pessoas ocuparam por necessidade do direito de morar”, aponta. 

Em cidades como São Paulo, as periferias estão sendo abertas para a especulação imobiliária, com grandes empreendimentos que não são para quem precisa, mas para quem vem de fora morar, aponta. “Enquanto isso, a população em situação de rua só cresce. Isso não corrige o problema”.

Segundo ela, o significado de sustentabilidade precisa ser corrigido, junto com a construção de moradias resilientes, para que não ocorram mais situações como a do Jardim Pantanal, na zona leste de São Paulo, que ficou inundado enquanto o Poder Público criminaliza a periferia pelo direito de morar. 

“Eles escolheram negligenciar o território para depois dizer que não mandaram as pessoas morarem lá. Ninguém escolhe ir para debaixo da ponte, a pobreza extrema e a dificuldade de morar em São Paulo que empurram as pessoas para essas condições”, afirma ao citar sobre o combate às desigualdades para se falar em direito à moradia e a construção de um ambiente equilibrado e saudável para as pessoas viverem.


Duplicação da M’Boi Mirim: uma promessa política que atravessou uma década

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Recentemente, a duplicação da M’Boi Mirim tem sido alvo de novos debates, angústias e promessas. Na última eleição, em 2024, tanto o atual prefeito Ricardo Nunes quanto os demais candidatos falaram sobre essa pauta, especialmente Guilherme Boulos, que ocupava um lugar acirrado nas pesquisas de intenção de voto em relação a Ricardo.

Contudo, esse é um pedido recente da população?

Na verdade, a promessa de realização da duplicação já atravessou diferentes governos, sendo anterior às lutas da população com o Movimento Passe Livre, por exemplo. Quando tivemos as mobilizações pelo Hospital do M’Boi Mirim (que inicialmente seria construído no Guarapiranga, mas, com a pressão popular, foi possível alterar essa decisão), a duplicação já estava em pauta.

Em 2012, no governo de Kassab, tivemos mobilizações ativas da população pela duplicação da M’Boi Mirim e, apesar da pressão ativa e popular, não conseguimos enxergar uma luz no fim desse túnel de promessas.

Nessa época, eu tinha 12 anos e participei dos protestos do MPL na Zona Sul. Essa foto é do dia que alguns integrantes do movimento foram dormir na Associação que meu pai preside. Nesse dia estávamos organizando um ato. Foto de arquivo pessoal.

Nessa época, eu tinha 12 anos e participei dos protestos do MPL na Zona Sul. Irei deixar uma foto do dia em que alguns integrantes do movimento vieram dormir na associação que meu pai preside. Essa foto é de um dia em que estávamos organizando um ato. Foto de arquivo pessoal.

Em 2013, Haddad assumiu a Prefeitura do Estado de São Paulo. Tínhamos nele uma enorme esperança em relação a diversos encaminhamentos para a Zona Sul de São Paulo e, apesar dos registros no Plano de Metas de 2013 a 2016, nas reuniões não obtivemos respostas concretas em relação a essa reivindicação.

A “duplicação” realizada por ele foi somente a referente à ponte do Jardim Capela, uma obra pequena e que deveria ter tido continuidade por toda a extensão da avenida.

Estamos, então, realizando o aniversário de debutante dessa obra que nunca começa e que parece ser uma forma infinita de conseguir votos. Hoje, com meu pouco conhecimento na área de mobilidade urbana, sei que realizar uma duplicação não sanaria o problema que temos, pelo menos não por completo. O debate de mobilidade precisa ser realizado com profundidade, mas esse não é o foco do texto.

Todavia, o debate desse texto não é esse, e sim o uso constante de uma reivindicação popular para conseguir votos. Na última eleição, Ricardo Nunes citou a duplicação diversas vezes, porém, precisa ser uma informação de cunho público que ele não a incluiu no Plano de Metas de seu governo. Era uma promessa eleitoreira!

A promessa fez aniversário 

Assim, a duplicação do M’Boi Mirim já completou diversos aniversários. Poderíamos até realizar uma festa de debutante para ela. Uma reivindicação popular que tem um papel importante na mobilidade do território, que é utilizada para alcançar votação na região, porém jamais realizada.

Todas as semanas, em algum dos dias, muitos de nós temos que descer dos ônibus e caminhar para chegarmos em casa. Essa é uma realidade vigente desde a minha infância. Eu me lembro de caminhar do Jardim Ângela até em casa em diferentes fases da minha vida. Recordo das diversas vezes que cheguei atrasada em compromissos importantes ou no trabalho por passar 40 minutos parada somente no trajeto do Jardim Vera Cruz até a ponte.

Em uma cidade como São Paulo, beira ao absurdo pensar na população sendo exposta a esse tipo de realidade. Apesar das constantes propagandas que o governo faz, a São Paulo verdadeira para, não é rápida e não tem um planejamento efetivo para a população.

A juventude da região, que precisa trabalhar e estudar na região central da cidade, vive com a esperança de sair da região, não pelo ódio ao território, e sim pela exposição a condições precárias de mobilidade e transporte público. Não estamos falando de uma região pequena da cidade. O distrito do Jardim Ângela tem 311.432 habitantes (2022). Já a Zona Sul possui a maior concentração populacional da cidade: são 2,7 milhões de habitantes.

Se a obra já não será mais realizada, onde estão os recursos que foram destinados a ela? Além disso, quais outras alternativas a prefeitura tem pensado para a mobilidade na região?

Ricardo Nunes sempre se orgulha das suas economias, mas economizar sem investir na cidade e deixá-la sucumbir não é economia, é uma política que não pensa no trabalhador.

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Frente Periférica por Direitos promove ciclo de encontros para aproximar o debate climático nos territórios   

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Há poucos meses da COP 30 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), marcada para novembro em Belém, capital do Pará, desde setembro de 2025, encontros da Periferias Pelo Clima reúnem coletivos, moradores e lideranças comunitárias para debater sobre clima e meio ambiente. A partir dessa movimentação, a ideia é construir uma carta-manifesto que traduza os impactos reais da crise climática nos territórios. 

Organizada pela Frente Periférica por Direitos, a ação já circulou em diferentes regiões de São Paulo, com a discussão sobre quem são as pessoas mais impactadas pelos eventos climáticos. “É essa ponta mais fraca que não está presente nas grandes mesas de negociação, como os espaços da COP que são voltados à diplomatas”, coloca Jailson Lara, ativista, educador popular e coordenador da Casa Ecoativa, espaço localizado na Ilha do Bororé, no Grajaú, zona sul da cidade

“A nossa proposta é fazer da carta uma ferramenta de pressão e incidência, antes, durante e depois da conferência. E essa carta não é só para a COP 30. Ela vai continuar repercutindo nos territórios”, diz.

O objetivo é ouvir as comunidades sobre os principais problemas climáticos que afetam seu dia a dia, como o calor extremo, acúmulo de lixo, alagamentos e enchentes, poluição do ar, falta d ‘água, etc. Os encontros são abertos a moradores e atores locais, convidados através das redes e grupos comunitários.

Nos encontros, a comunidade levanta as demandas e temas a serem discutidos coletivamente para que a carta-manifesto reflita as reais necessidades da população e sirva como mecanismo de pressão aos governantes.

Rádio Cantareira, Casa Ecoativa, Espaço Alavanca e Ocupação Jardim Gaivotas são exemplos de iniciativas que participam dessa ação junto com a Frente Periférica por Direitos. Os encontros são abertos e gratuitos a todos que desejam somar na luta. A programação de cada encontro inclui momento de escuta com a comunidade, rodas de conversa e seminários sobre direitos, justiça socioambiental e enfrentamento às mudanças climáticas. Também realizam mutirões, atividades com colagem de cartazes artísticos, visitas a produtores orgânicos e articulação com cozinhas solidárias. 

A educadora Fernanda Naxara, da Frente Periférica por Direitos, diz que os encontros buscam empoderar a população para que protagonizem o debate. “A ideia é que a população traga [os problemas] e que a gente trabalhe nos nossos encontros. Nós sabemos quais questões vão aparecer, mas a proposta é ouvir mesmo as pessoas que estão na ponta”.

Ela conta que a Frente atua com coletivos, a partir da perspectiva de que o cuidado e atenção com os territórios periféricos, não é o mesmo que o Estado tem com outras regiões de áreas centrais. “Inclusive o manejo das árvores é sempre a periferia pela periferia”, afirma.

“É fundamental reconhecer que as periferias estão criando tecnologias nas bordas como resposta à emergência climática. Senão, a COP [continua sendo] um espaço esvaziado, com diplomatas, pessoas brancas, em geral homens, decidindo o futuro de uma população diversa”. Jaison Lara, articulador, educador popular e coordenador da Casa Ecoativa, na Ilha do Bororé, no Grajaú, zona sul de São Paulo.

Jaison diz que falta diversidade de narrativas em conferências de negociações como a COP, e que eventos institucionais como esse, não fazem parte do imaginário da maioria das pessoas nas periferias, mesmo vivenciado os impactos no cotidiano.

“Aquele jovem que sai da viela e vê um bueiro aberto, vê a bola cair no esgoto passando na frente da casa, é quem realmente se preocupa se vai fazer muito calor e esquentar demais [sua casa], se vai chover muito, porque vai entrar água por todos os lados”, analisa. Ele também afirma que as periferias produzem tecnologias e soluções que contribuem no combate à crise climática.

Jaison ainda destaca que não é de hoje que realizam atividades educativas com as crianças e adolescentes, promovendo passeios pelos bairros para evidenciar as contradições e o descaso do poder público com a infraestrutura local. A partir destas experiências, o grupo também quer fortalecer os diálogos pré-COP 30. 

A carta-manifesto também busca reconhecer os saberes quilombola, indígena, de povos tradicionais e periféricos na mitigação da crise climática, além de ocupar espaços de tomada de decisão. “A ideia é que a nossa mobilização consiga ultrapassar as barreiras da política institucional e criar pontes diretas com a base. A política institucional ainda é muito difícil, muito partidária, mas nós somos seres políticos. Política está em todas as esferas da vida”, aponta. 

“Nosso front é a comunidade: conversar com famílias, com crianças e adolescentes. A Casa Ecoativa, por exemplo, já tem uma atuação muito forte de trabalho de base. A gente acredita que o trabalho no território, muitas vezes, repercute mais do que congressos [internacionais] com a mesma galera de sempre, mas, agora, estar neste espaço [é importante]”. Jaison Lara, articulador, educador popular e coordenador da Casa Ecoativa, na Ilha do Bororé, no Grajaú, zona sul de São Paulo.

A educadora enfatiza que os problemas enfrentados pelas quebradas precisam ser colocados pela lente de quem nela vive. “Quando se fala de meio ambiente, parece que é só uma falta da classe média, quando quem sofre mais com as mazelas da mudança climática é a periferia, que sofre com enchentes, com as ilhas de calor, a questão de deslizamento, etc”.

Ações como a da Frente, somam esforços diante dos interesses de grandes grupos, como no caso do crime ambiental causado pela Braskem, em bairros de Maceió, com o afundamento do solo. “Existe a pressão do lobby, e nós precisamos garantir a pressão popular. No caso da Braskem, há inúmeras pessoas hoje em depressão, e inclusive, um alto índice de suicídio, pois muitas famílias não tiveram dinheiro para processar. Quem teve condições de entrar na justiça, ganhou o processo e foi ressarcido, mas a maioria perdeu suas casas e ficou por isso mesmo”, exemplifica Fernanda.

Ela reforça a importância de falar sobre meio ambiente em diferentes perspectivas. “Muitos pensam só na Amazônia ou em abraçar árvores, mas é também o que acontece, por exemplo, aqui na Rua Aurora, com os flutuantes que transbordam lixo”, e ressalta que, “é muito difícil, porém, estamos nos movimentando”.

Confira os próximos encontros Periferias Pelo Clima: 

15 de agosto, às 9h – Leste
Galpão ZL – Rede de Inovação
Rua Serra da Juruoca, 112 – Jardim Lapenna

15 de agosto, às 19h – Centro
Teatro de Contêiner Mungunzá
Rua dos Gusmões, 43 – Santa Ifigênia

16 de agosto – Leste
São Mateus – Incinerador (horário a definir)

17 de agosto, às 15h – Sul
Seminário
Rua Maramores, 36 – Jardim São Savério

23 de agosto, às 14h – Norte
Rádio Cantareira
Rua Jorge Pires Ramalho, 71 – Vila Isabel

29 de agosto – o dia todo – Sul
Seminário
Parque Aristocrata

13 de setembro, às 9h – Norte
Seminário Céu Freguesia do Ó
Rua Crespo de Carvalho, 71 – Freguesia do Ó

20 de setembro, às 9h – Centro
Encontro das Periferias (local a definir)

Mais detalhes na página da Frente Periférica por Direitos