Home Blog Page 34

O conhecimento a serviço da periferia: repensando o papel da ciência

Eu sustento que a única finalidade da ciência está em aliviar a canseira da existência humana.

Bertold Brecht

A periferia sempre foi objeto de estudos das universidades. Muitos intelectuais e pesquisadores que olham esse lugar como local de estudo, muitas vezes com olhares de especialistas em pobreza, geralmente com interesses acadêmicos, mas raramente conhecem de fato os desafios e problemas da periferia.

É preciso repensar essa lógica, é necessário inverter os interesses!

As pesquisas precisam estar a serviço da classe trabalhadora, ou como diz Bertold Brecht, devem aliviar a canseira da existência humana.

Foi justamente o que vi no último primeiro de abril de 2023 no I Encontro de Jovens Pesquisadoras(es) de M’Boi Mirim e Campo Limpo, organizado pelo Fórum de Pesquisadores de M’Boi Mirim.

Reunidos no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP), dezenas de pesquisadores (estudantes da graduação, pós-graduandos, professores da rede pública de ensino e professores universitários) partilham suas pesquisas e reflexões sobre tantas questões que afligem o povo periférico, em especial os da zona sul.

O encontro foi promovido pelo Fórum de Pesquisadoras(es) de M’Boi Mirim em parceria com o (CEDHEP) e a Sociedade Santos Mártires.

A riqueza do evento se deu pelo protagonismo de pesquisadores periféricos, agindo como sujeitos periféricos para usar o conceito do sociólogo Tiarajú D’Andrea, apropriando dos conhecimentos e colocando-os a serviço da periferia.

Foi muito potente e esperançoso ver que muitos jovens periféricos estão atravessando a ponte para estudar, mas não abandonam a periferia, muito mais que isso, estão estudando as periferias por suas lentes e subjetividades periféricas e, construindo assim, narrativas sobre suas vidas, seus lugares, seus fazeres, e desta forma, construindo conhecimentos engajados, que são instrumentos de mudança e podem servir de bases para políticas públicas.

Os trabalhos apresentados no encontro trataram de uma grande diversidade de temas que afetam e são relevantes para as periferias, como cultura e equipamentos culturais, acesso à saúde, assistência social e as famílias, habitação e moradias em áreas de risco, gênero e as lutas e dores das mulheres, memória e resistência, meio ambiente e racismo.

Alguns trabalhos me chamaram a atenção, mas por conta dos limites do espaço cito apenas alguns.

A pesquisa apresentada pela Cláudia de Souza Vieira dos Santos, mulher, negra, mãe e educadora social, apresentou um trabalho sobre as mães de filhos com deficiências, com objetivo de mostrar a luta e as dores dessas mulheres, que não são fortes o tempo todo, ao contrário estão “sempre exaustas e cansadas”.

Na mesma linha, a jovem Ingryd Boyek, trouxe reflexões de uma pesquisa sobre a escuta ativa como uma estratégia de intervenção e fortalecimento de vínculos com famílias de crianças e adolescentes atendidos em equipamentos de assistência social do território, que mostrou as potencialidades da escuta ativa para enfrentamento de conflitos cotidianos de muitos indivíduos periféricos.

Já Erika Alves Bueno, apresentou questões relacionadas às políticas de enfrentamento a violência contra a mulher em Taboão da Serra e Itapecerica da Serra. Aqui as pesquisas mostram um compromisso e a preocupação com as mulheres, que como bem sabemos, são arrimos de muitas famílias periféricas.

O povo preto também apareceu nas pesquisas da Tatiane de Matos Araújo e do Lucas Santos Pereira, a primeira trouxe uma pesquisa sobre a baixa circulação de idosos pretos e pardos em espaços de lazer e cultura, resultantes das condições precárias de trabalho e da extensão da idade no mundo do trabalho, ou do ofício de avó/avô, bem como pela falta de estrutura desses espaços públicos para idosos, ou seja, pela falta de políticas públicas nas periferias para idosos. Já o Lucas trouxe à baila reflexões sobre saúde e masculinidade Preta. Ambas as pesquisas falaram de racismo e de direitos negados ao povo preto.

A cultura periférica também foi discutida em alguns dos trabalhos apresentados no encontro. 

Thiago Andrade Gonçalves está estudando a apropriação e os usos do território periférico pela Feira Literária da Zona Sul (FELIZS), com objetivo de “contribuir com subsídios para a elaboração de políticas públicas e para as ações dos próprios coletivos reunidos na FELIZS”, nas palavras do jovem, que percorre 2 horas para chegar na universidade (UNIFESP), que fica na zona leste.

Enquanto Ana Clara da Silva, estuda as (des)continuidade das políticas públicas culturais da Casa de Cultura do M’Boi Mirim, frente às mudanças/transição de gestão do espaço, a fim de compreender como as ações políticas-administrativas impactam na dinâmica e manutenção do espaço.

Essas são algumas das pesquisas apresentadas neste I Encontro de Jovens Pesquisadoras(es) de M’Boi Mirim e Campo Limpo. Outros trabalhos que também foram discutidos, vale a pena buscar os anais do encontro ou mesmo participar dos próximos encontros do Fórum de Pesquisadoras(es) de M’Boi Mirim, que estão sendo realizados de maneira remota.

Acreditamos que encontros como esses precisam ser intensificados, que a ciência deve ser instrumento da classe trabalhadora e que contribua para acabar com as dores que atingem o povo periférico, mas que também coloquem em relevo as lutas e relações culturais e políticas que emergem nas periferias.

Com certeza padre Jaime Crowe, que fez a passagem em fevereiro de 2023, estaria feliz com essa iniciativa. Ele foi um grande entusiasta de uma universidade aqui na zona sul e um grande defensor de pesquisas que contribuíssem para mudar a vida do povo periférico e não apenas para aumentar o currículo de pesquisadores do outro lado da ponte. 

Confira os jovens selecionados para a 7ª edição do Você Repórter da Periferia

A 7° edição do Você Repórter da Periferia recebeu inscrições de jovens que moram em diversas regiões periféricas, sendo que 55% das incrições foram de jovens que se autodeclaram pardos ou negros. Entre os 20 jovens selecionados, 10 são estudantes do 1° ano do Ensino Superior (até 2° semestre) e 10 são estudantes ou concluíram o ensino médio.

A seleção foi realizada levando em consideração idade, raça, gênero, escolaridade e regiões da cidade, buscando abranger um grupo diversificado.

Aos Selecionados: Entre os dias 03/05 a 05/05, entraremos em contato por e-mail e whatsapp para passar as informações sobre o início das atividades e tirar todas as dúvidas que possam surgir.

Aos que não foram selecionados: Desejamos muito progresso em seus próximos passos! Fiquem ligados que em 2024 teremos novas oportunidades no Você Repórter da Periferia.

Confira a lista dos selecionados 

  • Andreza Costa Vieira
  • Caroline Pina
  • Cláudio de Tarso Avelar Oliveira
  • Elaine Castanho da Silva
  • Emerson Rodrigues Couto David
  • Evellyn Santana Nascimento Rodrigues
  • Franciele Silva Ladislau
  • Gustavo Henrique da Silva Alves
  • Hellen Novais de Oliveira
  • Jéssica Batista da Silva
  • Jéssica Calheiros de Siqueira
  • Josiel do Espirito Santos
  • Julia Lima Oliveira dos Santos
  • Maria Clara Lima
  • Nayara Almeida de Oliveira
  • Richard Jefferson Ferreira Alves
  • Rebeca Ramos dos Santos
  • Thayná de Souza Campos
  • Vanessa Andrade Magaroti
  • Vitória Rosendo da Silva

Vegano Periférico: projeto aproxima moradores das periferias da alimentação vegana

0

Com um salário de R$ 900 por mês, trabalhando em uma cachaçaria sertaneja, em 2017, Leonardo Santos, co-fundador do projeto Vegano Periférico, conta que a ida até o mercado era econômica, para comprar verduras, legumes e produtos vegetais, quebrando toda a ideia de que para ser vegano ou comer bem, precisa ser rico.

Essa experiência pessoal reflete no crescimento do projeto Vegano Periférico, iniciativa criada pelos irmãos Eduardo Santos e Leonardo Santos, moradores da periferia de Campinas, para inspirar usuários das redes sociais a adotar hábitos alimentares saudáveis com base na cultura vegana. Em 2021, o perfil de Instagram Vegano Periférico alcançou a marca de 334 mil seguidores.

O projeto surgiu a partir da inquietação dos irmãos com a indústria de abate de animais e de alimentos ultraprocessados, que fornece carne e produtos de origem animal como principal referência alimentícia nas mesas de famílias periféricas.

“Em 2015 me deparei com uma matéria de centenas de porcos que caíram em uma estrada, aquilo me deixou muito chocado, a forma como as pessoas pegavam aqueles animais, os carros passando por cima de suas patas, toda aquela tortura, me fez pensar: como eu posso ser tão empático com os animais, salvar cachorros de rua, pássaros e continuar colocando origem animal no meu prato? Isso não está certo”, relembra Eduardo.

“Demorei até para me tornar vegano, não queria encarar essa realidade, mas depois de dois anos, decidi lidar com os fatos”

Eduardo dos Santos, co-fundador do Vegano Periférico
Eduardo dos Santos. Créditos: Arquivo Pessoal
Eduardo dos Santos. Créditos: Arquivo Pessoal

A partir deste momento, Eduardo passou a inspirar a mudança de hábitos alimentares de seu irmão gêmeo, Leonardo, que levou dois anos até decidir se tornar vegano. “Em 2017 eu decidi me tornar vegano do dia para noite. Então, em uma noite eu comi meu último prato de origem animal e no dia seguinte eu mudei de vez meus hábitos alimentares”, relembra Leonardo.

Juntos, Leonardo e Eduardo perceberam que a decisão de adotar uma alimentação vegana ia muito além do hábito de mudar o consumo de alimentos, mas sim de uma questão social, econômica e política. Essa visão crítica sobre a forma como a sociedade se relaciona com os alimentos resultou na criação do projeto de conteúdo digital Vegano Periférico.

Enquanto Eduardo se aprofundava mais no tema do veganismo e exploração animal, Leonardo trabalhava em um restaurante de fast food, como forma de auxiliar em casa e ajudar a reformar o lugar que, até então, sua tia oferecia para que sua família morasse.

Sendo assim, a mudança alimentar de Leonardo surpreendeu os familiares, já que o rapaz, nunca consumia vegetais e já tinha uma alimentação baseada em ultra processados, um grupo de alimentos que passam por processos industriais e laboratoriais, para fabricação de produtos à base de substâncias perigosas para a saúde humana, como gorduras, corantes, conservantes, entre outros. 

Leonardo dos Santos. Créditos: reprodução
Leonardo dos Santos. Créditos: reprodução

“Você conseguir fazer um churrasco com uma picanha é como se tivesse ganhado um prêmio”

Leonardo dos Santos, co-fundador do projeto

“Primeiro, é possível notar através das diversas músicas que enfatizam a geladeira cheia de carne como um prêmio ou conquista, já o segundo ponto, é notável através de comerciais, a partir do momento que usam aquela imagem de família reunida em um almoço de domingo e um refrigerante na mesa ou um determinado tempero que é industrializado, mas considerado o “segredo de família” na hora do preparo de alguma comida típica”, explica.

Diante deste cenário, Leonardo conta o por que negar a carne ou comida de origem animal, impacta tanto no ciclo social de pessoas pobres. “Na periferia, nós já temos essa vontade intrínseca de consumir produtos ultra processados, nós queremos nos sentir parte da sociedade. Você conseguir fazer um churrasco com uma picanha é como se tivesse ganhado um prêmio e a partir do momento que você opta por não consumir isso, é como se você estivesse negando esse prêmio”, analisa. 

Post do Instagram mostrando uma dica de alimentação à base de frutas para o café da manhã. Créditos: reprodução
Post do Instagram mostrando uma dica de alimentação à base de frutas para o café da manhã. Créditos: reprodução

O co-fundador do Vegano Periférico enfatiza que a periferia se encontra engessada nessa ideia de ultraprocessados exatamente por falta de políticas públicas que consigam dialogar com a população. “A indústria já produz esses alimentos pensando em um determinado nicho de público, bem-estar pessoal ou até mesmo em um hype, fazendo com que essa comunicação dos produtos, não dialoguem com a gente”.

Pensando em tudo isso, os irmãos, perceberam que de fato a parte mais difícil de se tornar vegano ou vegetariano, não é a alimentação, mas sim o ciclo social. “Um dia eu fui em um restaurante em uma região privilegiada de Campinas e quando cheguei, só consegui me identificar com os funcionários, o ambiente fez eu me sentir excluído automaticamente. Cogitei até mesmo deixar de ser vegano. Foi quando eu saí do restaurante, peguei um busão e escrevi como me senti naquele lugar”, conta Eduardo.

Leonardo e Eduardo, perceberam que para eles não era suficiente parar de comer carne, mas sim, mostrar através de suas vivências, que era possível ser vegano dentro da periferia. Deste então, produzir vídeos, receitas, dicas de alimentos veganos e tirar dúvidas de seguidores no Instagram tem sido uma forma de engajar as pessoas a experimentar uma nova cultura alimentar. 

Desenrola Aí: Raphaella Gomez explica o significado da sigla LGBTQIAPN+ para além das letras

0

Nesta quinta-feira (27), estreia a primeira temporada do programa de entrevistas, Desenrola Aí, no primeiro episódio, a jornalista Thais Siqueira entrevista a artista plástica, Raphaella Gomez, que traduz de forma didática, a relevância de cada letra que compõe a sigla LGBTQIAPN+, que representa uma população negra e periférica que tem enfrentado uma série de desigualdades sociais que comprometem o direito à vida.

Com anos de atuação, o movimento LGBTQIAPN+ é extremamente importante, e sua luta está ligada a garantias de direitos à vida, a combater o preconceito e discurso do ódio, para que seja possível chegar a uma sociedade mais justa, diversa e humana.

” A sigla LGBTQIAPN+ é algo que a gente consegue abraçar uma grande comunidade. Precisamos pautar a importância de cada uma e uma intersexualidade de cada uma também, porque é importante sairmos desse discurso raso em relação a nossa comunidade. Não somos só LGBTQIA+, a gente é preta, periférica, é pobre, PCDs, várias coisas que também agregam com esses tipos de vulnerabilidade que afetam nossos corpos”.

Raphaella Gomez, artista plástica
Raphaella Gomez, artista plástica, e a jornalista Thais Siqueira durante a gravação do Desenrola Aí, em Abril/2023. Foto: Pedro Oliveira
Raphaella Gomez, artista plástica, e a jornalista Thais Siqueira durante a gravação do Desenrola Aí, em Abril/2023. Foto: Pedro Oliveira

Sobre o Desenrola Aí

O Desenrola Aí é um programa quinzenal que visa trocar ideias com especialistas da quebrada, descomplicando assuntos relevantes, que afetam o cotidiano da população negra e periférica e os direitos humanos, que é a essência da nossa existência e convivência enquanto sociedade. Esse ano, o programa será dividido em duas temporadas. Nessa primeira temporada vamos abordar sobre os direitos, à vida e a luta da população LGBTQIAPN+ nas periferias.

O programa do Desenrola Aí tem como realização o Desenrola e Não Me Enrola e Fluxo Imagens.

“Eu já não sou mais a mesma”: trabalhadoras domésticas relatam desgastes em jornadas de trabalho

0

Em 2023, a emenda constitucional criada para “estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais”, completa 10 anos. Ao longo desse tempo e com a criação de leis complementares, como a de nº 150 de 2015, trabalhadores domésticos passaram a ter direito a benefícios básicos como FGTS e seguro desemprego. Ainda assim, na prática, a rotina de muitas trabalhadoras domésticas ainda demonstra a necessidade de mudanças.

“Eu era cozinheira, babá, arrumadeira, era tudo, isso me sobrecarregou. Aí eu comecei a sentir dor no joelho e descobri que estava com tendinite”, conta a trabalhadora doméstica, de 50 anos, moradora de Osasco, na região metropolitana de São Paulo. A entrevistada, que preferiu não se identificar, trabalha como empregada doméstica há mais de 30 anos. 

“Fiz fisioterapia [e] tratamento, ainda trabalhando, e hoje meu joelho está com desgaste total. Meu caso é cirúrgico, tenho risco de pôr uma prótese e tudo isso foi pelo esforço em casa de família”

Trabalhadora doméstica que preferiu não se identificar, tem 50 anos, mora em Osasco e trabalha como doméstica há mais de 30 anos.

Além do impacto na saúde, a moradora de Osasco conta que possui uma jornada diária de trabalho inconstante, onde começa a trabalhar às 7:40 da manhã, mas não tem horário definido para ir embora. Ela conta que trabalha de segunda a sexta e que seu registro na carteira de trabalho aconteceu em 2018, momento no qual passou a receber vale transporte, férias e 13º salário.

Segundo a cartilha “Trabalhadores domésticos: direitos e deveres”, que conta com as alterações da Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015, produzida pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social, considera-se empregado doméstico aquele maior de 18 anos, que presta serviços de natureza contínua, subordinada, onerosa, pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 dias por semana.

Confira aqui a cartilha completa

Outro contexto que atravessa a realidade de trabalhadoras domésticas, principalmente moradoras das periferias, é o fato de se sentirem desamparadas e desvalorizadas. Além de situações de abuso psicológico que são silenciadas pela necessidade da continuidade no emprego.

“Eu tinha deixado a louça por último e não lavei porque tinha passado do meu horário. O apartamento era muito grande, nesse dia eu limpei toda a casa e as geladeiras. Me chamaram a atenção por não ter lavado a louça, logo depois de ter ficado um dia inteiro na casa dela que media mais de 150 metros quadrados”, conta a trabalhadora doméstica, de 28 anos, que preferiu não ser identificada.

Atualmente a profissional trabalha como faxineira para pagar os estudos no ensino superior. Ela conta que devido ao fato de ter começado a trabalhar há um pouco mais de 1 ano nessa residência, mesmo com a frequência de cinco vezes por semana, até o momento ainda não foi registrada e não possui nenhum tipo de benefício trabalhista.

“Eu sempre quis trabalhar na área de enfermagem, mas não tive a oportunidade. Só estudei até a 8ª série por ter começado na casa de família cedo e não tive mais como estudar. Hoje não sei se tenho mais saúde e cabeça, mas quem sabe. Nunca é tarde para recomeçar”, compartilhou a trabalhadora, de 28 anos, que não quis se identificar.

Alguns dos relatos trazidos pelas trabalhadoras são semelhantes, como a ausência de benefícios trabalhistas que possibilitem uma jornada condizente com seus direitos, evitando problemas físicos e mentais a longo prazo.

“Todos meus problemas de saúde nasceram a partir do trabalho pesado como doméstica. Minha vida mudou e eu já não sou mais a mesma”

Trabalhadora doméstica que preferiu não se identificar, tem 50 anos, mora em Osasco e trabalha como doméstica há mais de 30 anos.

Outra profissional que também preferiu não se identificar, conta que passou a apresentar problemas de saúde aos 35 anos, quando já atuava como trabalhadora doméstica.

“Hoje eu tenho 47 [anos], trabalhei mais de 10 anos [como doméstica] mesmo com as dores. Eu pago INSS, dei entrada para tentar o benefício, não consegui. Fui recusada e eles disseram que eu sou nova e posso muito bem trabalhar. Agora estou sem benefício e sem trabalhar”, relata a trabalhadora, de 47 anos, que mora no distrito do Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo.

A morada do Jardim Ângela precisou se afastar do trabalho em 2022, devido complicações na saúde causadas pela fibromialgia e ansiedade. Ela conta que foi registrada pela primeira vez há mais de 18 anos, onde naquele tempo recebia em torno de R$ 400,00 trabalhando todos os dias na semana e em uma época onde as trabalhadoras domésticas não possuíam direitos trabalhistas. Antes de ser afastada ela não trabalhava de carteira assinada, pois já sentia sua saúde frágil e imaginava ter que parar em breve.

Garantia de direitos

Na cartilha “Trabalhadores domésticos: direitos e deveres”, produzida pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social, consta alguns dos direitos dos trabalhadores domésticos, como: 13º salário, remuneração do trabalho noturno, jornada de trabalho, remuneração do serviço extraordinário, repouso semanal remunerado, feriados civis e religiosos, férias, licença à gestante, auxílio-doença, entre outros.

Segundo Nataly Ramos, pesquisadora do eixo Trabalho no CEP (Centro de Estudos Periféricos), a PEC das Domésticas foi e é importante para a garantia de direitos, mas aponta que ainda existem muitas dificuldades nas condições de trabalho de empregadas domésticas.

“No mundo, o trabalho doméstico nunca foi considerado trabalho. Mas aqui no Brasil tem essa particularidade histórica de ser um país colonial e escravagista”, aponta a pesquisadora.

Para Germânia Pinheiro, psicóloga e pós-graduada em psicologia junguiana, muitos sinais físicos que o corpo apresenta tem relação direta com a saúde emocional que precisa ser olhada.

“Muitas vezes até mesmo pela carga horária, pela pressão, pela necessidade, acabam não prestando atenção nos sinais que o corpo envia. Ou seja, dores de cabeça, nas pernas, no estômago, com frequência são compreendidas como normais, mas não são”, aponta a psicóloga, que afirma ser nesses momentos que a saúde mental está pedindo socorro.

A psicóloga também afirma que se, ao longo do ano, essas profissionais fossem acolhidas e orientadas com campanhas, projetos e iniciativas do próprio poder público, o cenário poderia ser outro.

“É uma iniciativa que deveria vir do poder público, de fazer conscientização e trazer essa responsabilidade para os patrões, até mesmo para que essas mulheres se sintam confortáveis para buscar esse suporte”, aponta a psicóloga.

Luiza Batista Pereira, que é trabalhadora doméstica já aposentada e Coordenadora Geral da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas), coloca que a maior parte das trabalhadoras domésticas são mulheres negras, periféricas, de baixa renda e sem escolaridade. Fator que socialmente reforça a desvalorização dessa função.

“A desinformação contribui muito para que as trabalhadoras não tenham acesso aos seus direitos previstos em lei. Então a importância delas conseguirem esse acesso é terem a perspectiva de saber que estão sendo alcançadas. É uma luta gigante, mas é isso que nos dá força para continuar”, afirma Luiza.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil, existe um total de 6 milhões de trabalhadoras domésticas, se tratando de mulheres. Apenas 1,5 milhões possuem carteira assinada, e as que trabalham sem formalidade trabalhista, ainda possuem renda média abaixo de 1 mil reais.

A pesquisadora do eixo Trabalho no CEP (Centro de Estudos Periféricos), Nataly Ramos, reforça que “as pessoas precisam entender que o trabalho de cuidado é essencial e que elas podem limpar a sua própria sujeira e fazer sua própria comida. Se o mundo capitalista não permite que a gente tenha horários disponíveis pra fazer isso, que a gente pense em formas de trabalhar menos e coletivizar esse trabalho”, concluiu. 

MORADORA DO GRAJAÚ ASSUME COORDENAÇÃO GERAL NO MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS E DA CIDADANIA

0

Nomeada Coordenadora Geral de Políticas Socioeducativas na Secretaria Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Mayara Silva de Souza, 30, cria do bairro Cocaia, distrito do Grajaú, zona sul de São Paulo, faz parte de um movimento de mulheres que buscam ocupar espaços de decisões, e a partir da sua atuação, contribuem através de políticas públicas, para melhoria na vida de jovens e crianças das periferias.

Formada em Direito, Mayara foi uma das mulheres selecionadas no programa de Lideranças Femininas Negras Marielle Franco pelo Fundo Baobá, em 2019. Programa que busca potencializar mulheres negras para alcançar espaços de poder e fazer a diferença onde elas quiserem estar.

“Eu sou de várias periferias de São Paulo. A minha mãe morava no Cocaia, a minha madrinha no Jardim Ângela, e a nossa relação era bem próxima, sempre passava as férias escolares lá. Atualmente moro em Brasília por conta da proposta de trabalho que recebi e gosto muito daqui”, conta Mayara, que assumiu o cargo de coordenadora geral em março deste ano e se mudou para Brasília, local que já frequentava desde 2018.

A partir das andanças pelas quebradas, Mayara já atuou com suas potências e também com as violências programadas nesses territórios. A perda de um amigo por overdose foi um dos motivos para que decidisse se tornar alguém que pudesse fazer a diferença na vida de jovens periféricos. 

“O sonho em relação à periferia seria justamente fazer com que a violência institucional seja interrompida. É uma pretensão bem ousada, mas precisamos dessa ousadia.” 

Mayara Silva, Coordenadora Geral de Políticas Socioeducativas no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

A advogada é filha de mãe solo, nordestina e conta que desde os 14 anos entendia que o contexto em que vivia era diferente para pessoas como ela.

“Até os 9 anos eu morei no Campo Belo e depois fui morar no Grajaú. Aí começamos a morar em família e minha mãe passou a ir e voltar todos os dias do trabalho para dormir em casa. Até aquele momento, a minha vivência maior de vida foi dentro do quarto de empregada que a minha mãe trabalhava”, conta.

Atuação 

Desde pequena Mayara já sabia o que queria fazer: ser promotora de justiça. Ela conta que uma vez sua mãe a levou em uma audiência de pensão alimentícia em um fórum, e a partir disso passou a ter essa carreira como objetivo. “Na adolescência foi que eu entendi e fui estudar Direito”, compartilha.

Foi ao longo desses anos de estudos que Mayara passou a observar as violências institucionais que atravessavam seus amigos e familiares. Ela conta que seu irmão, um jovem negro, sofria diversas abordagens policiais diárias e quase não via os colegas da escola por estarem cumprindo medida socioeducativa na Fundação Casa. Fatos que influenciaram na sua atuação.

“Quando eu entrei na faculdade e descobri que existe um campo no Direito que atua para garantir o reconhecimento dos adolescentes, das crianças e dos jovens como sujeitos de direitos. Através de iniciativas públicas entendi que era isso que eu queria”. 

Mayara Silva, Coordenadora Geral de Políticas Socioeducativas na Secretaria Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescente.

Ao longo de sua carreira, Mayara atuou em espaços de assistência como órgãos da Defensoria Pública, em audiências e atendimento a jovens de diferentes territórios.

“Eu sabia como funcionava, cresci lá [na periferia], sabia como atender essas famílias. Sei como eles viveram, sei o role que é, o tempo que levaram até chegar aqui, quantos ônibus pegaram”

Ao longo de sua carreira, Mayara atuou em espaços de assistência como órgãos da Defensoria Pública, em audiências e atendimento a jovens de diferentes territórios.

“Eu sabia como funcionava, cresci lá [na periferia], sabia como atender essas famílias. Sei como eles viveram, sei o role que é, o tempo que levaram até chegar aqui, quantos ônibus pegaram”, conta a advogada.

Mayara aponta que ter uma história de vida parecida com a de muitos jovens periféricos aproximou e possibilitou contribuir de uma maneira diferente. “Eu conseguia fazer um atendimento baseado na realidade, porque era a minha até pouco tempo”.

Durante sua passagem pela Prefeitura de São Paulo, a advogada trabalhou com a política e atendimento socioeducativo a nível municipal. Já no terceiro setor, envolvida na temática de direitos da juventude, atuava em nível nacional, e foi aí que percebeu que o trabalho realizado era bom, mas poderia ser ainda melhor com o setor voltando seu olhar para a base territorial.

Enquanto atuava na ONU, com foco em como o judiciário brasileiro trata a política socioeducativa para adolescentes, percebeu a distância de quem discutia a temática, para quem estava no território.

“Eu fazia formação para juízes, fazia manual de como avaliar o atendimento pensando sob a ótica desse adolescente e agora eu estou justamente a esse nível nacional que coordena toda a política de maneira específica hoje no Brasil”, pontua.

Atualmente Mayara tem o objetivo de contribuir na construção de políticas socioeducativas sob a perspectiva de garantia das políticas públicas. Como Coordenadora Geral do Atendimento Socioeducativo, busca o protagonismo jovem.

“A violência pode ser interrompida dando esse protagonismo para a juventude, sobretudo por meio de políticas públicas”, aponta Mayara.

Do Contra Egum à universidade, te conto as belezas que vi na juventude negra hoje

0
Reprodução: Freepik
Reprodução: Freepik

Entre as distrações com tanta gente, eu te acho com o corpo encurvado, caderno e caneta na mão. O boné, a camisa de futebol vermelha dois números maiores, assim como a calça larga e lá pra baixo da cintura, daquelas que aparece parte (bem pouca) da bunda; me dão os sinais pra acreditar que tu vem de algum lugar semelhante de onde eu vim. Alí, de alguma quebrada.

Eu te reparo. Do nada você não levanta a cabeça, só os olhos, e tenta reparar se tem alguém te olhando: você reparou que o Contra Egum no braço está à mostra. Imediatamente tu ajusta a manga da blusa e esconde o trançado de palha que te dá proteção.

“Eu sigo te observando. Isso é raro porque, para não ser percebida, às vezes eu até prefiro não observar nada”

Simone Freire, jornalista e moradora da Cidade Tiradentes, Zona Leste de São Paulo.

A tua pele passa a me chamar a atenção. É bonita pra c*! Retinta! Tu é jovem e tem aquelas marcas nos braços, aquelas retas feitas pela lâmina afiada da vida nas fases em que o peso do mundo é demais, mesmo que a gente tente vencer ele.

Não tive dó, fiz reza, e fiquei feliz que você tá se cuidando. Do entrelaço no braço, às rezas de quem te ama (e olha), e letras que você põe no papel! Continue! Continuamos!

Reprodução: Freepik
Reprodução: Freepik

Existe caminho para a juventude negra, sabe. Existe! 

Esses dias, Yakíni, um jovem negro, estava quase perdendo o direito de estudar na universidade. Estudou, fez vestibular, passou. Fez matrícula. Mas a vida complexa enquanto jovem negro fez com que ele não conseguisse cumprir a última da última etapa do processo de matrícula. Coisa burocrática.

É incrível, pra não dizer absurdo, que a burocracia – pensada para lidar com as particularidades de alunos que não são da cor ou lugar social de Yakíni – tenha quase tirado a oportunidade dele estudar.

E digo quase porque ele conseguiu recuperar o seu direito. Sim, para isso foi preciso que sua mãe, familiares e toda uma rede de apoio preta, de militantes à pessoas não-militantes, usassem suas vozes e vezes nos lugares que ocupam. A USP, onde ele vai estudar, precisou voltar atrás e devolver a sua vaga. Basta saber se ela vai rever seu futuro para acolher quem precisa acolher.

Daqui a pouco você estará que nem Yakíni por aí voando. Não sei seu nome ou endereço, mas boto fé que vou ler seus escritos por aí um dia. Ou será que tu me lê aqui primeiro? Que se abram os caminhos!

Problemas no transporte público dificultam a mobilidade de moradores em Mambu, no Marsilac

0

Localizado no extremo sul da cidade de São Paulo, sob a administração da subprefeitura de Parelheiros, o distrito de Marsilac fica a aproximadamente 50 km do marco zero da capital, o que representa em média 2 horas de deslocamento de um ponto a outro. Esse tempo aumenta devido às dificuldades de mobilidade que os moradores da região enfrentam diariamente, principalmente devido à dependência do transporte público.

Luciana Carmo dos Santos, 35, é moradora do bairro Jardim dos Eucaliptos, em Marsilac, há três anos e conta como é o deslocamento na região. “Na estrada do Mambu só passa uma lotação e ela passa só três vezes ao dia”, afirma a moradora, que também conta que a lotação passa em horários específicos: às 6h, 12h e às 18h.

Linha Cipó – Ponte Alta, no Terminal Municipal de Embu-Guaçu (foto: Viviane Lima)

“Só tem um transporte e ele só passa nesses horários, se você perder você não tem como voltar para casa, as pessoas costumam andar a pé para poder ir até a cidade”, conta Luciana. Ela pontua que para chegar ao centro comercial mais próximo, que fica no bairro Cipó, em Embu-Guaçu, são 2 horas de caminhada.

Segundo Luciana, aos fins de semana a dinâmica não apresenta melhora. “Dia de domingo e feriado não tem transporte público, sábado muda o horário da perua, é uma hora mais tarde”, comenta. 

Barreiras no acesso à direitos sociais 

As consequências geradas devido à falta e precariedade da mobilidade urbana na região são muitas, mas as que mais afetam as moradoras entrevistadas tem relação com acesso à saúde e ao mercado de trabalho.

Luciana é professora de filosofia, analista de crédito e está desempregada desde que se mudou para Marsilac em 2020. Ela acredita que a falta de transporte seja um dos principais motivos. 

“Eu estou procurando trabalho há mais de dois anos e eu não consegui, porque quando as pessoas descobrem onde eu moro, elas não querem me dar trabalho, isso é recorrente com várias pessoas.”

Luciana Carmo dos Santos, professora de filosofia e analista de cré

Luciana mora com a filha de 17 anos, e a mãe, Maria do Carmo, 75, que é aposentada, sendo essa a única fonte de renda da família no momento.

Da Estrada do Mambu à UBS mais próxima da casa da família são 15 km de distância. Luciana conta que “às vezes para o pessoal poder ir ao médico eles caminham cerca de 3h”.

Outro ponto que torna ainda mais difícil a locomoção é a falta de pavimentação nas estradas. 

“Tem oito meses que o meu marido faleceu. A minha filha chamou a ambulância, ele estava passando mal, a ambulância não chegou. A ambulância quebrou [na estrada] e nunca chegou aqui. Luciana teve que chamar um carro para levar meu marido, o pai dela, lá no hospital. Ele morreu no caminho, nos braços da filha”.

Maria do Carmo, 75, aposentada e moradora do bairro Jardim dos Eucaliptos, em Marsilac.

Acessibilidade

Maria do Carmo, mãe de Luciana, é cadeirante e ainda vivencia outras consequências da problemática do transporte na região: a falta de acessibilidade.

“A lotação que tem não é preparada para receber cadeirantes. O elevador não funciona, o cinto para prender a cadeira de roda não funciona”, afirma Luciana. Ela aponta diferentes situações, como “a estrada esburacada, não tem luz na rua”, conta sobre a Estrada do Mambu.

Elevador de acessibilidade para cadeirante (foto: Viviane Lima)
Elevador de acessibilidade para cadeirante (foto: Viviane Lima)

A tarifa do transporte é R$ 4,10 e a gratuidade da passagem para idosos com mais de 60 anos, na prática, não funciona na região.

“A maior parte dos idosos paga [a passagem] e dá caixinha para o motorista. Porque eles [os motoristas] reclamam. A gente pede para parar o ônibus [falam] ‘Ah vai atrasar o ônibus’. A minha neta tem que correr para parar o ônibus” 

Maria do Carmo dos Santos, 75, aposentada, moradora do bairro Jardim dos Eucaliptos, em Marsilac.

Outra situação que ocorre é “um esquema de táxi, que é assim: um trecho de 8 km eles cobram R$ 40. Não colocam o taxímetro e quando eles vão entrar em área rural de mata eles cobram mais”, afirma Luciana. 

Ponto de táxi, localizado na Praça Ivan Braga de Oliveira, em Embu-Guaçu (foto: Viviane Lima)
Ponto de táxi, localizado na Praça Ivan Braga de Oliveira, em Embu-Guaçu (foto: Viviane Lima)

Ricardo Barbosa da Silva, geógrafo, professor da Unifesp no campus da zona leste, é coordenador do grupo de pesquisa Rede Mobilidade Periferias e aponta como a mobilidade é parte fundamental para acessar direitos.

“A partir da mobilidade é que se vai garantir o acesso aos demais direitos e oportunidades. Se não tem mobilidade, não vai ter acessibilidade de maneira mais adequada e as pessoas não têm como acessar os demais direitos como trabalho, educação, saúde e serviços públicos essenciais”. Ricardo Barbosa da Silva, geógrafo, professor da Unifesp no campus da zona leste e coordenador do grupo de pesquisa Rede Mobilidade Periferias.

Problemas na linha

No Relatório de Obras e Ações 2022 Parelheiros, criado através do Diálogo Aberto, uma iniciativa da Prefeitura de São Paulo, consta que houve obras emergenciais na Estrada do Mambu. “Sobre as intervenções na Estrada do Mambu, a Subprefeitura informa que foi feita a reconstrução da via, após um solapamento do solo. Os reparos foram executados para garantir a segurança no local”. Segundo a Subprefeitura de Parelheiros, a obra foi finalizada em julho de 2022.

Entramos em contato com a SPTrans para entender a situação na linha Cipó – Ponte Alta, que segundo os moradores é a única que passa na Estrada do Mambu. A SPTrans informou “que não existe linha com esta denominação no sistema de transporte municipal da cidade de São Paulo”. A companhia aponta que essa é uma linha que não possui regulamentação e fiscalização realizada por eles.

A companhia sinalizou linhas que atenderiam a região. “A região de Marsilac e da Estrada do Mambu é atendida por seis linhas municipais: 6L01/10 Marsilac – Term. Varginha, 6L02/10 Jd. Eucaliptos – Term. Parelheiros, 6L03/10 Cipó do Meio – Term. Parelheiros, 6L04/10 Jd. Oriental/Fontes – Term. Parelheiros, 6L01/23 Emburá – Term. Varginha e 6L04/42 Jd. Oriental – Term. Parelheiros”. Luciana aponta que “na Estrada do Mambu nenhuma dessas linhas circulam”.

Segundo a SPTrans, o fator ambiental na região interfere na situação do transporte local. Apontam que o distrito de Marsilac e a região do Mambu estão inseridos na Área de Proteção Ambiental – APA Capivari-Monos.

“Estudos de ampliação, modificação e/ou implantação de novas linhas na região devem ser submetidos à análise e aprovação de diferentes órgãos. Em 2015, foi realizado estudo para a implantação de um serviço da região do Mambu até as proximidades da Estrada do Marsilac, mas não foi efetivada por não atender às condicionantes de órgãos responsáveis”, afirma a SPTrans.

A linha citada por Luciana e Maria do Carmo, Cipó – Ponte Alta, não consta na SPTrans e não tem a supervisão da subprefeitura de Parelheiros. Assim, também entramos em contato com a Prefeitura de Embu-Guaçu, pois a van citada faz parte das linhas administradas pelo município, cujo o ponto de chegada é a Estrada da Ponte Alta e partida na Rua José do Rio Ruiz Filho, em Embu-Guaçu. 

Linha Cipó – Ponte Alta, no Terminal Municipal de Embu-Guaçu (foto: Viviane Lima)
Linha Cipó – Ponte Alta, no Terminal Municipal de Embu-Guaçu (foto: Viviane Lima)

A Secretaria Municipal de Segurança e Transporte (SEMUTRANS), de Embu-Guaçu, confirmou que a linha Cipó – Ponte Alta circula apenas em três horários de segunda à sábado e informou que “devido a baixa demanda de usuários a linha é assistida nos horários mencionados priorizando-se os horários de pico (manhã e tarde)”.

A SEMUTRANS pontua que “os veículos oferecem acessibilidade conforme Lei 13.146/2015, chamada Lei Brasileira de inclusão de pessoas com deficiência. Referente a gratuidade de pessoas com 60 anos”. Também relatam que “os mesmos precisam ter uma identificação que é fornecida através de solicitação a secretaria de Ação Social, pois tem alguns quesitos a serem preenchidos.”

Ainda com relação à acessibilidade, a Secretaria Municipal de Segurança e Transporte respondeu que a fiscalização existe e as mudanças estão em estudo com a sua conclusão prevista para o início do segundo semestre. 

“Quando a gente fala de preservação ambiental é a ideia de convivência entre um espaço natural que deve ser preservado, mas respeitando as pessoas, as características do modo de vida das pessoas que vivem naquele local também.”

Ricardo Barbosa da Silva, geógrafo, professor da Unifesp no campus da zona leste, coordenador do grupo de pesquisa Rede Mobilidade Periferias.

 Ricardo aponta que é fundamental a participação popular para a melhoria dessas demandas. “Uma participação popular em que as pessoas tenham um espaço para colocar as suas questões”, coloca.

Luciana afirma que a comunidade segue se mobilizando em busca de mudanças para a melhoria da mobilidade na região. “A comunidade já fez diversos abaixo-assinados, já foi na subprefeitura de Parelheiros, já fizeram várias movimentações”, mas ainda sem resultados efetivos.

Tekoa Yvy Porã promove evento para que a cidade dialogue com o território Guarani

0

No último domingo (16), aconteceu a 2ª edição do Festival Yvy Porã Jaraguá é Guarani, evento celebrado na aldeia Yvy Porã, localizada na Vila Jaraguá, zona noroeste de São Paulo. A programação contou com atrações artísticas, exposição e venda de artesanatos, música, moda e também culinária, tendo os saberes e fazeres indígenas como ponto de partida.  

“Quando a gente faz um evento desse é para abrir nossa comunidade ao diálogo com a cidade. Exatamente mostrar para o não-indígena que não somos posseiros de terra e entendemos a terra como um patrimônio”

Karai Djekupe (Thiago Guarani), xondaro da terra indígena, graduando em arquitetura e urbanismo, e também um dos idealizadores do evento.

O dia na aldeia começou com o Tupã, educador da aldeia, mediando a trilha Tape Porã (Bom Caminho), na qual foi reflorestada pelas crianças do território e que mostrava alguns pilares do dia a dia do povo Guarani.

Também foi apresentado o filme “Paraí”, que conta a história de Pará, menina guarani que encontra por acaso um milho guarani tradicional, que nunca havia visto e, encantada com a beleza de suas sementes coloridas, busca cultivá-lo, e a partir dessa busca começa a tentar entender seu lugar no mundo, produzido pela Descoloniza Filmes. Ainda rolou um desfile de moda com roupas da Dona Irene Mendonça (Jaxuka Mirim), que além de artista, é líder da cozinha comunitária da aldeia. Logo após o desfile, o palco foi aberto para apresentação musical de alguns artistas, entre eles: Brisa Flow e Ian Wapichana.

“Nós, as mulheres, temos que nos virar de qualquer jeito para conseguir alimento, porque hoje em dia está muito caro. Então isso aqui pra mim é importante porque muitas pessoas vem conhecer, quase ninguém sabe que existe aldeia”

compartilha Jaxuka (Leonice Guarani), indígena e artesã que levou suas peças para vender no evento.

Karai Djekupe (Thiago Guarani), afirma que a importância de ações como essa dentro da aldeia para com a população da cidade está não só na valorização de suas raízes, mas também no momento em que as pessoas entendem de fato a luta que precisam combater todos os dias. Ele aponta que essa luta dialoga também com a realidade dentro das periferias.

“Imagina a periferia aproveitando seus espaços para trazer saneamento ecológico, básico, barato. Se você tem agrofloresta na periferia, se você tem pessoas que começam a dividir os trabalhos, começam a entender que podem investir em projetos, trazer placas solares e parar de pagar energia. Você sai da mão dos Bandeirantes”, afirma.

Ao longo do dia muitas pessoas puderam conferir de perto o trabalho e saberes produzidos pela Tekoa Yvy Porã, localizada na Vila Jaraguá. 

Moradores da zona sul e leste de São Paulo investem na produção de pipas para gerar renda

0
amilinha Folhas Top acumula seguidores e admiradores de pipas em corte e recorte. Foto: Patricia Santos,
Camilinha Folhas Top acumula seguidores e admiradores de pipas em corte e recorte. Foto: Patricia Santos,

Em muitas quebradas a pipa está longe de ser algo que ficou no passado. A atividade tem capacidade de reunir de crianças a adultos que curtem a brincadeira. Para muitos, o compromisso com a pipa é coisa séria: vai da organização de equipes de pipeiros a venda do item.

Everton Souza, 35, morador do Parque Cruzeiro do Sul, em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, é apaixonado por pipas desde criança. Em 2021, se juntou com cinco amigos do bairro e fundaram a Equipe Vem Pro Relo, que atualmente tem 27 integrantes e juntos saem com pipas da zona leste da cidade para todo canto onde possam participar de eventos.

“Fomos para Guarulhos em mais de 20 pessoas da equipe, com mais de 100 pipas, churrasqueira, tenda, carretilhas. Tinha um caminhão pra levar todas essas coisas. Pipa é o meu remédio antidepressivo, fiz muitas amizades que se não fosse a arte do pipa, jamais teria feito”, compartilha Everton.

A Equipe Vem Pro Relo durante evento em Guarulhos, que contou com equipes de todo o Estado de São Paulo. Foto: redes sociais.
A Equipe Vem Pro Relo durante evento em Guarulhos, que contou com equipes de todo o Estado de São Paulo. Foto: redes sociais.

José Gilvan, 38, conhecido como Tuca, é morador da Cidade Ipava, zona sul de São Paulo, e responsável por produzir as variadas pipas que a equipe Pipeiros do Ipava solta. Nordestino, Tuca conheceu a pipa quando chegou em São Paulo, aos 7 anos, e desde então, junto com os primos, passou a produzir pipas.

“A primeira pipa que fiz na vida fiquei quase dois meses soltando ela, colocava no alto e tirava com medo de perder. Eu não tinha condições para quase nada, minha mãe era sozinha pra cuidar de seis filhos. Agora já são quase 30 anos fazendo só pipa e a minha mãe acha maravilhoso”, conta Tuca que criou a Explosivo Pipas. 

Durante os festivais da Equipe Pipeiros do Ipava Tuca leva mais de 20 pipas e mostra um pouco do seu trabalho nos céus da zona sul. Foto: Flávia Santos.
Durante os festivais da Equipe Pipeiros do Ipava Tuca leva mais de 20 pipas e mostra um pouco do seu trabalho nos céus da zona sul. Foto: Flávia Santos.

Tuca intercala as produções de pipas e a jornada de trabalho na cozinha de um hospital. Para ele, as pipas são uma renda extra aliada a sua diversão.

O preço das pipas produzidas pelo Tuca variam de 7 a 20 reais, com tamanhos entre 50cm a 1m. A marca criada por ele, Explosivo Pipas, faz sucesso entre os pipeiros que gostam da arte de corte e colagem. 

“Eu invento os desenhos na hora. Por conta do trabalho, por dia eu consigo fazer entre 10 e 15 pipas. As de um metro consigo fazer cerca de 8 no dia, mas a maior que já fiz tinha 1,70m e foi para um festival. A minha pipa chegou em lugares que eu mesmo nunca fui”

conta Tuca.

No bairro do Jardim Letícia, distrito do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, os pipeiros têm um ponto de encontro certo: todo domingo, exceto em dias de chuva, a Praça dos Sonhos está sempre cheia de moradores soltando pipas desde as primeiras horas do dia.

Sérgio Xavier é morador do bairro Jardim Letícia, e produz pipas há 14 anos. Ele é proprietário da loja Black Pipas, que fica em frente a praça. O negócio começou após saber que um conhecido estava vendendo todos os materiais que tinha e então resolveu comprar. Atualmente trabalha com quatro funcionários que produzem em casa as pipas vendidas na loja.

“Eu não tenho tanto ganho com a venda das pipas em si, cada uma sai a partir de 1 real, a mais cara custa 8 reais. O lucro vem das linhas e acessórios, [e] é o que paga as contas, paga os funcionários e me ajuda a levar comida para casa”

Sérgio Xavier, proprietário da Black Pipas,
Empreendedor há 14 anos, Black, como é conhecido por conta da loja, tem nas pipas a principal fonte de renda. Foto: Patricia Santos.
Empreendedor há 14 anos, Black, como é conhecido por conta da loja, tem nas pipas a principal fonte de renda. Foto: Patricia Santos.

“Aqui em dia de evento o que a gente mais vê são homens mais velhos, pais de família, até avô. A pipa salvou a vida desses caras, é o resgate da infância e viver aquilo que não pudemos ter naquela época”, afirma Sérgio sobre a movimentação dos moradores que soltam pipa na região.

Mulheres na produção 

Camila Borges, 36, é moradora do Parque Maria Luiza, distrito de Aricanduva, zona leste de São Paulo, e conta que o corte e colagem de pipas se tornou sua principal fonte de renda após surgir como válvula de escape durante a pandemia de covid-19.

Dividida entre as demandas da maternidade, casamento e trabalho, Camila produz as pipas da sala de casa e também ajuda outras mulheres que soltam e produzem pipas através dos tutoriais que compartilha nas redes sociais. Atualmente Camila conta com a ajuda de toda família para as produções e suas vendas acontecem de forma online pelas redes sociais, principalmente pelo instagram.

“Folhas mais simples consigo produzir umas 30 por dia, mas se forem essas absurdas que faço, ai é no máximo 10. Os preços variam de 7 a 30 reais, depende do trabalho que cada produção me dá”, conta Camila.

Além da produção das pipas, Camilinha, como é conhecida nas redes, entende que seu papel está além da venda de suas folhas de pipa, pois ao compartilhar seu trabalho atinge outras mulheres que se inspiram na sua produção dentro de um cenário composto majoritariamente por homens

“Quando entrei não via ninguém fazendo e logo depois surgiram algumas mulheres que faziam para ajudar os maridos. Depois elas começaram a ter como fonte de renda [e] terapia. Me pediam ajuda no chat e até começaram a ir nos eventos com eles e conheci algumas pessoalmente”

compartilha Camila Borges, moradora da zona leste.
Camilinha produz suas pipas em casa e tem nelas a sua principal fonte de renda. Foto: Patricia Santos.
Camilinha produz suas pipas em casa e tem nelas a sua principal fonte de renda. Foto: Patricia Santos.

No Instagram o perfil de Camila acumula mais de 30 mil seguidores e no Youtube são 10 mil inscritos. Para ela, ter o reconhecimento do seu trabalho em uma cultura que é majoritariamente masculina é muito importante.

“Eu conquistei esse espaço, mas ainda sim tiveram muitas situações chatas de machismo onde diziam ‘lugar de mulher é no tanque’ e ainda sim eu consegui me impor. É impagável ver a credibilidade e o respeito que conquistei”, conta.