Direitos invisíveis: além da covid-19, moradores de Sapopemba enfrentam pandemia de desigualdades

Na Fazenda da Juta, um dos bairros que fazem parte do distrito de Sapopemba, zona leste de São Paulo, moradores afirmam que a chegada de habitantes cresce cada vez mais e o poder público não faz nada para organizar a moradia dos novos moradores do território. Antes e durante a pandemia de coronavírus, a organização comunitária de luta por moradia surge como um dos únicos instrumentos democráticos e participativos capaz de oferecer à população local uma orientação em relação ao desenvolvimento da vida no bairro. 

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A Fazenda Da Juta é um bairro composto por 100 quadras, divididas em 3.318 lotes, onde vivem aproximadamente 5.000 famílias, de acordo com a Subprefeitura de Sapopemba. Dentro do bairro existem várias áreas ocupadas, onde vivem os moradores que entrevistamos.

Em uma dessas áreas há cerca de 300 famílias, com cinco a seis membros no núcleo familiar de acordo com Viviane Paulino, 46, líder comunitária do território. “Nas áreas ocupadas tem cerca de 300 famílias de baixa renda de cinco a seis pessoas nas famílias, que no momento estão sem trabalho dependendo do nosso trabalho de arrecadação, e conscientização, pois muitas não conseguem estar o tempo todo em casa, então a gente tenta ajudar as pessoas a ficarem de máscaras, e tomarem as medidas possíveis”.

Com mais de 21 mil habitantes por quilometro quadrado, a Subprefeitura de Sapopemba possui o maior indicador populacional entre todas as subprefeituras da zona leste de São Paulo, de acordo com dados do Censo de 2010. Dez anos depois de o estudo ser realizado, o cenário da pandemia de coronavírus expõe a precariedade da manutenção de direitos essenciais básicos para os moradores da região, como moradia, geração de renda e trabalho, saúde e assistência social ao idoso.

Há cinco anos morando na Fazenda da Juta, o comerciante ambulante Valdir Correia da Silva, 61, afirma que mesmo diante da escassez de serviços públicos na região, a quantidade de novos habitantes cresce cada vez mais e que o poder público não faz nada a respeito.

“Chega gente o tempo todo procurando lugar aqui, e só vai aumentando e aumentando as famílias por aqui. E agora nesse momento é que dá pra ver que as casas não têm estruturas nenhuma para manter as pessoas em isolamento”, conta o morador.

Por estar acima de 60 anos, o senhor Correia se enquadra no grupo de pessoas que estão mais suscetíveis a pegar a covid-19. “Eu, já sou do grupo de risco por ter mais de sessenta anos, mas vou te dizer que não dá pra ficar o dia todo em casa não, eu moro em um barraco de madeira e venho para dormir só, passo o dia fazendo bicos na rua”, relata.

Ao descrever esse cenário, o senhor Correia descreve nitidamente as condições de moradia, geração de renda e exposição ao contágio de covid-19, enfrentadas por ele e por outros moradores no território. Em paralelo a esses relatos da vida real, o boletim mais recente com dados de óbitos da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo apontou 245 mortes causadas pelo novo coronavírus na região de Sapopemba, um aumento de 19% em relação ao último comunicado oficial que apontava 205.

“Estou sem trabalhar agora né, porque eu trabalho como diarista, aí eu estou sobrevivendo com as cestas que eu recebo e com a ajuda do auxílio emergencial, mas ainda é muito difícil, porque eu moro com meus seis filhos num cômodo só, não dá pra ficar o tempo todo aqui com eles”, comenta Katia Cilene Dos Santos, 38, outra moradora da ocupação Fazenda da Juta que é diarista e está afastada neste momento do trabalho. Ela também denuncia a falta de amparo do Estado.

“Caso eu venha a ser contaminado como é que eu vou ter acesso ao tratamento?”

Uma das preocupações reveladas pelos moradores da Fazenda da Juta está baseada numa dúvida sobre o que vai acontecer com eles, caso sejam contaminados pelo novo coronavírus. 

“Tenho medo de ser contaminado, porque eu sei que na condição que está todos os hospitais e do lugar de onde eu venho, caso eu venha a ser contaminado como é que eu vou ter acesso ao tratamento? Sei que não vou ter, porque eles priorizam as pessoas mais ricas da cidade e que podem pagar”, desabafa Correia.

Em meio a esse cenário de desconfiança e incerteza em relação ao suporte que os equipamentos públicos de saúde darão aos moradores em caso de contágio, os hospitais municipais de São Paulo apresentam uma taxa de ocupação das unidades de tratamento intenso (UTI) superior a 80%, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde.

“É muito preocupante essa doença, me preocupa muito, porque a gente tem que ficar isolado, mas ao mesmo tempo a gente tem que sair para conseguir alguma coisa, e se pegar a doença? o que faz depois, eu tenho seis filhos, estou com muito medo”, ressalta Kátia, descrevendo o nível de preocupação que ela administra em relação ao bem estar dos filhos.

“Meu sonho é ter uma casa boa e própria para meus filhos terem um cantinho deles”

O direito à moradia digna foi reconhecido e implantado como condição para dignidade da pessoa humana, desde 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi reafirmado na Constituição Federal de 1988 pela Emenda Constitucional nº 26/00, em seu 6º artigo. Mas na prática, ter uma casa própria na periferia ainda é um sonho para muita gente, inclusive os moradores da Fazenda da Juta.

“Meu sonho é ter uma casa boa e própria para meus filhos terem um lar deles, cantinho deles, e a gente não ter que ficar dependendo das pessoas, e nem ficar passando por situações que a gente não precisa passar. Meu sonho é ter uma casa, e eu vou ter, tenho muita fé em Deus que eu vou ter”, enfatiza a chefe de família.

Para Valdir o sonho da casa própria, também representa o desejo de poder voltar a conviver com os filhos. “Meu sonho é uma casa minha, seria uma boa para mim, eu iria poder voltar a conviver com os meus filhos que vivem com a avó deles agora, porque eu sou viúvo e não dá para morar comigo porque eu moro em um barraco de madeira”, explica o morador.

“As políticas habitacionais não se limitam a construção de quatro paredes e um teto para as pessoas morarem”

De acordo com o professor do Instituto das Cidades no Campus da Zona Leste da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Anderson Kazuo Nakano, as políticas habitacionais envolvem diversas ações dentro do território e não só conceder uma moradia digna às pessoas.

“As políticas habitacionais não se limitam à construção de quatro paredes e um teto para as pessoas morarem. As políticas habitacionais devem ser entendidas como um conjunto com vários tipos de atendimentos que envolvem a urbanização de áreas urbanas precárias, a regularização fundiária de imóveis irregulares, a produção e distribuição de lotes urbanizados, o aluguel subsidiado para populações de baixa renda em moradias do poder público ou de proprietários privados, a reforma de moradias existentes, o aproveitamento de edificações e terrenos ociosos, dentre outras ações públicas”

define Kazuo.

O professor também pontua a questão de que muitas políticas públicas que chegam ao território não têm continuidade. “Outro problema em relação à presença das políticas públicas, urbanas e habitacionais, em territórios das periferias é a descontinuidade no tempo e no espaço. Isso significa que aquelas políticas sofrem com interrupções e não resolvem os problemas estruturais que exigem ações de médios e longos prazos que levam décadas. Significa também que várias daquelas políticas públicas, urbanas e habitacionais, não abrangem a totalidades dos territórios periféricos”.

“Não funciona impor o isolamento social onde os serviços sociais básicos possuem mau funcionamento”

Kazuo afirma que não funciona impor o isolamento social sem pensar nas pessoas que vivem em moradias precárias e superlotadas. “Não funciona impor o isolamento social em moradias inadequadas, insalubres, superlotadas, precárias e desconfortáveis, localizadas em bairros onde os serviços, equipamentos e infra-estruturas urbanas e sociais básicas são insuficientes e possuem mal funcionamento.”

Ele destaca que a chegada da pandemia do Covid 19 no Brasil mostrou a perversidade das desigualdades sociais. “A chegada da pandemia no Brasil, nas cidades brasileiras, mostrou a perversidade das desigualdades socioespaciais estruturais que formam as nossas cidades”.

Segundo o professor, o Brasil não consegue como sociedade, garantir os recursos básicos necessários para que a população de baixa renda possa enfrentar com resiliência esse momento de crise profunda e os graves impactos da pandemia.

Ele finaliza fazendo uma reflexão sobre a questão do sonho da casa própria está ligada a uma construção capitalista de propriedade privada. “É preciso refletir criticamente sobre essa idéia do ‘sonho da casa própria’ porque ela é uma construção ideológica forjada historicamente ao longo do século XX para reforçar a ideia da moradia como propriedade privada individualizada e, portanto, como uma mercadoria transformável em capital privado que se sobrepõe à idéia da moradia como direito social”.

“Creio que a questão mais importante é como efetivar o direito à moradia digna e adequada, principalmente para aqueles que não possuem poder econômico para acessar essa moradia, frente à especulação imobiliária e no mercado de aluguéis residenciais”.

finaliza o professor.

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