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Drogas e aborto: por uma política de cuidado

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No mês de junho, assistimos a discussões muito importantes no Brasil sobre a criminalização do aborto e a Lei de Drogas. Infelizmente, na maioria dos casos, a conversa começa com “não estamos discutindo a descriminalização” ou “não está em discussão a legalização”. E, para ambos os temas, isso é uma grande pena.

Não é nenhum segredo que o atual sistema de guerra às drogas é ineficiente. Ele colabora para o encarceramento em massa baseado em raça e território, e para um altíssimo índice de mortes violentas (em especial de jovens homens negros). Ao mesmo tempo, a criminalização do aborto resulta no elevado índice de abortos inseguros, com uma morte a cada dois dias, à violência obstétrica e ao consequente medo de procurar ajuda médica. 

Em 2022, mais de 150 mil mulheres foram internadas no SUS por complicações de abortos inseguros e estima-se que pelo menos meio milhão de abortos sejam realizados no Brasil todos os anos.

Trago todos esses dados (e links) para dizer o óbvio: a proibição não impede a realização de abortos, não evita nem trata o uso abusivo de drogas, não protege as gestantes, nem protege nenhuma família. 

O que a criminalização faz é favorecer o tráfico, o mercado de armas e o aumento da violência.

No país, poucas são as políticas públicas de reabilitação para quem faz uso problemático de drogas. O que vemos é a proliferação de comunidades terapêuticas religiosas com poucos ou nenhum profissional especialista no tratamento de desintoxicação e muitas acusações de tortura e abusos sexuais

Mas, se esse viés de encarceramento e criminalização não dá resultado, o que aconteceria se ao invés de tratarmos esses temas com políticas criminais, os tratássemos com políticas de saúde pública? 

Para dar apenas um exemplo aqui do lado: na Argentina, após a legalização do aborto e a implantação de uma política de educação sexual integral, a morte materna e de gestantes caiu 43%, enquanto a gravidez na adolescência teve uma redução de mais de 40%. 

No caso das drogas, já existem experiências positivas que mostram que, ao invés de marginalizar as pessoas usuárias e prender por quantidades mínimas, poderiam ser criados espaços para o uso seguro, com insumos desinfetados – evitando a contaminação por uma série de doenças – e apoio profissional em caso de crises, overdoses e na busca de tratamento para quem quer deixar de usar drogas. Tudo isso articulado com a inserção em programas de assistência social, quando necessário, com um plano pensado caso a caso. Isso tudo é redução de danos.

Em poucas palavras, a redução de danos é uma postura ética e política que propõe uma reflexão ampliada sobre práticas que podem causar danos, investindo no acesso à informação e cuidados para a redução desses danos. 

Por exemplo: quando alguém te diz para beber um copo de água e/ou se alimentar a cada tanto de cerveja, está cuidando para diminuir os efeitos ruins que o álcool pode trazer ao seu corpo. Isso é redução de danos. É uma política e uma prática de cuidado que incentiva estratégias de proteção e mudanças de atitude em situações de risco e vulnerabilidade. 

No entanto, essa postura exige que olhemos para drogas e aborto (nos exemplos que estou usando aqui) sem moralismos e que tenhamos respeito pela autonomia corporal de cada pessoa.

De uma perspectiva da redução de danos, a descriminalização do aborto poderia zerar as mortes por procedimentos inseguros, com todas as pessoas podendo acessar abortos seguros pelo SUS ou na rede privada; poderia aumentar a cobertura de planejamento familiar, já que um método contraceptivo de longa duração poderia ser oferecido após o procedimento; e poderia inclusive contribuir na identificação de situações de violência intrafamiliar.

Acolher, ao invés de criminalizar, abriria um espaço para a proteção integral, para que a pessoa em situação de vulnerabilidade – e sua família – possa ser cuidada.

Quando o foco é apenas no punitivismo, a única porta que se abre é a da prisão e essa não cuida da pessoa viciada, nem da que abortou de maneira insegura, não protege sua família, não acaba com o tráfico de drogas e nem de medicamentos. 

Não seria mais eficaz trabalhar com uma perspectiva de redução de danos, criando uma política de cuidado, ao invés de apenas investir em punitivismo? Até um ministro do STF reconheceu o problema de desigualdade social e racial que envolve a política atual de drogas (te convido a tirar uns minutos para ver este vídeo sobre como este mesmo ministro lidava com o tema há alguns anos atrás).

A criminalização não cuida de ninguém, ela só beneficia os traficantes. E estamos falando aqui de quem carrega drogas de helicópteros e Hilux, tranquilão, morando em casas cheias de armas, em condomínios fechados, em bairros onde a polícia não entra sem mandado, e não dos moleques que morrem jovens, vendendo droga sem camisa nas biqueiras das quebradas. 

Investir em uma política de cuidado seria, isso sim, trabalhar em prol das famílias brasileiras e contra a atual política de morte.

*Se quiser saber mais sobre redução de danos e política de drogas, recomendo que você assista à entrevista da Nathália Oliveira, aqui no desenrola e veja a série Que Droga é Essa, do Justificando. Acompanhe também a Rede de Feministas Antiproibicionistas e a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Liderança indígena pauta trajetórias coletivas na busca por políticas públicas

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Ao nos receber em sua casa, logo de início, Chirley Pankará faz questão de apresentar o ambiente em que estamos chegando, a ‘Sala da Memória’, espaço que abriga peças e obras que dialogam sobre território e memória. “[Aqui] tem peças de barro do meu núcleo familiar, peças de vários povos indígenas, e aí a gente vai se conectando com essas ancestralidades também. Isso me mantém no processo de territorialidade, que é a conexão que eu faço na cidade em situação de contexto urbano [com] o território indígena”, explica.

Chirley Pankará, 50, é pedagoga, doutoranda em antropologia, e conta que sua família é do território reconhecido como Serra do Arapuá, no município de Carnaubeira da Penha, em Pernambuco. “Nós fomos trabalhar em fazendas [na] zona rural [do município] de Floresta, que não é a mesma [região] das aldeias Pankará”. Ela menciona que essa migração foi a alternativa encontrada pela família para conseguir trabalho e subsistência.

Em 1998, Chirley migrou para São Paulo pelo mesmo motivo, “vim para trabalhar como empregada doméstica”, conta. Atualmente, ela mora no bairro Jardim São Francisco, localizado no distrito de São Rafael, na zona leste de São Paulo. 

“Muitos indígenas que vivem em situação de contexto urbano, vivem nas periferias. Quando eu falo periferia também estou falando de povos indígenas. É que há um pensamento distorcido de achar que o indígena está só dentro da aldeia.”

Chirley Pankará, pedagoga e doutoranda em antropologia.

Ela identifica sua ligação com a militância e a liderança desde a infância, quando sua avó Maria Divina, conhecida como Mãe Bó, que era parteira e benzedeira, pedia ajuda na busca de ervas, e Chirley prontamente ia procurar na mata para auxiliar. 

Chirley traz que sua atuação nos movimentos sociais antecede sua participação na política partidária. “Eu era ligada à política pública da luta dos movimentos sociais”, comenta. Ela conta que sua trajetória política é permeada pela escuta, oralidade e pela construção de redes. 

A partir dessa perspectiva de construção conjunta, Chirley fala sobre um tipo de liderança, que se estabelece por um querer coletivo. Segundo ela, é por esse direcionamento que está como pré-candidata a vereadora de São Paulo. “Algumas pessoas, que não estão dentro do contexto indígena de coletividade, de escutas, [não entendem] quando eu digo que foram os povos indígenas que escolheram”, compartilha.

Reunião com lideranças políticas e indígenas, na Terra Indígena Jaraguá, em 2022 (foto: Rafael Vilela)

“Em São Paulo capital, por exemplo, nós temos 19.777 indígenas, apontou o IBGE. Com 19.777 [votos] não elege uma vereadora. E estamos contando que nesses 19.777 temos as crianças”, expõe Chirley ao explicar que por causa dessa quantidade de votos não seria uma boa estratégia lançar duas candidaturas ao mesmo tempo, e que é desse modo que os indígenas geralmente se organizam politicamente, sem competir entre si.

Trajetória

Em 2007, Chirley começou a cursar pedagogia como bolsista por renda. No ano seguinte, após ingressar na faculdade, passou a se conectar com outras atuações. “Eu me encontrei com os parentes indígenas [e] comecei a participar de movimentos indígenas”, diz. E de lá para cá não parou mais. “Em 2009, fui para a minha primeira viagem fora de São Paulo no sentido da militância, representando a questão indígena”, conta. 

Desde então Chirley já integrou o Conselho Nacional de Mulheres Indígenas representando a educação, participou da 2° Conferência Nacional da Igualdade Racial, foi para a Rio+20, para a Conferência Global de Mulheres Indígenas em 2013, realizada no Peru, participa do ‘Acampamento Terra Livre’, entre outras movimentações. 

Chirley no Congresso Nacional reivindicando a demarcação de terras indígenas, durante o Acampamento Terra Livre (foto: arquivo pessoal).

Através dessas articulações, Chirley conheceu Edson Kayapó, que é escritor, ativista indígena e historiador. Ela a indicou para o Observatório da Educação Escolar Indígena, na PUC, onde iniciou como estudante e após o primeiro ano passou a atuar como professora, de 2009 a 2012, período que também começou o mestrado.

Em 2010, também a convite de Edson Kayapó, foi Coordenadora Geral das escolas de primeira infância do Povo Guarani, em três Centros de Educação e Cultura Indígena (CECIs), na Tenonde Porã e Krukutu, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, e no CECI Jaraguá, no Pico do Jaraguá.

Chirley como doutoranda em Antropologia Social da USP, no Seminário internacional de antropologia. (foto: arquivo pessoal).

“Eu fui aprovada [como] a primeira mulher indígena a entrar no doutorado em antropologia social na USP, como cotas”, aponta Chirley, que reivindica ter professores e autores indígenas como referências no curso. 

Identitarismo

Chirley conta que foi apenas em 2018, que filiou-se a um partido político. Através do Emerson Guarani Nhandeva, que é professor e pesquisador, ela foi chamada para conhecer e participar da campanha da Bancada Ativista. A Pankará comenta que na ocasião ainda não conhecia como funcionavam os mandatos coletivos. 

Na última reunião para definir as co-candidatas do mandato, a pedagoga foi para entender mais sobre, e ao final do encontro passou a compor a Bancada Ativista, que ganhou as eleições de 2018. “Eu fui para a reunião e senti que dava pra dialogar, porque eu vi pessoas que se aproximavam da minha pessoa. Eu pensava que eu ia ver só aquele povo metido, nas gravatas, no salto”, comenta.

Sobre as dificuldades de atuar na política enquanto mulher indígena, nordestina e periférica, Chirley diz que há várias formas de preconceito. “Você tem que ser 10.000 vezes mais forte, pra poder se manter de pé, fazer políticas públicas e combater isso”, coloca. 

“Eu [já] vi muitas pessoas falarem assim: ‘ela traz uma pauta identitária’. Como se quisesse me xingar, sabe?”

Chirley Pankará, pedagoga e doutoranda em antropologia.

A pedagoga afirma que as pautas que contemplam os povos indígenas também podem ser necessárias para a cidade. “Quando estou falando de privatização da água, da Sabesp, estou falando de um braço que se conecta com meio ambiente. A especulação imobiliária, as ecovias verdes, tantas coisas que vão servir para a cidade e para a aldeia”, exemplifica. 

Chirley também aponta que a visão estereotipada e de tutelagem sobre os indígenas ainda existe, tanto na sociedade como nos espaços políticos, e que esse imaginário precisa ser descolonizado.

Chirley Pankará, pré-candidata a vereadora de São Paulo, fala sobre militância e representatividade indígena na política paulistana.
Chirley como Coordenadora Geral de Promoção à Políticas Culturais, pelo Ministério dos Povos Indígenas (foto: arquivo pessoal).

Em 2023, a Pankará atuou como Coordenadora Geral de Promoção à Políticas Culturais, pelo Ministério dos Povos Indígenas, e se desvinculou para concorrer às eleições de 2024. “Estou a serviço do movimento indígena, uma liderança é a serviço da coletividade. A gente tem que honrar a memória dos nossos ancestrais”, finaliza.

Trajetória política: Agatha Benks fala sobre a busca por representação na política institucional

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Agatha Benks, 38, é uma mulher negra, travesti, de matriz africana e periférica, que está como pré-candidata a vereadora do município de Cachoeiro de Itapemirim, do Espírito Santo, cidade onde mora, no bairro Bela Vista. Agatha conta que construiu uma trajetória de vivência política que antecede essa primeira candidatura que disputa nas eleições de 2024.

“Eu sou ativista de direitos humanos e trabalho com educação social, com coletivos e ONGs de empoderamento e fortalecimento da população preta e periférica”, diz. Agatha é vice-presidente do Conselho Estadual LGBTQIAPN+ do Espírito Santo, assessora parlamentar da deputada estadual Camila Valadão, pelo PSOL, partido no qual é filiada desde 2019, e também atua na área da cultura.

Trajetória política: Agatha Benks fala sobre a busca por representação na política institucional
Agatha Benks em um evento do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). (foto: arquivo pessoal).

“Enquanto mulher trans e periférica, eu sou uma sobrevivente por não aceitar nada que a sociedade historicamente colocou para o meu corpo. Eu não aceitei a prostituição como a minha única opção de vida. Eu relutei contra isso por vários anos, desde quando eu me entendi travesti”, coloca.

Aos 16 anos, Agatha abandonou os estudos por causa dos preconceitos e hostilidades que sofreu quando cursava o ensino médio em uma escola pública. Foi nesse período que ela vivenciou a prostituição.

Agatha na composição do conselho estadual lgbtqipn+ do Espírito Santo (foto: arquivo pessoal)

“[Eu tinha] medo desse submundo de marginalização das mulheres trans, deste lugar que é extremamente inseguro, incerto e violento. Então eu procurei outros caminhos”. A partir daí, Agatha começou a trabalhar como cabeleireira. “Quando se é uma travesti [ou] trans, você é manicure, cabeleireira e maquiadora ou você vai fazer programa, porque você não acha outro emprego”, afirma.

Após se estabelecer como cabeleireira e voltar a estudar, ela optou por trabalhar em áreas que se relacionam com a militância sobre negritude e a comunidade LGBTQIAPN+. “Por mais que eu não esteja [mais] naquele ambiente [de prostituição], eu também não quero que as minhas amigas estejam lá”, menciona a assessora, que concluiu o ensino médio atraves do EJA (Educação de Jovens e Adultos), e por meio do ENEM, cursou Gestão Pública com bolsa de estudos pelo PROUNI.

“É só na educação e no estudo que a gente consegue romper [os preconceitos], se você quer combater o racismo, o preconceito, estude, é a única forma de você enfrentar o que está imposto frente a todos esses recortes de violações de direitos humanos.”

Agatha Benks, vice-presidente do Conselho Estadual LGBTQIAPN+ do Espírito Santo e pré-candidata a vereadora de Cachoeiro de Itapemirim.

Garantir o direito ao uso do nome social foi uma das dificuldades da graduação na universidade em que conta ter sido a primeira travesti a estudar. Nesse período, a assessora relata que outras mulheres trans e travestis da região passaram a acreditar que estudar e se formar era um caminho possível. “Foi muito simbólico, outras meninas se viram representadas”, diz.

Embora já tivesse conexão com as pautas que aborda, a universidade também fortaleceu sua militância, e de lá surgiram os direcionamentos da área que passou a trabalhar. Foi nesse espaço que conheceu coletivos, grupos de diversidade, negritude e que desenvolveu um lado politizado com o respaldo na palavra.

Atuação política no território

“A periferia está sempre formando homens e mulheres, jovens, negros, lgbts, ou não lgbts, a periferia está sempre formando o povo preto, porque é o lugar de todas as [nossas] vivências”,  menciona Agatha.

Desde 2016 ela atua no instituto FEPNES (Instituto de Fortalecimento e Empoderamento da População Negra + Diversidade), no qual atualmente é coordenadora da pasta de diversidade. O instituto realiza ações que promovem os direitos humanos das pessoas lgbtqiapn+, mulheres e jovens negros. Entre essas ações está a oferta de cursos nas áreas de empreendedorismo em comunidades do Espírito Santo.  

Suas vivências enquanto travesti, negra e periférica interferiram na decisão de entrar na disputa da política institucional e buscar combater o racismo. “A partir do momento que a gente desce um morro e vai para o centro a gente entende o preconceito territorial. O preconceito de você ser periférico, porque as pessoas vão te olhar e julgar”, coloca.

Agatha no Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Estado do Espírito Santo. (foto: arquivo pessoal).

“O menino [negro] de 17 [ou] 18 anos se desce para a rua de sandália, boné e cordão, automaticamente uma viatura vai parar ele. Quando ele entrar numa loja um segurança vai acompanhar ele”, exemplifica Agatha. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 83% dos mortos pela polícia em 2022, no Brasil, eram negros, pobres e residentes das periferias, sendo que 76% tinham entre 12 e 29 anos. 

São todos esses recortes e demarcadores que estão presentes na trajetória da assessora. “Minhas frentes de atuação [são] a negritude e a diversidade da população LGBTQIAPN+. Minhas bandeiras são homens, mulheres e jovens negros e negres. E dentro dessa militância da negritude tem os povos de terreiro e de matrizes africanas que também é um povo muito violentado”, coloca Agatha.

Desafios e motivações

Agatha diz que foi nas eleições de 2022, que começou a considerar a possibilidade de se candidatar, e a ideia veio a partir da sua atuação como assessora parlamentar. Foi através dessa experiência que começou a entender de fato como a política institucional é feita, e incentivada por pessoas parceiras, decidiu pela candidatura.

“Pessoas de terreiros, de matrizes [africana], lgbtqiapn+, pretas, periféricas, essas pessoas começaram a comentar em posts meus [nas redes sociais]: ‘você me representa’, ‘eu tenho orgulho’. Foi que eu entendi que posso realmente representá-los de fato, com garantias de lei”, coloca Agatha. Ela comenta que essa motivação foi fundamental, já que, segundo a pré-candidata, o Espírito Santo é um estado conservador. 

Em 2023, pelo 15º ano consecutivo, o Brasil seguiu sendo o país que mais assassina pessoas trans, conforme mostra o “Dossiê: Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras”, realizado pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

Para Agatha, ser uma mulher, negra, travesti, de terreiro e periférica dentro da política partidária é um posto que reúne diferentes tipos de representatividades e que isso também torna o meio político um local cheio de desafios para pessoas como ela.

“Aqui na minha cidade não precisa literalmente ser eu. Eu estou aqui pela primeira vez [me pré-candidatando], mas que tenha uma pessoa igual a mim, porque a gente entende a importância desse corpo político”, comenta. Agatha ainda menciona que mulheres trans na política, como Erika Hilton, Deputada Federal, é algo que a motiva e inspira nessa empreitada por um cargo político e por dias melhores.

O destino da adolescência periférica num teste de gravidez

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A história que pensei em contar foi do primeiro dia que fiz teste de gravidez na Unidade Básica de Saúde (que muita gente chama de posto ou postinho).

O ano era 1998, a região era o Grajaú e eu tinha 14 anos. Minha mãe estava grávida do meu irmão caçula e, numa conversa com a vizinha, ela contou que havia teste de gravidez gratuito no SUS. 

Eu nunca tinha feito sexo com meninos, então obviamente eu não estava grávida, mas eu fiquei muito curiosa para saber como funcionava um teste de gravidez. 

Chamei algumas amigas da minha rua para irmos ao Postinho fazer o teste de gravidez. Como você sabe, geralmente adolescentes da nossa quebrada adoram andar em grupos de cinco ou mais pessoas e eu não era diferente. 

Juntei meu bando e fomos para a UBS. Lá fomos recebidas pelo guardinha que contou que os testes eram feitos às 8h da manhã e por ordem de chegada.

– Cheguem cedo, porque a fila é grande.

No dia seguinte a gente foi bem cedo, 6h30 já tinha gente na fila e nós ficamos lá esperando.

A gente estava com medo de algum vizinho descobrir que íamos fazer o teste de gravidez e contar para nossas mães. A gente nem transava, mas vai explicar isso para nossas famílias. Meu pai não ia acreditar!

8h o portão da UBS abre e o guardinha pergunta:

– Quem vai fazer teste de gravidez?

O cara gritou, mas mesmo com medo, a gente levantou o dedo.

– Aqui moço!

Ele nos entregou um copinho descartável daqueles de cafezinho e um pedaço de papelão escrito um número e disse que era a senha. Lá pelas 9h ou 9h30, a gente recebeu a orientação de que precisávamos fazer xixi naquele copinho e esperar na fila até nosso número ser chamado. Obedecemos.

Agora imagina a cena: cinco meninas de chinela de dedo, canela cinzenta, risadas mascarando a vergonha e segurando um copinho de xixi na recepção da UBS.

Lá pelas 10h a gente começou a colocar os copinhos numa mesa enquanto uma moça – que não se apresentou – colocava os pauzinhos do teste nos recipientes com a nossa urina.

Em quinze minutos ela começa a chamar senha por senha. 

Minhas amigas saiam rápido e eu, mesmo nunca tendo feito sexo penetrativo na vida, cheguei a pensar:

– Meu Deus, será que eu tô grávida?

Minha vez chegou. Entrei na sala e a moça disse:

– Elânia? Tá negativa. Tchau e até o mês que vem.

Aquele “até o mês que vem” passou batido por um bom tempo e eu nem me toquei do que aquelas palavras queriam dizer.

Como ela tinha tanta certeza de que eu voltaria mês que vem? Por que ela disse para mim que nos veríamos no próximo mês?

Muitas vezes, quebrada, as pessoas tratam adolescentes de periferia como se o destino já estivesse traçado. Esse menino é malandro e tá na cara que vai ser bandido, essa menina é assanhada, tá na cara que vai engravidar na adolescência. 

Tratam adolescentes de quebrada como pessoas com “cara de favelada”, a cara de quem tem o destino traçado, a cara de quem tem futuro limitado, a cara de quem é culpabilizada pela ausência de serviços e lugares que falem com a gente na nossa língua.

Colocam na adolescência periférica a culpa e desacreditam de meninas que, como eu, só queriam saber como funciona um teste de gravidez.

Ninguém, naquela época, era obrigada a saber que eu e minhas amigas só queríamos saber como era o teste, mas ninguém deveria ter dito que nos esperaria no próximo mês, afinal, obviamente ela vai voltar mês que vem. 

Ninguém me ofereceu camisinha para prevenir gravidez, o que recebi foi a previsão de um destino que não se cumpriu. Não engravidei na adolescência, mas muitas de minhas amigas, sim. 

A ausência ou escassez de espaços para conversar com adolescentes de forma respeitosa e transparente sobre sexo e sexualidade, faz com que não acessem informações e não saibam ou não queiram se prevenir de uma gestação não desejada ou Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST).

Adolescentes de quebrada merecem liberdade e informação para construir suas próprias histórias e não seguir o modo automático de viver um destino traçado pelos outros. 

Me conta aí, o que passou pela sua cabeça com essa leitura?

Até a próxima. 

Saúde, quebrada.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Bancos comunitários combatem desigualdade de acesso ao crédito nas periferias

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Enquanto os bancos tradicionais dificultam o acesso ao crédito para pequenos empreendedores e pessoas de baixa renda no Brasil, os bancos comunitários Palmas, localizado na periferia de Fortaleza, e Paulo Freire, localizado na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, estão reduzindo taxas, criando moedas digitais, facilitando acesso ao crédito e fortalecendo empreendedores locais.

Uma das pessoas impactadas por essas instituições financeiras comunitárias é Márcia Rodrigues, 52, moradora do bairro Jangurussu, em Fortaleza, que se tornou empreendedora do ramo de alimentos com o apoio do banco Palmas, instituição financeira comunitária, após conseguir acesso ao crédito necessário para iniciar e expandir o empreendimento “Bolo Bolo”.

Ela conhece o banco Palmas desde os anos 2000, quando trabalhava como coordenadora em uma creche comunitária, que também era um centro de nutrição. Nessa época, Márcia não recebia nem um salário-mínimo e para complementar a renda ela começou a aprender a cozinhar.

Com o apoio de cursos oferecidos gratuitamente pelo Banco Palmas, ela conseguiu estruturar um novo ramo de atuação profissional, passando a fazer tortas de frango, bolos e salgados para vender na porta de casa.

“O dinheiro para fazer isso era tão pouco. O que entrava a gente tinha que comprar [os ingredientes] novamente, e essas coisas não têm um retorno a curto prazo, porque você tem que investir. Aí eu pensei: ‘vou procurar o banco Palmas para ver se consigo fazer um empréstimo’.” relembra a empreendedora.

Ela conseguiu esse empréstimo para investir no empreendimento. “Eu cheguei a fazer [empréstimo de] até R$ 5.000. Então, [o negócio] deu uma guinada, porque eu pude fazer bastante coisa com esse valor. Eu fui comprando os equipamentos”, aponta a empreendedora.

Emanuel Kayro de Souza Costa, funcionário da Bolo Bolo. (foto: arquivo pessoal)

Márcia menciona que ela solicitava o crédito, empregava o dinheiro arrecadado, e o que ela conseguia de retorno era usado para pagar o empréstimo, o lucro servia para continuar os trabalhos. Com o tempo, ela abriu uma lanchonete e contratou três funcionários, gerando renda e trabalho na região.

Moeda própria e tarifas mais baixas

Segundo Joaquim Melo, criador do Banco Palmas, a instituição financeira comunitária é a primeira no Brasil. A iniciativa tem uma atuação inovadora por lançar o E-dinheiro, primeira moeda digital brasileira criada com o objetivo de promover inclusão econômica de pessoas de baixa renda, como a dona Márcia, criando uma plataforma digital para operar a moeda com juros mais baixos no acesso ao crédito e outros serviços bancários, em relação aos bancos tradicionais.

Ao criar essa estratégia, o banco foi desenvolvendo uma série de processos que vão na contramão da cultura de instituições financeiras tradicionais, que se baseiam em taxar praticamente todos os serviços utilizados pelos consumidores.

“As taxas de juros são menores, a análise do crédito é mais rápida, não é obrigado ter cadastro limpo, tem acompanhamento e tu vai ter estratégia de comercialização [no caso dos empreendedores]. No banco tradicional o crédito serve para ele [o banqueiro] ganhar dinheiro. No banco comunitário o crédito é uma estratégia de desenvolvimento do território, ou seja, a gente empresta dinheiro para o bairro crescer”

Joaquim Melo, fundador do Banco Palmas e criador da E-dinheiro.

O fundador do Banco Palmas explica que embora cada banco comunitário tenha autonomia para decidir uma taxa de juros, há um protocolo que estabelece que seja cobrado “uma taxa de no máximo até 1%, para poder ficar abaixo do que é praticado no mercado”. Ele explica que essa taxa de juros está estabelecida com base na Lei da Usura 22.626, de 7 de abril de 1933.

Enquanto os bancos comunitários adotam a taxa de juros de 1% ao mês para fornecimento de crédito pessoal, os principais bancos comerciais brasileiros têm uma taxa média de 7,94% ao mês, segundo estudo mensal do Procon- SP, divulgado no mês de fevereiro de 2024.

Neste contexto, Márcia, a empreendedora de Fortaleza, ressalta: “não tenho mais conta em banco comercial”. Ela justifica essa mudança de cultura com o exemplo de sua mãe. “Todo mês na conta da minha mãe vem R$ 60 descontado só da taxa de manutenção, mesmo recebendo um benefício pelo INSS. Isso é um absurdo para um trabalhador.”

Ela conta que na plataforma E-dinheiro esse tipo de taxa não existe e menciona as diferenças nas cobranças de taxas entre os diferentes tipos de bancos.

“Eles não me cobram nenhum tostão. A única coisa que eles cobram é R$ 1 pelo pagamento de boleto de até R$1.000, e acima [desse valor] é R$ 2.”,

Márcia Rodrigues é empreendedora e cliente do banco comunitário Palmas.

Atualmente, a dona do “Bolo Bolo” não precisa mais pegar crédito para investir em seu negócio, mas continua utilizando o banco comunitário para fazer as demais operações bancárias. “Eu recebo o E-dinheiro no meu negócio e eu também pago as minhas contas com eles no banco Palmas, compro em outros comércios do bairro também, porque é uma mão lavando a outra”, comenta a empreendedora.

Bancos comunitários combatem desigualdade de acesso ao crédito nas periferias
Márcia em seu empreendimento “Bolo bolo” localizado no Conjunto Palmeiras, em Fortaleza. (foto: arquivo pessoal)

No Brasil, a E-dinheiro é a primeira e por enquanto a única moeda social digital. Dos 152 bancos comunitários que existem no país, 98 são cadastrados na plataforma. Para aderir ao uso dessa moeda é necessário que o banco comunitário esteja localizado no mesmo bairro ou município da pessoa interessada em abrir uma conta, pois o uso da moeda social é destinado ao território.

Segundo o criador do banco Palmas, todo lucro gerado no banco comunitário é investido no próprio território. Essa é outra regra que tem que ser cumprida por todos os bancos dessa rede. Um exemplo desse investimento é o curso de culinária que a Márcia fez, e é desse jeito que o desenvolvimento social ocorre.

Banco Paulo Freire

Na Cidade Tiradentes, distrito da zona leste de São Paulo, o banco Paulo Freire também usa o E-dinheiro, como uma ferramenta para viabilizar a inclusão econômica de moradores da região, proporcionando que mesmo as pessoas endividadas, desempregadas, com o nome listado no serviço de proteção ao crédito (SPC), de baixa renda consigam acessar o crédito, para empreender ou consumir em comércios locais. 

“Elas conseguem pegar o crédito sim. Mesmo aquela família que a gente sabe que tem mais dificuldade de pagar, a gente parcela [a devolução] em mais vezes, e procura ser bem acessível”, conta Maria das Dores Ferreira, 52, que é mais conhecida como Dora no território, e que além de pedagoga, é gerente do banco Paulo Freire. 

Dora enfatiza que diferente das demais instituições financeiras, nos bancos comunitários é possível obter crédito, mesmo quando a pessoa não está com a condição financeira ideal.

De modo geral, os pré-requisitos e os benefícios de acesso ao crédito se igualam tanto para o empreendedor como para o morador que procura o banco comunitário, conforme diz Joaquim. “O acompanhamento, o aconselhamento, o controle de inadimplência, prazo maior para você poder pagar, tanto serve para um como para o outro”, pontua.

No banco Paulo Freire, a avaliação para liberação de crédito é feita pelos associados que estão na gestão do banco. “A gente vê o quanto a pessoa recebe, o quanto que ela gasta e tenta ajudar ela a ter o controle da própria renda. Tem vezes que a pessoa nem precisa pegar um empréstimo, porque ela só não está sabendo usar direito o dinheiro que tem. Em outros momentos, a gente empresta e acompanha”, comenta Dora sobre o processo de empréstimo.

A gerente do banco menciona que a confiança e a relação de proximidade com as pessoas é um ponto crucial para que a concessão e a devolução do crédito ocorram. “Quando a família não consegue pagar no prazo estipulado, a gente vai conversar com ela e estende, por exemplo, se tem que pagar em três meses, ela paga em seis o empréstimo. Assim a pessoa consegue ter o dinheirinho dela e consegue devolver pra gente.”

Os bancos comunitários têm uma renegociação de dívida mais flexível, que leva em consideração as condições sociais e financeiras das pessoas. “No Brasil, no começo de 2023 estava em 45% a inadimplência, ou seja, quase cinco de cada 10 pessoas não conseguiam pagar suas dívidas [no banco comercial]. No banco comunitário, a gente fala de 2%, ou seja, menos de uma pessoa por cada 10.”, aponta Hamilton Rocha, coordenador e articulador da Rede Paulista de Bancos Comunitários.

Cura e cuidado ancestral

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Vou começar a nova sessão convidando vocês a refletirem sobre o que é uma sessão voltada ao cuidado ancestral. O que lhes vem à cabeça ao receberem esse convite?
E também lhes pergunto se iniciaram a busca por algum cuidado que propus na sessão anterior.

Vou apresentar aqui algumas práticas que podemos acessar e que dão uma conexão profunda consigo mesmo e ajudam a iniciar um processo de autoconhecimento.

Escrever e falar sobre si, se permitir ser ouvido, falar à vontade sobre qualquer assunto sem ser julgado, pode ser muito curativo, isso pode ser feito com um profissional da psicologia, psicanálise, terapeutas, terapeutas holísticas e também na oficina maravilhosa sobre “Escrita de Si”, com a Bianca Santana. 

Porém, contar sua história, resgatar e saber mais sobre si, reconhecer e saber quem são seus ancestrais, é também uma maneira de se conhecer melhor, resgatar sua trajetória e se conectar com seus antepassados. 

Quem são eles, sua origem, conhecer sua raiz, cultura, seus saberes, entender como viviam os povos negros, ameríndios e a forma como cultuavam os ancestrais, e entender que não se vivia baseado no individualismo e capitalismo.

Compreender as diversas formas de cuidados com as práticas e saberes dos antepassados que se dava de forma oral e circular no cuidado com seu povo, é um cuidado com a medicina tradicional que é muito potente e curativa.

Nos deixar embalar pelas escritas e nos levar pelas leitura do que escrevemos, nos envolver e trazer a tona o cuidado e a manifestação dos desejos que temos de sermos vistos, ouvidos e cuidados, está conosco este compromisso.

Me lembro de ter dito que é muito possível incluirmos um cuidado diário e passando para essa reflexão e ações, o que podemos incluir e que seja saudável e curativo para nossa mente, corpo e alma?

Um desafio para rompermos essa prática de rotina adoecedora é entender como vivemos inconscientes, como a lógica capitalista e colonialista nos impuseram tantas formas violentas de viver, que não temos uma história relacionada com nossos antepassados para contar ou ouvir, sendo que todos os outros povos antigos honram suas histórias e sua cultura, me dá uma sensação que somos aculturados pelo sistema, mas também muitos de nós não tem muito interesse em entender de onde viemos e o que somos para além do que realizamos em torno de tarefas exaustivas.

Como é poderosa essa forma de viver, incluindo a comunidade e de forma coletiva, ter contato social. Após iniciar o trabalho que criei com o Núcleo Obará, percebi que estava revivendo uma forma de cuidar de mim e do outro através dos saberes ancestrais.

Que a partir da oralidade, das conversas em roda e do contato com as medicinas tradicionais fui trazendo a vida de volta, o afeto, o amor e as re-conexões com minha própria trajetória, como ela deságua na cura individual e coletiva, no autoconhecimento e nas infinitas possibilidades de vivermos como nosso povo ancestral vivia. Povos que vieram do grande continente africano e que não sabemos quase nada sobre eles, somente o que os pesquisadores e a história contam, e dos povos originários sabemos ainda menos, sabemos que resistem para serem conhecidos e reconhecidos como os verdadeiros donos dessa terra.

A narrativa aqui desta sessão tem o objetivo de lhes apresentar o que tenho vivenciado e que temos muitas maneiras de quebrar o individualismo, nos conectando com a essência da vida e ainda nos provoca a entender quem somos e quem nos deixou seu legado. Foram escondidos e apagados, porém temos formas de resgatarmos e buscar o conhecimento que venha nos levar a integralidade interna, uma identificação e força olhando para trás para podermos seguir em frente, isso também é um ensinamento antigo. 

Então encerro aqui lhes dizendo: não neguem quem são, resgatem sua história e disso saíra um acolhimento tão amoroso e afetuoso consigo mesmo, assim como faziam os mais velhos e antepassados, cuido aqui de encerrar esta sessão reverenciando a Eles.

Na próxima sessão falamos sobre mais possibilidades de autoconhecimento através da cura e cuidado ancestral.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

O caipira também é periférico?

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Qualquer pessoa de quebrada em algum momento da vida já ouviu da família “deixa de ser caipira” quando a timidez era grande em ambientes desconhecidos. Esse é só um dos fragmentos de uma cultura que sobrevive estilhaçada entre becos e vielas, interiores e grandes centros, sustentando-se no meio urbano, na maioria dos casos, nos pequenos gestos, por isso é preciso ver para além dos preconceitos e das estigmas sociais para reconhecer essa cultura em nosso cotidiano. 

Preâmbulo histórico 

Antes de tudo se faz necessário dar alguns dados históricos importantes sobre a realidade brasileira para que possamos ter dimensão de como esse assunto é parte fundante da formação de nossa identidade. 

A primeira e talvez a mais importante é que o Brasil foi um país de maioria rural até meados de 1950, ou seja, nos transformamos numa nação majoritariamente urbana apenas 62 anos depois que formalizamos a “abolição da escravatura”. 

Outra informação importante é que até o início do século 20 não tínhamos natal como hoje, e nossa maior festa popular era a Folia de Reis, que na maioria dos casos começava no dia 25 de dezembro e se estendia até o dia 06 de janeiro, com o ritual da cantoria de casa em casa e a bênção dos 3 reis magos, neste dia uma criança da cidade era escolhida para libertar um preso, era uma celebração cristã e também pagã. 

A história do Papai Noel vermelho e da árvore nevada veio do norte, tradição trazida pelos filhos do baronato tupiniquim que iam estudar na europa e achavam chique manter essa performance no calor tropical, mesmo não fazendo sentido algum. A publicidade também contribuiu com a mudança a nível nacional, devido a uma campanha em larga escala da Coca-Cola em meados de 1920.  


Entre os valores culturais importados pelos jovens ricos da elite brasileira, alguns outros bens de consumo e bugigangas também vinham na mala, a primeira câmera filmadora e os primeiros aparelhos de projeção estão entre estes objetos, sendo o jovem ítalo-brasileiro Afonso Segretto o primeiro a produzir imagens da baía de Guanabara em 1898, assim como realizar as primeiras sessões de cinema na sala Paris no Rio, que passou a ser um ponto de encontro da sociedade carioca.

Afonso Segreto

Mas do que os primeiros filmes tratavam? Quem eram estes primeiros cineastas? 

Nosso cinema nasce caipira

Entre os pioneiros do cinema brasileiro destacam-se dois caipiras, Humberto Mauro, que realizou o clássico “Ganga Bruta” e o folclorista Cornélio Pires, que em 1924 fez o filme “Brasil Pitoresco”. Uma viagem sobre o Brasil rural e os hábitos das pessoas pobres dos diferentes biomas do país. 

De Tietê – SP para Pernambuco, passando por várias paisagens com as lentes voltadas para as tradições populares do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Sergipe e Alagoas. 

Assim como a escrita de Cornélio, suas imagens são carregadas de paixão e respeito pelas pessoas do campo e suas artesanias, sua cultura e vida social. Este mesmo pesquisador foi responsável pela gravação fonográfica das primeiras duplas caipiras, sendo o revelador de uma tradição até então pouco divulgada pela indústria musical da época. 

O mineiro Humberto Mauro também fez registros importantes da cultura popular, revelando cantigas e folguedos caipiras, assim como os hábitos das pessoas do interior de seu estado. 

Mário Peixoto é outro importante nome que revelou em seu único filme a paisagem caipira/caiçara. “Limite” de 1931 é um romance experimental ambientado no litoral de Mangaratiba-RJ, provocando reflexões sobre a passagem do tempo e a condição humana. 

Não podemos esquecer também de Ozualdo Candeias, um caminhoneiro que adorava andar a cavalo e fazer filmes, dentre as várias pornochanchadas que rodou na boca do lixo, fez o celebre “A Margem”, e também em 1986, o clássico “As belas da Billings”, gravado nas margens da represa na região do Grajaú, periferia da zona sul paulistana.

Ozualdo Candeias

Tá, mas afinal quem são esses tais caipiras e o que estes sujeitos de São Paulo, Minas e Rio tem a ver com a periferia e os periféricos? 

Agroboy, bandeirante, trabalhador do campo…

Talvez os dois maiores símbolos da identidade nacional sejam o malandro do samba e o caipira dos interiores, não à toa duas simbologias advindas das culturas de roça, em alguns lugares ligadas umbilicalmente, vide o samba de viola do recôncavo baiano, ou o cururu paulista, ambos parentes do samba de partido alto. 

O cinema, os quadrinhos, a literatura e as artes plásticas trouxeram inúmeras representações de grande abrangência destes personagens, todas tem muito sucesso até hoje, e carregam de forma mais ou menos estereotipadas, vários elementos da identidade nacional. 

Você deve lembrar do Zé Carioca, do Chico Bento, da Carmen Miranda, do tio Barnabé, do Macunaíma, do Jeca Tatu, da Iracema, entre outros. 

A música sempre foi um marcador fundamental da nossa formação como povo, o pesquisador Ivan Vilela, relatou em seu livro “Cantando a própria história: música caipira e enraizamento” que um processo importante da catequese dos jesuítas para com as populações indígenas foi a música, em especial a música de viola, sejam as violas portuguesas ou as violas de buriti dos nativos, as canções desse projeto colonial foram fundamentais para a aculturação produzida nesse período. 

No cinema nacional alguns filmes contaram essa história, “Desmundo” de Alain Fresnot é um deles e fala do processo das bandeiras e das primeiras cidades coloniais no Brasil. 

O bandeirante é o personagem central dessa narrativa, a escravização indígena e os hábitos culturais da urbe nascente. Outro filme importante é o “Brava gente brasileira”, de Lúcia Murat, que entre outras coisas mostra a complexidade do personagem bandeirante, que mesmo mestiço de brancos e indígenas era também quem favorecia a escravização e o estupro colonial. 

Não há dúvida que o caipira se transfigurou com o tempo e sofreu mudanças da leitura redutora e preconceituosa desenvolvida por Monteiro Lobato. 

Cornélio Pires, já citado aqui, era uma das pessoas com um olhar mais respeitoso para as tradições populares, em especial a cultura caipira. 

Vendo toda a produção de Mazzaropi e alguns filmes da Vera Cruz sobre as multifacetadas formas de ser caipira, era possível ver nas entrelinhas as presenças de elementos da vida rural nas periferias do capital, lembro aqui do “Corinthiano”, e do “Jeca Tatu”, filmes de Amácio Mazzaropi, que revelam já na segunda metade do século 20 a migração dos interiores para a “cidade grande”. 

Entre erros e acertos, Mazzaropi reformulou com competência os textos racistas e xenófobos de Lobato, acrescentando seu olhar e sua capacidade dramática para dar humanidade às gentes dos interiores.

Caipiras de quebrada

Eu morei em diferentes periferias da zona sul de São Paulo, Jd. Herculano, Piraporinha, Rio Bonito, Jd Primavera, etc. Meu pai em nenhum destes lugares, por mais dura que fosse a paisagem, nunca abriu mão de um fogão de lenha, talvez você lendo esse texto também saiba dizer outra miudeza sobrevivente na sua família das reminiscências da tradição. Uma pequena horta de fundo de quintal, uma paixão por um radinho de pilha, o amor cotidiano pelos cachorros e demais criações, a paixão pela viola, sabedoria na construção doméstica, etc.

Antônio Cândido que era um grande pesquisador da cultura caipira disse que com o roubo de terras no interior, a especulação imobiliária e a precariedade do emprego, muitos caipiras foram para as cidades, e com seu perfil, seu grupo étnico e seus hábitos culturais o lugar onde puderam estabelecer pouso foram as periferias.

Você já encontrou algum deles com certeza, tocando violão ou sanfona num buteco do bairro, num mutirão de casas no fundão, ou passando de charrete ou cavalo na rua onde mora. Já se perguntou quem cria as galinhas que botam os ovos do carro do ovo? 

Enfim, a lista é longa, assim como os estereótipos, amamos as festas juninas, mas não nos questionamos sobre a pintura do dente, a calça menor que a altura do corpo, os remendos de costura nas roupas, todas formas pejorativas advindas do peso da pobreza e das limitações provocadas pela memória da colonialidade. 

Este mesmo peso que apagou também a questão racial levantada em inúmeras músicas das duplas pretas e pardas desde os anos 50, já ouviu “Preto Velho” de Tião Carreiro? Ouso dizer que foi o Negro Drama da época. 

Falei tudo isso pra te dizer que tem um cinema caipira de quebrada sendo feito bem perto de você, mas muitas vezes você não chega a ficar sabendo. 

Destaco aqui o curta “Ainda restarão robôs nas ruas do interior profundo”, de Guilherme Ribeiro Xavier, filmaço gravado junto dos muleque zika de roça da cidade de Assis-SP, vencedor do grande prêmio do Júri de 2022 no Festival Internacional de Curtas da Kinoforum.

Neste mesmo ano fiz um curta doc chamado “Sobre Pardinhos e Afrocaipiras” lançado no festival In-Edit Brasil, parte desta minha pesquisa de muitos anos sobre o tema. 

Mote de uma importante leitura caipira do nosso cinema de quebrada, parte de um entendimento de quem somos que não aceita simplificações e cobra uma vida que nos reconecte com nossas raízes, sem nos congelar no tempo, vide Matuto S/A e Gabeu, expressões da cultura caipira no Rap e no sertanejo (ou queernejo como diz o mesmo), inovando com os pés na ancestralidade, pois ainda que o cimento tenha coberto quase tudo nas periferias, temos ainda o coração, essa terra fértil sedenta por novas sementes. 

Acredite!

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PEC 45: Cientista Social analisa nova proposta na política de drogas e impacto nas periferias

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Assista e entrevista completa com a cientista social, Nathália Oliveira.

PEC 45: Nesta terça-feira, 25 de junho, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira determinou a constituição de uma comissão especial para analisar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2023, que criminaliza a posse e o porte de qualquer quantidade de drogas. O motivo de acelerar o processo surge em resposta à decisão do STF, que se mostrou favorável à descriminalização do porte de maconha para uso pessoal.

Nathália Oliveira, Cientista Social da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, ressalta a importância da decisão do STF, tomada nesta última terça-feira, 25 de junho, sendo aguardada há quase 10 anos para avançar.

“Os ministros reconheceram publicamente o racismo implícito na escolha da proibição e convocaram os demais poderes para novas interpretações sobre o tema. Esse resultado acontece no mesmo período em que enfrentamos um legislativo ultraconservador, que deve reagir a essa decisão através do endurecimento das leis de drogas, como é o caso da PEC 45. Por outro lado, a interpretação da Suprema Corte sobre esse assunto pode mobilizar setores que estavam em cima do muro sobre a pauta. Sabemos que esse primeiro passo terá reação no Congresso Nacional, aumentando o risco da aprovação da PEC 45. Sigamos atentas e mobilizadas para garantir essa vitória também nas ruas”.

16º ano da Marcha da Maconha na Avenida Paulista. Foto: Pedro Oliveira / Junho de 2024.

Pessoas negras são maioria entre presos por tráfico drogas. 86% dos réus processados é do sexo masculino, 72% tem até 30 anos, 67% possui baixa escolaridade e 68% são negros. É o que revelou uma pesquisa realizada em outubro de 2023, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA.
Esses números evidenciam o impacto desproporcional da política de drogas sobre a população negra e periférica. Em entrevista ao programa do Desenrola Aí, a cientista social também destaca o impacto da Guerra às Drogas e da nova PEC 45 nos territórios periféricos.

“O combate ao tráfico de drogas tem cor e CEP. Basta olharmos o sistema carcerário para perceber que mais de 60% das pessoas presas são pobres, negras, de baixa escolaridade. Essas pessoas respondem com penas de privação de liberdade, muitas vezes altíssimas, desproporcional ao dano causado na sociedade”,

afirma Oliveira.

Impacto da PEC 45/2023: endurecimento das leis de drogas e repressão nas periferias

No Brasil, a Guerra às Drogas resultou em extermínio e encarceramento em massa da população negra, especialmente homens jovens e periféricos, colocando o país na terceira posição mundial em população carcerária, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.

16º ano da Marcha da Maconha na Avenida Paulista. Foto: Pedro Oliveira / Junho de 2024.

Segundo Nathalia, a inclusão da criminalização na Constituição para a posse e o porte de qualquer quantidade de droga, pode abrir precedentes para endurecer ainda mais as leis relacionadas às drogas, aumentando a repressão nas periferias e favelas, agravando o aumento do encarceramento em massa no país. Por isso, é de extrema importância o reconhecimento dos ministros sobre o racismo implícito na escolha da proibição do porte de maconha para uso pessoal.

Aprovado em abril deste ano no Senado, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que criminaliza a posse e o porte de qualquer quantidade de droga, cita a necessidade de diferenciar traficantes de usuários. No entanto, a PEC não especifica como essa distinção será feita na prática. A proposta foi enviada e aprovada em 12 de junho, pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e será analisada em comissão especial. Se aprovada, segue para o plenário.

Atualmente, a Lei de Drogas define que a distinção entre usuário e traficante é determinada pelo juiz, com base na quantidade de droga apreendida, sem especificar um limite exato. O juiz também considera o local, as condições da ação e as circunstâncias sociais envolvidas.

Sobre o Desenrola Aí

O Desenrola Aí é um programa quinzenal que visa trocar ideias com especialistas da quebrada, descomplicando assuntos relevantes, que afetam o cotidiano da população negra e periférica e os direitos humanos, que é a essência da nossa existência e convivência enquanto sociedade. O programa do Desenrola Aí tem como realização o Desenrola e Não Me Enrola e Fluxo Imagens.

Para onde vai o lixo?

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Salve, salve galera, chegando hoje pra trazer um assunto mega importante, principalmente para nossa quebrada. Sabemos da importância de não descartar de forma irregular os lixos que produzimos e/ou entulhos ou madeiras de móveis que não usamos mais. Você sabe para onde vai todo esse lixo? 

A maioria do orgânico e materiais são despejados em uma área grande a céu aberto (mais conhecidos como lixões), localizados geralmente em regiões periféricas de cidades. Tem também os aterros sanitários. Nestes locais, o solo é preparado para receber o lixo orgânico que é colocado em camadas intercaladas com terra, evitando assim o mau cheiro, contaminação e a proliferação de insetos e ratos.

Então além dessas questões sabemos muito bem o que acontece na quebrada quando vem a chuva, juntando com esse descarte irregular de lixo.

Mas se pensarmos bem, a falta de saneamento básico e a dificuldade em lugares para acesso de coleta, dificulta mais ainda a vida da galera da quebrada, tendo lugares onde o caminhão de coleta não passa. 

As consequências com isso são enormes e a comunidade sofre quando vem as chuvas somadas com esses fatores e acaba que muitas casas são invadidas por água, acabando com todo bem material que as famílias lutaram uma vida para conquistar. 

Moradores de viela muitas vezes tem que se encaminhar até um certo ponto específico para colocar o lixo, geralmente em caçambas. Mas você já pensou quando faz uma obra, onde por aquele entulho? 

Muitos carros “cata bagulho” passam mais em bairros nobres, enquanto na quebrada que é onde precisa-se tanto, eles não passam. Faltando assim muito suporte com esse tipo de descarte dentre tantos outros. 

Podemos nos conscientizar e melhorar nossos descartes, nos empenhar e focar em fazer a separação para reciclagem, podemos fazer nossa parte. Mas sabemos muito bem da falta de suporte e atenção dos governantes para esse aspecto nos bairros da periferia. 

Como podemos ver nos últimos acontecimentos as catástrofes sofridas, onde o povo de baixa renda que é o mais afetado, enquanto os governantes que poderiam tomar decisões assertivas para evitar isso se isentam e se abstêm ao longo de anos esperando o pior e sendo conivente com que acontece ao povo.

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Qual a relação entre as escolas cívico-militares e o desmonte da educação pública? #28

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Nesse episódio falamos sobre a ampliação do projeto de escolas cívico-militares e de que forma a militarização das escolas se apresenta como um dos caminhos de ataque à educação pública. 

Para desenrolar esse papo, conversamos com a Nycolle Fernandes, estudante e integrante do movimento Afronte Secundaristas / Afronte SP, e com a Catarina Santos, especialista em Gestão Escolar, com mestrado na área de Educação e coordenadora da Rede Nacional de Pesquisa sobre a Militarização da Educação no Brasil. 

O Cena Rápida tem episódios novos quinzenalmente, sempre às quartas, disponivel gratuitamente no Google Podcasts, Spotify e Youtube.