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Thainara Silva: psicóloga se dedica a levar saúde mental para mulheres nas periferias

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A série Terapeutas da Quebrada mostra a trajetória de vida de psicólogas que fizeram de tudo para abrir um consultório nas periferias, em busca de garantir que os moradores tenham acesso aos cuidados com a saúde mental.

Desde o momento em que jovens de quebrada ingressam na universidade, eles lidam com uma série de obstáculos para me manter estudante e ingressar no mercado de trabalho. Essa realidade faz parte da trajetória de Thainara Silva, 28, psicóloga e moradora do Jardim Aracati, zona sul de São Paulo.

Atualmente, Thainara possui um consultório onde atende seus pacientes no bairro Chácara Santo Antônio, região de Santo Amaro, zona sul de São Paulo. Mas para chegar até aqui e desfrutar da conquista de construir o próprio negócio, segundo ela, foi necessário enfrentar conflitos na família, fato que contribuiu para que trancasse pela primeira vez a faculdade de psicologia.

“Foi na época que meu pai descobriu (como lésbica), eu estava ficando com outras mulheres, eu me reprimi por muitos anos. E quando ele descobre e me rejeita, foi um dos meus primeiros contatos com a rejeição familiar. Ele ficou um ano sem falar comigo, então eu saí de casa”, relembra a psicóloga.

Além da rejeição familiar, outros problemas surgiram, pois ela precisou fazer transferência de campus universitário, por ter se mudado de casa, e isso prejudicou a rotina de estudos de Thainara.

Após esse conflito familiar que durou mais de um ano, ela retornou para a casa dos pais, e sofreu um acidente, tendo que trancar novamente o curso, momento que deu origem a mais uma fase complicada em sua trajetória de vida. 

“A graduação é muito dolorosa pra quem é periférico, porque você tem que trabalhar normalmente. Ou você tenta uma bolsa, senão você tem que trabalhar para pagar a faculdade”

desabafa.

Nesse meio tempo, ela conseguiu um trabalho numa clínica, onde trabalhava como recepcionista. Neste local de trabalho, surgiram muitas situações difíceis, tendo que lidar com o preconceito dos pacientes que frequentavam, mas que precisavam superar por não ter outra opção de emprego e renda, para pagar a faculdade.

“Eu ganhava seiscentos reais na faculdade, e na época eu tinha que pagar a terapia que era trezentos e pouco… Aí eu ficava só com trezentos reais pra passar o mês, tinha que trabalhar, estudar, comer e pagar as coisas, sempre tudo muito difícil”, conta Thainara.

Essas experiências de vida que aconteceram durante a presença na universidade contribuiu principalmente para que a psicóloga começasse a ter problemas de ansiedade e alguns episódios depressivos, que segundo ela, era o principal motivo de se sentir mal com as relações pessoas, profissionais e com a vida, o que a levou a ter pensamentos de suicídio.

Todo esse processo também foi importante para ela entender em qual área específica da psicologia ela gostaria de se especializar e trabalhar com seus futuros pacientes. “Eu tinha muita idealização suicida, eu falava muito sobre morte. Tanto que eu falo que meu carro-chefe pra trabalhar com pessoas é o suicídio, porque eu senti na pele o que era pensar nisso”, relata.

Durante a pandemia, Thainara transformou um cantinho da sua casa em consultório, para realizar atendimentos online.

Com tudo isso acontecendo, Thainara conseguiu se formar mas ainda assim, não tinha conseguido se realizar na área, foi aí que ela decidiu usar o salão de cabeleireiro da sua mãe, que fica na garagem da casa onde ela morava.

Ao frequentar o estabelecimento durante os períodos de atendimento, ela passou a conhecer e prestar atendimento para algumas clientes, que segundo sua mãe relatavam ter problemas relacionados a questões emocionais.

“Comecei a ter contato com a psicologia dentro da comunidade, porque eram pessoas em situação de vulnerabilidade. Só que aí eu só pegava caso bomba, se tem pessoas que tem problemas e questões emocionais para serem resolvidos é a população periférica”, pontua.

Diante deste cenário, a psicóloga passou a buscar um espaço para alugar e para ser só seu em sua região para atender essas pessoas, saindo ali do ambiente do salão de beleza, mas se deparou com preços de aluguel muito altos e fora do seu alcance de investimento.

Nesta época, os valores de locações de salas para instalar o consultório variava de R$1mil a R$1.200,00 por sala, e segundo ela, mesmo tendo se esforçado para continuar ali e tentado uma sala no seu território, não foi possível conseguiu suprir o valor do aluguel, e também não estava disposta a aumentar o valor das sessões com as pacientes que atendia, que em sua maioria eram mulheres.

Depois de pesquisar e conversar com alguns colegas de profissão, ela decidiu alugar uma sala com o pagamento do aluguel divido com outra profissional da área de terapia, localizado colega na região da Chácara Santo Antônio, bairro que oferece fácil acesso ao público da terapeuta.

“Eu assinei o contrato do consultório no dia 8 de março, dia internacional da mulher. E foi tão simbólico que estava atrás de mulheres, pra me ajudar a pôr o papel de parede, pra montar o consultório, porque eu queria só mãos femininas na construção do espaço”

destaca Thainara

Atualmente, Thainara segue com seus preços simbólicos para pessoas moradoras das periferias em situação de vulnerabilidade social, garantindo que as pessoas se sintam acolhidas e respeitadas em seu local de trabalho.

“Eu queria que a pessoa que pisasse no meu consultório, sentisse o máximo de conforto e acolhimento possível, e eu não tinha tido essa vivência nos consultórios que eu passei, era tudo muito frio. Eu não vou ser essa psicóloga”, concluiu.

Cuidar de si faz parte do plano de mudar o mundo!

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Olhar para si, com amor, atenção, dedicação, respeitar nossos ciclos, tudo isso é constantemente negado, principalmente para quem está nas margens da sociedade.

Grafite realizado por AnaPraRua e Nino, no Jardim Progresso, em Parelheiros, zona sul de São Paulo. Foto: Julia Biaggioli

Ultimamente venho pensando muito sobre autocuidado. Acho que a pandemia trouxe à tona diversos entraves e com a recomendação de isolamento social, essa foi uma das formas de sobrevivência nesse período. Mas porque o fato de se auto amar, cuidar e conhecer, geralmente não é algo espontâneo? Se preservar deveria ser algo imediato, afinal, meu corpo, minha mente, tudo que me compõe está comigo – sempre!

Quando recebi o convite do Desenrola para escrever para essa coluna, não pensei duas vezes: o nome seria Cura pelas bordas! Íntegro coletivos e movimentos desde pequena e retratar a potência das margens, trazer questionamentos que envolvem essa pauta, pensar e discutir sobre os territórios populares e suas formas de enfrentamento é a minha proposta aqui.

Mas percebo também, nas discussões sobre as problemáticas sociais, que a gente se coletiviza tanto, que esquecemos que esses debates são sobre PESSOAS e como todas essas dinâmicas nos afetam diretamente.

No início da pandemia, nós (que moramos da ponte pra cá) sabíamos que o maior prejuízo seria para os nossos. A solidariedade nas comunidades foi muito romantizada, para esconder a falta de políticas pensadas para as demandas das quebradas. Tudo que já era tenso, agravou: A lotação no transporte público, o colapso no sistema de saúde, a falta de acesso à informação, a evasão nas escolas, o desemprego, a fome e tantas outras questões.

E o movimento para combater tudo isso nas margens foi frenético, arrecadação para campanhas, distribuição de cestas, muito conteúdo sendo produzido de nós pros nossos, tantos outros projetos…

Tá. Mas o que eu quero dizer com tudo isso? O rombo que a desigualdade social causa, faz com que esse olhar para si mesmo seja praticamente impossível e a pandemia, também agravou isso. A gente luta diariamente pelo básico e cuidar de si parece luxo.

E as necessidades são tantas, que essa missão de mudar o mundo e tudo que a gente faz pra isso, parece ser insuficiente. Logo, cuidar de si vai sempre ficando pra depois. E as cobranças aumentam, consequentemente a ansiedade intensifica e possivelmente, a depressão também. Lidar com tantas mazelas e não se afetar, é como ser de ferro… E a gente não é! As coisas nos atravessam e nós temos direito de pausar e acolher isso.

Todo esse contexto, mais uma vez, não é por acaso. Crescer na periferia é entender desde cedo que tudo que a gente produz é pra fora. A gente acorda de madruga pra fazer o centro girar, inclusive todos os caminhos, seja de busão, trem, metrô, são nesse sentido, e tudo que é nosso é marginalizado, inferiorizado. Então a gente vai aprendendo a se odiar, desgostar de onde a gente veio, das nossas raízes. Isso sem contar outras interseccionalidades (raça, gênero, sexualidade, etc) que, à medida que se acumulam, têm esses pensamentos cada vez mais enraizados: o outro primeiro, depois eu.

E, por mais que a gente se articula, se empodera, se mobiliza pra afrontar todos esses processos que ainda persistem no cotidiano da quebrada, estamos sujeitos a reproduzir isso. Ainda mais num sistema que nos impõe essa dinâmica.

Então, a escolha consciente de se autocuidar é extremamente revolucionária! 

Compreender nossos limites, dizer não, não abrir mão de momentos de lazer, de descanso, dos nossos sonhos pessoais para além dos coletivos, entender que tudo bem não dar conta de tudo, dentre tantas outras coisas que a gente atropela.

As estruturas nos adoecem e lutar a qualquer custo contra elas, também! Acredito que o cuidado consigo também é resistência. Olhar para si, com amor, atenção, dedicação, respeitar nossos ciclos, tudo isso é constantemente negado, principalmente para quem está nas margens da sociedade.

E quando falamos das complexidades das relações sociais, estas também são relações! E como em qualquer uma, a gente precisa se fortalecer individualmente, se firmar nas nossas próprias convicções, curar nossas próprias feridas e ter nossos momentos a sós. Qualquer relação em que passamos a nos anular, não é saudável. É um exercício constante reiterar: nós somos pessoas, antes de ativistas.

Enfim, esse texto não é um apelo para você parar de lutar por um mundo melhor, mas sim um convite pra que você entenda que cuidar de si faz parte desse plano. E que essa prática é contínua, num aprendizado constante, e o amor é isso: “Uma combinação de cuidado, compromisso, conhecimento, responsabilidade, respeito e confiança”, mas é também “o antídoto mais poderoso contra as políticas de dominação”, como nos ensinou Bell Hooks.

Que a gente proporcione isso para nós mesmos, porque somos mais que merecedores. E que a gente crie redes de cuidado, antes de ir pro fronte, se não podemos acabar dando um tiro no pé.

Esse é um lembrete diário. Pra mim e pra você!

Sertãoperifa transforma praça de Parelheiros em centro de cultura nordestina

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 Além de fortalecer a produção musical e audiovisual de artistas independentes, o coletivo Sertãoperiferia inicia neste sábado (9) uma série de eventos mensais abertos ao público no distrito de Parelheiros, zona sul de São Paulo.

O Coletivo Sertãoperifa atua desde 2010, propondo o resgate e valorização da cultura nordestina nas periferias. (Foto: André Bueno)

Com mais de 15 intervenções artísticas, o festival “Sertãoperifa 2.0: Nas Margens e Nas Redes”, acontece neste sábado (09), na Praça Júlio César Campos, centro de Parelheiros, zona sul de São Paulo. Com uma programação que vai das 13h às 20h, um dos destaques na primeira edição do evento é a transformação do território num centro de cultura nordestina.

Durante a programação, o público poderá prestigiar apresentações musicais, oficina de xilogravura, feira gastronômica nordestina, apresentação de saraus, cordéis e danças regionais, e até um bloco de carnaval, que fará a abertura das intervenções artísticas. Além disso, haverá um espaço dedicado às crianças com pula-pula, brinquedos e pintura facial.

“A proposta de criar esse evento é fazer ele girar até o final do ano que vem. A gente tem dois anos aí com eventos”

Claudiney Nonato é integrante do Coletivo Sertãoperifa e coordenador do projeto.

A Praça Júlio César Campos, localizada no centro do distrito de Parelheiros, zona sul de São Paulo, é um dos principais palcos do Coletivo Sertãoperifa. (Foto: André Bueno)

A iniciativa de movimentar e valorizar a cultura nordestina nas periferias é do Coletivo Sertãoperifa. “A proposta de criar esse evento é fazer ele girar até o final do ano que vem. A gente tem dois anos aí com eventos, oficinas e atividades dentro do projeto, vai ter intervenção na rua, nas Casas de Cultura, nos CÉUs, e todo mês a gente vai fazer uma atividade com um tema diferente”, explica Claudiney Nonato, mineiro apaixonado pelo nordeste, morador de Parelheiros e coordenador do projeto.

O Sertãoperifa nasce da união de moradores da periferia que vieram do nordeste, mais precisamente do sertão e que gostam de forró. O coletivo surgiu em 2010 quando um grupo de forró pé de serra, que já era engajado com questões políticas e sociais, resolveu fazer disso uma prioridade e trazer ainda mais a cultura do nordeste para as bordas da cidade.

“Isso traz um resgate, traz uma lembrança de onde moravam, é essa a ideia”

Claudiney Nonato é mineiro, mas tem uma forte paixão pela cultura nordestina que o faz se dedicar ainda mais nas ações do Sertãoperifera.

Uma das principais características do Coletivo Sertãoperiferia é ocupar espaços públicos nas periferias. (Foto: André Bueno)

A cada realização do Festival Sertãoperifa, um tema será escolhido para nortear as atividades artísticas da programação. Negritude, gênero e acessibilidade serão alguns dos assuntos abordados pelo coletivo nos próximos eventos.

Com o retorno das atividades presenciais, a expectativa do Sertãoperifa é promover um resgate de memória afetivas entre os moradores de Parelheiros e bairros vizinhos que irão participar das atividades.

“Como faz tempo que não tem nenhuma atividade na região, eu acho que vai ter um impacto positivo para a comunidade. As pessoas poderão assistir um show de um grupo nordestino, podem participar de oficinas e fazer com que se lembrem da sua cultura, isso traz um resgate, traz uma lembrança de onde moravam, é essa a ideia”, afirma Nonato.

Possibilidade de terceirização das Casas de Cultura preocupa agentes culturais das periferias

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Nesta quinta (07), acontece a audiência pública que irá debater sobre a terceirização das Casas de Cultura. Desde fevereiro, artistas, coletivos, movimentos e agentes culturais das periferias de São Paulo se articulam para barrar a possibilidade de concessão desses espaços culturais.

Artistas e agentes culturais no encontro realizado no mês de março no Bloco do Beco, zona sul de São Paulo, para discutir sobre a terceirização das Casas de Cultura. Foto: Patricia Santos

Desde fevereiro deste ano, o debate sobre a concessão das Casas de Cultura da cidade de São Paulo têm sido tema de encontros entre coletivos, artistas, movimentos e moradores das regiões periféricas que estão se mobilizando para garantir que a gestão permaneça com a prefeitura.

Com 20 unidades espalhadas em territórios periféricos, as Casas de Cultura são espaços que possibilitam o acesso dos moradores às atividades de arte, cultura e educação de forma gratuita, desde peças de teatro, dança e música, até oficinas e cursos, além de ser um espaço que fomenta o trabalho de coletivos e artistas locais.

A notícia sobre a intenção da Secretaria Municipal de Cultura em terceirizar esses espaços, chegou até o movimento cultural a partir de uma matéria da Folha de São Paulo, publicada em fevereiro, que conta sobre a possibilidade da abertura de um edital para seleção, até julho, de Organizações da Sociedade Civil (OSC), para gerir as Casas de Cultura.

Segundo Jennyffer Nascimento, poeta, educadora, atuante do movimento cultural periférico, moradora do Jardim Ibirapuera, zona sul de São Paulo, e também membro da Mandata Quilombo Periférico, a informação sobre a possibilidade de terceirização das Casa de Cultura da cidade de São Paulo, pega de surpresa quem as utiliza e colabora de alguma maneira para a sua existência.

“A  Secretária de Cultura da Prefeitura de São Paulo, informa que 30% do quadro de funcionários das Casas de Cultura estão para se aposentar e isso vai gerar o déficit [no quadro de trabalhadores das casas de cultura]. A ideia dela é de que com esse déficit em jogo haveria um sucateamento das Casas de Cultura e existem alguns estudos para passar a gestão para organizações da sociedade civil, as chamadas OS’s”.

explica Jennyffer.

Para ela, sem a chamada de novos funcionários públicos para a administração desses espaços, a chance da abertura de um edital para selecionar organizações sociais, apesar de repentina, a efetivação desse processo pode não ser demorada.

“A gente sabe que entre ter um estudo e a efetivação da terceirização às vezes é coisa de dois ou três meses, ou chega até um projeto de lei aqui na câmara e aí tudo pode ser terceirizado. A gestão passa a não ser mais da Secretaria Municipal e sim de uma organização, como acontece em alguns equipamentos de cultura do estado de São Paulo, como é o caso das Fábricas de Cultura”, explica Jennyfer.

As Fábricas de Cultura, exemplo de espaço cultural citado pela educadora, são equipamentos que oferecem atividades artísticas e são geridas através de organizações sociais. Diversos agentes culturais apontam que a mudança da gestão de equipamentos públicos para OS, contribui para uma perda da ligação com os artistas e o movimento cultural do território em que o equipamento está inserido.

No dia 29 de março, coletivos e movimentos culturais de São Paulo entregaram uma carta manifesto à Secretaria Municipal de Cultura buscando maiores esclarecimentos e diálogo a respeito da terceirização das Casas de Cultura da cidade.

Demandas e identidade do território 

Com o debate sobre a terceirização das Casa de Cultura, a preocupação passa a ser também referente a qualidade dos serviços fornecidos, de que maneira se daria e o cuidado com as necessidades da população de cada região onde estão localizados esses espaços.

“A gente conseguiu retirar as Casas de Cultura da supervisão das subprefeituras e colocar na Secretaria Municipal de Cultura porque a gente sabe que teria mais verba e essa foi uma das demandas dos movimentos organizados pelos movimentos culturais. Essas OS’s acabam administrando espaços no território onde elas não conhecem, não estão, não têm afeto”, diz Alex Barcellos, co-vereador no Mandata Quilombo Periférico.

Para Cristina Assunção, professora de história, slam master, integrante do Slam da Guilhermina e produtora do coletivo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, o receio é de que maneira e qual arte as organizações sociais podem entender contemplar os territórios periféricos.

“Essas OS que atuam com cultura elas vão priorizar aquelas artes burguesas, que existem no centro, na Vila Madalena. Vai diminuir muito o número das pessoas que atuam nas periferias como os agentes culturais que já estão nas Casas de Cultura, já há muito tempo conhecem os grupos que estão naquele território, e essas pessoas desconhecem essa rotina”.

analisa Cristina.

A decisão impacta diretamente nos direitos e atividades dos usuários e artistas que estão há anos compondo o polo cultural das quebradas. Jennyfer Nascimento questiona esta situação, pois, segundo ela, não existem garantias de que os artistas terão seus espaços que foram conquistados há anos, mantidos.

“Quem garante que nós seremos contratados enquanto artistas? Quem garante que o uso do espaço vai ser mantido? O Flordelis e o Panelafro fazem parte de uma manifestação cultural que acontece há mais de 20 anos na Casa de Cultura da M’Boi Mirim e que já tem o seu espaço na programação”, aponta Jennyfer.

Ela ainda ressalta que para ser uma organização social que consegue pegar essa gestão, é preciso ter uma série de documentações. “E a gente sabe que infelizmente quem está à frente preparado para assumir isso são pessoas que não pensam como nós, ou que não estão inseridos no mesmo ambiente que a gente está”, finaliza.

Para Assunção, a solução é contratar funcionários públicos para assumir os respectivos cargos. “A conclusão que se chega é que a privatização só se amplia, e vai desde a educação, cultura e ainda pode acontecer com a saúde. Isso só trará mais exclusão e diminuirá nossos recursos e possibilidades de formação de outros grupos culturais. Precisamos de agentes públicos atuando dentro desses espaços”, afirma.

Intervenções e melhorias 

Administradas por meio da Secretaria Municipal de Cultura, as Casa de Cultura são equipamentos públicos existentes há mais de 30 anos, sendo a primeira delas a do M’Boi Mirim, fundada em março de 1984. Espaços que visam disseminar cultura, aprendizado, debates, reflexões e troca de saberes entre artistas e moradores das periferias.

Quando se fala em sucateamento das Casas de Cultura, trata-se também das condições de trabalho, das competências a serem desenvolvidas, quem estará na linha de frente para gerir pensando na quebrada. Segundo Alex, hoje, justamente por conta da falta de funcionários, existe um acúmulo de funções dentro dos espaços culturais.

“Um gestor que tem que cuidar de todos os espaços e no máximo o que ele tem é o apoio do segurança, das companheiras e companheiros de limpeza do espaço e com os programas de jovens monitores. Não existe um braço para ajudar na articulação de território, não existe uma pessoa para ajudar na mobilização, para cuidar só da programação, não existem técnicos para ajudar no som, na luz, são essas coisas que a gente encontra nesse tempo de pandemia”.

aponta Alex.

Para Barcellos, existe solução para isso: o chamamento de funcionários para ocupar as vagas que estão em aberto, assim como aponta Cristina. Não acontecendo isso, a mudança se justifica, deixando de lado questões humanas e visando o lucro e o faturamento.

“A gente sabe que durante o período de quando essa empresa parceira faz operação da Casa, começa a aparecer pintura, grana para pintar, para reformar, coisas simples, maçaneta, corrimão. Começa aparecer um monte de coisa e as pessoas pensam: ‘Mas na outra época não tinha, antes era judiado agora parece que tem grana’, mas não, sempre teve. E é louco isso, porque a gestão se torna privada, mas o dinheiro continua sendo pago por nós, ninguém quer assumir a bronca sozinho”, afirma Alex.

Artistas, agentes culturais e integrantes de movimentos e coletivos se reuniram no mês de março no Bloco do Beco, na zona sul de São Paulo, para discutir sobre a terceirização das Casas de Cultura. Foto: Patricia Santos

Para evitar barrar esse processo, agentes culturais têm se mobilizado em reuniões e intervenções rolando por todos os lados da cidade. Em março, uma das reuniões que aconteceram foi no Bloco do Beco, polo cultural na zona sul de São Paulo, onde foi discutida uma possível audiência pública sobre o tema.

“Ainda que o poder executivo possa tomar algumas medidas, a gente entende que o estado democrático precisa de participação social. E são nessas linhas que a gente vai também incidir, enquanto movimento, nesse lugar de representação política como uma assessora, mas também como alguém que dá voz ao movimento”

diz Jennyfer.

 Segundo Barcellos, conforme as mobilizações vão acontecendo, os coletivos, movimentos e mandatas também se organizam, além dos movimentos estarem fazendo tudo que cabe: desde entrega de cartas, análise nas agendas da Secretaria do Prefeito e protocolo no Ministério Público.

“Existem ferramentas possíveis para provocar audiências públicas, conseguir provocar chamamentos dos secretários, dos envolvidos dentro da câmara legislativa para debates”, afirma.

O que diz a Secretaria 

Durante a apuração desta matéria, questionamos à Secretaria Municipal de Cultura acerca dos processos em andamento e do relacionamento com todas as partes interessadas. Segundo eles, o modelo de gestão via organização social não configura privatização, mas que estão estudando a possibilidade de uma concessão.

Em um formato de concessão, a transferência da gestão e execução se dá de forma temporária, com prazo para início e fim, podendo ou não ter o prazo renovado.

“A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Cultura, informa que a pasta está estudando a possibilidade de concessão das Casas de Cultura e que, por enquanto, não há nada conclusivo a ser divulgado. A SMC ressalta ainda que não tomará nenhuma decisão sem consultar a sociedade civil e que o modelo de gestão via Organização Social (OS) não configura privatização”, informou a Secretaria.

Nesta quinta (07), a partir das 11h, será realizada a Audiência Pública com o tema “Casas de Cultura e modelo de gestão compartilhada”, na Câmara Municipal de São Paulo, para debater sobre as questões que envolvem a mudança na gestão dos espaços culturais. 

Geração X enfrenta barreiras para usar aplicativos nas periferias de SP

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 Seja para empreender, ir ao médico, pagar uma conta ou simplesmente acessar a internet, a geração x enfrenta uma série de barreiras de acessibilidade digital que comprometem a sua autonomia no universo digital.

Rita de Cássia tem duas filhas, trabalha como diarista na semana e nos finais de semana vende doces, lanches e petiscos em uma barraca em frente à sua casa. Crédito: Flávia Santos

Os moradores das periferias que nasceram entre 1960 e 1980 (tem entre 40 e 60 anos) fazem parte da geração x, grupo social que segundo o IBGE representa 26% da população brasileira. A empregada doméstica Rita de Cássia, 50, moradora do bairro Jardim São Francisco, localizada na zona sul de São Paulo, faz parte desta parcela da população que sente na pele o choque cultural de nascer em mundo analógico e hoje vivenciar as relações humanas conectadas pelo celular e o acesso à internet.

Ela tem duas filhas, trabalha como diarista na semana e nos finais de semana vende doces, lanches e petiscos em uma barraca em frente à sua casa, para complementar a renda familiar. Além da correria nos dias úteis, ela ainda tem que lidar com o fato de não saber se conectar à internet, tendo que depender sempre de alguém para ajudar ela a realizar suas tarefas.

“Eu não sei mexer em nada no celular, se eu for comprar alguma coisa eu peço pra ela (minha filha), tudo que eu for fazer eu tenho que pedir pra ela. Só que tem dia que ela não tá naqueles dias bons, aí ela fica estressada e eu fico nervosa”, relata Rita.

A empregada doméstica conta que todas as atividades feitas pelo aplicativo do banco são feitas por sua filha Monique, e que não há sequer uma função que ela saiba mexer, e mesmo se soubesse, por terem muitas senhas no aplicativo, ela raramente consegue lembrar e memorizar.

“Ela coloca umas senhas e eu nunca consigo gravar, então é só ela que mexe. Aí eu tenho medo de mexer e transferir errado”, enfatiza Rita.

O ponto chave na história de vida da Rita é que ela depende que sua filha esteja em casa para fazer qualquer movimentação no celular, por isso, quando Monique não está, não se arrisca sequer em mexer no smartphone. E quando precisa que seja rápido, ela vai até o banco buscar ajuda.

“Eu não consigo mexer no aplicativo, tenho medo de fazer qualquer coisa, e quando é assim eu vou direto no banco. Aí eu chego lá, falo pra eles que não sei mexer, e só assim o gerente vai e me ensina”

pontua.

Rita de Cássia, 50, moradora do bairro Jardim São Francisco, localizada zona sul de São Paulo. Crédito: Flávia Santos

Rita explica que não é por falta de vontade, e que as filhas já tentaram ensiná-la várias vezes como acessar e manusear os aplicativos no celular, mas que ela possui muita dificuldade em lembrar de tudo, e por isso sempre necessita de auxílio.

“Como foi minha filha que fez tudo do pix pra mim, só ela que sabe mexer, ela vem me ensinar mas não entra. Às vezes me ligam pedindo pra eu transferir um dinheiro, e nem sempre a Monique está perto de mim pra fazer. Eu também não sei tirar dinheiro no caixa eletrônico, não consigo”, diz Rita.

O fator geracional e a cultura de viver na época da comunicação analógica também afeta o cotidiano de Maria Jacira, carinhosamente conhecida como “dona Fia”,62, moradora da Cidade Ipava, zona sul de São Paulo. Há mais de 25 anos ela tem um bar no bairro e atualmente vende feijoada aos sábados.

Por trabalhar com vendas, dona Maria sempre ouve os clientes perguntarem se ela aceita o pix como forma de pagamento, mas ela explica que não tem e não confia nisso, e que na maioria das vezes perde a venda por isso.

“Eu não tenho pix, porque não sei mexer e tenho medo, por causa dos roubos que acontecem hoje em dia, então não uso de jeito nenhum”, afirma Maria.

O maior medo da comerciante é fazer qualquer tipo de movimentação financeira com o cartão fora do banco, com isso, ela explica que só usa o cartão direto na boca do caixa. “Eu mexo no meu cartão sem usar pix, não uso o cartão do lado de fora do banco, quando quero fazer qualquer coisa eu vou direto na boca do caixa.”

Além do medo de usar o cartão e ativar o pix para receber pela venda dos seus produtos, dona Maria também tem receio de pedir ajuda para qualquer pessoa, por medo de cair em golpes, e que nunca sabe quando isso pode ou não acontecer com ela.

Maria Jacira, carinhosamente conhecida como “dona Fia”,62, moradora da Cidade Ipava, zona sul de São Paulo. Credito: Flávia Santos

 Ela diz que prefere ir direto na sua agência do banco, mesmo sabendo que terá dificuldades, do que habilitar qualquer serviço diferente do que ela já está acostumada.

“Eu prefiro enfrentar uma bruta de uma fila e ser atendida lá dentro no banco, não tenho coragem de usar o cartão nas máquinas eletrônicas do lado de fora de jeito nenhum, até porque não sei, nem dinheiro eu sei tirar”, conta a moradora.

Esses obstáculos enfrentados dentro das agências são muito significativos, levando em conta que muitos dos que ainda frequentam são pessoas na terceira idade. E nesse processo, eles ficam expostos a uma série de frustrações que ocorrem durante ou antes do atendimento.

“Toda vez que eu vou, é mais de 2 horas na fila, naquele tumulto danado, e a gente fica lá em pé toda vida esperando. E às vezes chega a hora da gente e não está atendendo mais, ou o sistema que cai”, desabafa.

Maria acredita que por não saber mexer no celular e nos aplicativos, por ter mais dificuldade do que outras pessoas, o risco de ser roubada e de alguma coisa acontecer com o dinheiro que ela movimenta é grande.

Por assistir muito jornal na televisão, a dona de casa leva em conta todas as notícias que saem referente ao pix, e que, segundo ela, nunca são coisas boas. Fora conversas com irmãos e vizinhos, onde na maioria são relatos negativos.

Há mais de 25 anos ela tem um bar no bairro e atualmente vende feijoada aos sábados. Credito: Flávia Santos

“Já aconteceu com meu irmão da pessoa falar que fez o pix e quando foi ver não fez. Minhas colegas também reclamam, e eu já vi na televisão, por isso não quero”, afirma Maria.

A dona de casa mora sozinha e depende também da internet móvel para mexer no celular, isso quando põem crédito e  possui dados móveis disponíveis. Por muitas vezes seu celular fica de canto, pois por não saber mexer, usa só para fazer ligações.

“Tenho meu celular vai fazer 10 anos, não sei mexer em nada não, queria saber entrar na internet e fazer um Facebook, já pelejei, já tentaram me ensinar, mas não consigo, e tudo eu tenho que pedir, é chato. Eu só uso o celular pra ligar, mandar áudio eu ainda sei, mas só isso também”, exemplifica.

Já aconteceu de Maria receber um SMS que informava a data, horário e nome do hospital onde ela faria uma consulta médica, mas por não saber identificar o aplicativo de mensagens, a concorrida consulta no sistema público de saúde quase deu errado, se não fosse o apoio da filha.

“Minha consulta que estava marcada, veio pelo celular, e eu só fiquei sabendo porque minha filha mexeu pra mim, se não fosse ela eu não teria nem ido. Não tinha mais nenhuma informação, quando cheguei descobri que era uma endoscopia e não fiz porque não estava de jejum e nem com acompanhante”

conta Maria. 

Mesmo tendo uma rotina que concentra boa parte das atividades diárias no celular, ela enfatiza que vai atrás em busca de informações quando é preciso. “Ficou muito ruim com esse negócio de ser tudo pelo celular. Eu vou longe, vou atrás, enfrento fila, ônibus, sol quente, porque não sei mexer no celular.”

Para entender o outro lado dessa história, e obter uma avaliação técnica e analítica sobre o uso de dispositivos e aplicativos móveis para pessoas mais velhas, conversamos com Magno Ozzyr, 36, gerente de projetos de tecnologia que atua com soluções digitais para empresas e organizações do terceiro setor.

Magno disse em entrevista que pensa em desenvolver um software voltado para a terceira idade, para facilitar o dia a dia desses moradores. Ele começou explicando que precisamos entender os fatores de cultura e de segurança de cada um, como indivíduo. Porque as pessoas de terceira idade possuem uma visão diferente do que entendemos hoje como aplicativo, banco digital e funções modernas que facilitam o nosso controle.

“É sempre bom ter alguém administrando ali sua conta, alguém que você consiga reclamar. E essa pessoa acaba não entendendo que ela pode ter essa relação com o aplicativo. Eu posso fazer uma reclamação por ali, posso abrir um chamado por ali e ser atendido de forma imediata inclusive”

explica.

Outro ponto que Magno aborda é a abstração das imagens para essas pessoas da terceira idade, onde a forma de enxergar um aplicativo é diferente, pois enquanto eles enxergam somente figuras e objetos, nós sabemos o que tudo aquilo que aparece na tela do celular significa, seja um ícone que representa “salvar” ou uma frase que aponte o que queremos fazer.

“O que eu percebo é que existe muita dificuldade na abstração, porque aquilo não tinha relação nenhuma com o que aquelas pessoas viam na sua juventude ou infância. É muito difícil você trazer uma noção completamente nova de interação através de um dispositivo, sem explicar essas abstrações”, argumenta.

Magno aborda também que a facilidade em aprender e guardar informações é diferente para um jovem do que para uma pessoa da terceira idade, que existe essa diferença e que por muitas vezes não pesamos na balança ao decorrer do dia a dia.

Em sua opinião, os jovens, principalmente agora em momento de pandemia, tiveram que se adaptar para trabalhar e estudar dentro de casa, tendo que mexer em mais de 10 abas ao mesmo tempo, mas que apesar disso, conseguem realizar essas tarefas tranquilamente, diferente de uma pessoa mais velha, se precisasse sofrer essa mudança.

“Agora pensa essa realidade pra quem mal sabe ler ou não sabe ler, ou seja, os símbolos são imagens, eles não dizem nada para aquela pessoa além de imagens. Então imagina que você está vendo um monte de risquinho preto na tela e não diz nada pra você”

pontua.

Magno ressalta que alguns aspectos de desigualdades sociais também afetam os moradores das periferias que enfrentam essas barreiras de acessibilidade. Segundo ele, essas pessoas tiveram ausência de saúde, educação, saneamento e necessidades básicas nos primeiros momentos da vida, e assim, a tecnologia se torna realmente uma função totalmente moderna e distante para essas vidas.

“A gente precisa olhar para a tecnologia de uma maneira muito parcial. A tecnologia não chega onde está a pobreza, a gente tem situações de pessoas sem esgoto, sem acesso a água, e a falta de água cria débitos cognitivos. Pessoas que não tiveram acesso à água nas suas primeiras fases de vida, têm um desempenho cognitivo menor do que a maioria das pessoas”, analisa.

O gerente de projetos de TI, destaca que a tecnologia tem a sua dimensão baseada na exclusão social. “A tecnologia do país é muito boa, o problema é que ela não é para todos!”, conclui Magno. 

“Atrás de um ditador, existe um grande amor”: as emoções e seu uso na política

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Foto: Agnes Roldan

Quem lê essa coluna e a acompanha desde o início sabe minha visão como autora acerca das figuras políticas e do que podemos analisar sobre construção de imagem, imaginário e simbologias através de falas, frases e ações. Mas por que amam tanto figuras extremas ou que nos parecem controversas? Aquelas que não parecem ter coerência?

Vamos relembrar o conceito do ser humano como pessoa múltipla, mas para além disso, um ser subjetivo. A política se faz junto à sociedade, ela a acompanha e assim como suas tendências seriam ignoradas?

Por que a paixão importa? Existe racionalização completa de algo como votar? Na TV, Siqueira Júnior, nos mostra um mar de emoções, uma figura questionável, mas que joga e faz uso das crenças, da tragédia, da comédia, você rir enquanto assiste os dados de morte ao fim de uma tarde. Poderia então se construir imagens sem mexer com emoções?

“Atrás de um ditador existe um grande amor”, essa frase retirada da música do Belo me deu o desafio de desenvolver um texto sobre emoções e sua importância no jogo político. Ela que dará título a este breve texto que tem como foco principalmente trazer uma reflexão e jamais uma conclusão do que seria a influência do uso das emoções dentro de campanhas políticas.

Foto: Agnes Roldan

Irei iniciar trazendo uma análise da última campanha de Bruno Covas, com título “Força, Foco e Fé”, que traz uma identidade para seu momento de vida e casa com conceitos do dia a dia (algo que estamos exaustos de ver e rever nas campanhas), mas para além disso uma campanha extremamente emocional, com direito a relato de vida extenso, vídeos em viagens enquanto estava doente e a coisa mais forte: morar na Prefeitura enquanto enfrenta a morte.

Isso dá a ele não somente o título de sobrevivente, mas de salvador, ele é parte do povo em alguns recortes do vídeo e ao mesmo tempo é o cara que “foi criado para ser governante, veio de família, com história”. Ele é aquele que pode não só por saber, mas por jamais (nem em seu leito de morte) abandonar o povo.

Uma leitura dramática, mas real, o marketing político e as emoções movendo o voto. Não que isso nos torne irracionais, sabemos que emoções fazem parte das vivências e do nosso cotidiano, mas coloco aqui reflexões de onde nascem as paixões por aqueles que seriam nossos algozes?

Milton Leite, outro exemplo, irá usar forró em suas campanhas, mas para além disso formará uma família em torno de seu nome, um trabalho muito bem-feito que pode não mover montanhas, mas mantém poderes.

Uma família, pai e filhos, eleitos e que não só conquistam votos, conquistam emoção ao fazer um churrasco anual e abraçarem famílias que os seguem. É neste momento que você leitor mais crítico pode rir e dizer: “mas ele não faz nada, quem não vê isso?”, eu diria o oposto, ele faz muitas coisas, talvez nossos olhos estejam trancados em uma perspectiva tão crítica a ponto da nossa crítica não se aprofundar, por isso observo grupos políticos como a “Família Leite” e me coloco enquanto moradora e participante lendo suas placas, vendo emoção e fé nas pessoas a algum tempo.

Será que a emoção é descartável? Nesse jogo, eu precisaria te fazer sentir amado? Ou eu posso apenas conversar com você sem criar laço nenhum?

Trago novamente Bolsonaro (como fiz em meu último texto), uma figura sem dúvidas, inédita, e que ainda possui seguidores apaixonados, é paixão, as manifestações “pequenas” que ainda ocorrem são feitas pelos apaixonados, aqueles que já não se colocam como aprendizes, mas donos de uma verdade única: ele é o “mito”. É paixão. Getúlio Vargas vai mover laços através da rádio, é emoção, é nacionalismo, é o povo.

Talvez olhemos pouco para como vem sendo construído o cenário político no Brasil a anos, com Boni moldando a imagem de Collor nos anos 90, com prefeitos sendo “sexys”, com futuros candidatos provando masculinidade nas redes sociais.

Talvez olhemos pouco para como vem sendo construído o cenário político no Brasil a anos, com Boni moldando a imagem de Collor nos anos 90, com prefeitos sendo “sexys”, com futuros candidatos provando masculinidade nas redes sociais.

Existe mais para ver além do que nos enfurece? Talvez nem tudo seja sobre certo e errado? Talvez os abraços sejam dados aos aliados (sejam eles opostos anteriormente ou não). E os carinhos ao povo para manutenção de uma ideia do governante enquanto famoso. A voz, a imagem, o poder, são emocionais.

“Portanto, é preciso, em primeiro lugar, tentar esclarecer o que entendemos por emoção, antes de aplicar essa noção no exame da política contemporânea. Emoção encontra seu equivalente no velho sentido da palavra paixão, que designa o conjunto de movimentos afetivos, mais ou menos estáveis, engendrados pelo choque de um estado individual com a análise de uma situação. Isto implica em duas consequências importantes: as emoções não resultam de um encaminhamento puramente individual, mas se inscrevem em uma perspectiva social e cultural; elas não se opõem à cognição.”

Christophe Prochasson, Scielo Brasil, 2009

Eu poderia continuar escrevendo aqui as lógicas do coletivo nisso, o poder do discurso ou várias outras teorizações, mas esse texto buscou tratar que atrás de um ditador existia um grande amor, porque talvez o complemento que Belo faz na frase seguinte “sempre fui apaixonado por você”, possa ser utilizado de maneira muito ousada para fazer referência até aos nossos saberes inconscientes, as ideias que não aprendemos ou a costumes que carregam consigo valores únicos, pertencentes a uma única classe, que jamais perdeu. Eu sempre fui, nós sempre fomos apaixonados por algo, mas o quê?

As emoções não são ruins, o texto não pretendeu tratar campanhas políticas como algo horrível, muito menos desprezá-las, mas sim dar ao leitor um pouco mais de poder na hora de pensar política partidária. Não esqueçamos quem está do nosso lado, ao que podemos ser condicionados e até mesmo aquilo que pode ou não nos mover.

Ao quebrar e iniciar uma quebra de estruturas, compreendamos que eles irão fazer de tudo, usar todas as formas e reutilizar suas armas contra nós. Mas nós temos a nós. Nossa ancestralidade. Nossa construção.

“Eu sei que o sonho ainda pode acontecer.”

Belo, Reinventar


Jornalista Aline Rodrigues lança campanha para pré-venda de seu primeiro livro infantil

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O livro infantil escrito pela jornalista é um convite para o acolhimento das crianças nos momentos de confusão de sentimentos, e para viabilizar a publicação, Aline lançou uma campanha para pré-venda do livro.

Aline Rodrigues, é mãe da Helena, educadora popular, jornalista e moradora do Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Foto: Amanda Rodrigues

O livro “Meio sei lá o que”, escrito por Aline Rodrigues, traz histórias que buscam despertar conversas pós-leitura e a observação dos adultos para as necessidades que também são das crianças. Segundo a escritora, é um convite para o acolhimento das crianças nos momentos de confusão de sentimentos que precisam ser respeitados e escutados, com os ouvidos e corações abertos.

“Dialogar com o público infantil é algo que eu já faço há muitos anos, bem antes de ter a Helena, minha filha de seis anos. Gosto de saber o olhar das crianças sobre as coisas, de entender suas escolhas, seus sentimentos e de falarmos de diferentes assuntos sem nenhuma pretensão também.”

compartilha Aline Rodrigues, jornalista e autora do livro.

Escrever para as crianças foi sonhado pela autora há muitos anos, e todos os detalhes da produção foram pensados com a colaboração de muitas pessoas, e inclusive contou com apoio de sua filha Helena, que a inspirou nas inúmeras leituras que fizeram juntas. Aline faz questão que a pequena participe ativamente de todas as etapas desse projeto.

“Publicar esse livro é poder contar para o maior número de pessoas um pouco do que aprendi com as crianças. Acredito muito que uma sociedade que sabe acolher as demandas das crianças e se desprende de ter as necessidades somente dos adultos atendidas, naturalmente é uma sociedade melhor para todo mundo”, afirma Aline, e ressalta também que essa relação com o público infantil é garantia de aprendizado constante.

Sobre a publicação 

Para cobrir os custos de produção e publicação do livro, a autora lançou a pré-venda da obra através de uma campanha de financiamento colaborativo na plataforma Catarse. Quem apoia a campanha garante um exemplar antecipado do livro: https://www.catarse.me/seilaoque

Sabe aqueles dias ou até semanas em que não sabemos definir direito o que sentimos? “É meio, não sei, sei lá… É meio sei lá o que…”

Outro detalhe que a jornalista considera fundamental já em seu lançamento, é prever a versão em Libras e Audiodescrição da obra. A autora estuda libras há mais de cinco anos e busca tornar tudo o que faz o mais acessível possível. A acessibilidade está inclusa no orçamento do projeto publicado na plataforma de financiamento.

“Sou apaixonada por pensar a comunicação, sobretudo, uma comunicação que seja acessível para o maior número de pessoas, de diferentes perfis e necessidades. Então, quando pensei nesse projeto que é novo, que eu começaria do zero, entendi que era a oportunidade de já começar ele garantindo a acessibilidade.”

aponta Aline, lembrando que o Brasil tem mais de 10 milhões de pessoas com deficiência auditiva, muitas delas com surdez severa e que se comunicam fluentemente só com libras.

Além de leitora assídua de literatura infantil, Aline Rodrigues é mãe da Helena, educadora popular, jornalista e moradora do Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Também é co-fundadora da Periferia em Movimento, onde atua há 12 anos no jornalismo de quebrada. Elabora, coordena e realiza encontros de aprendizagem entre palestras, rodas de conversa e cursos nas temáticas de jornalismo, direitos humanos, culturas, identidades, narrativas e memórias periféricas.

A primeira obra da autora conta com ilustração de Zerlo, diagramação de Ju Dias e publicação pela editora A Tenda. Para adquirir a obra na pré-venda, acesse: https://www.catarse.me/seilaoque

“Grupos oprimidos já estão sofrendo as consequências”, apontam articuladores sobre questões climáticas nas periferias

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Para Amanda Costa e Wellington Lopes, debater a agenda climática dentro das periferias é entregar ferramentas para os moradores entenderem seus próprios direitos, já que são os maiores afetados pelo racismo ambiental. 

Amanda articula ações na Brasilândia com o objetivo de promover uma metodologia que transforme o território. Foto: Johnny Miller

Desde 2011, o Brasil celebra no mês de março o Dia Nacional da Conscientização sobre as Mudanças Climáticas. Essa data é muito representativa para Amanda Costa e Wellington Lopes, jovens moradores de periferia que atuam e debatem a agenda climática dentro de seus territórios.

Amanda Costa, 25 anos, moradora da Brasilândia, zona norte de São Paulo, começou a se interessar pelo debate de questões climáticas em 2017, quando recebeu uma bolsa para representar a juventude brasileira na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP 23.

“A partir do momento que eu ocupo aquele lugar e entendo a dinâmica do espaço, eu começo a me questionar: Por que esses homens brancos, héteros, cisgêneros, ricos estão falando como a crise climática vai impactar as pessoas jovens e pretas? Por que as pessoas jovens e pretas de quebrada, de periferia não estão nesse espaço?”

aponta Amanda sobre os questionamentos que se fez no início de sua atuação.

Quando voltou da Conferência, ela conta que teve sua percepção de mundo mudada e decidiu que ao invés de apontar os culpados no debate, iria se posicionar como mulher preta da Brasilândia que promoveria essa discussão.

“Eu assumi o ativismo climático como missão de vida e decidi que tudo que eu fizesse ia ter um cunho sustentável e ativista, nesse sentido da gente promover transformações sociais”, conta.

Contudo, Amanda relata que enfrentou algumas barreiras para a conscientização do debate dentro de seu próprio território. Ao chegar na Brasilândia e trocar ideia com os moradores, foi questionada:

– Amanda, você está falando da crise climática, do “ursinho polar” que vai ficar magrinho lá na Antártica, sério isso? A galera preta de quebrada está morrendo.

A ativista conta que assim começou a sua investigação para entender como poderia demonstrar que a galera preta de quebrada não está morrendo apenas de tiro, mas também por conta da comida cheia de agrotóxicos que chega ao seu prato, por exemplo.

“A gente está morrendo porque as temperaturas na favela estão aumentando e a população idosa sofre [por exemplo]. Então como que eu mostraria que esse genocídio não é só morte por tiro, né? Mas é toda a lógica de exclusão, de silenciamento, de opressão que faz com que as nossas vidas, vidas pretas e periféricas sejam ceifadas por esse sistema”

afirma Amanda, que a partir do entendimento dessas questões e do que ela poderia fazer, começou o debate com os moradores.

Após a COP23, Amanda tomou a decisão de se tornar uma ativista climática e debater o tema na Brasilândia e em outras periferias.  Foto: Johnny Miller

Atualmente, ela é diretora executiva na Perifa Sustentável, organização que criou para mobilizar a juventude em prol de uma agenda de desenvolvimento a partir da justiça racial e ambiental, e atua como vice curadora da Global Shapers, uma iniciativa do Fórum Econômico Mundial, composta e liderada por jovens entre 20 e 30 anos de idade.

A crise climática vivida no dia a dia 

Outro jovem ativo no debate de questões climáticas é Wellington Lopes, 25 anos, morador de Poá, zona Leste de São Paulo. Ele atua na Uneafro e lida diretamente com dois projetos que envolvem o tema: um de educação alimentar que estimula a alimentação sem agrotóxicos, e outro com os centros meteorológicos instalados nos núcleos para medir a temperatura e qualidade do ar de algumas regiões, além de uma horta comunitária que fornece alimentos para a campanha “Tem Gente Com Fome”.

“Eu tinha uma noção de crise e agenda climática muito parcial. Quando você começa a se aprofundar nos temas fica muito em choque de como a pauta climática atravessa todas as relações urbanas e rurais a longo prazo”, aponta Wellington. Para ele, o envolvimento dos moradores e da sociedade para entender a importância do debate das questões climáticas acontece de forma gradual, assim como foi com ele.

“Quando a gente começa a discutir sobre a instalação de centros meteorológicos, a gente entende que o desmatamento no Pantanal e na Floresta Amazônica gerou uma mudança dos fluxos dos rios e isso muda o padrão de chuva, então os lugares que já choviam bastante, vão chover num volume maior num curto período de tempo”

analisa.

Aparelho utilizado para medir a temperatura e qualidade do ar. Foto: Wellington Lopes

A partir desse fato, ele começou a olhar como essa questão impactava seu próprio bairro, a Cidade Kemel, e entendeu os motivos que fazem o território alagar com chuvas fortes. “Poá sempre tem muita enchente, chove e todo mundo fica desesperado de correr pro centro. Sobe o nível da água de cobrir as lojas”, diz.

Ele conta que quando situações desse tipo acontecem, os próprios moradores se mobilizam para acolher quem teve a casa alagada. Porém, essa mobilização acontece apenas no primeiro momento da situação, depois essas pessoas ficam sem respaldo algum para saber onde irão morar e como irão conquistar novamente aquilo que perderam. 

Para Wellington, é aí que o debate de questões climáticas se faz mais necessário: “Debater isso na periferia é fazer com que a senhora que perdeu tudo numa enchente, busque grupos e movimentos sociais que possam fazer com que ela entenda que na verdade ela poderia buscar alguma outra alternativa”, aponta, fazendo referência aos movimentos sociais, mas também a necessidade de políticas e suporte diretamente do poder público.

“Acho que é isso que a gente mais precisava: primeiro criar políticas públicas que reduzissem o impacto climático e segundo debater sobre como a gente precisa criar mecanismo de combate a todas essas ações nocivas da indústria do agronegócio, da agropecuária e a maneira como elas impactam as periferias”

enfatiza o cientista social. 

Para Amanda e Wellington, a discussão das questões climáticas dentro das periferias está ligada à importância de entender como o racismo ambiental já impacta os moradores da quebrada, situação que não é novidade nas periferias.

“A crise climática vai impactar todo mundo, mas não na mesma proporção, não ao mesmo tempo, não da mesma forma. A galera que está num grupo mais oprimido dentro de um sistema, já está sofrendo essas consequências”

exprime Amanda.

Eles elencam quatro principais formas que o racismo ambiental impactam os territórios periféricos:

  • Chuvas em maior volume;
  • Poluição do ar que tem gerado muitos problemas respiratórios na população;
  • Alimentação e a necessidade de barrar a agenda de agrotóxicos que trazem diversos problemas de saúde;
  • Poluição dos rios que está conectada diretamente com a segregação socioespacial, que diz quem são as pessoas que estão nas áreas com menos árvores e mais poluição.

“Pensar nesse racismo climático e como ele impacta a quebrada, é pensar em todo um histórico que colocou as pessoas pretas muito atrás desse ponto de partida”

ressalta Amanda.

“Ontem choveu e alagou tudo”: moradores se unem para enfrentar enchentes

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Com as fortes chuvas que vêm ocorrendo nos meses de janeiro, fevereiro e março, moradores afirmam que não conseguem esperar por atendimento de serviços públicos e se unem para resolver as demandas locais causadas pelas enchentes. 

Foto: Flávia Santos

 Os moradores do bairro Vila Gilda, localizado na beira da represa Guarapiranga, zona sul de São Paulo, enfrentam diariamente a preocupação com o impacto das chuvas no território, que promovem o fechamento do comércio local e a perda de móveis, sempre que a água invade as casas da região.

“Quando chove alaga a rua e entra água em algumas casas, e tem muita sujeira”, afirma a estudante Gabryely Rodrigues, 18, relata que as chuvas transformam a paisagem do bairro, levando grande quantidade de lixo para as ruas e casas.

A jovem conta que a qualquer sinal de chuva, a família dela fica em alerta, porque eles moram na última casa, o conhecido fim de rua na quebrada, e possuem uma lanchonete na garagem do imóvel, fator que aumenta os cuidados para impedir a entrada da água dentro de casa.

“Esses dias meu pai arrumou o encanamento porque entra água em tudo. Antes de ontem choveu e alagou tudo. Toda vez que chove, se for pouca ou muita chuva, o bueiro enche e a água desce toda pra cá, porque é a última casa da rua”, explica a estudante.

Foto: Flávia Santos

Morando há 20 anos no Vila Gilda, Gleica Andrade, ressalta que vivencia problemas semelhantes e diz que as fortes chuvas têm gerado a união entre os vizinhos.

Segundo ela, a maioria dos moradores acaba tendo que se juntar para limpar os bares e comércios da região, única fonte de renda de alguns vizinhos, que são bem afetados pelo lixo arrastado pela água.

“Os bares aqui ao lado todos sofrem, a parte ali na frente alaga, tem um outro que alaga dentro do bar, e até mesmo dentro da casa. Então assim, realmente aqui temos esse problema”, explica Gleica.

 Pelo fato do Vila Gilda estar localizado em uma área de manancial, a situação de quem mora na região se complica ainda mais, quando eles tentam realizar um pedido de manutenção da tubulação de água e esgoto do bairro para os órgãos públicos responsáveis.

“Por aqui ser uma área manancial, como eles (órgãos competentes) alegam, eles falam que não tem o que fazer, só que na verdade tem. O problema é: ou o proprietário faz, ou ninguém faz. O pessoal se une, cada um faz sua parte”

relata Gleica. 

A integrante do Fórum Fundão das Águas, Vera Luz, professora e pesquisadora de questões ligadas à moradia e meio ambiente, aponta que há um conflito social na região ligado à ocupação de terrenos às margens da represa Guarapiranga.

“Existe um conflito difícil de resolver, que é o direito à moradia e o direito ao meio ambiente. Porque a área da represa é uma área de mananciais, é um decreto legal. A ocupação desta área segue uma série de regras específicas”, argumenta Vera.

Ela explica que existem muitas questões que já foram e que ainda devem ser discutidas referente a realidade da população, que mora à beira da represa ocupando espaços considerados mananciais e de preservação ambiental, mas que possuem o direito de moradia e ter uma casa por lei.

“Está acontecendo um problema de habitação, que no caso ela tem que ser regularizada porque não está sendo suprida. Todos têm direito para morar, mas o Estado não faz o que a Constituição manda”, pontuou a pesquisadora.

Vera também disse que há anos atrás quando esses espaços foram começando a serem ocupados pela população, um debate foi iniciado, onde os pesquisadores colocaram em pauta o fato do salário de um cidadão não ser o suficiente para pagar uma casa de boa qualidade e num local também considerado melhor para morar com sua família, por isso muitas dessas pessoas passaram a morar nessas áreas, por se tratar de um custo melhor.

“As pessoas não vão ocupar espaços mananciais por acharem bonitinho, mas porque o seu dinheiro não paga. Então é um problema também relacionado à capital de trabalho”, finaliza.

Jogos online ameaçam cultura de empinar pipa nas periferias

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Comunidades virtuais formadas por crianças e adolescentes têm reduzido drasticamente o convívio presencial e coletivo nas periferias e favelas, impactando a existência de brincadeiras como a cultura de empinar pipa.

Morador empina pipa no Jardim Monte Azul, zona sul de São Paulo(Foto: DiCampana Foto Coletivo)

“É época de pipa, o céu tá cheio, 15 anos atrás eu tava ali no meio”, canta Mano Brow na icônica música ‘Fórmula Mágica da Paz, a faixa 11 do disco Sobrevivendo no Inferno, lançado em 1997, considerado um dos principais trabalhos artísticos do Racionais Mc´s.

Quase três décadas depois do lançamento desta música que provocou uma série de reflexões sociais e políticas nos próprios moradores sobre o impacto da violência policial no cotidiano das periferias e favelas do Brasil durante a década de 90, muitos aspectos daquela época ainda permanecem atuais, como por exemplo o genocídio da juventude negra.

Além de narrar o contexto sobre a violência urbana vivenciada principalmente nas periferias e favelas da zona sul de São Paulo, como nos territórios do Capão Redondo e Jardim São Luís, a música Fórmula Mágica da Paz também descreve a marcante cultura de soltar pipa, uma brincadeira simples, comum e presente na vida das crianças, jovens e adultos da quebrada que enchiam os céus das periferias, até a popularização do acesso ao celular.

Observar os céus das periferias e favelas de São Paulo durante as férias escolares que acontecem nos meses julho, dezembro e janeiro, e vê-lo vazio, com poucos ou nenhum pipa no ar tem sido doloroso, pois a cultura de soltar pipa faz parte da minha formação cultural como sujeito periférico.

A brincadeira que atravessa gerações de famílias vem correndo sérios riscos de ser extinta, graças ao avanço do entretenimento digital, que prende principalmente a atenção das crianças dentro de casa e as impede de construir vínculos comunitários e coletivos em ambientes físicos com outras crianças e adolescentes.

Esse é um dos principais legados da cultura de soltar pipa nas periferias: promover o vínculo comunitário, afetivo, social, respeito e principalmente a diplomacia entre as crianças e adolescentes que não se conhecem, que muitas vezes se desentendem por causa da brincadeira, fato que promove a cultura do diálogo, para que elas mesmas consigam resolver suas questões.

As tradicionais brigas entre crianças e adolescentes da rua de cima e da rua de baixo por causa de uma laça desleal, envolvendo o famoso ‘corta na mão’, estão deixando de existir. Uma vez que essa possibilidade de conflito, convivência e aprendizado é reduzida ou quase exterminada, por conta do consumo de entretenimento digital, o processo de desenvolvimento interpessoal das crianças é impactado de forma negativa.

As lajes da quebrada 

As lajes das periferias e favelas e os poucos terrenos baldios que restam na quebrada já não são ocupados por diversos grupos de crianças e adolescentes para soltar pipa, eliminando o ritual de realizar de forma coletiva as coleções de pipas e linhas, bem como a experiência de fazer rabiola juntos e de enrolar a linha nas latas de óleo e leite ninho.

Mas quais fatores sociais, culturais e tecnológicos têm causado o abandono da cultura de soltar pipa na quebrada?

O princípio desta resposta passa pelo fenômeno da construção de plataformas de jogos eletrônicos que simulam a brincadeira de soltar pipa e que também propõe a formação de comunidades virtuais que propõem substituir o encontro presencial entre crianças e adolescentes, tornando o jogo um mediador das relações entre esse público.

O celular é o dispositivo mais utilizado para acessar esses jogos. Entre eles, está o Pipa Combate, um simulador da brincadeira de soltar pipa com 50 milhões de downloads, que oferece uma experiência bem próxima da realidade, para os usuários realizarem laças entre outros jogadores.

O jogo também oferece a possibilidade de construir comunidades virtuais para realização de festivais de combate de pipa online, tornando possível construir grupos de até oito jogadores. Desta forma, é comum surgirem grupos de crianças e adolescentes que se conhecem por meio do jogo e constroem vínculos cibernéticos, a partir desta experiência.

Crianças brincam com o cano de pvc com bexiga na Favela do Fim de Semana, Jardim Sao Luis, Zona Sul de São Paulo. (Foto: DiCampana Foto Coletivo)

Plataformas do brincar 

Mas não é só o Pipa Combate que vem impactando a cultura de soltar pipa nas periferias. Com mais de 1 bilhão de downloads, o Free Fire é um jogo que também permite a possibilidade de construir comunidades virtuais entre os jogadores. As crianças e adolescentes da quebrada adoram esse jogo.

Nos anos 90, a brincadeira de ‘Polícia e Ladrão’ movimentou os becos e vielas da quebrada, onde as crianças usavam canos de pvc acoplados com bexigas para atirar mamonas ou caroços de feijões em seus adversários. Era uma febre nas periferias e favelas, pois permitia a criação de pequenas armas.

E os grupos de crianças e adolescentes que brincavam de ‘Polícia e Ladrão’ eram exatamente os mesmos que terminavam de soltar pipa ao cair da tarde, e partiam para brincar com as arminhas de cano de pvc nas ruas no entorno de suas casas.

De maneira coletiva e num plano digital, os jogadores saem das ruas do seu bairro e vão para as ruas ambientadas no jogo online, desta forma, o Free Fire reproduz essa cultura do brincar, agregando uma série de características que tornam o jogo bastante atraente no universo da cultura gamer.

Esses dois exemplos de entretenimento digital para crianças e adolescentes representam uma pequena demonstração do que está acontecendo neste momento nas periferias e favelas do Brasil, em relação às mudanças de comportamento da infância e da juventude no contexto de brincadeiras tradicionais que estão desaparecendo, como a cultura de soltar pipa.

*Ronaldo Matos é jornalista, educador, pesquisador de tecnologias da informação e comunicação em contextos de periferias urbanas, e editor do portal de jornalismo periférico Desenrola E Não Me Enrola.