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O bem-estar como direito humano

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Começo aqui resgatando os caminhos sugeridos, que foram apresentados na sessão anterior, de como é possível nos reconectar e elaborar dores a partir da escuta de si, do outro e dos antepassados. Como podemos resgatar laços e tomar consciência de quem somos, nos curar e usar o conhecimento das medicinas tradicionais que são milenares e herança ancestral, e incluir de forma simples o autocuidado na rotina diária para vivenciar seus benefícios na prática, tanto no individual, como no coletivo.

As práticas são variadas e tão possíveis, que podemos até desacreditar ou não entender como isso pode ter tantos benefícios. Um banho de ervas, um escalda pé, uma massagem, conversar com um terapeuta, escrever, dar espaço para ser ouvido,  resgatar memórias e elaborá-las, qual o sentido disso? 

Procure realizar alguns desses cuidados por um profissional, participar de um grupo para acolher e ser acolhido que entenderá com os resultados.

Desenvolver uma rotina, iniciar o autocuidado, entender o que sentimos, o que nos incomoda, o que desejamos, é um movimento que precisamos por em ação, começar ou recomeçar se for necessário. 

O problema é que procrastinamos ou não ouvimos as dores, ignoramos, não acolhemos, somos duros ou frios conosco, deixamos de lado e seguimos nos desumanizando, sem descobrir o que elas estão tentando dizer para nos levar para outro caminho.

A ação e o movimento que precisamos dar é a oportunidade de incluir os cuidados e bem estar como um direito humano e que podemos transformar em hábitos saudáveis para tornar a vida mais leve e feliz. É um direito sim, individual e coletivo.

Aí pergunto: quanto levamos a sério os sentimentos e necessidades? se procuramos entendê-las, ou se não levamos a sério, quanto estamos comprometidos com isso?

É muito fácil não fazer nada, pois tendemos a entrar no negacionismo, e aí perdemos a chance de ter saúde, bem estar e sermos mais felizes em nossa própria companhia.

Definir qual cuidado preciso e saber que isso depende de nós, é um modelo diferente de viver, onde temos a autonomia de irmos em busca daquilo que desejamos e precisamos, porém, quantas limitações são impostas, por nós, ou pelo outro, e digo isso de forma muito genérica, e aí caímos na descrença e nos habituamos com a doença. 


Ao ler bell hooks “Tudo sobre o amor: novas perspectivas”, vejo que não acreditamos mais e levantamos barreiras e dúvidas, e isso nos paralisa, estamos acostumados ao desamor que é o tema da vida contemporânea. Nos desconectamos e deixamos para o outro dizer o que precisamos, esquecemos de dar espaço para quem realmente somos e o que desejamos.

Não nos conhecemos e esquecemos a essência do amor próprio, uma forma de colocar seu ser mais profundo, suas raízes no centro, se fortalecer e amar quem você é ou buscar ser o que realmente gostaria. Se sentir amado e se curar da doença das quais são tão comuns nos dias atuais. 


A leitura deste livro ainda indica caminhos, quanto nossas ações pessoais estão implicadas com uma postura perante a sociedade, que o amor como força para romper o ciclo perpetuado nas dores e violências. 

O amor pode ser uma ferramenta onde a vontade, se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento, através do cuidado, afeição, reconhecimento, respeito, compromisso e confiança, entre outros, como a comunicação sincera, podem ser ações para construir novos sentimentos, trazer curas e soluções para as questões duras que somos submetidos.


Sentir, acolher e entender que temos limites, nos respeitar e sermos mais criativos, alegres, vivos e comprometidos consigo mesmo, pode trazer prazeres e momentos que superam as dores e nos potencializa a viver mais e melhor.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.


Jovem cineasta relata os desafios para produzir cinema nas periferias de São Paulo

Em 2023, a cineasta Binha Sakata, 26, moradora do distrito Cursino, zona sul de São Paulo, produziu o seu primeiro filme “Autonomia Amarela em diáspora”, que foi exibido durante a 1º Mostra Experimental Filme Sem Nome, realizada no Centro Educacional Unificado (CEU) São Pedro, localizado no distrito de José Bonifácio, zona leste de São Paulo.

Binha Sakata,  cineasta. Foto: Nicolas Santos, jovem da 8ª edição do Você Repórter da Periferia/Julho 2024.
Binha Sakata, cineasta. Foto: Nicolas Santos, jovem da 8ª edição do Você Repórter da Periferia/Julho 2024.

Em entrevista ao Você Repórter da Periferia, ela conta os desafios que vivenciou para se tornar uma profissional do cinema atuando nas periferias, considerando que o primeiro contato com produção audiovisual aconteceu quando ela participou de um projeto de formação cultural destinado a jovens das periferias de São Paulo. 

VCRP: Qual foi o seu primeiro contato com produção cinematográfica?

Assistindo ao SPTV do meio-dia, o César Trailer, falou assim: “Vão abrir as inscrições para o Cine Inclusão, um projeto para jovens das periferias em São Paulo, entre 16 e 24 anos”. Então eu fiz a inscrição e passei. Eu tinha 18 anos, esse foi meu primeiro contato com o cinema. No final deste processo a gente produziu um curta metragem.

VCRP: Como foi sua experiência com o cinema na sua infância e adolescência?

Minha mãe me levava ao cinema às vezes, mas ela não tinha muito saco. Eu tinha um amigo que foi responsável por me levar em espaços culturais. Comecei a frequentar museus, ele me apresentou livros e filmes fora do circuito muito comercial.

VCRP: Você enfrentou muitos desafios para desenvolver um olhar como cineasta e como produtora?

É um tanto desafiador por conta das minhas inseguranças, tipo expor minhas ideias, eu sabia da relevância mas não ao ponto de concretizar. Sempre achava que os outros tinham mais experiências para executar.

VCRP: Quais as maiores dificuldades para produzir cinema na periferia?

Uma das minhas maiores dificuldades foi interpretar e narrar o poema para criar o curta metragem. Por mais que eu já escrevesse a um tempo, uma coisa é escrever e outra é performar, vocalizar e externalizar. Usei equipamentos que eu já tinha, uma câmera T5i e um Samsung 2017, por que tinha cenas na rua e não ia levar minha câmera, usei o celular e acolhi a qualidade do vídeo como uma estética.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

“Se não fosse a dança, estaria desempregado”, diz jovem educador da zona leste São Paulo

No piso térreo do Centro Educacional Unificado (CEU) São Pedro, localizado no distrito de José Bonifácio, zona leste de São Paulo, o dançarino Renan Alves, morador de São Miguel Paulista, ocupa uma sala equipada com espelho e uma caixa de som. Neste espaço, ele ensina crianças, jovens, adultos e idosos, que querem descobrir o mundo da dança, por meio de aulas gratuitas realizadas no final de semana no equipamento público de educação da prefeitura.

Desde criança, o jovem dançarino relata que gostava de dançar. A história dele com a dança ganhou um novo capítulo quando ele completou 15 anos, e um professor conseguiu uma bolsa de estudos para Renan aprender dança clássica em uma escola de dança. 

“Quem tem acesso à arte e cultura? A quem isso é dado é oferecido como meio de trabalho?”, questiona o jovem educador, ressaltando a dificuldade de moradores das periferias, assim como ele próprio, de acessar esses projetos e espaços públicos.

Hoje, com 18 anos, ele permanece estudando dança, mas sente que precisa passar esse conhecimento adiante, para que outros moradores das periferias que não têm acesso à arte e espaços de cultura em seu bairro, conheçam e se inspirem com o universo da dança.

VCRP: Como que o balé e a dança surgiu na sua vida?

O balé surgiu por  meio de um projeto social de uma igreja que eu frequentava. Depois disso, um professor me passou para uma escola de formação profissional, ele conseguiu uma bolsa para mim e eu tô lá até hoje.

VCRP: Como seria o seu trabalho se não houvesse esse espaço aqui no CEU São Pedro ?

Não teria trabalho, porque é aqui que eu ganho meu dinheiro, é aqui que eu dou aula. Na verdade, eu ainda sou estudante. Não sou formado em dança clássica, então seria muito mais difícil para mim procurar um trabalho que não fosse aqui, na rede do CEU.

VCRP: Como surgiu a vontade de ensinar?

Quando eu entrei na dança, eu não era muito bom, porque ninguém começa bom em alguma coisa nova, então eu comecei a estudar muito e ler muitas coisas. Então, eu fui adquirindo um repertório teórico e vi que as minhas explicações para os meus amigos eram muito mais embasadas, graças a todo esse estudo, e foi aí que eu vi que tinha uma coisinha ali para ensinar.

VCRP: Qual o seu público? 

São crianças de 4 até 100 anos. Enquanto estiver andando, venha dançar! Para mim, não tem idade para dançar, não existe idade limite para quem quer aprender, porque a dança é movimento, então enquanto você se mexe, você pode dançar e pensar também que não é uma competição. Pensa que é uma caminhada que você faz todos os dias e que se você for competir com alguém, você vai competir com você mesmo todos os dias, para ser melhor do que ontem. 

VCRP: Como você ensina adultos e crianças?

Eu mudo o estilo da aula dependendo do perfil de público. Vai depender muito para quem eu tô dando aula, por exemplo, a criança vê a dança como um mundo mágico, como um desejo de vida, eu sinto que é um impacto muito positivo. Agora para quem é adulto, a dança surge como um espaço de lazer ou até de refúgio. Aí é outro rolê, porque eu penso mais que essa dança precisa ser algo confortável para esse adulto.

VCRP: A arte da dança é acessível na periferia?

Eu penso que não é interessante para as classes dominantes formar artistas periféricos, formar produtores de culturas periféricas, até porque eles prendem a gente na mão de obra, então para que tipo de mão de obra a gente serve? Acho que por isso é muito mais difícil o caminho para quem é da periferia.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.




Mostra Filmes Sem Nome promove inclusão do cinema nas periferias

Confira a vídeorreportagem produzida pelos jovens da 8ª edição do Você Repórter da Periferia, programa de educação midiática antirracista promovido pelo Desenrola e Não Me Enrola.

Promover a democratização do cinema e valorizar a produção audiovisual periférica é alguns dos objetivos da 1ª Mostra Experimental Filmes Sem Nome, que utiliza o cinema como uma ferramenta de inclusão e valorização das realidades periféricas na democratização do acesso à cultura.

“Tem que provar o tempo todo que é capaz”, diz Sandra Ramalhoso sobre pessoas com deficiência na política

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Em frente a uma casa, no bairro da Água Rasa, distrito da Mooca, na zona leste de São Paulo, uma faixa pendurada com a frase “quem lutou a vida inteira, agora luta por você”, identifica o local em que mora Sandra Ramalhoso, 60. Pré-candidata a vereadora da cidade de São Paulo, Sandra tem Síndrome Pós-Poliomielite, é cadeirante e tem como principal bandeira os direitos das Pessoas com Deficiência (PcD).

Segundo dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), na última eleição municipal, em 2020, no total, 56 pessoas com deficiência se elegeram para o cargo de vereança no estado de São Paulo. Nesse mesmo ano, no município de São Paulo, foram 34 o total de candidaturas de PcD para a mesma função. Essa é a primeira vez que Sandra disputa o cargo.

Pré-candidata a vereadora de SP relata a busca por maior participação de pessoas com deficiência na política institucional.
Sandra iniciou seu ativismo social atuando na Pastoral da Pessoa com Deficiência. (foto: Viviane Lima)

Presidente da Associação G 14, que presta apoio aos pacientes de poliomielite e síndrome pós-pólio, Sandra atua em defesa das pessoas com deficiência, principalmente na área da mobilidade urbana. “Atuei na briga por transporte, pelo ônibus de piso baixo, pela calçada, pelo transporte ativo. A pessoa com deficiência pode utilizar a ciclovia, a ciclofaixa, a gente lutou por esses espaços”, conta Sandra sobre as demandas que pautou no Conselho Municipal de Transporte e Trânsito (CMTT).

Entre os debates que levanta, Sandra coloca a necessidade de dados sobre as pessoas com deficiência para embasar políticas públicas. “São Paulo tem 14 milhões de pessoas. Segundo o IBGE, nós, pessoas com deficiência, somos 8,6% dentro da cidade. Isso dá mais ou menos 1,2 milhões de pessoas”, ela coloca, e explica que a cada 50 casas apenas uma recebe o questionário completo do Censo do IBGE, que nos demais não tem um campo destinado para sinalizar que a pessoa tem alguma deficiência, o que interfere nos dados finais.

Segundo ela, essa coleta de dados também tem impacto territorial. “Quantas pessoas estão na periferia e não responderam esse questionário e a gente não sabe que elas estão lá precisando de UBS, de CER – Centro Especializado em Reabilitação?”, diz. 

Atende + é um serviço de atendimento de transporte gratuito destinado às pessoas com deficiência. (foto: Viviane Lima)

O indicador de tempo médio de deslocamento por transporte público do Mapa da Desigualdade de 2023, mostra que no distrito da Água Rasa, no horário de pico da manhã, o tempo médio desse deslocamento via transporte público é de 36 minutos. Nesse mesmo parâmetro, um morador da Cidade Tiradentes leva 1h08 para se locomover, sendo as duas regiões localizadas na zona leste de São Paulo.

O indicador “Acesso a transporte de massa” do Mapa, também mostra que 14,87% da população que mora na Água Rasa está em um raio de até 1 km de distância de estações de trem, metrô ou monotrilho. Em comparação, 0% dos moradores da Cidade Tiradentes têm acesso a qualquer estação que esteja no máximo a 1 km de sua residência. Os dados não mencionam as dificuldades de locomoção de pessoas com deficiência conforme território.

Atuação política

Sandra teve poliomielite aos três meses de vida. Ela conta que os médicos não acreditavam que um bebê tão pequeno pudesse ter pólio e demoraram no diagnóstico. Até os 15 anos, viveu em função dos tratamentos e da fisioterapia. 

“Cheguei num estágio que não mexia nada, quando eu saí do hospital, até andar totalmente autônoma com duas órteses, que são aparelhos nas pernas e duas muletas axilares”. Assim, ela frequentou a escola e se formou em piano. Até 2020, Sandra trabalhava como professora de reforço escolar e dava aulas de piano.

No período entre a infância e adolescência, acreditava que a poliomielite havia estabilizado, mas após a gravidez do segundo filho, aos 40 anos, ela não conseguiu voltar a andar. Foi através da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), em um laboratório de poliomielite, que Sandra teve o diagnóstico de Síndrome Pós-Poliomielite, doença que interfere na perda muscular de forma progressiva e degenerativa. 

Situações que vivenciou ao longo dos anos contribuíram na sua decisão em atuar por políticas públicas e na política institucional. Em 2016, ela relata que ao pegar um ônibus, acompanhada do filho, o elevador do veículo travou e começou a pegar fogo. Seu filho então recorreu aos mecânicos de uma oficina próxima para tirar Sandra do veículo. Um segundo acidente aconteceu em 2017. “Eu fui atropelada porque não tinha calçada, não tinha faixa de pedestre”, comenta sobre o acidente que aconteceu na rua de sua casa. 

Devido a esses ocorridos e com o apoio do filho que é assessor político, em 2017, Sandra se filiou ao PSOL, onde faz parte do Setorial PcD e passou a atuar na política partidária, com foco nos direitos das pessoas com deficiência.

Reunião do setorial PcD do PSOL, implementação de políticas inclusivas e anticapacitistas foram temas do encontro. (foto: arquivo pessoal)

Entre as contribuições para o movimento, ela aponta o período que representou o CMTT no Conselho Municipal de Políticas Urbanas (CMPU), e a participação na discussão do Plano Diretor da cidade de São Paulo. “Ainda era online as reuniões [durante a pandemia] e tinha um rapaz surdo. A gente conseguiu barrar a continuidade da discussão do plano diretor, porque não tinha acessibilidade, fomos ao Ministério Público”, relembra. Segundo ela, como resultado, agora as reuniões dos conselhos têm intérpretes de libras.

Sandra também participou do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência (CMPD), de 2017 a 2019 e de 2022 a 2024. “A gente conseguiu também uma cadeira da pessoa com deficiência [dentro do Conselho Municipal de Política Urbana]”, pontua. 

Sandra Ramalhoso no Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência (CMPD), do qual fez parte como conselheira. (foto: arquivo pessoal)

A partir dessas atuações, ela relata que identifica o capacitismo presente no espaço político, “a gente tem que provar o tempo todo que é capaz”, comenta.

“Capacitismo é quando você considera que a pessoa [com deficiência] não é capaz de fazer as coisas. Ou quando você [a] compara pejorativamente em alguma fala, por exemplo, ‘dei uma mancada’. O que significa isso? Que você fez uma coisa errada. Então você se compara com uma pessoa que manca. Isso é capacitismo.”

Sandra Ramalhoso, presidente da Associação G 14.

Nessas movimentações políticas, o lugar que mais se sentiu discriminada foi quando participou do desenvolvimento das normas técnicas de construção de ônibus, na ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). “Eu era a única mulher lá dentro [e] pessoa com deficiência, [para eles] eu não sabia de nada”, relata Sandra.

A pré-candidata menciona que ter pessoas com deficiência eleitas é importante pela questão do protagonismo. “É você saber que essas pessoas existem, pensam, são capazes e podem melhorar a cidade”. Mas também coloca que muitas candidaturas de pessoas com deficiência são colocadas como “laranjas” e que não há investimento dentro dos partidos para que façam uma campanha que possa alcançar uma eleição.

Batalha diária: o corre cotidiano dos ambulantes 

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A vida dos trabalhadores autônomos segue na luta do corre diário para poder se manter. Desde as primeiras horas do dia até o último raio de luz. Seu José é um deles, que veio para São Paulo para tentar “ganhar a vida”, montou seu carrinho de churrasco, e no centro de São Paulo, vende churrasquinhos há mais de 20 anos.  

Assim como Seu José, a rotina frenética das pessoas autônomas é como uma dança, onde eles precisam alinhar os passos conforme a música, lutando diariamente para poder prover seu próprio sustento. 

Correndo diversos riscos, porque, como sabemos, muitas vezes ainda vem as autoridades achando que é uma forma justa multar ou tomar a mercadoria dos mesmos, tirando assim a sua fonte de renda num país onde as oportunidades de empregos não são favoráveis para todos, e com riscos diários de perder tudo e ter que começar do zero novamente.

Seu José falou um pouco desses desafios. Ele teve que se adequar e pagar taxas (e ainda paga) muitas vezes preços altos para poder estar ali naquele ponto sem correr o risco de perder tudo. 

Inclusive, pouco antes de começarmos a conversar e fazer algumas fotos, ele foi abordado por policiais no local pedindo para ver o documento e CNPJ para consultar se estava tudo ok. Caso contrário já sabemos bem qual seria o desfecho. Por isso ele já deixa a documentação pendurada bem à vista no seu carrinho de churrasco. 

Cada dia é uma batalha pela própria existência, uma jornada de resistência e resiliência que os ambulantes e autônomos passam, indo à luta do seu próprio sustento.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

“Não existe apenas uma face da igreja”, diz membro da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito

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A quantidade de igrejas evangélicas no Brasil vem aumentando nas últimas décadas. Em 1990, eram 17.033, sendo que em 2019, esse número cresceu para 109.560 igrejas desse segmento, conforme aponta a pesquisa ‘Surgimento, trajetória e expansão das Igrejas Evangélicas no território brasileiro ao longo do último século (1920-2019)’, do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), da USP. 

Para Gabriel Sales, o entendimento do que é o evangelho é uma linha determinante para diferenciar evangélicos que defendem os direitos humanos, dos fundamentalistas, que identificam esses direitos como um mecanismo de “defesa de bandidos”. 

Representando a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito no 3ª Encontro da Coalizão Negra por Direitos (foto: arquivo pessoal).

Morador da cidade de Vicente Pires, no Distrito Federal, Gabriel é evangélico, faz parte da Coalizão Negra por Direitos e é coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. “A Frente nasce para demonstrar para a sociedade que não existe apenas uma face da igreja evangélica no Brasil”, comenta sobre a iniciativa criada em 2016, por pastores e pastoras, como um manifesto em defesa da democracia diante do contexto do impeachment da presidente Dilma, que ocorreu no mesmo ano. 

Segundo Gabriel, outro objetivo da instituição é dialogar com “igrejas pequenas que em sua maioria são pentecostais, mostrando um evangelho que às vezes não é dito para eles”. Ele coloca que os cristãos deveriam lutar para que todos pudessem ter os direitos garantidos e qualidade de vida.

“O lado do cristão é lutar com a sociedade [para] que o genocídio [do] povo que está nos territórios [periféricos] cessem. O lado cristão é para que todo mundo tenha vida em abundância, porque quando Jesus fala: ‘eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância’, é ter direito à educação de qualidade, à saneamento básico, à saúde”

Gabriel Sales, coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.

“A gente vê em Jesus humildade, amor, acolhimento, misericórdia, justiça, mas não é a justiça do justiçamento, é a justiça em sua plenitude [para] que todos tenham direitos iguais. Quando a gente lê toda a bíblia a partir dessa lente que é Jesus, a gente acha o evangelho. Então o evangelho é uma forma de ler e viver a bíblia”, comenta Gabriel.

Gabriel é assessor parlamentar, e em 2019 estudou teologia para ser pastor, mas conta que em 2021, por conta do fundamentalismo, deixou o seminário. No mesmo ano, ele começou a construir a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito no Distrito Federal. Atualmente ele é membro de uma igreja evangélica chamada Coletivação, que fica em Ceilândia, DF.

Fundamentalismo x Direitos Humanos

Gabriel afirma que o fundamentalismo presente em algumas igrejas evangélicas não é um projeto recente, é algo que vem sendo construído. Para ele, por isso que entender as teorias da teologia, o que inclui o fundamentalismo, se faz necessário no cenário político.

“Hoje não tem como a gente pensar num projeto de Brasil sem pensar nos evangélicos.Tendo em vista a ascensão do povo evangélico [que] de acordo com o IBGE tende ser a religião com mais adeptos”

Gabriel Sales, coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.

O coordenador aponta que essa doutrina nasce nos Estados Unidos, no final do século XIX. “É importante falar que o Brasil foi alvo das ações missionárias das igrejas dos Estados Unidos, principalmente as igrejas que assinavam esse movimento fundamentalista. Essas igrejas brasileiras seriam as que em 1964 apoiaram o golpe”, menciona. 

Encontro nacional de coordenadores da Frente pelo Estado Democrático de Direito, em 2023, no Rio de Janeiro (foto: arquivo pessoal).

Em contrapartida, o coordenador exemplifica que houveram evangélicos que também lutaram contra a ditadura. Ele coloca que como a questão da memória desse período não foi trabalhada, aspectos dessas ações missionárias se fortaleceram em igrejas evangélicas. “A gente chegou no momento em que essa política se tornou natural [ao ponto] de se falar, que bandido bom é bandido morto”.

“O movimento fundamentalista prega que só existe uma verdade. E essa verdade é a verdade deles [e] que a bíblia é totalmente inerrante. [Para os fundamentalistas] se no antigo testamento fala que a relação entre um homem e um outro homem é um pecado, [eles] se prendem a isso, [por exemplo]. O fundamentalismo traz essa literalidade”, diz Gabriel sobre situações e pessoas que interpretam os escritos da bíblia vinculadas a posturas e práticas que buscam diminuir, discriminar ou atacar outros grupos, o que, segundo ele, são práticas contrárias ao que o evangelho representa. 

A bancada da bíblia, grupo formado por parlamentares evangélicos, pastores, entre outros cristãos, têm em comum o fundamentalismo e o conservadorismo, segundo Gabriel. “Eles estão propondo política de acordo com o fundamentalismo deles”, comenta sobre as disputas políticas que envolvem a religião e interferem diretamente na vida da população. 

Como exemplo disso, Gabriel menciona o Projeto de Lei (PL) 1904/2024, que equipara o aborto, mesmo em caso de estupro, ao crime de homicídio simples, e tem articulações políticas da bancada da bíblia para ser aprovado. 

Segundo dados do Datafolha, 57% dos evangélicos que participaram da pesquisa disseram ser contra o PL que criminaliza o aborto. Ao todo 2.021 pessoas, a partir de 16 anos, fizeram parte do levantamento, que aconteceu em 115 municípios do Brasil, dos dias 17 a 19 de junho de 2024.

O coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito ressalta que as fake news também caracterizam o perfil de líderes evangélicos fundamentalistas que usam isso como estratégia política para direcionar o voto dos cristãos. 

“Para mim, [esses líderes] não têm nada mais ligado ao evangelho, se entregaram a um projeto capitalista, querem captar dinheiro e poder. E para [isso], eles precisam colocar os deles no Congresso Nacional, nas prefeituras, nas câmaras [e] assembleias estaduais”.

Gabriel Sales, coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.

Ele menciona que as igrejas evangélicas que não são fundamentalistas, grandes e ricas têm limitações, e quem deve concretizar o alcance aos direitos da população de forma ampla é o Estado, e que por isso é preciso defender as políticas públicas. 

Confraternização do núcleo do DF da Frente de Evangélicos pelos Estado de Direito. (foto: arquivo pessoal).

“Se eu falo que eu sou seguidor de Cristo e eu quero que todo mundo tenha vida em abundância, eu tenho que lutar para que todo mundo tenha arroz, feijão e uma proteína no prato. Então, eu tenho que lutar por uma sociedade em que não haja mais insegurança alimentar. Isso perpassa pelas políticas públicas”, finaliza.

Drogas e aborto: por uma política de cuidado

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No mês de junho, assistimos a discussões muito importantes no Brasil sobre a criminalização do aborto e a Lei de Drogas. Infelizmente, na maioria dos casos, a conversa começa com “não estamos discutindo a descriminalização” ou “não está em discussão a legalização”. E, para ambos os temas, isso é uma grande pena.

Não é nenhum segredo que o atual sistema de guerra às drogas é ineficiente. Ele colabora para o encarceramento em massa baseado em raça e território, e para um altíssimo índice de mortes violentas (em especial de jovens homens negros). Ao mesmo tempo, a criminalização do aborto resulta no elevado índice de abortos inseguros, com uma morte a cada dois dias, à violência obstétrica e ao consequente medo de procurar ajuda médica. 

Em 2022, mais de 150 mil mulheres foram internadas no SUS por complicações de abortos inseguros e estima-se que pelo menos meio milhão de abortos sejam realizados no Brasil todos os anos.

Trago todos esses dados (e links) para dizer o óbvio: a proibição não impede a realização de abortos, não evita nem trata o uso abusivo de drogas, não protege as gestantes, nem protege nenhuma família. 

O que a criminalização faz é favorecer o tráfico, o mercado de armas e o aumento da violência.

No país, poucas são as políticas públicas de reabilitação para quem faz uso problemático de drogas. O que vemos é a proliferação de comunidades terapêuticas religiosas com poucos ou nenhum profissional especialista no tratamento de desintoxicação e muitas acusações de tortura e abusos sexuais

Mas, se esse viés de encarceramento e criminalização não dá resultado, o que aconteceria se ao invés de tratarmos esses temas com políticas criminais, os tratássemos com políticas de saúde pública? 

Para dar apenas um exemplo aqui do lado: na Argentina, após a legalização do aborto e a implantação de uma política de educação sexual integral, a morte materna e de gestantes caiu 43%, enquanto a gravidez na adolescência teve uma redução de mais de 40%. 

No caso das drogas, já existem experiências positivas que mostram que, ao invés de marginalizar as pessoas usuárias e prender por quantidades mínimas, poderiam ser criados espaços para o uso seguro, com insumos desinfetados – evitando a contaminação por uma série de doenças – e apoio profissional em caso de crises, overdoses e na busca de tratamento para quem quer deixar de usar drogas. Tudo isso articulado com a inserção em programas de assistência social, quando necessário, com um plano pensado caso a caso. Isso tudo é redução de danos.

Em poucas palavras, a redução de danos é uma postura ética e política que propõe uma reflexão ampliada sobre práticas que podem causar danos, investindo no acesso à informação e cuidados para a redução desses danos. 

Por exemplo: quando alguém te diz para beber um copo de água e/ou se alimentar a cada tanto de cerveja, está cuidando para diminuir os efeitos ruins que o álcool pode trazer ao seu corpo. Isso é redução de danos. É uma política e uma prática de cuidado que incentiva estratégias de proteção e mudanças de atitude em situações de risco e vulnerabilidade. 

No entanto, essa postura exige que olhemos para drogas e aborto (nos exemplos que estou usando aqui) sem moralismos e que tenhamos respeito pela autonomia corporal de cada pessoa.

De uma perspectiva da redução de danos, a descriminalização do aborto poderia zerar as mortes por procedimentos inseguros, com todas as pessoas podendo acessar abortos seguros pelo SUS ou na rede privada; poderia aumentar a cobertura de planejamento familiar, já que um método contraceptivo de longa duração poderia ser oferecido após o procedimento; e poderia inclusive contribuir na identificação de situações de violência intrafamiliar.

Acolher, ao invés de criminalizar, abriria um espaço para a proteção integral, para que a pessoa em situação de vulnerabilidade – e sua família – possa ser cuidada.

Quando o foco é apenas no punitivismo, a única porta que se abre é a da prisão e essa não cuida da pessoa viciada, nem da que abortou de maneira insegura, não protege sua família, não acaba com o tráfico de drogas e nem de medicamentos. 

Não seria mais eficaz trabalhar com uma perspectiva de redução de danos, criando uma política de cuidado, ao invés de apenas investir em punitivismo? Até um ministro do STF reconheceu o problema de desigualdade social e racial que envolve a política atual de drogas (te convido a tirar uns minutos para ver este vídeo sobre como este mesmo ministro lidava com o tema há alguns anos atrás).

A criminalização não cuida de ninguém, ela só beneficia os traficantes. E estamos falando aqui de quem carrega drogas de helicópteros e Hilux, tranquilão, morando em casas cheias de armas, em condomínios fechados, em bairros onde a polícia não entra sem mandado, e não dos moleques que morrem jovens, vendendo droga sem camisa nas biqueiras das quebradas. 

Investir em uma política de cuidado seria, isso sim, trabalhar em prol das famílias brasileiras e contra a atual política de morte.

*Se quiser saber mais sobre redução de danos e política de drogas, recomendo que você assista à entrevista da Nathália Oliveira, aqui no desenrola e veja a série Que Droga é Essa, do Justificando. Acompanhe também a Rede de Feministas Antiproibicionistas e a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas.

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Liderança indígena pauta trajetórias coletivas na busca por políticas públicas

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Ao nos receber em sua casa, logo de início, Chirley Pankará faz questão de apresentar o ambiente em que estamos chegando, a ‘Sala da Memória’, espaço que abriga peças e obras que dialogam sobre território e memória. “[Aqui] tem peças de barro do meu núcleo familiar, peças de vários povos indígenas, e aí a gente vai se conectando com essas ancestralidades também. Isso me mantém no processo de territorialidade, que é a conexão que eu faço na cidade em situação de contexto urbano [com] o território indígena”, explica.

Chirley Pankará, 50, é pedagoga, doutoranda em antropologia, e conta que sua família é do território reconhecido como Serra do Arapuá, no município de Carnaubeira da Penha, em Pernambuco. “Nós fomos trabalhar em fazendas [na] zona rural [do município] de Floresta, que não é a mesma [região] das aldeias Pankará”. Ela menciona que essa migração foi a alternativa encontrada pela família para conseguir trabalho e subsistência.

Em 1998, Chirley migrou para São Paulo pelo mesmo motivo, “vim para trabalhar como empregada doméstica”, conta. Atualmente, ela mora no bairro Jardim São Francisco, localizado no distrito de São Rafael, na zona leste de São Paulo. 

“Muitos indígenas que vivem em situação de contexto urbano, vivem nas periferias. Quando eu falo periferia também estou falando de povos indígenas. É que há um pensamento distorcido de achar que o indígena está só dentro da aldeia.”

Chirley Pankará, pedagoga e doutoranda em antropologia.

Ela identifica sua ligação com a militância e a liderança desde a infância, quando sua avó Maria Divina, conhecida como Mãe Bó, que era parteira e benzedeira, pedia ajuda na busca de ervas, e Chirley prontamente ia procurar na mata para auxiliar. 

Chirley traz que sua atuação nos movimentos sociais antecede sua participação na política partidária. “Eu era ligada à política pública da luta dos movimentos sociais”, comenta. Ela conta que sua trajetória política é permeada pela escuta, oralidade e pela construção de redes. 

A partir dessa perspectiva de construção conjunta, Chirley fala sobre um tipo de liderança, que se estabelece por um querer coletivo. Segundo ela, é por esse direcionamento que está como pré-candidata a vereadora de São Paulo. “Algumas pessoas, que não estão dentro do contexto indígena de coletividade, de escutas, [não entendem] quando eu digo que foram os povos indígenas que escolheram”, compartilha.

Reunião com lideranças políticas e indígenas, na Terra Indígena Jaraguá, em 2022 (foto: Rafael Vilela)

“Em São Paulo capital, por exemplo, nós temos 19.777 indígenas, apontou o IBGE. Com 19.777 [votos] não elege uma vereadora. E estamos contando que nesses 19.777 temos as crianças”, expõe Chirley ao explicar que por causa dessa quantidade de votos não seria uma boa estratégia lançar duas candidaturas ao mesmo tempo, e que é desse modo que os indígenas geralmente se organizam politicamente, sem competir entre si.

Trajetória

Em 2007, Chirley começou a cursar pedagogia como bolsista por renda. No ano seguinte, após ingressar na faculdade, passou a se conectar com outras atuações. “Eu me encontrei com os parentes indígenas [e] comecei a participar de movimentos indígenas”, diz. E de lá para cá não parou mais. “Em 2009, fui para a minha primeira viagem fora de São Paulo no sentido da militância, representando a questão indígena”, conta. 

Desde então Chirley já integrou o Conselho Nacional de Mulheres Indígenas representando a educação, participou da 2° Conferência Nacional da Igualdade Racial, foi para a Rio+20, para a Conferência Global de Mulheres Indígenas em 2013, realizada no Peru, participa do ‘Acampamento Terra Livre’, entre outras movimentações. 

Chirley no Congresso Nacional reivindicando a demarcação de terras indígenas, durante o Acampamento Terra Livre (foto: arquivo pessoal).

Através dessas articulações, Chirley conheceu Edson Kayapó, que é escritor, ativista indígena e historiador. Ela a indicou para o Observatório da Educação Escolar Indígena, na PUC, onde iniciou como estudante e após o primeiro ano passou a atuar como professora, de 2009 a 2012, período que também começou o mestrado.

Em 2010, também a convite de Edson Kayapó, foi Coordenadora Geral das escolas de primeira infância do Povo Guarani, em três Centros de Educação e Cultura Indígena (CECIs), na Tenonde Porã e Krukutu, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, e no CECI Jaraguá, no Pico do Jaraguá.

Chirley como doutoranda em Antropologia Social da USP, no Seminário internacional de antropologia. (foto: arquivo pessoal).

“Eu fui aprovada [como] a primeira mulher indígena a entrar no doutorado em antropologia social na USP, como cotas”, aponta Chirley, que reivindica ter professores e autores indígenas como referências no curso. 

Identitarismo

Chirley conta que foi apenas em 2018, que filiou-se a um partido político. Através do Emerson Guarani Nhandeva, que é professor e pesquisador, ela foi chamada para conhecer e participar da campanha da Bancada Ativista. A Pankará comenta que na ocasião ainda não conhecia como funcionavam os mandatos coletivos. 

Na última reunião para definir as co-candidatas do mandato, a pedagoga foi para entender mais sobre, e ao final do encontro passou a compor a Bancada Ativista, que ganhou as eleições de 2018. “Eu fui para a reunião e senti que dava pra dialogar, porque eu vi pessoas que se aproximavam da minha pessoa. Eu pensava que eu ia ver só aquele povo metido, nas gravatas, no salto”, comenta.

Sobre as dificuldades de atuar na política enquanto mulher indígena, nordestina e periférica, Chirley diz que há várias formas de preconceito. “Você tem que ser 10.000 vezes mais forte, pra poder se manter de pé, fazer políticas públicas e combater isso”, coloca. 

“Eu [já] vi muitas pessoas falarem assim: ‘ela traz uma pauta identitária’. Como se quisesse me xingar, sabe?”

Chirley Pankará, pedagoga e doutoranda em antropologia.

A pedagoga afirma que as pautas que contemplam os povos indígenas também podem ser necessárias para a cidade. “Quando estou falando de privatização da água, da Sabesp, estou falando de um braço que se conecta com meio ambiente. A especulação imobiliária, as ecovias verdes, tantas coisas que vão servir para a cidade e para a aldeia”, exemplifica. 

Chirley também aponta que a visão estereotipada e de tutelagem sobre os indígenas ainda existe, tanto na sociedade como nos espaços políticos, e que esse imaginário precisa ser descolonizado.

Chirley Pankará, pré-candidata a vereadora de São Paulo, fala sobre militância e representatividade indígena na política paulistana.
Chirley como Coordenadora Geral de Promoção à Políticas Culturais, pelo Ministério dos Povos Indígenas (foto: arquivo pessoal).

Em 2023, a Pankará atuou como Coordenadora Geral de Promoção à Políticas Culturais, pelo Ministério dos Povos Indígenas, e se desvinculou para concorrer às eleições de 2024. “Estou a serviço do movimento indígena, uma liderança é a serviço da coletividade. A gente tem que honrar a memória dos nossos ancestrais”, finaliza.

Trajetória política: Agatha Benks fala sobre a busca por representação na política institucional

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Agatha Benks, 38, é uma mulher negra, travesti, de matriz africana e periférica, que está como pré-candidata a vereadora do município de Cachoeiro de Itapemirim, do Espírito Santo, cidade onde mora, no bairro Bela Vista. Agatha conta que construiu uma trajetória de vivência política que antecede essa primeira candidatura que disputa nas eleições de 2024.

“Eu sou ativista de direitos humanos e trabalho com educação social, com coletivos e ONGs de empoderamento e fortalecimento da população preta e periférica”, diz. Agatha é vice-presidente do Conselho Estadual LGBTQIAPN+ do Espírito Santo, assessora parlamentar da deputada estadual Camila Valadão, pelo PSOL, partido no qual é filiada desde 2019, e também atua na área da cultura.

Trajetória política: Agatha Benks fala sobre a busca por representação na política institucional
Agatha Benks em um evento do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). (foto: arquivo pessoal).

“Enquanto mulher trans e periférica, eu sou uma sobrevivente por não aceitar nada que a sociedade historicamente colocou para o meu corpo. Eu não aceitei a prostituição como a minha única opção de vida. Eu relutei contra isso por vários anos, desde quando eu me entendi travesti”, coloca.

Aos 16 anos, Agatha abandonou os estudos por causa dos preconceitos e hostilidades que sofreu quando cursava o ensino médio em uma escola pública. Foi nesse período que ela vivenciou a prostituição.

Agatha na composição do conselho estadual lgbtqipn+ do Espírito Santo (foto: arquivo pessoal)

“[Eu tinha] medo desse submundo de marginalização das mulheres trans, deste lugar que é extremamente inseguro, incerto e violento. Então eu procurei outros caminhos”. A partir daí, Agatha começou a trabalhar como cabeleireira. “Quando se é uma travesti [ou] trans, você é manicure, cabeleireira e maquiadora ou você vai fazer programa, porque você não acha outro emprego”, afirma.

Após se estabelecer como cabeleireira e voltar a estudar, ela optou por trabalhar em áreas que se relacionam com a militância sobre negritude e a comunidade LGBTQIAPN+. “Por mais que eu não esteja [mais] naquele ambiente [de prostituição], eu também não quero que as minhas amigas estejam lá”, menciona a assessora, que concluiu o ensino médio atraves do EJA (Educação de Jovens e Adultos), e por meio do ENEM, cursou Gestão Pública com bolsa de estudos pelo PROUNI.

“É só na educação e no estudo que a gente consegue romper [os preconceitos], se você quer combater o racismo, o preconceito, estude, é a única forma de você enfrentar o que está imposto frente a todos esses recortes de violações de direitos humanos.”

Agatha Benks, vice-presidente do Conselho Estadual LGBTQIAPN+ do Espírito Santo e pré-candidata a vereadora de Cachoeiro de Itapemirim.

Garantir o direito ao uso do nome social foi uma das dificuldades da graduação na universidade em que conta ter sido a primeira travesti a estudar. Nesse período, a assessora relata que outras mulheres trans e travestis da região passaram a acreditar que estudar e se formar era um caminho possível. “Foi muito simbólico, outras meninas se viram representadas”, diz.

Embora já tivesse conexão com as pautas que aborda, a universidade também fortaleceu sua militância, e de lá surgiram os direcionamentos da área que passou a trabalhar. Foi nesse espaço que conheceu coletivos, grupos de diversidade, negritude e que desenvolveu um lado politizado com o respaldo na palavra.

Atuação política no território

“A periferia está sempre formando homens e mulheres, jovens, negros, lgbts, ou não lgbts, a periferia está sempre formando o povo preto, porque é o lugar de todas as [nossas] vivências”,  menciona Agatha.

Desde 2016 ela atua no instituto FEPNES (Instituto de Fortalecimento e Empoderamento da População Negra + Diversidade), no qual atualmente é coordenadora da pasta de diversidade. O instituto realiza ações que promovem os direitos humanos das pessoas lgbtqiapn+, mulheres e jovens negros. Entre essas ações está a oferta de cursos nas áreas de empreendedorismo em comunidades do Espírito Santo.  

Suas vivências enquanto travesti, negra e periférica interferiram na decisão de entrar na disputa da política institucional e buscar combater o racismo. “A partir do momento que a gente desce um morro e vai para o centro a gente entende o preconceito territorial. O preconceito de você ser periférico, porque as pessoas vão te olhar e julgar”, coloca.

Agatha no Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Estado do Espírito Santo. (foto: arquivo pessoal).

“O menino [negro] de 17 [ou] 18 anos se desce para a rua de sandália, boné e cordão, automaticamente uma viatura vai parar ele. Quando ele entrar numa loja um segurança vai acompanhar ele”, exemplifica Agatha. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 83% dos mortos pela polícia em 2022, no Brasil, eram negros, pobres e residentes das periferias, sendo que 76% tinham entre 12 e 29 anos. 

São todos esses recortes e demarcadores que estão presentes na trajetória da assessora. “Minhas frentes de atuação [são] a negritude e a diversidade da população LGBTQIAPN+. Minhas bandeiras são homens, mulheres e jovens negros e negres. E dentro dessa militância da negritude tem os povos de terreiro e de matrizes africanas que também é um povo muito violentado”, coloca Agatha.

Desafios e motivações

Agatha diz que foi nas eleições de 2022, que começou a considerar a possibilidade de se candidatar, e a ideia veio a partir da sua atuação como assessora parlamentar. Foi através dessa experiência que começou a entender de fato como a política institucional é feita, e incentivada por pessoas parceiras, decidiu pela candidatura.

“Pessoas de terreiros, de matrizes [africana], lgbtqiapn+, pretas, periféricas, essas pessoas começaram a comentar em posts meus [nas redes sociais]: ‘você me representa’, ‘eu tenho orgulho’. Foi que eu entendi que posso realmente representá-los de fato, com garantias de lei”, coloca Agatha. Ela comenta que essa motivação foi fundamental, já que, segundo a pré-candidata, o Espírito Santo é um estado conservador. 

Em 2023, pelo 15º ano consecutivo, o Brasil seguiu sendo o país que mais assassina pessoas trans, conforme mostra o “Dossiê: Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras”, realizado pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

Para Agatha, ser uma mulher, negra, travesti, de terreiro e periférica dentro da política partidária é um posto que reúne diferentes tipos de representatividades e que isso também torna o meio político um local cheio de desafios para pessoas como ela.

“Aqui na minha cidade não precisa literalmente ser eu. Eu estou aqui pela primeira vez [me pré-candidatando], mas que tenha uma pessoa igual a mim, porque a gente entende a importância desse corpo político”, comenta. Agatha ainda menciona que mulheres trans na política, como Erika Hilton, Deputada Federal, é algo que a motiva e inspira nessa empreitada por um cargo político e por dias melhores.