Mulheres negras contam como o legado das mais velhas pavimentou a luta pelo bem-viver

Ao marcharem em Brasília, em 25 de novembro, elas denunciaram o racismo, a misoginia e reivindicaram o direito à reparação e ao bem-viver.
Edição:
Isadora Santos

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O que muda quando uma mulher negra se movimenta e pode existir sem pedir licença? A luta das mulheres negras pelo bem-viver perpassa territórios, corpos, e vivências. A oralidade e memórias também possibilitam outras formas de existir no mundo. É o que relatam três mulheres que contam como as lutas de ontem influenciaram novas construções hoje e projetam caminhos para o amanhã. 

Mulheres negras contam o que mudou desde a última edição da Marcha em Brasília

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Elas estiveram presentes na Marcha das Mulheres Negras, que após 10 anos, reocupou Brasília, no dia 25 de novembro, levando às ruas mais de 300 mil vozes para denunciar o racismo, a misoginia e reivindicar garantias de direitos historicamente negados à população de mulheres pretas e pardas no Brasil.

A enfermeira e ativista Ana Carolina de Souza, 26, moradora do bairro Jardim Liberdade, em Goiânia (GO), cresceu na região Noroeste do Brasil, e entende que ser mulher negra, desde cedo, atravessou sua experiência de vida, seja pelas sequelas do racismo, pelos afetos, referências ou pelas lutas herdadas. 

“Cresci sendo moldada a ser forte e a lutar pelas minhas origens, pelo meu cabelo, pelos meus estudos e direitos. Isto vem de berço, por conta das mulheres da minha família e de algumas já [organizadas no] movimento [social]”, compartilha ao contar sobre as mulheres que abriram espaço para que pudesse viver, sonhar e se expressar com liberdade.

Sobrinha de uma das fundadoras do primeiro grupo de mulheres negras feministas de Goiânia (a ativista Geralda Pereira) — o coletivo Mulheres Negras Malunga — Ana cresceu perto de uma organização que há décadas defende os direitos e a saúde integral da população negra. 

Foi entre as brincadeiras no quintal da sede, rodas de conversa, encontros e caminhadas que começou a formar seu repertório. Ali, ela encontrou mulheres que partilhavam de demandas em comum. “Foi muito lindo perceber que, no futuro, eu estaria lutando pelas que vieram antes de mim e pelas que ainda viriam depois de mim”, diz.

“Gostaria que todas as meninas tivessem a oportunidade que eu tive: referências de grandes mulheres negras que conquistaram espaços que muitas de nós nem imaginávamos. Que tivessem letramento racial desde cedo e, assim, possam viver seus sonhos como mulheres empoderadas e independentes neste país.”

Ana Carolina de Souza, 26, enfermeira, moradora de Jardim Liberdade, em Goiânia (GO) e integrante do coletivo Mulheres Negras Malunga.

Neste contexto, a goiana celebra o fato de já ter experimentado a possibilidade de ingressar na universidade e se ver representada, além de ocupar sua profissão usufruindo de um salário digno. O mesmo ela deseja para mais mulheres. Entretanto, de modo geral, aponta que conquistar acesso à saúde de qualidade, livre dos efeitos do racismo institucional, se apresenta como um dos desafios mais urgentes.

“O maior ensinamento que uma mais velha me transmitiu é que não importa onde e quando eu estiver, eu uma mulher negra periférica, tenho o direito ao estudo, e ele é quem vai me levar a lugares inimagináveis, mas que temos direito”, afirma.

Cerca de 1.180 quilômetros separam geograficamente Ana Carolina e Fabiana Carmo, 48, que vivem no Médio Paraíba, na região de Pinheiral, Rio de Janeiro. Assistente social, agente educacional comunitária e militante do movimento negro, Fabiana tem sua trajetória marcada na política institucional e comunitária em uma agenda de defesa do bem-viver. 

“Carrego em meu corpo e memória as marcas de um país que ainda insiste em negar humanidade à população negra, mas também carrego a força de quem aprendeu cedo a transformar dor em movimento e resistência em horizonte”, afirma ao contar que ser mulher negra moldou cada passo da sua caminhada.

“A minha experiência não é separada da história: ela é costurada pelas mãos de minhas ancestrais, por todas as mulheres negras que vieram antes de mim e que deixaram caminhos abertos para que eu pudesse estar aqui, caminhando com a cabeça erguida.”

Fabiana Carmo, 48, assistente social, agente educacional comunitária e moradora de Médio Paraíba, na região de Pinheiral do Rio de Janeiro (RJ).

Outros aspectos, segundo ela, também constroem este caminho. “A luta das mulheres negras da minha geração e das anteriores foi o que me permitiu viver, sonhar e me expressar com mais liberdade. Elas enfrentaram o silêncio imposto, romperam barreiras na política, na educação, nos espaços de cuidado, na arte, na religião de matriz africana, e na luta diária dentro das favelas e periferias”, fala.

“Foram elas que disseram que nossas vidas importam, que nossos corpos não são descartáveis, que nossa voz tem potência e que o bem viver também é direito nosso. Eu só caminho porque elas marcharam. Eu só falo porque elas gritaram. Eu só sonho porque elas ousaram sonhar antes de mim”, acrescenta.

Fabiana também fala da necessidade do racismo ser desmontado e que as novas gerações vivam a plenitude de ser mulher negra, com dignidade e perspectivas de bem viver.

“Que [meninas negras] cresçam sabendo que são amadas, legítimas e dignas de ocupar qualquer espaço. Que possam viver com liberdade, estudar, criar, envelhecer, maternar ou não, sem ter que negociar sua humanidade.” 

Fabiana Carmo, 48, ativista, assistente social, agente educacional comunitária e moradora de Médio Paraíba, na região de Pinheiral do Rio de Janeiro (RJ).

Mulheres negras têm conquistado visibilidade, denunciando o racismo, exigindo políticas públicas e afirmando sua potência. Ainda assim, a assistente social diz que direitos básicos, como viver com dignidade, segurança e igualdade de oportunidades, sem ver suas famílias ameaçadas pela violência do Estado ou empurradas para os piores indicadores sociais, permanecem distantes.

Ela ainda destaca a importância da luta coletiva liderada por mulheres negras na nossa sociedade: “Mulher negra aprende cedo que sozinha até vai, mas juntas nós mudamos mundos”, coloca.

“Ainda não construímos nossa plena humanidade como mulheres”, afirma antropóloga

Aos 47 anos, Rosilene Pimentel Gomes, moradora da zona sul de São Paulo (SP), também traz a maturidade de quase três décadas de atuação no movimento de mulheres negras ao refletir sobre o que a mantém no enfrentamento das desigualdades estruturais. 

Assistente social, mestre em políticas públicas, escritora e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social e Violência (NuBalaio), Rosilene destaca que a luta por direitos exige presença contínua e insistência. Para ela, se a sociedade civil diminui a pressão, a estrutura social empurra novamente mulheres negras para a condição de invisibilidade. 

Questionada sobre o que atravessa a vivência de mulheres negras, Rosilene lembra de ensinamentos de intelectuais como a psicanalista Neusa Santos, autora do livro ‘Tornar-se Negro’, e de Lélia Gonzalez, que falam sobre como experências em comum são vivenciadas por pessoas negras na nossa sociedade. 

“Vamos reconhecendo, diante de um racismo estrutural, que não há nada de errado com o nosso cabelo nem com nossa beleza. O que está errado é esta estrutura [social] discriminatória que usa padrões eurocêntricos [como referência] e nos coloca num lugar de menosprezo, de inferioridade, sem valor, do feio, do negativo”, afirma.

Ao traçar a história do Brasil, a pesquisadora compreende o peso do legado escravocrata como um sistema que submeteu a população negra e transformou mulheres negras em alvos de exploração, objetificação e violência, revelando a dimensão estrutural da desigualdade que atravessa gerações. 

“Por isso, reconhecer essa história e que o problema não somos nós, mas sim esse sistema racista, patriarcal, capitalista, colonial, nos molda enquanto mulheres que têm o direito de viver a sua liberdade”, diz.

‘‘Nossa principal reivindicação ainda é o fim da morte de nossos filhos’’: mulheres negras marcham por reparação e bem viver 

Rosilene faz parte de uma geração que ainda sonha em testemunhar o fim do genocídio e da violência de gênero. “Que mulheres negras consigam sair na rua e não serem violentadas. Eu quero que as mulheres negras saiam dos índices de estudo como os principais alvos de violência doméstica, violência de gênero, feminicídio”, ressalta ao contar que espera para a próxima geração de mulheres negras uma sociedade segura e com oportunidades.

“Se hoje conseguimos denunciar o racismo, ter legislações que garantam cotas, que garantam espaços para nós, é porque muitas mulheres lutaram para que hoje consigamos ter acesso a muitas outras coisas que minha mãe, por exemplo, não teve.”

Rosilene Pimentel Gomes, 47, assistente social, mestre em políticas públicas, escritora e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social e Violência (NuBalaio), moradora da zona sul de São Paulo.

A pesquisadora avalia que a força da militância e da intelectualidade do feminismo negro, ao longo de décadas, trouxe outra dimensão subjetiva de ser mulher preta e agora pauta o país do futuro. 

“A nossa luta nos trouxe poder de fala, de expressão, de contraponto, de reconhecer o nosso saber, a nossa capacidade, a nossa diversidade”. 

Rosilene destaca que aprendeu com a mãe — que não teve acesso à educação formal, mas sempre carregou a sabedoria adquirida no território — lições que guiam seu olhar, especialmente para mães solo e para mulheres frequentemente criminalizadas pela ausência do Estado. 

“Eu saúdo todas as mais velhas, pois o que elas nos trazem é fundamental”, reforça e finaliza: “Que a próxima geração de mulheres negras siga com a nossa bandeira de luta ancestral. Que não a deixe parada”.

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