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Coletivos propõem local de destaque para estátua de Carolina Maria de Jesus em Parelheiros

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Escultura da escritora será a segunda em todo o município de São Paulo a representar uma mulher negra.

Praça Júlio César de Campos, a praça central de Parelheiros, é onde a maioria dos coletivos culturais da região realizam os seus eventos. Foto: Erivelton Camelo / Sarauê

A Prefeitura de São Paulo anunciou em agosto de 2021, a instalação de cinco estátuas de personalidades negras: Adhemar Ferreira da Silva, Itamar Assumpção, Madrinha Eunice, Geraldo Filme, e entre elas, a da escritora Carolina Maria de Jesus.

Artistas e coletivos de Parelheiros, território onde Carolina passou seus últimos anos de vida, apontam que o local para receber a escultura da escritora deve ser a praça central do distrito, espaço com maior visibilidade e circulação de pessoas no território.

No entanto, o local para instalação da estátua de Carolina Maria de Jesus escolhido pela Prefeitura de São Paulo, através da Secretaria Municipal de Cultural, foi o Parque Linear Parelheiros, espaço no qual articuladores do território reafirmam sua importância, mas relatam não ser um local de grande visibilidade.

Além disso, apontam que não foi realizada nenhuma consulta aos coletivos e articuladores do território, e o contato feito com a Vera Eunice, filha de Carolina, se deu já com o intuito de informar que o local de instalação da escultura seria no parque.

“Em reunião, ao questionar uma das servidoras do Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria de Cultura, como se deu a escolha do local, com que respaldo, ela informou que foi através do ‘núcleo periférico’ que existe dentro da secretaria, núcleo esse que desconhecemos a existência e quem o integra”, afirma Joziane Sousa, integrante do Sarauê, grupo literário e cultural de Parelheiros, e uma das articuladoras do manifesto.

Joziane conta que quando os agentes culturais do território souberam da definição do local, não tinham conhecimento de quem teria escolhido o Parque Linear, e logo receberam o pedido de Vera Eunice, para compor a comissão de inauguração. Ela ainda ressalta que a filha de Carolina estranhou que nenhum coletivo do território havia integrado a comissão a convite direto da Secretaria de Cultura. 

“Carolina, mesmo quando teve condições financeiras de morar numa região nobre do bairro de Santana, nunca foi acolhida, e no imaginário da época nunca deixou de ser a “favelada”. Os seus últimos anos de vida em Parelheiros, foram num contexto de refúgio, onde ela nunca deixou de escrever, mas também nunca pode usufruir de fato dos frutos que poderia ter colhido com a sua produção literária.”

afirma Joziane Sousa, integrante do Sarauê, grupo literário e cultural de Parelheiros, e uma das articuladoras do manifesto.

Após receberem a informação da data de inauguração da escultura, que estava prevista para 13 de fevereiro, data do falecimento de Carolina, a família da escritora e o movimento cultural do território passaram a se articular e se reuniram com o subprefeito de Parelheiros, que não havia sido comunicado sobre o evento de inauguração, e buscaram contato com o Departamento de Patrimônio Histórico para reverter o local e data já definidos.

“Desde o dia 17 [de fevereiro], estamos atuando de forma muito organizada como um comitê, em torno dessa pauta para tentar reverter essa decisão da Secretaria, e no dia 21, uma das componentes do comitê entregou nas mãos da secretária Aline Torres o nosso manifesto. A mesma solicitou uma carta escrita e assinada por Vera, onde declarasse os motivos para a solicitação de troca do local, e essa carta foi entregue na secretaria dia 22 [de fevereiro]”, relata Joziane.

Ontem, dia 23 de fevereiro, o grupo recebeu uma mensagem da secretária de cultura solicitando uma reunião com os membros do comitê na sexta-feira (25).

Na carta produzida por artistas, coletivos e articuladores de Parelheiros, eles reforçam que o Parque Linear Parelheiros, local escolhido pelo Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura, tem muita importância para o território, mas que o local para instalação da escultura de Carolina, deve ser a “sala de visitas” do território, na Praça Júlio César de Campos, a praça central de Parelheiros.

A articuladora Joziane reforça que a escultura da Carolina será a segunda em todo o município de São Paulo a representar uma mulher negra, sendo que a única existente até então é a estátua da mãe preta, que foi produzida em 1955, pelo artista Júlio Guerra, e retrata uma mulher negra amamentando uma criança branca.

“Carolina frequentou muito a Praça Central que na época era onde aconteciam os eventos do território, como a festa de Santa Cruz e de aniversário do bairro. A Praça de Parelheiros tem um reconhecimento histórico, e uma vez que a região passou a ser o Polo de Ecoturismo de São Paulo, a Praça também é um importante atrativo turístico”, afirma.

Joziane ressalta que é na Praça Júlio César de Campos, a praça central de Parelheiros, onde a maioria dos coletivos culturais realizam os seus eventos, uma vez que o território só passou a ter uma Casa de Cultura em 2019. Além da questão geográfica, pois a Praça é o ponto de acesso para os bairros adjacentes, como para o distrito de Marsilac, e o município de Embu Guaçu, cidade onde Carolina foi sepultada. 

“Colocar essa escultura em um local pouco movimentado, diria até que ‘escondido’ para nós mesmos, moradores do território, se assemelha como mais uma vez estabelecer que o lugar de Carolina é o ‘quarto de despejo’ que ela tão bem descreveu em sua obra. Vai contra o sentido de homenagem à obra da escritora, e também repercute de forma muito negativa nos familiares e nos admiradores de sua trajetória”

coloca Joziane.

A articuladora aponta ainda que a praça é um ponto conhecido por grande parte da população local. “Muitas pessoas ao vir aqui, nem acham que ainda faça parte da cidade de São Paulo, mas pergunte a qualquer um dos moradores, ou até para pessoas de outras regiões afastadas onde fica a Praça de Parelheiros, que elas em sua maioria saberão a localização”.

Para a agente cultural, uma das articuladoras para a alteração de local da instalação da escultura de Carolina Maria de Jesus, a não instalação na praça central do distrito, vai contra o objetivo do próprio projeto de lei que estabeleceu a produção destas obras como uma forma de exaltar a memória do povo preto e a representatividade de figuras negras dentro dos territórios periféricos: “Por que aqui em Parelheiros, Carolina não pode ocupar a nossa ‘sala de visitas’?”, questiona.

Não podemos permitir que o primeiro monumento em homenagem à Carolina NO MUNDO, não esteja em sua devida visibilidade. E ainda que seja uma argumentação concisa e suficiente, esta carta está respaldada pelo desejo de Vera Eunice, filha da Carolina, que nos afirma com precisão: “Fazemos questão que seja em Parelheiros! Minha mãe amava Parelheiros, aqui foi feliz, se benzeu e benzeu esse chão, participava das festas tradicionais, ia ao cinema mudo e entregou o meu diploma na Escola Prisciliana”.

Nós, coletivos culturais, artistas locais e articuladores sociais do território de Parelheiros, junto aos familiares e pessoas que entendem a importância da obra e da trajetória de Carolina, viemos através desta manifestar o nosso descontentamento em relação ao local escolhido para abrigar a escultura que está sendo produzida em homenagem à escritora. Reivindicamos a instalação da estátua de Carolina Maria de Jesus na Praça Júlio César de Campos, no Centro de Parelheiros e também a participação dos agentes locais na construção do evento de inauguração do monumento.

Carolina vive, e sua luta persiste, e aqui estamos apenas como pessoas que reivindicam o local, a data e a festa que ela merece ter.

Leia na íntegra o manifesto produzido por coletivos culturais, artistas locais e articuladores sociais do território de Parelheiros: Carolina Maria de Jesus merece estar na sala de visitas! 

Posicionamento da Secretaria Municipal de Cultura 

Em contato realizado pela equipe do Desenrola, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Cultura, informou que a escultura da Carolina Maria de Jesus já foi instalada no Parque Linear Parelheiros e está protegida por tapumes. 

“Após reunião com a secretária Aline Torres, esclarecimentos e muita conversa, os coletivos e a Vera Eunice, filha da Carolina Maria de Jesus, optaram por manter a decisão de instalar a escultura na Praça Júlio César de Campos. No entanto, a Secretaria Municipal de Cultura informou que não há recursos para a transferência da obra de local e que esses grupos teriam que se mobilizar para conseguir verbas parlamentares para que a Secretaria possa realizar as tratativas e o processo para a transferência da escultura do Parque Linear Parelheiros para a Praça Júlio César de Campos”

afirma a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Cultura.

Ainda segundo a assessoria,  foi explicado aos coletivos que devido à complexidade dos serviços e de procedimentos, entenderam que será um processo moroso e, portanto,  a Secretaria não tem previsão para a nova instalação. 

“A partir dessa decisão, a inauguração do dia 4 de março de 2022 foi cancelada, as contratações artísticas foram suspensas e o contrato dos tapumes foi renovado, até que se decida como manter a obra no local enquanto não há a transferência da obra. Em respeito aos movimentos a obra será inaugurada quando todos os trâmites legais forem solucionados”, finaliza a assessoria.

Movimentos periféricos ocupam Theatro Municipal de São Paulo

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Como parte da programação do centenário da Semana de Arte Moderna de 22, movimentos literários periféricos se apresentam em atividade gratuita no Theatro Municipal de São Paulo.

 

 Hoje (14), a partir das 19h, os poetas e artistas do Sarau do Binho, Sarau das Pretas e As Clarianas, ocupam o Theatro Municipal de São Paulo como parte das atividades em comemoração ao centenário da Semana de Arte Moderna de 22. O evento também terá a participação do rapper Rappin’ Hood como mestre de cerimônias.

Os ingressos são gratuitos e estarão disponíveis para retirada a partir das 17h, sendo limitados 1.500 lugares, conforme a lotação do espaço. Seguindo as recomendações dos órgãos de saúde, para participar do evento, é necessário apresentar documento, o passaporte da vacina, utilização de máscara e álcool gel.

“Fazer nossa cantoria e celebrar nossa existência naquele terreiro que também é nosso”, afirma o grupo musical As Clarianas, formado pelas atrizes e cantoras Martinha Soares, Naloana Lima e Naruna Costa, e pelos músicos Giovani Di Ganzá e Fefê Camilo.

Com forte conexão com as periferias, o movimento literário dos saraus estará representado pelo Sarau do Binho e Sarau das Pretas, ocupando o equipamento cultural localizado no centro da cidade.

Ingressos gratuitos limitados ao número de lugares (entrada livre)

Classificação Livre

Duração total 90 minutos

“Estamos criando o protocolo integrado da primeira infância”, diz supervisora da assistência social da M´Boi Mirim

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Os distritos do Jardim Ângela, na zona sul e Brasilândia, na zona norte de São Paulo são os primeiros territórios da cidade a realizar  ações do projeto integrado com as secretarias de governo do município junto a organizações da sociedade civil, que atuam nas periferias combatendo as desigualdades sociais que afetam principalmente mães solos e crianças na primeira infância.  

A partir de um olhar crítico para políticas públicas de assistência social nas periferias de São Paulo direcionadas para primeira infância, período que vai do 0 a 6 anos nas crianças, Luciane Farias, supervisora dos Serviços de Assistência Social da M´Boi Mirim, compartilhou com o Desenrola os desafios para atender o crescente número de famílias e crianças em situação de vulnerabilidade social do distrito Jardim Ângela, zona sul de São Paulo.

Uma das estratégias adotadas pela Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social de São Paulo está sendo a implantação do protocolo integrado de políticas públicas para a primeira infância.

A iniciativa surge a partir do Marco Legal da Primeira Infância, conjunto de normas que coloca as crianças de 0 a 6 anos no centro da atenção do poder público, para desenvolver projetos que promovam políticas e qualificação de profissionais para atender esse público.

Segundo Farias, o protocolo integrado da primeira infância visa aproximar ainda mais o trabalho das secretarias de governo que atuam diretamente com a primeira infância das organizações da sociedade civil e movimento sociais que atuam nos territórios periféricos, agindo contra as desigualdades sociais que afetam os moradores locais.

Uma das políticas públicas de assistência social que tem colocado em prática o protocolo integrado da primeira infância é o SASF – Serviço de Assistência Social as Famílias, no qual a supervisora conta que o Jardim Ângela conta com quatro unidades, onde cada uma tende cerca de mil famílias em situação de alta vulnerabilidade.

Um dos objetivos do SASF é fazer um diagnóstico das necessidades básicas das famílias, para encaminhar para serviços especializados das áreas de assistência social, saúde, educação, entre outros.

É a partir do SASF que o serviço de assistência social desenvolve o programa Criança Feliz, que visa oferecer uma série de serviços públicos para crianças amenizar o impacto das desigualdades sociais na vida das famílias, um cenário que se agravou ainda mais com o contexto da pandemia de covid-19.

Além disso, o SASF vem lidando diretamente com casos de mães solo desempregadas que enfrentam uma série de dificuldades para conseguir manter uma estrutura básica para os seus filhos. É partir deste contexto, que os serviços de assistência social atuantes nos territórios periféricos buscam oferecer uma rede de proteção para crianças e suas famílias.

Mas Farias deixa bem claro: “O território da M´Boi Mirim tem 79 serviços de assistência social, é o segundo maior distrito, ficando atrás apenas da Subprefeitura da Sé”, aponta ela.

A supervisora dos serviços de assistência social da M´Boi Mirim enfatiza que mesmo com essa estrutura de atendimento aos moradores do território, a quantidade de serviços é insuficiente dado o número de habitantes que hoje já ultrapassa 300 mil pessoas, fato que torna o aumento de demanda uma constante no cotidiano de quem está na linha de frente atendendo as famílias e crianças da região.

“Como criança não vota, ela não é prioridade do Estado”, diz conselheiro dos direitos da criança

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A série direitos invisíveis traz uma entrevista especial com Carlos Alberto Churras, Conselheiro Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, que  reflete e aponta uma série de lacunas em políticas públicas  e direitos  essenciais ao desenvolvimento integral da infância nas periferias e favelas.  

Em 10 de dezembro, muitos países celebram o Dia Internacional dos Direitos Humanos, uma data que celebra a oficialização da Declaração Universal dos Direitos Humanos, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1950, com a proposta de democratizar o acesso a direitos sociais em todo o mundo.

Mas qual é o significado desta data para as famílias moradoras das periferias e favelas que estão vivendo em alta vulnerabilidade social, que compromete inclusive o desenvolvimento dos seus filhos na primeira infância, essa fase da vida que vai do 0 aos 6 anos, na qual as crianças precisam de cuidados essenciais que garantam o desenvolvimento do organismo, cognitivo e social.

À frente da gestão de projetos sociais que visam garantir acesso aos direitos humanos para proteção de crianças e adolescentes nas periferias e favelas do Jardim Ângela, distrito da zona sul de São Paulo, que possui 60% da população que se autodeclara preta ou parda, Carlos Alberto Churras elenca uma série de questões que impactam o pleno desenvolvimento das crianças no território.

Diante da sua experiência como Conselheiro Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo, Churras enfatiza que conhece bem o ambiente de desenvolvimento de políticas públicas voltada para a infância, e ressalta que o poder público não valoriza a infância porque criança não vota. 

Outro contexto que marca a trajetória do gestor de projetos sociais é a sua vivência no campo de atendimento às famílias em situação de alta vulnerabilidade social na pandemia de covid-19, através do seu trabalho na Sociedade Santos Mártires, organização que tem mais de 30 anos atuando pela garantia de direitos a moradores do distrito do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo.

Segundo Churras, os programas de transferência de renda ajudaram muito as famílias, mas esse tipo de direito social não pode ser pontual, e sim permanente, atuando como uma política de Estado e não de gestão governamental. Esse cenário, segundo ele, irá afetar ainda mais o desenvolvimento de crianças nas periferias, devido à falta de comprometimento do poder público.

Carlos Alberto Churras é gestor de projetos sociais e conselheiro do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. (Foto: Ronaldo Matos)

“Toda criança deveria ter uma renda”

Carlos Alberto Churras já foi presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e hoje atua como Conselheiro.

 Ao lidar com todo tipo de situação de conflito em diversas fases do desenvolvimento das crianças, seja na primeira infância ou na adolescência, o conselheiro municipal dos direitos da criança e do adolescente, enfatiza que o racismo e as desigualdades sociais afetam principalmente as crianças negras nas periferias e favelas.

Segundo ele, são as acrianças negras as mais vulneráveis, pois são elas que estão no farol fazendo trabalho infantil, que são presas e mortas pelas forças do estado, e por vivenciarem ao longo da vida uma série de violências, as políticas públicas tendem e não garantir o direito a proteção integram da vida dessas crianças.

“A criança negra é a que tá mais vulnerável

O gestor de projetos sociais aponta o impacto do racismo e das desigualdades sociais na infância.

Consciente da importância de construir um futuro menos agressivo e mais acolhedor para fortalecer o núcleo familiar nas periferias e favelas, Churras enfatiza que para além das políticas públicas, a alegria também é um direito humano.

Ele acredita que a alegria precisa ser garantida, pois no atual contexto social, ser um morador da periferia é também conviver com uma série de tristezas e incertezas que minam as suas expectativas de vida e vontade de viver de crianças, adolescentes, jovens e adultos. 

Fome, morte e desinformação: a bomba relógio na saúde mental dos moradores das periferias

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Com o avanço das desigualdades sociais, fake news e a desinformação, terapeutas analisam os impactos destes problemas estruturais na saúde mental da população periférica durante a pandemia de covid-19. 

O cemitério São Luís, localizado na zona sul de São Paulo, passou por uma intensa transformação de paisagem durante a pandemia de covid-19, devido ao grande número de covas abertas. (Foto: Menino do Drone)
Em um levantamento sobre perspectivas de vacinação da juventude periférica, realizado em setembro de 2021, pela equipe de reportagem do Desenrola, identificamos que entre os 44 jovens que participaram do levantamento, 18 deles trouxeram apontamentos e queixas em relação à saúde mental ao perguntarmos qual a maior diferença que eles notaram em si mesmos comparado o período antes e durante a pandemia.

“Sinto que minha saúde mental decaiu durante a pandemia. Me senti por diversas vezes insegura, sem uma utilidade. Precisava de um emprego e não conseguia. Realmente incapaz! Tive problemas com ansiedades e afins”

Esse é relato de uma jovem de 23 anos que participou do levantamento realizado pelo Desenrola em setembro deste ano.

Além do aumento da fome, desemprego, mortes e outras tantas desigualdades, a pandemia também aumentou a proliferação da desinformação e fake news.

Diante deste cenário, conversamos com duas psicólogas que atuam com a população periférica, para discutir essas questões e traçar perspectivas sobre como esse contexto de desigualdades sociais e digitais afetou e ainda impactará a saúde mental dos moradores.

Segundo Thainá Aroca, psicóloga clínica, psicanalista em formação e integrante da rede PerifAnálise, um grupo de terapeutas que atuam nas periferias da zona leste de São Paulo, os filhos da classe trabalhadora já enfrentavam uma realidade difícil anterior à pandemia. 

“O jovem periférico acaba tendo que enfrentar diretamente as dificuldades e os problemas de casa e assumir uma responsabilidade dentro de casa e ter uma preocupação financeira da dinâmica de casa, acabam tendo que contribuir com a renda da família para não serem despesas”

Thainá atua na linha de frente de combate aos transtornos da saúde mental da população negra e periférica durante a pandemia de covid-19.

Impactos da desinformação 

Para Rosimeire Bussola, psicóloga atuante no SUS, psicanalista e também integrante da PerifAnálise, a pandemia mostrou os riscos das notícias falsas e o quanto podem gerar mortes.

“Enquanto nação, são as autoridades porta-vozes dos acontecimentos a nível social, são essas figuras que têm a responsabilidade de transmitir à população de modo seguro os acontecimentos”, enfatiza ela.

“Podemos ver o horror, o despreparo e desserviço causado por essas pessoas, incluindo principalmente o Presidente da República, que fomentou mentiras, desqualificou o trabalho científico”

Rosimeire Bussola reconhece o impacto da desinformação gerada por líderes políticos nos moradores das periferias.

A psicóloga ainda complementa: “Motivou a população a se aglomerar, criando um ambiente de risco e fazendo uso das notícias falsas para validar as suas falas”, analisa Rosimeire, e afirma que com posturas como essa, geraram dúvidas e incertezas que influenciam pessoas a comportamentos de risco.

“Perdi muito do pouco que tinha de controle da minha saúde mental, e com a atual conjuntura econômica do país e todo esse turbilhão de informações, digamos que influenciou um pouco no meu cotidiano e na ansiedade”

Esse é outro relados de um dos jovens que participaram do estudo realizado pela nossa equipe de produção de dados

Devido ao avanço do desemprego entre moradores das periferias, a fome avançou em muitos territórios, fato que aumentou a demanda de atuação das ações solidárias realizadas por movimentos sociais. (Foto: Thiago Fernandes)
Rosimeire pontuou ainda sobre o excesso e a busca de informações em fontes seguras, o que pode também influenciar na saúde mental. “Me parece que dá a falsa impressão de que quanto mais eu souber menos exposto serei, entretanto, num contexto de disseminação de notícias falsas, será necessário uma dupla atenção em relação a quem traz a notícias e que conteúdo é esse, para assim quem sabe, se proteger desses riscos.”

A psicóloga Thainá ressalta que embora nas periferias a realidade do acesso à internet e outras garantias sociais ainda sejam muito precárias, ela percebeu em sua experiência clínica, que no momento de distanciamento social durante a pandemia, foi na internet que muitos jovens encontraram espaço de troca e conversas, como uma fonte de refúgio e respostas para a insegurança gerada pela pandemia e a falta de gestão pelas autoridades do país gerou na população de modo geral.

“O acesso às informações acabou se tornando uma ‘faca de dois gumes’ digamos assim, ao mesmo tempo que informou e trouxe algumas respostas importantes para a população, gerou sobrecarga, uma vez que fruto de uma má gestão estatal a população mais vulnerável se viu sem outras alternativas de articulação a respeito daquilo que estava sendo informado”, aponta a psicóloga.

Políticas públicas 

Ao analisar o cenário no qual os moradores das periferias, mulheres, pessoas pretas e lgbtqia+, foram a população mais afetada pela pandemia, fake news e desinformação, Rosimeire Bussola afirma que para pensar uma melhora da saúde mental dessa população, é preciso pensar no fortalecimento das políticas públicas, na garantia do acesso aos serviços do SUS e do SUAS – Sistema Único de Assistência Social.

“Ao acessar esses serviços, à população pode ter um espaço de promoção e prevenção de saúde, tratamento dos agravos deixados pela pandemia e informação construída de modo comunitário, pois esses serviços estão nos territórios, conhecem a realidade local, e juntos com a população pensam estratégias de cuidado”, explica a profissional. 

“Já havia um quadro de ansiedade antes da pandemia, mas no ano de 2020 tudo se agravou e passei pela depressão. Foi um momento extremamente difícil. Havia tantas preocupações, era um caos mundo afora. Muita gente morrendo, medo de familiares e amigos se tornarem vítimas do vírus, ao mesmo tempo que lutava para me manter firme nos estudos, e como não conseguia, me sentia horrível. Desenvolvi a compulsão alimentar como nunca antes (já sofria de transtorno alimentar). Enfim, foi realmente um ano horrível. Porém, hoje venho melhorando de pouco em pouco, me sentindo mais forte a cada dia”

Relato de uma jovem de 17 anos, moradora da zona sul de São Paulo.

Thainá alerta que a piora da saúde mental da população periférica também faz parte de um cenário anterior à pandemia. “É importante ressaltar que as consequências da piora da saúde mental da população periférica percebida na pandemia não está exclusivamente relacionada com o início da pandemia da covid-19, mas sim está ligada ao agravamento de todas as restrições de acesso e estado de exceção que essa população já convive diariamente, antes mesmo da covid-19”, aponta a psicóloga.

Ele lembra que em 2020, o Ministério da Saúde, baseado no documento “Diretrizes para um Modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil”, pretendeu revogar portarias que organizam os serviços em Saúde Mental, no sentido de minar o funcionamento dessas políticas e focar em hospitais e ambulatórios psiquiátricos, enfraquecendo a atuação do CAPS, por exemplo.

Após décadas de implementação da RAPS – Rede de Atenção Psicossocial que estruturam a reforma psiquiátrica brasileira, a RAPS é apoiada na liberdade e na socialização de pessoas em sofrimento psíquico.  A psicóloga ressalta que pensar saúde mental junto com a população periférica é também defender os serviços de saúde pública e denunciar ataques à Rede de Atenção Psicossocial

“É defender políticas de cuidado em saúde mental veementemente contrários à lógica racista, classista e punitivista em que estrutural e historicamente são fundadas prisões e manicômios. É defender o SUS e sua transversalidade de atuação”

A terapeuta da Rede PerifAnálise valoriza o legado do Sistema Único de Saúde – SUS, pelo fato de ser a principal serviço de acesso a saúde pública no país.

Thainá pontua que os coletivos e movimentos sociais periféricos foram os mais interessados em pensar ações de suporte e assistência para a quebrada nesse momento de crise. “Só demonstra o abismo de que os interesses do Estado não só não contemplam as realidades periféricas, assim como as negligência, sendo que é papel do Estado a garantia de acesso a direitos básicos à população de modo geral”.

“Minhas crises de ansiedade aumentaram, eu tive um momento de quarentena que faltou muito pouco para ter um surto. Fiquei o máximo que pude em casa, mas em algum momento temos que sair”,  relata jovem de 21 anos, moradora da zona sul de São Paulo, que respondeu ao nosso levantamento de dados sobre saúde mental.

As psicólogas analisam que o atual cenário é preocupante e o futuro é duvidoso, por estarmos vivendo num contexto de retrocesso e desinvestimento nas políticas públicas de saúde, especialmente na saúde mental, além do desmonte das políticas já existentes.

“Alertamos que para que a saúde mental dos jovens periféricos possa ser cuidada, é importante que haja acesso aos serviços públicos que garantam atendimento à saúde mental”, reforçam as profissionais da saúde mental.

Pandemia de desigualdades viola direito ao convívio familiar de crianças nas periferias

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Em busca do sustento para os filhos, mãe solo enfrenta diariamente uma jornada tripla, que transforma a filha adolescente em responsável pelo irmão de cinco anos, que nessa faixa etária de idade não tem acesso a serviços públicos de educação infantil.  

Com a chegada da pandemia, as mães solo nas periferias de São Paulo se desdobraram para manter uma estrutura de cuidados com os filhos. Essa é a história da Irenilza Soares da Cruz, 46 anos, moradora do Cidade Ipava, bairro localizado no distrito do Jardim Ângela, zona sul da cidade.

Irenilza é conhecida carinhosamente como “Tuca” no território onde mora. Ela é mãe de cinco filhos, entre eles estão Thaís, 27, Stephanie, 21, João Pedro,14, e Thayná de 12, adolescente responsável por cuidar do irmão mais novo, o Luiz Fernando de cinco anos.

Baixa renda e jornada tripla 

Segundo o Mapa da Desigualdade de 2021 da Rede Nossa São Paulo, a remuneração média mensal de um trabalhador com emprego formal no distrito do Jardim Ângela é de $2.450,00, mas o salário que Irenilza recebe por mês não chega a um terço desse valor.

“É difícil manter a casa só com um salário, porque vem conta de água, de luz, perua escolar. Então a gente vai fazendo como pode, esse mês compra uma coisa, mês que vem compra outra e assim vai”, conta Irenilza.

O fato de Irenilza deixar seus filhos sozinhos não se trata somente da confiança que tem em Thayná, mas também da necessidade de manter a casa e comprar o alimento para a família.

“Com esse dinheiro que minha mãe pagaria pra outra pessoa cuidar, ela tá juntando pra comprar as coisas pra dentro de casa” explica a adolescente.

Irenilza trabalha em três lugares diferentes, um deles é o seu bar que fica próximo da sua casa na Cidade Ipava. (Foto: Flavia Santos)

“Quando eu chego do trabalho, vou lavar uma roupa, porque o resto das coisas minha filha mais nova já fez”

Irenilza é mãe de cinco filhos, uma dele é o Luiz de cinco anos.

Enquanto isso, a mãe se divide em três trabalhos: atuando como boleira, atendendo os clientes do seu barzinho e ainda realizando a venda de cosméticos como parceira da Avon. A Tuca foi casada por 16 anos, mas hoje se encontra separada e ela não poupa esforços para dar o melhor aos seus filhos.

Essa jornada tem sido ainda mais pesada e cansativa, pois a renda dela tem sido insuficiente para fazer as compras do mês, fato que a obriga a trabalhar em diversos lugares e ter pouco tempo para conviver com os filhos.

De segunda-feira a sexta-feira, Irenilza sai às cinco da manhã de casa, e a partir deste momento sua filha Thayná de 12 anos começa a cuidar das atividades domésticas e da criação de Luiz, seu irmão mais novo.

“Quando eu chego do trabalho, vou lavar uma roupa, porque o resto das coisas minha filha mais nova já fez”, relata Irenilza, apontando o papel da filha nos cuidados com a organização da casa.

Thayná tem 12 e está cursando a sexta série. De segunda-feira a sexta-feira, ela cuida do irmão mais novo, Luiz de 5 anos, para a mãe conseguir se dedicar à três frentes de trabalho, que compõe a renda da família. (Foto: Flávia Santos)

A violação do convívio 

Com a rotina puxada, ela relata que às vezes não consegue aproveitar o tempo com as crianças, mas que sempre se esforça para fazer algo diferente e estar mais perto da família.

“Tem dias que eu não consigo ter um tempinho pra eles porque eu chego muito cansada, mas o que eu consigo fazer com eles quando posso eu faço”, afirma.

O tempo para Irenilza é tão curto que ela não consegue participar das reuniões escolares dos filhos, porque os horários da escola não se encaixam na sua rotina, e suas filhas mais velhas também não conseguem ir porque trabalham.

Atuando desde 2011 como conselheira tutelar na região da M’ Boi Mirim e Jardim Ângela, Silvana Farias, de 50 anos, comenta que pandemia obrigou as mães solo a abandonar o emprego ou a deixar seus filhos em casa sozinhos para assegurar o trabalho e a renda da família.

“Aumentou os casos de mães que não sabiam como ter que trabalhar e não ter com quem deixar os filhos, foi complicado pois de qualquer forma a mãe era orientada e aconselhada que mesmo diante de tudo o que estava acontecendo, os filhos teriam que ter a supervisão de parentes ou vizinhos, sendo assim alguns conseguiram, outros abandonaram seus empregos”, relata a conselheira.

A conselheira destaca que esse cenário impacta ainda mais o convívio e a afinidade que precisa ser desenvolvida entre pais e filhos. “As famílias de hoje já não têm convívio algum, os pais têm pouco tempo para os filhos e de certa forma atrapalha no crescimento enquanto indivíduo, pois os conselhos que tínhamos antigamente poucas famílias trazem consigo para passarem este conceito de geração em geração”, explica.

“Entre 0 e 3 anos e 11 meses a criança tem a creche com período integral, mas entre os 4 e 5 fica sem esta assistência”

Silvana Farias é conselheira tutelar há 10 anos e tem vasta vivência com atendimento a mães solo no Jardim Ângela. 

Silvana ressalta que a situação vivenciada por Irenilza, que tem um filho de cinco anos, afeta outras mães e famílias de todas as periferias de São Paulo, pois na primeira infância fica mais difícil conseguir um equipamento público de educação infantil com vagas abertas para essa faixa etária.

“Entre 0 e 3 anos e 11 meses a criança tem a creche com período integral, mas entre os 4 e 5 fica sem esta assistência, e com 6 anos pode ser inserido nos Centros de Crianças e Adolescentes (CCAs), só temos estas políticas públicas para auxiliar nesta fase da infância, não existe equipamentos públicos que poderiam atender com esta idade, isto é uma das dificuldades que temos”, conta a conselheira tutelar.

Nesse contexto, a pandemia contribuiu para o aprofundamento de problemas que antes eram pontuais entre as famílias do território. “Com certeza as famílias da periferia foram as mais afetadas neste período de pandemia, as denúncias por ‘abandono de incapaz’ aumentaram bastante”, aponta ela, argumentando que o abandono de crianças só aumentou porque as mães não tinham com quem deixar os filhos.

Felizmente, esse não é o caso da família de Irenilza, mas segundo a conselheira tutelar, muitos pais perderam seus empregos durante a pandemia, gerando um aumento significativo no atendimento do conselho tutelar da região.

“Quanto a questão financeira, muitas destas famílias perderam seus empregos e ficaram à mercê do auxílio emergencial, na nossa região muitas ONGs e movimentos acabaram auxiliando as famílias” diz a conselheira, reconhecendo a importância das ações solidárias que aconteceram na região, para garantir principalmente acesso a alimentação.

Embora tenha pouco tempo para conviver, Irenilza faz questão de ser uma próxima para a filha adolescente. (Foto: Flávia Santos)

Filhos sozinhos na pandemia 

Irenilza conta que a preocupação que sente em deixar seus filhos mais novos sozinhos é grande, não só pelo fato de a qualquer momento algo pode acontecer, mas principalmente porque ainda são crianças.

“Eu saio pra trabalhar, mas com aquela preocupação, que pode um fio ter um curto, o mais novo de 5 anos pode engasgar, porque ele é uma criança que se engasga muito. Então a gente sai para trabalhar, mas com aquele pensamento, sabe?”, desabafa.

Segundo Irenilza, a pandemia só piorou a preocupação com os filhos, porque as crianças nesse período ficaram mais doentes, e como ela não pode faltar no serviço, a insegurança toma conta dos seus pensamentos que focam na saúde das crianças e o medo de estar longe de casa.

Responsável por cuidar do irmão de cinco anos, Thayná está cursando a 6ª série na Escola Municipal Professor Edvaldo dos Santos Dantas. Ela conta que é raro os momentos que consegue se encontrar com seus amigos.

“Mesmo chegando cansada, minha mãe chega e brinca com a gente”

Thayná considera a mãe como uma grande amiga.

Mesmo na adolescência, Thayná já demonstra um amadurecimento em relação a situação da mãe e com os cuidados do seu irmão mais novo. “Minha relação com eles é muito boa. Eu sinto que estou tendo bastante responsabilidade né, cuidar assim, sendo tão nova”, diz a estudante.

Apesar de não ter tempo para conviver com os amigos da escola, ela conta que sua mãe todos os dias se torna sua melhor amiga, elas conversam e brincam bastante juntas. “Mesmo chegando cansada, minha mãe chega e brinca com a gente quando consegue, ela é muito brincalhona”, revela Thayná.

A partir dos relatos de Thayná, que demonstram o impacto de cuidar do irmão mais novo nas suas relações sociais com outros jovens da mesma idade, convidamos a psicóloga Thaís Ferreira,32 anos, formada pela Universidade Metodista e que atende famílias das periferias, para analisar suas respostas.

A terapeuta enfatiza que numa situação como essa vivenciada pela adolescente é de suma importância manter uma relação sadia e próxima entre pais e filhos. “Uma criança que acaba tendo que cuidar de outra, infelizmente ambos perdem aquele momento que precisavam ter com os pais, já que alguns acabam se responsabilizando pelo outro filho”, avalia a psicóloga.

“Oriento muito sobre atividade física para os adultos e para as crianças, o brincar, ter rotinas, mas cuidado com o excesso de telas digitais”

Thaís Ferreira é psicóloga com experiência em atender famílias em situação de vulnerabilidade social nas periferias. 

Ela aponta que os impactos na saúde mental que envolvem essas situações de mães solo se intensificou durante a pandemia, afetando ainda mais o cotidiano das famílias. E que isso é tratado com cuidado caso a caso, mas que em sua maioria, as orientações e conselhos passados se assemelham.

“Eu sempre oriento as famílias a se ‘reinventar’, se adaptar, entender que foi algo que não estava no nosso controle, e então não podemos dominar a situação”, explica.

Ela esclarece que em situações de confinamento e perda de relações sociais, a prática de exercícios físicos ajuda no alívio da ansiedade e da depressão. O que ajuda bastante também é o desapego das tecnologias e redes sociais, tirar um tempo para si mesmo e praticar atividades que gosta.

“Oriento muito sobre atividade física para os adultos e para as crianças, o brincar, ter rotinas, mas cuidado com o excesso de telas como tablet, celular, televisão e games”, finaliza a terapeuta,

“O uso de máscaras é fundamental”, afirma especialista em patologias humanas

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Falas sobre a flexibilização do uso de máscaras em locais abertos e publicidades governamentais influenciam moradores das periferias a acreditarem que a pandemia de covid-19 está no fim. Entrevistamos uma especialista em patologias humanas, que analisa os impactos das medidas e de falas de representantes do poder público sobre esse cenário. 

Foto: Di Campana Foto Coletivo

Desde o início de novembro deste ano, eventos de esporte, cultura e lazer, estão liberados para serem realizados com a capacidade máxima de lotação, sendo obrigatório o uso de máscara e apresentação do comprovante de vacinação para a entrada do público. O governo do estado de São Paulo também começou a cogitar a possibilidade da liberação do uso obrigatório de máscaras em locais abertos.

Mas de que forma esses anúncios por parte do poder público e a flexibilização de medidas preventivas para o combate a covid-19 impactam no cotidiano dos moradores das quebradas?

Conversamos com uma especialista em patologias humanas, que fez uma análise desse cenário nos territórios periféricos e também com um morador do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, que contou não ter seguido todas as medidas de prevenção à covid-19, e apenas utilizou máscaras em locais fechados por ser obrigatório.

“Infelizmente ainda não podemos flexibilizar o uso de máscaras”

Zezé Menezes é mestre em Patologia Humana pela FIOCRUZ  e Universidade Federal da Bahia 

Para Zezé Menezes, mestre em patologia humana pela FIOCRUZ/UFBA, ativista da rede Coalizão pela Vida, Marcha das Mulheres Negras de São Paulo e Coalizão Negra por Direitos, ainda não é o momento para levantar o debate sobre a não obrigatoriedade de máscara ou de outras medidas de combate à covid-19.

“Infelizmente ainda não podemos flexibilizar o uso de máscaras e nenhuma das medidas de prevenção ao contágio pelo vírus Sars-Cov-2, simplesmente porque ainda ocorre sua transmissão no Brasil e na maioria dos países. Os dados científicos mostram que, ao contrário, o período que se aproxima, com as festas de finais de ano, requer cuidado redobrado”, aponta a especialista.

Atitude negacionista

“Eu mesmo não usei nada e não segui nada [recomendações contra a covid], eu me incomodei de usar a máscara, mas usei quando necessário, mas muita gente não usou, e aí, por exemplo, você vai no mercado tem que usar, mas na rua mesmo as pessoas sempre ficaram sem máscara”, afirma o morador do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, que preferiu não se identificar.

O morador nos contou que nesse período de pandemia, não seguiu recomendações de órgãos de saúde, mas tomou as duas doses da vacina por grande influência da família. Ele afirma utilizar a máscara para entrar em estabelecimentos que exijam o uso da proteção.

“Eu hoje estou é pior que no começo, porque agora parece que não tem mais covid, ninguém usa mais máscara em quase lugar nenhum por aqui onde eu moro, e assim, eu acredito que possa evitar eu pegar o vírus, mas não 100%”, coloca.

O morador reforça que não é adepto do uso de máscaras e álcool em gel de força espontânea. “Eu não uso álcool, às vezes uso a máscara pra entrar nos lugares fechados mesmo”. 

Zezé Menezes é integrante da Coalização Pela Vida. (Reprodução YouTube)

Publicidade governamental 

Segundo a mestre em patologia humana, os governos tanto Federal, quanto os Estaduais e Municipais, têm passado para a população uma falsa ideia de segurança. “É perceptível o grande número de pessoas que abandonaram o uso de máscaras após serem vacinadas. Isto não é real, basta ver que ainda temos óbitos causados pela covid, ou seja, as medidas preconizadas pela OMS há quase dois anos seguem atuais”, coloca Zezé.

“A população, entretanto, é bombardeada por uma intensa propaganda governamental que dá um tom de normalidade na vida social e tem como consequência expor estas pessoas ao contágio pelo covid-19 e o risco de morte ou de desenvolverem sequelas”

afirma a especialista em patologia humana e ativista da rede Coalizão pela Vida.

O morador do Rio Pequeno que preferiu não se identificar, não faz uso frequente das medidas de prevenção, mas acredita que a liberação pode aumentar o número de casos, mesmo relatando já ver diariamente pessoas sem a proteção.

“Se liberarem eu acho que vai aumentar os casos da covid, porém ninguém mais usa, você vê na rua mesmo, os pontos de ônibus tão cheio de gente sem máscara, as pessoas só põe pra entrar, andando na rua sem máscara, só põe pra entrar nos lugares, então fica essa daí, né, eu não sei”, observa o morador.

A integrante da Coalizão pela Vida reforça a importância de se utilizar álcool em gel e máscara como medidas fundamentais e efetivas para prevenção da covid-19. “Existem muitas coisas que estão acontecendo, medir temperatura, e outras coisas, não são efetivas, não tem de fato um impacto na prevenção contra covid, mas álcool em gel e máscara sim. Além de outras, como distanciamento social, como a vacinação, elas são medidas essenciais”, pontua a especialista.

Cor e CEP como fatores históricos de desigualdades 

Para Zezé, ainda faltam medidas pensadas para os territórios periféricos, voltadas a garantir segurança aos moradores. “E tem um lado difícil e perverso de tudo isso, que é dessa população não ter acesso ao álcool em gel, máscaras de qualidade, que é a pff2”, aponta ela.  

Segundo nota técnica da Rede de Pesquisa Solidária, divulgada em 20 de setembro de 2021, data histórica que celebra o dia da Consciência Negra no Brasil, homens negros morrem mais por covid-19 do que homens brancos, e mulheres negras morrem mais por covid-19 do que todos os outros grupos (homens negros, mulheres e homens brancos), nos dois casos, isso ocorre independente da ocupação no mercado de trabalho. Para realizar o levantamento, utilizaram dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, de 2020.

A nota técnica divulgada no boletim da Rede de Pesquisa Solidária, se baseou nas mortes por covid-19 no Brasil no ano de 2020, e buscou identificar a ocupação das pessoas que morreram do novo coronavírus.

“Óbvio que o resultado dessa população absolutamente desassistida pelo estado brasileiro, é uma população que sofre, adoece e que morre por covid-19”

Zezé Menezes integra a Rede Coalização Pela Vida e a Coalizão Negra Por Direitos 

“Essa pandemia tem uma característica muito difícil, muito perversa, que é exatamente ser uma pandemia que tem uma característica de que a população de maior vulnerabilidade, é a população que deveria receber a maior proteção, o maior cuidado pelo Estado, e é exatamente o oposto”, explica Zezé Menezes.

Ela aponta que para as periferias é praticamente impossível fazer o distanciamento social, pois muitas pessoas das periferias trabalham geralmente em serviços precarizados, no trabalho de atendimento, prestação de serviços, sendo um segmento que não consegue fazer home office.

“Uma parcela muito pequena da população negra ficou em home office. A imensa maioria ficou sujeita aos transportes públicos, não teve essa possibilidade, o acesso às medidas preventivas, que vai desde o saneamento básico, medidas essenciais, água, distanciamento social, home office, até equipamentos de proteção, uma EPI, máscaras de qualidade”, coloca a especialista.

“Óbvio que o resultado dessa população absolutamente desassistida pelo estado brasileiro, é uma população que sofre, adoece e que morre por covid-19, e que desenvolve as sequelas dessa doença tão perversa”, aponta Zezé.

Notícias falsas e desinformação influenciam decisões da população 

Na avaliação da mestre em patologia humana, as fake news e tudo que vivenciamos ao longo nesses quase 2 anos de pandemia, teve um efeito perverso para a população das periferias. “Fez com que essa população acreditasse no caráter inofensivo do vírus, então é só uma gripe e que vacina não resolve, que é bobagem usar máscara, é para frouxo”, relembra ela sobre declarações do presidente Jair Bolsonaro.

“Tudo isso que foi propagado diretamente do Palácio do Planalto e que todo mundo já sabe, isso causou e tem causado a grande maioria das mortes por covid, essa é a questão perversa de tudo isso”, aponta.

Ela analisa que essas mentiras e fake news prosseguem, resultando inclusive em políticas dos governos. “Imagine que flexibilizar o uso de máscaras e outras medidas protetivas contra a covid é uma das piores aberrações, piores coisas que poderiam acontecer nesse momento que se quer zeramos o número de óbitos”, coloca Zezé, relembrando que no Brasil, quase dois anos após a chegada da pandemia, mais de 200 pessoas ainda morrem todos os dias por covid. “Ou seja, o vírus segue circulando e segue matando pessoas”, argumenta.

“Uma falsa sensação de que elas estão imunes a partir do momento que elas tomam a vacina” 

Zezé Menezes tem um histórico de atuação como ativista junto a Marcha das Mulheres Negras

A especialista aponta que a vacinação por si não resolve a questão da pandemia, e que os governos estão colocando uma falsa sensação de segurança nas pessoas. “Uma falsa sensação de que elas estão imunes a partir do momento que elas tomam a vacina. Isso foi também um fator que causou muita preocupação nos pesquisadores, porque as pessoas de fato relaxaram no cuidado de prevenção a covid-19, a partir do momento que começaram a se vacinar”.

Zezé finaliza afirmando que estamos em um ciclo que dificilmente vai ser resolvido, principalmente por estarmos nos aproximando do final de ano e na sequência, o carnaval.

“São momentos de aglomeração, carnaval principalmente, por ser uma festa com milhares de pessoas nas ruas, e eu temo de fato da gente continuar por mais um ano com esse vírus circulando no Brasil”

analisa, afirmando que não estamos tomando os cuidados necessários e efetivos para que pare a circulação do vírus.

Especialistas de diversos setores da saúde apontam que os cuidados ainda precisam existir e se manter, mesmo com a vacinação da população. “Precisamos continuar com as medidas preventivas, mas, o principal é que o Estado ofereça políticas públicas para toda população, em especial para as de maior vulnerabilidade social, que são os povos originários e a população negra”, conclui Zezé Menezes.

*Esta reportagem foi produzida com o apoio do Fundo de Resposta Rápida para a América Latina e o Caribe organizado pela Internews, Chicas Poderosas, Consejo de Redacción e Fundamedios. O conteúdo dos artigos aqui publicados é de responsabilidade exclusiva dos autores e não reflete necessariamente a opinião das organizações.  

“Substituo por salsicha”: moradores relatam insegurança alimentar em crianças nas favelas da zona oeste de SP

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Carestia, desemprego e ausência de políticas públicas aumentaram a insegurança alimentar de famílias, moradores de favelas da zona oeste de São Paulo. Ações solidárias minimizam os impactos da fome, mas não resolveram o problema que permanece afetando crianças e adultos da região.  

Com três filhos pequenos, a rotina de Samara Santos da Silva, 22, moradora da comunidade Bode Zé, localizado no distrito do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, mudou completamente durante a pandemia, a ponto de impedir a moradora de ter um trabalho fora de casa, devido ao fato de as escolas e creches estarem fechadas. Ela é mãe de Thalya, 6 anos, Otávio, 5 anos e Ellysa de 2 anos.

O companheiro de Samara, Bruno Nunes Silva, 33 anos, foi o responsável por trabalhar fora enquanto ela cuidava das crianças. Contudo, durante o período de isolamento social, a empresa de tapeçaria automotiva que ele trabalhava quase não estava pegando clientes e as condições financeiras da família ficaram comprometidas, afetando a rotina alimentar dos filhos, que precisou mudar completamente. 

Moradores das comunidades Bode Zé e 1010, na fila para a retirada de marmitas. (Foto: Ellen Amaral)

“Antes eu comprava costela, é uma coisa que não dá pra comprar mais, carne vermelha, porque tá muito caro, aí eu substituo por salsicha, linguiça, ovo”

conta Samara sobre a alimentação da família.

Uma das principais mudanças que Samara e as crianças sentiram, além da ausência de carne vermelha nas refeições diárias, foi com as compras na feira. Todos estavam acostumados a comer frutas e verduras, o que não acontece mais com tanta frequência.

“Toda terça eu ia na feira e comprava frutas pras crianças, agora eu não consigo ir porque aumentou bastante as coisas. Aí eu compro só uma banana e uma maçã, pra não faltar. Eu comprava bastante fruta e agora não dá pra comprar, porque as coisas tão muito caras, tá muito difícil”, relata Samara.

Após sair do Mapa da Fome em 2013, dados recentes da Organização das Nações Unidas (ONU), mostraram que na pandemia da Covid-19, o Brasil chegou ao mesmo patamar de insegurança alimentar do início dos anos 2000, em que quase 10% dos brasileiros não tinham o que comer.

Essa realidade, além de afetar adultos, impacta principalmente crianças na primeira infância, com idade de 0 a 6 anos, como retrata Samara, mãe de três filhos, moradoras da zona Oeste de São Paulo.

Thalya, Otávio e Ellysa jantando após chegarem da escola.  (Foto: Arquivo pessoal)

Com todas as dificuldades e comprando só o básico dentro de casa, Samara começou a depender de doações de cestas básicas e marmitas, já que o pouco de comida que conseguiam juntar, Samara e Bruno preferiram priorizar as crianças:

“Eu comecei a ir atrás de cesta, comecei a ganhar cesta, é o que estava ajudando. Teve uma época, bem assim da pandemia, que eu não comia porque tinha um pouquinho de arroz, aí eu fazia pras crianças, eu não comia”, desabafa Samara.

Samara começou a pegar as cestas básicas oferecidas pela Pastoral da Criança, localizada na igreja do bairro. Outro reforço na alimentação da família veio com a e também a distribuição de marmitas, iniciativa realizada por Lília Cristina, liderança comunitária da Bode Zé, que se articulou de forma autónoma e depois com a prefeitura, para a distribuição de marmitas para os moradores.

“Eu não tenho vergonha não, fui atrás e consegui bastante doação. Teve um tempo que eu não tinha nem bolacha, nem danone, mas porque o dinheiro não estava sobrando, tinha que tirar da janta pra comer no almoço, aí só comia ovo, ovo, ovo, ovo”

enfatiza Samara.

Lília Cristina, 57 anos, se tornou liderança comunitária no começo da pandemia de coronavírus. Morando na comunidade há mais de 50 anos, ela percebeu a extrema necessidade de combater a insegurança alimentar que estava afetando as famílias do bairro.

Por conta própria, ela começou a se movimentar para ajudar essas famílias e tentar captar recursos da prefeitura para doação de roupas, utensílios de higiene e principalmente alimentação.

“Eu faço a distribuição de cestas básicas quando eu recebo. Eu adotei tudo isso porque eu me vi em meio a pandemia sem condições, sem ter o que comer na minha casa. Meu marido é professor substituto de Educação Física na escola de Osasco, então faz dois anos que o meu marido não tem salário”, conta Lília.

A entrega de marmitas é feita todos os dias, a partir de 12h, no quintal da casa de Lília. (Foto: Ellen Amaral)

Passando necessidade, ela foi pedir uma cesta básica para uma organização social da região e foi negada pelo fato de ter casa própria dentro do território, mesmo sem ter como colocar comida dentro da casa, morando com o marido e os dois filhos. A partir desse dia, ela começou a lutar pelos direitos dela como moradora e pelos vizinhos que estavam na mesma situação.

Desde que passou a distribuir as marmitas na porta de sua casa, a fila para a retirada é composta majoritariamente por crianças, a partir de 5 anos. Alguns pegavam duas marmitas, uma para comer naquele instante e outra para a janta, ou uma para si e outra para os pais, que chegavam do trabalho com fome.

Para Lília, a entrega de marmitas e outros trabalhos de doação que não existiam antes da pandemia são essenciais, pois a alimentação das crianças se reconfigurou totalmente na pandemia.

“A alimentação mudou na casa dos trabalhadores aqui da comunidade Bode Zé. Eles podem ter o arroz, o feijão, o macarrão, o molho, mas eles não tem a proteína, eles não tem legumes. Eu tenho criança que nunca tinha visto uma manga. Uma vez eu fui doar uma manga para uma criança e ela disse: “Que que é isso, tia? As crianças não estão comendo do jeito que deveriam comer. As crianças estão largadas”

lamenta Lília.

Madalena da Conceição Ramos, 43 anos, mora na 1010, comunidade próxima a Bode Zé, e tem duas filhas, Mariana, 8 anos e Alessandra, 4 anos. Ela trabalha como técnica de enfermagem, mas no começo da pandemia precisou ficar em casa com as crianças, enquanto o marido, Adson Ramos, saía para trabalhar, em uma empresa de monitoramento de segurança, que não paralisou com o isolamento.

Assim como para Samara, por ter crianças pequenas, um dos maiores impactos que Madalena sentiu, foi com o aumento dos alimentos na feira. A solução encontrada para lidar com a alta dos preços, foi a substituição desses produtos.

“Tem algumas frutas que as pequenas gostam muito, né? Por exemplo, morango. E aí nesse período estava muito caro, a gente não tinha condições de comprar. Como eu não estava trabalhando então não tinha dinheiro suficiente, ou quando tinha algum dinheiro, dava prioridade a outras coisas. A gente substituída por uma mais em conta”, relata Madalena.

Madalena conta que a principal substituição que fez, foi trocar as outras frutas por melancia. Pois como é uma fruta que tem muita água, já matava a sede das crianças. “A minha pequenininha bebe bastante água e a nossa água aqui não é da gente, tem que comprar água também. Então a melancia já substituía”

explica Madalena.

O aumento do valor do gás de cozinha também impactou a alimentação da família. Madalena começou a cozinhar em maior quantidade e deixar tudo congelado, para evitar utilizar muito o gás.

Além disso, o aumento dos alimentos fez com que ela substituísse a carne vermelha por ovos e frango e não adquirisse mais todos os produtos que geralmente compõem uma cesta básica.

Conselho de Segurança Alimentar 

Maria Angélica, que atua no Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (COMUSAN), é moradora do Butantã, na Zona Oeste de São Paulo e se tornou membro do Conselho por conta de todas as articulações que já fazia em seu território.

Ela conta que a luta para fazer a ponte entre a necessidade alimentar das famílias periféricas, principalmente com as escolas fechadas, até a captação de recursos foi um processo burocrático que a desestabilizou muitas vezes, principalmente para entregar cestas básicas às comunidades no início da pandemia.

“Passou três meses, nada da outra cesta. Escuta, as famílias vão esperar três meses pra comer? [ pensou] Aí a gente começou a lutar pela marmitex. A lutar pelo alimento. Já que a cesta não está vindo, tem que correr atrás de outra coisa”, expressa Maria.

As marmitas ajudaram a suprir a necessidade alimentar dentro das comunidades, e a fila é composta majoritariamente por crianças. (Foto: Ellen Amaral)

A conselheira diz que todas as demandas que chegavam até ela eram graves, e que apesar de ter vivências nas comunidades Bode Zé e 1010, ela também viu os abismos de desigualdade que cercavam todos os cantos de São Paulo.

“A mãe tinha que abrir mão [do alimento] e inclusive escolher o filho mais novo que já estava chorando de fome do que o filho mais velho que poderia segurar um pouquinho mais”

conta ela, apontando uma situação de insegurança alimentar de uma família periférica.

De acordo com Maria, o principal foco do Conselho é atuar em conjunto com a população mais vulnerável, como a na primeira idade, que está em fase de desenvolvimento. Por conta da insegurança alimentar, em alguns territórios ela presencia crianças com oito anos com o tamanho de crianças de quatro, pois a carestia impediu esse desenvolvimento.

“Você só vai saber que ela tem oito anos quando você olha o cadastro dela, 

diz Maria.

Essa atuação, constitui incluir nas recomendações de metas para o prefeito, o enfrentamento da desnutrição e da falta de acesso à alimentação adequada das crianças nessa faixa etária.

“Todo suporte para que as mães possam manter o aleitamento materno, porque a gente buscou se articular com a Política Municipal da Primeira Infância de forma a mostrar que as políticas têm que ser articuladas para poder fazer o enfrentamento da fome e da Insegurança alimentar e nutricional de maneira efetiva”, expõe.

A conselheira relata que uma das maiores lutas do Conselho Municipal, é garantir que as cestas básicas e a comida distribuída nas escolas no processo de retomada, alcancem todos os critérios de alimentação digna para os cidadãos e para as crianças em idade de desenvolvimento.

“Além de dar o arroz, o feijão que é o que as figuras que estão no poder público imaginam que estufa o estômago da criança e está tudo certo. ‘Mata a fome’ [eles pensam]. A gente não quer matar a fome. A gente quer dar um alimento digno. Direito humano à alimentação”

enfatiza a conselheira, sobre a luta diária para levar uma alimentação digna para o prato das crianças periféricas.

“Somos mães atrevidas”: mulheres criam organização para combater encarceramento nas periferias

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Em Itaquera, zona leste de São Paulo, movimento de mães democratiza há 22 anos o acesso à informação sobre direitos sociais para que famílias possam conviver e proteger seus filhos dentro do sistema prisional. 

Maria Aparecida Soares de Melo, 52, é moradora de Diadema e há mais de vinte anos, ela luta pela garantia de direitos para pessoas que estão ou passaram pelo sistema prisional. (Foto: Carolina Carmo)

Em 1998 quando o filho adolescente de Maria Aparecida Soares de Melo, 52, é moradora de Diadema, foi levado para antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM), ela conta que se viu perdida e desamparada, sem entender o que poderia ser feito, por não ter consciência de quais eram os seus direitos como mãe diante daquela situação.

“Cheguei na delegacia e fui humilhada né, porque eles humilham a gente. Daí na porta da FEBEM a gente se uniu com meia dúzia de mães e falou: “Isso tá errado, tão me privando de tudo”, lembra Aparecida.

Para ela, o Estado fala isso e aquilo, mas não explica na prática quais sãos os direitos das famílias que tem seus filhos privados de liberdade. Viver essa situação mudou para sempre a vida dela e de muitas mães que estavam na mesma situação.

“Daí a gente fundou uma associação, na época chamava “AMAR” Associação de Mães e Amigos de Adolescentes em Risco. A gente fez um trabalho muito bonito, a gente ganhou até prêmios de direitos humanos”, conta ela. 

“O nosso intuito lá atrás era fundar um grupo de mães mais atrevidas, porque nós somos atrevidas mesmo”

Maria Aparecida é conhecida como Cidinha entre as mães da Associação Amparar.

Um dos objetivos da inicialmente AMAR, organização social que hoje se chama AMPARAR, era fundar uma organização de mães desafiadoras e presentes na cobrança da assistência que deveria ser prestada às pessoas em situação de cárcere e a família delas.

“O nosso intuito lá atrás era fundar um grupo de mães mais atrevidas, porque nós somos atrevidas mesmo, para formar outras mães a não aceitar o sistema!”, conta Cidinha, uma das fundadoras da AMPARAR.

A AMPARAR oferece serviços essenciais que deveriam ser oferecidos pelo poder público, desde assistência psicológica a orientação jurídica, e através de doações também distribui cestas básicas aos familiares que tem parentes no sistema prisional.

Cidinha conta também que a AMPARAR hoje é reconhecida internacionalmente e que seu filho não está mais privado de liberdade, mas ela ressalta que o filho da coordenadora da associação está no sistema prisional, e esse fato reforça a importância de seguir construindo ações afirmativas para a população pobre, preta e periférica ter acesso aos seus direitos no sistema prisional.

O sistema prisional e a ressocialização  

Para Carlos Alberto de Souza Junior, vice-presidente do conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente, a sociedade precisa entender o que é e como funciona o sistema prisional. “As discussões avançaram, mas a sociedade ainda precisa entender o que é o sistema prisional, o que é a cadeia que nós temos hoje que não reeduca, não ressocializa, não cumpre uma função social”, argumenta.

Ele complementa enfatizando que essa discussão na sociedade precisa acontecer para ampliar o debate sobre o que é segurança pública. “Se a gente trabalhar com isso, a gente acaba com políticas como a segurança pública, que não é uma política pública, pelo contrário, vem cumprindo um papel péssimo na sociedade”, diz ele.

O vice-presidente do conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente, que é especializado em gestão de organizações sociais e em gestão de políticas sociais também ressalta os impactos que o sistema prisional gera nas pessoas que já ficaram privadas de liberdade, por cometer algum tipo de delito.

“A pessoa que tá presa é aquela que cometeu um mal a alguém, não veem que ali está um ser humano, as pessoas nesse caso esquecem a história, elas veem só o momento. Ai se cria um estigma”, explica.

“A ausência de oportunidades de emprego e qualificação profissional acabam prejudicando todo esse contexto de ressocialização”

 Carlos Alberto de Souza Junior é vice-presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. 

 Esse estigma citado por Souza também é lembrado por Cidinha como um fato que acompanha a vida e as relações sociais de quem passa pelo sistema prisional. “Quando uma pessoa vai presa todo mundo tem preconceito, o filho de fulano foi preso, não presta. O meu que é bom. Eu era assim, eu não enxergava. Hoje eu penso diferente”, afirma Cidinha, uma das fundadoras do AMPARAR.

Um dos caminhos para as pessoas que passaram pelo sistema prisional recuperar sua autoestima e combater o preconceito que gira em torno dela é a conquista de um trabalho formal, com garantia de direitos. Mas esse é outro desafio para quem vive essa realidade.

Segundo Souza, existem no Estado de São Paulo uma média de 11 cadeiras que tem atuam no formato de Colônia, essas unidades prisionais oferecem formação e oportunidade de trabalho para quem está privado de liberdade, mas a qualidade dos cursos e dos empregos oferecidos ainda é algo a ser debatido pela sociedade.

“A ausência de oportunidades de emprego e qualificação profissional acabam prejudicando todo esse contexto de ressocialização, não gosto muito desse termo, porque falam em ressocializar como se a pessoa fosse a pior do mundo, mas tem outras conjunturas e contextos que colocam a pessoa em situação de violência”, finaliza o vice-presidente do conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente.

Yakissoba do Chico: ao criar o próprio negócio na pandemia, morador emprega 5 filhos

Conheça a história de Chico, cozinheiro que em meio às diversas crises da pandemia de covid-19 decidiu abrir um delivery de Yakissoba, e com isso trouxe emprego aos seus filhos e hoje consegue passar mais tempo com a família.  

 Ao pensar nos desafios que a pandemia trouxe para sua rotina e da sua família, Francisco Rodrigues, 46, carinhosamente conhecido como Chico, morador do Cidade Ipava, bairro pertencente ao distrito do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, viu a possibilidade de criar um empreendimento diante de um cenário pandêmico, correndo o risco de não dar certo e trocar o que já tinha em mãos pelo que ainda era duvidoso.

“Começou essa pandemia, a gente estava em casa sem fazer nada, sem trabalhar. Aí tivemos que encarar com a experiência que a gente tem, que é trabalhar com a culinária japonesa, e graças a Deus até hoje estamos aí!”, relata o morador com entusiasmo.

E assim nasceu o empreendimento “Yakissoba do Chico”, que há quase dois anos tem fortalecido e mantido de pé a família Rodrigues, além de gerar renda e emprego para jovens da quebrada.

Chico é casado com Elizabete Maria há quase 30 anos e pai de seis filhos: Renato de 26, Bruno de 24, Thiago de 22, Aline de 21, Jennifer de 16 e Isabelli de 3 anos.

Chico é pai de 6 filhos e casado há mais de 25 anos. (Foto: Flávia Santos)

De seis filhos, cinco trabalham no Yakissoba, o Renato como motoboy, o Bruno como sushiman, Thiago como auxiliar de cozinha, Jennifer como empacotadora e Aline como administradora e gerente.

Além dos filhos de Chico, ele também contratou outros dois moradores do bairro, que atuam como entregadores e auxiliando no atendimento com os clientes.

O pai de família afirma que quando começou o negócio, sua filha Aline incentivou a continuar e não desistir de criar o empreendimento, mesmo entendendo que apareceriam dificuldades no caminho.

Apesar de ter sido criado por necessidade, o que mais motivou Francisco e motiva até hoje é o fato de trabalharem em família. “Para entrar nesse ramo, não dá pra fazer tudo sozinho, tem que trabalhar em família. Aí já junta todo mundo e faz um pacote só!”, exclama o chefe de cozinha.

As dificuldades que a família passou a enfrentar após a chegada da pandemia aumentaram, por isso Chico resolveu achar uma saída. Um dos obstáculos que ele está enfrentando é o fato de todos os materiais e produtos usados no negócio estarem mais caros.

Foto: Flávia Santos

“O filé mignon que a gente pagava $23,00 o quilo, agora estamos pagando $45,00. O salmão que era $30,00, agora eu pago $55,00”, desabafa.

 Além desse exemplo, ele comentou que as caixas de salmão fechadas que ele juntamente com sua equipe comprava e pagava em torno de R$700,00, agora não encontram por menos de R$1.500,00, em boa qualidade.

O chefe de cozinha afirmou que apesar desse aumento dos produtos diante da pandemia, os seus preços no empreendimento não foram recalculados, pois o risco de perderem clientes se tornaria muito maior. Com isso, o lucro é menor e o desânimo se torna bem maior.

“É um desafio a gente continuar trabalhando, porque tem que correr atrás pra conseguir promoções e não encontramos. A gente vai batalhando como pode, às vezes a gente fica até desanimado, só que a gente não pode desanimar, tem que continuar, apesar de não ser fácil” 

conta o pai de família.

Durante a trajetória de quase dois anos do Yakissoba do Chico, esses desafios de aumento nos preços dos produtos os preocupam há cerca de seis meses.

Antes, ele não cobrava a taxa de entrega, em busca de fidelizar ainda mais clientes. Mas com todo esse cenário, precisaram mudar a estratégia e cobrar uma pequena tarifa para conseguirem manter os lucros de pé.

Mas apesar dos desafios, Chico hoje trabalha com sua família e tem mais tempo perto de seus filhos, o que por muitos anos não conseguiu, pois saía muito cedo e chegava muito tarde em casa, trabalhando em dois horários, e isso impossibilitava o contato e a interação familiar.

Agora ele consegue aproveitar o convívio com a filha caçula Isabeli, de 3 anos, participando mais do processo de criação e troca de afeto. “Eu nunca tive tempo em casa, só no dia da folga, mas aí tinha coisa pra resolver e passava rápido, não tinha tempo com eles.” afirma Chico.

No restaurante que ela estava trabalhando antes da pandemia, ele ficou sem receber seu salário por alguns meses, isso fez com que ele resolvesse efetivamente abrir seu próprio empreendimento. Mas a situação foi ficando apertada e ele resolveu se desligar da empresa. “Eu ia trabalhar sempre na esperança de receber”, explica.

Foto: Flávia Santos

Prezando pelo trabalho em equipe e melhor entrega a seus clientes, hoje o Yakissoba do Chico é uma empresa registrada, que está de pé desde maio de 2020 e vem construindo sua história e sua própria essência, seu local de produção fica em cima da casa da família, onde produzem os pratos e o processo de delivery e atendimento digital.

Francisco foi embora para São Paulo com 23 anos, já casado, sem imaginar como seria sua trajetória profissional, é um pai que incentiva seus filhos a desenvolver habilidades e busca todos os dias a melhoria de vida da família, sempre acreditando que esses aprendizados irão fortalecer seus filhos num futuro próximo.

“Isso que eles estão aprendendo agora comigo, vai ajudar eles a saberem o que fazer daqui alguns anos, até porque daqui um tempo eu não vou estar mais aqui. E a história continua”

conclui.

Trajetória 

Nascido no dia 2 de outubro de 1974, na cidade de Graça do Ceará, a história do Chico com a culinária japonesa começou no ano de 1997, quando ele decidiu ir embora da sua cidade natal para São Paulo em busca de um emprego fixo e estabilidade.

No mesmo ano, ele começou a trabalhar num restaurante bem conhecido na época, localizado na Avenida Paulista, onde atuou por 19 anos. Neste local ele começou trabalhando na pia lavando louças, área que atuou por dois anos, ganhando pouco, onde afirma que o trabalho era mais valorizado, dependendo de qual função você exercia naquela época.

Depois desses dois anos, ele passou a trabalhar como ajudante de cozinha, após isso, se tornou cozinheiro e saiu da empresa como chefe de cozinha, e isso tudo aconteceu ao longo de 19 anos de casa.

Após sair desse restaurante, Francisco foi contratado por um outro, também especializado na culinária japonesa, localizado na Lapa, zona oeste da cidade, onde ficou também por 4 anos. Ao todo, o chefe tem 24 anos atuando como cozinheiro.

Antes dos comércios serem fechados na cidade, ele trabalhou durante dois meses em um restaurante de culinária japonesa localizado dentro de um shopping da zona sul de São Paulo. O pouco tempo de casa se deve ao fato de o dono do estabelecimento ter tido dificuldades para parar os salários dos funcionários, devido aos impactos da pandemia do coronavírus.