No início do século XX, o samba surgia no Brasil a partir de homens e mulheres que se reuniam para festejar. Expressão cultural das populações negras e periféricas, o gênero musical nasceu no Recôncavo Baiano e, mais tarde, se espalhou por outras regiões do país, como no Rio de Janeiro. A mistura de batidas, ritmos e histórias é marcada por resistência, especialmente frente à violência e repressão sofridas pelo povo negro.
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A antropóloga Fabiana Marques, nascida no distrito de São Mateus, zona leste de São Paulo, pesquisa sobre cultura afro-brasileira e samba, explica que o gênero musical carrega memória, resistência e pertencimento, sendo considerado também um ato contra-colonial diante das violências sociais.
Segundo ela, os antigos quintais espalhados pelo Brasil, onde mulheres negras recebiam em suas casas a comunidade para celebrar o samba, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, funcionaram, historicamente, como espaços de aprendizagem, socialização e preservação da ancestralidade negra.
Essas manifestações herdaram consigo elementos da capoeira e das religiões afro-brasileiras, como o Candomblé, a Umbanda, Jurema e Kibanda, baseadas nas práticas que vêm dos terreiros e conduzidas por figuras religiosas como babalorixás, pais e mães de santo.
Apesar do gênero estar historicamente associado às classes econômicas mais pobres, Fabiana destaca que ele transcende fronteiras sociais e raciais. “Não há quem viva no Brasil e não o conheça, seja no batuque, em seus versos ou instrumentos. Até entre os povos indígenas há variações do ritmo”, explica.
“As periferias são pontos de resistência política, pois o samba nasce da cultura periférica, fortalecendo a coletividade, o senso de família e o aquilombamento. O samba é ancestral porque ele cura, é como uma reza, uma bênção.”
Fabiana Marques é nascida em São Mateus, mestre em Antropologia e pesquisadora do samba e da cultura afro-brasileira.
Desde 1920, o samba faz parte da história do país, marcado pelo cruzamento de vivências e trajetórias de mulheres negras que pavimentaram o caminho do movimento.
Como economia criativa e espaço de formação, Fabiana ressalta que os quintais de samba, liderados por mulheres, foram fundamentais na consolidação do samba em São Mateus entre as décadas de 1960 e 1970.
“Hoje, alguns deles ainda existem e mantêm vivos os legados de quem veio antes. Mesmo que muitas dessas mulheres não estejam mais entre nós, suas memórias permanecem”, diz.
Num país que se recuperava dos traumas da ditadura militar, estes quintais se tornaram também escolas de vida. Neles, atuavam como verdadeiras educadoras, transmitindo consciência crítica e política aos mais jovens. Em São Mateus, Fabiana conta que grandes nomes se formaram fortalecidos pela luta e pelo apoio dessas figuras femininas até se consolidarem artisticamente.
“O povo negro nunca fez nada sozinho; estamos sempre em comunidade. É no samba que nos fortalecemos. Dele surgiram músicos, intérpretes e compositores que levam na música o que aprenderam com as tias: afeto, crítica, raízes e o valor da coletividade.”
Fabiana Marques é nascida em São Mateus, mestre em Antropologia e pesquisadora do samba e da cultura afro-brasileira.
Os primeiros sambas registrados na história despontaram nomes como o grupo “Oito Batutas”, conjunto musical brasileiro criado em 1919 no Rio de Janeiro e formado pelos músicos Pixinguinha, Donga e Raul Palmieri, Nelson Alves, China, José Alves e Luis de Oliveira.
Mulheres que propagaram a cultura do samba nos quintais
Dentre outras figuras marcantes do movimento samba, está Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata, uma sambista, mãe de santo e curandeira brasileira, considerada por muitos como uma das figuras mais influentes para o surgimento do samba carioca. No Rio, seu quintal se transformou em um verdadeiro espaço de encontro, símbolo de cultura e força durante o regime militar.
Já em São Mateus, zona leste de São Paulo, um dos primeiros quintais surgiu nos anos 1950, com Dona Ercilia, mãe da Tia Cia dos Terreiros. Sua família foi uma das primeiras a ocupar o local, lutando por moradia e melhorias para o bairro.
Com o avanço da urbanização e a especulação imobiliária no cenário nacional, a população de São Mateus sofreu os reflexos, sendo empurrada do centro para as periferias. A família de Tia Cida passou pela Vila Madalena até se estabelecer em São Mateus, onde nasceram outros quintais importantes: os de Dona Ercília, Dona Carmen, Dona Chica, Tia Filó e tantos mais.
Cada quintal tinha sua própria identidade: o de Dona Ercília (mãe de Tia Cida) era do Partido Alto; o de Tia Chica, do choro; o de Dona Carmen, do tambor de crioula; o de Tia Severina, ligado ao futebol de campo; e o de Tia Filó reunia influências do partido alto e do pagode 90.
Fabiana avalia que o quintal de Tia Cida, em especial, representa a síntese de todos os outros. “Juntos, criaram uma rede de cultura e pertencimento que mantém vivo o samba como expressão de identidade e resistência […]. Foi lá que as memórias, os ensinamentos e a força da cultura do samba se mantiveram, reunindo e propagando tudo o que essas mulheres construíram”, afirma.
“Parafraseando Tia Cida, e eu também sou cria desta grande mulher, se quiser conhecer a verdadeira história do Brasil, ouça um samba-enredo. É ali que tudo está escrito. [Quando o carnaval chega], o povo toma as ruas para celebrar sua cultura e sua política, transformando a arte em reflexão sobre quem somos e de onde viemos.”
Fabiana Marques é nascida em São Mateus, mestre em Antropologia e pesquisadora do samba e da cultura afro-brasileira.
A tradição do samba que resiste em São Mateus
Assim como o samba nasceu a partir de muitas mãos, essa força coletiva se reflete até hoje em São Mateus. Lá, acontecem diversos movimentos tradicionais, incluindo as rodas de samba do grupo Berço do Samba de São Mateus, uma das iniciativas que luta para manter a continuidade deste legado, através das ações promovidas pelo Instituto Cultural de Tradição e Memória do Samba de São Mateus.
O bairro também concentra a Orquestra de Samba e Choro, blocos carnavalescos e as escolas de samba: Amizade Zona Leste e Aroeira, além das comunidades de samba: Maria Cursi, Jd. Vera Cruz, Toca da Onça e Quilombo Vila Flavia, que movimentam o território e fazem de São Mateus um reduto do samba paulistano.
O braço social do grupo atende a comunidade local, especialmente crianças e jovens interessados em aprender a tocar, compor e compreender a história do samba, além das recorrentes rodas realizadas no histórico Bar do TiMaia e outras iniciativas culturais comunitárias.
Segundo o sambista Gerson Martins, um dos fundadores do Berço do Samba de São Mateus, não há documentos históricos que indiquem o exato momento em que o gênero surgiu na região, mas a própria memória coletiva evidencia a presença do samba na comunidade.
Ele avalia que o samba se tornou um gênero muito presente em São Mateus e gerações foram conectadas através de artistas como Dixon, Evo, Subito, Miguelito, Canota, Tocão e Gilvan, músicos que fundaram o grupo Berço do Samba.
Gerson lembra que ele e outros músicos percorriam o bairro se apresentando e reencontrando as pessoas. Nesses encontros, reuniam aqueles que tinham mais aptidão para tocar instrumentos, outras que ajudavam a ditar o clima da plateia, além dos que cozinhavam para alimentar o público.
Samba como posicionamento social
O tempo difícil também impôs outras formas de silenciamento. “Houve um tempo que a discriminação [era pesada], no final da década de 70, se os caras pegassem a gente na rua à noite, eram truculentos mesmo. A polícia vinha junto, batia na cara, dava soco, quebrava os instrumentos, os caras chutavam com aquela bota de bico de ferro na nossa canela. Humilhavam mesmo”, lembra ele, que também relata a resistência dos sambistas diante da violência policial.
“O samba não é só um gênero musical, é um posicionamento social. A gente se reconhece no samba. O samba nos deu dignidade. A gente respeita o samba muito mais que um gênero musical.”
Gerson é sambista e um dos fundadores do grupo Berço do Samba, em São Mateus, Zona Leste de São Paulo.
Nos bastidores e nos palcos desta luta, também está Yvison Pessoa, conhecido como Casca, que é um dos principais articuladores do grupo e quem costuma orientar os encontros, as rodas de samba e as demais ações do Berço do Samba no território. Ao se referir à perseguição sofrida por sambistas, ele lembra que a Lei da Vadiagem, prevista nos Códigos Penais de 1890, que permitia prender pessoas sem documentos ou sem comprovação de vínculos empregatícios, ampliando a perseguição à população negra no pós-abolição, foi uma consequência direta da escravização.
Os sambistas de São Mateus fazem questão de reforçar que na zona leste o samba se construiu como forma de coletividade e como resposta a um cotidiano de precariedade e silenciamento. Nesse sentido, os quintais foram espaços de criação e acolhimento, onde se aprendia a tocar, cantar, conviver e resistir diante deste cenário.
Apesar de celebrar os quintais, Casca pontua que a repressão policial na região de São Mateus continua, sobretudo, contra o funk: “É o mesmo processo que o próprio samba sofreu durante décadas. Agora a gente tá vendo outro gênero sendo perseguido igualmente, violentamente, o funk. Gênero esse que é [herança] da comunidade periférica”, comenta.
A resistência dos quintais
Casca relembra como eram realizados os sambas nos quintais, sob a proteção de mulheres: “O samba em São Mateus passou a ser feito nos fundos das casas porque era perigoso. O quintal da Tia Cida foi essencial. Ela era [e ainda é] uma ativista aqui no bairro e dizia: ‘Não quero ver meus filhos e minha comunidade sendo repreendidos pela polícia’”.
Ele conta que foi dessa realidade que surgiu o verso da obra Elemento Suspeito do grupo Quinteto em Preto e Branco“O quintal da Tia Piló, tia do Gerson, já falecida, também foi um dos nossos focos de resistência”, conta.
Além da presença, ele ressalta que essas mulheres desempenhavam papéis cruciais na organização das rodas. “A Tia Cida fazia, a muito custo, uma comidinha para todo mundo. Lá, a gente sabia que estávamos fora de perigo e bem acolhidos. E temos um samba falando exatamente sobre isto: o racismo [que vê] o negro como elemento suspeito”, relembra.
Dos quintais para as escolas de samba
A luta das mulheres negras migrantes da Bahia, também teve papel central na formação das escolas de samba que conhecemos hoje. “As Baianas” ou “tias baianas”, representavam a força espiritual e a tradição afro-brasileira, sendo vistas como guardiãs da ancestralidade e da memória.
Com a migração ao sudeste, muitas delas se tornaram, na região, quituteiras e mães de santo. Elas ainda acolhiam os sambistas em suas casas, onde aconteciam as primeiras rodas de samba, em um contexto de marginalização e perseguição.
“Mão pra cabeça
Se correr leva no peito
Um negro na favela
Essa tal atitude suspeita
É um preconceito velado
Aplicada pra cima do negro
E do pobre marginalizado
É nazismo declarado
Fruto da discriminação
Pra quem mora na periferia
E vive num campo de concentração. Mão pra cabeça”.
[Trecho da música Elemento Suspeito do grupo Quinteto em Preto e Branco]
Fabiana Pedroso, conhecida como Fabis, faz parte da nova geração do movimento do samba. Mulher negra, ritmista, mestre de bateria da Elas Que Tocam e diretora da bateria Só Quem É da Escola Imperador do Ipiranga, fundada em 1968, em Vila Carioca, no Bairro do Ipiranga, ligada às comunidades da Vila Carioca e Heliópolis, em São Paulo, lembra como se deu seu encontro com o samba.
“O samba e o Carnaval é algo que sempre esteve presente na minha vida. Faço aniversário em janeiro, então, os meus presentes de aniversário sempre foram algo relacionado ao carnaval, um vinil do carnaval, que depois passou para CD. Meu pai sempre me dava, eu ficava vendo, sempre querendo fazer parte disso”, relembra.
Ela fala do samba como lugar de acolhimento, mas também de luta, principalmente para as pessoas periféricas. “Tenho me envolvido com outros projetos também. Há três bandeiras que levanto: a de ser mulher, negra e LGBT+”, ressalta.
Fabiana ainda reitera que o samba é memória e pertencimento, elementos constantemente ameaçados. “Tenho conversado com amigos que percebem o samba ficando cada vez mais branco, com pessoas ocupando nossos espaços, até em escolinhas de bateria. Isso gera a discussão de que precisamos agir para proteger nosso lugar, porque o samba é muito mais que folia: é ancestral e cultural”.
Entre esse nascimento coletivo e territorial do samba e o cenário atual, para Fabis, existe um percurso marcado por disputas de espaço, permanência e reconhecimento. Segundo ela, se antes os quintais, terreiros e ruas eram lugares de construção comunitária, onde o samba se fortalecia a partir da vivência, hoje esses mesmos territórios simbólicos enfrentam processos de esvaziamento, apropriação e apagamento.
“É difícil manter o carnaval, especialmente por questões financeiras, já que as escolas com mais recursos geralmente são administradas por pessoas brancas, que historicamente têm mais acesso ao dinheiro”, coloca.
Fabis acredita que a história do Carnaval, o significado das tradições, como o papel das baianas, do mestre-sala e da velha-guarda, ainda não são amplamente conhecidos. “O samba e o Carnaval são para todos, pois é uma celebração coletiva, porém é fundamental que a comunidade negra permaneça [no centro] da história”, diz.
A sambista finaliza dizendo que manter o samba vivo é essencial para garantir a continuidade daquilo que resiste e não se rende em meio ao apagamento e à constante apropriação cultural sofrida pelo povo negro.











