Você provavelmente já ouviu falar sobre arcabouço fiscal na TV. Apesar do nome complicado, o tema afeta diretamente a vida de quem depende dos serviços públicos, como saúde, educação, assistência social e programas sociais como o Bolsa Família, o Abono Salarial e o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Confira o resultado dessa conversa no sexto episódio da quarta temporada do Desenrola Aí
Para entender esse assunto, o último entrevistado da 4a temporada do Desenrola Aí é Júlio César Djeli, economista e pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos da Violência da USP, que explicou o impacto da medida fiscal na vida da população periférica.
O arcabouço fiscal é um conjunto de regras que define quanto o governo pode gastar e como ele deve controlar as suas despesas. “É um tipo de guia que organiza as entradas (impostos, taxas e arrecadações) e as saídas (gastos públicos) do orçamento federal”, explica.
Para organizar as contas públicas, o governo pode escolher reduzir os investimentos em Seguridade Social que tem como base a saúde, à previdência e assistência social ou passar essa conta para o setor privado.
Quando o governo decide cortar gastos de benefícios como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e o BPC, por exemplo, quem mais sofre é quem depende desses serviços. “Se corta na saúde, na educação e na assistência social, quem sente é a periferia. Porque no Morumbi tem hospital particular, escola particular. Mas e a gente, que depende do SUS e da escola pública?”, questiona o economista.
Foto: João Vitor Santos
Se o governo restringe os gastos reduzir também o número de pessoas que têm direito aos benefícios ou aos valores pagos por eles. Mesmo que o arcabouço não comprometa o valor dos alimentos no mercado, ele compromete o quanto de dinheiro se tem no bolso para fazer as compras.
Para Djele, essa lógica amplia a desigualdade e expõe como os governos estabelecem suas prioridades.
É possível governar sem arcabouço?
Segundo o economista, sim. “Antes do governo Temer, não existia teto de gastos nem arcabouço fiscal, e o Brasil funcionava. O que existe é um modelo de país: você pode escolher um modelo que prioriza o social ou um modelo que prioriza o privado”, afirma.
Tudo depende da escolha política: gastar mais com saúde, educação, assistência social e gerar bem-estar para a população, ou gastar menos e beneficiar quem já é rico.
A orientação é que ao ouvir sobre arcabouço fiscal na TV, a atenção deve ser focada não só no tamanho dos cortes de dinheiro, mas onde estes cortes estão sendo feitos. “Falam em cortar milhões da saúde, mas o que exatamente está sendo cortado? É um programa? É uma assistência? Isso vai te afetar? Ficar atento a esses detalhes faz toda a diferença, principalmente para quem depende dos serviços públicos no dia a dia”, alertou.
Desenrola Aí
O programa Desenrola Aí é uma iniciativa quinzenal que promove diálogos com especialistas da quebrada, abordando temas relevantes que impactam o cotidiano da população negra e periférica, além dos direitos humanos, que são fundamentais para a convivência em sociedade. O programa é uma realização do Desenrola e Não Me Enrola, Fluxo Imagens e Portal Kintê Notícias, com apoio da Lei de Fomento à Cultura da Periferia, da cidade de São Paulo.
“No meio do caos, o afeto tem sido o meu acalento”, é assim que Thays Gonçalves Menezes, 26, tem percebido o lugar do afeto na sua vida. Moradora de Guaianases, município de São Paulo, para ela, o amor está no cuidado cotidiano, nos vínculos com amigos, família e caminha junto com a liberdade.
“Afeto é uma delícia e eu adoro ser afetado por ele. Mas afeto e amor precisam de liberdade. Se vira prisão, deixa de ser afeto, de ser amor. Acho que carinho, amor e cuidado precisam andar junto com liberdade. A liberdade de ser quem eu quiser. E quem quiser estar comigo e me dar carinho, esteja ao meu lado. Quem não quiser, pode ir”, compartilha.
Thays relaciona esse entendimento de como vivencia o amor à sua infância e as dinâmicas sociais em que cresceu. “Meus pais não me colocaram em caixinhas. Mas dentro do nosso contexto social, eu vivia numa prisão. Quando saí de casa, aos 18 anos, comecei a explorar a jovem mulher que há em mim.”
“Mesmo crescendo num ambiente de extrema violência e desigualdade, pois viemos de comunidades muito pobres, entendi que a violência pessoal era reflexo de uma violência social. Às vezes me pergunto como consegui ter tanto amor para dar, mesmo tendo crescido nesse cenário. Acho que isso veio da minha mãe: esse olhar mais amoroso para a vida”. Thays Gonçalves, 26, moradora de Guaianases.
A moradora da Zona Leste relaciona o afeto também na perspectiva do senso de comunidade. “Na região onde eu morava, eu criava projetos artísticos com apenas 13 anos. Queria fazer algum trabalho social. Já questionava, por exemplo, por que não havia uma quadra para a molecada jogar.”
Viajar, ler, ouvir música, ficar em silêncio sem fazer nada, são algumas formas que Thays encontra de cultivar o autoamor. “Escrevo para compreender minhas emoções, o que vivo, o que quero para o futuro. Quando estou com quem amo, gosto de um café da tarde. Essa é a forma de afeto mais gostosa. Comer um bolinho, tomar um café e conversar. Adoro fazer isso com minha mãe, dona Ivone”, conta.
Thays Gonçalves Menezes, 26, encontra nas viagens uma forma também de viver sua liberdade. Foto: Arquivo pessoal.
Ao mencionar sobre a construção do sentimento com outras pessoas, ela conta que já se casou duas vezes e que ao longo de suas relações passou a se questionar sobre os padrões afetivos impostos às mulheres, especialmente nas periferias.
“Quando estamos bem com a gente, temos autoestima e energia para retribuir o afeto e o amor de forma mais natural. Não com uma busca desesperada por receber de volta” – Thays Gonçalves, 26, moradora de Guaianases.
“Mesmo sendo muito gostoso dar e receber afeto em várias relações, eu diria: se ame mais e seja mais afetuosa com você. Porque, quando a gente se encontra e se cuida de verdade, não sai buscando migalhas para suprir o que falta. Fiz isso por muito tempo. Ainda estou nessa caminhada, tentando focar mais em mim, tenho muito que aprender, mas diria isso [de] ser afetuosa com você mesma. Cuide de você, da sua mente, estude, cuide do corpo, de tudo”, compartilha.
Amor enquanto ação
“Me lembro, na infância, que eu amava quando minhas irmãs deitavam no meu colo [para] ficar horas mexendo nos cabelos grandes e crespo delas. Isso é uma referência que eu sempre tenho de afeto”, relembra Onika Soares, 35, ao contar que cresceu em uma família que demonstrava amor através de ações, o que influenciou na sua forma de expressar o sentimento.
Moradora do bairro República, Onika cresceu junto de cinco irmãos e conta como percebia essa construção no seu cotidiano. “Lá em casa a minha mãe nunca foi muito afetiva, de fazer carinho, de falar muitas coisas. Mas ela sempre foi muito afetiva em ações. Então, fazia uma comida que a gente gostava. Sempre fazia alguma coisa pra agradar a gente, no sentido de ato de serviço mesmo”, compartilha.
Onika relaciona essa demonstração, a partir do seu contexto familiar, ao território e as dificuldades de famílias periféricas em manter uma presença emocional diante de inúmeras demandas cotidianas e exigências do trabalho, por exemplo, que muitas vezes impossibilita a presença física.
“Eu acredito que afeto pode ser uma palavra, pode ser uma ação, pode ser a forma como alguém te trata. Acho que existem várias coisas que podem representar o afeto, porém que vão em direção a você se sentir querido e valorizado. Além disso, admiração. [Pois] faz com que uma pessoa queira fazer coisas que façam você se sentir bem”, diz.
A dançarina destaca que foi a sua transição de gênero, iniciada aos 25 anos, um dos seus maiores atos de amor próprio. “Eu acho que, como qualquer pessoa negra ou criança negra que vivenciou o Brasil de antes, eu tinha minhas questões com o cabelo, houve momentos onde eu questionei o amor, minha estética… desde a adolescência, ali pelos 16 anos, eu já pensava em transicionar, só que sempre deixei isso em segundo plano, por conta da minha família. Minha família é extremamente conservadora. Fui deixando a minha vontade de lado durante quase 10 anos, até finalmente, começar a minha transição.”
“E quando eu comecei, vi que tudo estava fazendo sentido mesmo, sabe? Que, realmente, era aquilo que eu precisava colocar no mundo… Acho que esse foi o maior ato de amor que eu tive por mim. […] pessoas trans, geralmente, não vão ser desejadas, família nenhuma pensa que quer ter um filho ou filha trans. Então, no fim das contas, a nossa família não colocou a gente no mundo, né? Ela colocou outra pessoa, e esperam uma outra coisa. É uma expectativa. Uma idealização”, continua.
Assim como Thays, para Onika, amor e posse são coisas que não podem andar juntas. “Acho que o afeto, ele pode ser uma coisa profunda, mas pode ser também uma coisa mais superficial. Porque às vezes a gente tem afeto pelos nossos colegas de trabalho, por uma pessoa que não é tão próxima. No geral, ele vai nessa direção de fazer, de ser alguma ação que demonstre um apreço, um carinho, um cuidado.”
“A não-monogamia me ensinou muito sobre afeto e liberdade. Me mostrou que amar mais de uma pessoa não diminui o amor por ninguém. Que estar com alguém por escolha e não por obrigação ou exclusividade é muito mais potente. Mesmo sentindo ciúmes às vezes, e mesmo que a não-monogamia não tenha me [isentado] de algumas questões, ainda acho que ela me contempla.” Onika Soares, 35, poledancer, professora de dança e articuladora no Coletivo Travas da Sul.
Sobre os amores que a sustenta, menciona a arte como uma de suas bases. “Como artista e pessoa curiosa, estou sempre buscando conhecimento e me politizando. Esse olhar investigativo se estende para o campo afetivo também, fazendo a gente questionar o que sente e se reconstruir. Acredito que a arte ajuda a desconstruir o romantismo tóxico e a idealização nas relações, porque ela está sempre questionando normas e padrões, e isso leva a gente a se repensar internamente também”, afirma.
Amor como partilha
“Nós nos conhecemos olhando um para o outro, dando um sorriso, dizendo que a coisa estava bem boa e que podia ficar bem melhor. Eu morava em Exu, no Pernambuco, e ele também, mas Francisco veio do Ceará”, conta Expedita Maria de Morais, 89, enquanto ajeita Francisco Germano de Morais, 85, no sofá da sala. Moradores do Jd Arco-Íris, município de Diadema, São Paulo, o casal divide a vida há quase sete décadas.
Ela conta que três dias após se conhecerem, começaram a namorar. “Foi rápido, mas esse nosso amor vem de longe. Bem longe”, compartilha Expedita, que gosta de conversar, diferente de Francisco que é mais calado e inquieto, por conta do avanço do Alzheimer.
Com a trilha sonora de Luiz Gonzaga, artista que embalou a juventude do casal, tocando baixinho na rádio em Pernambuco, Dona Expedita compartilha que tudo começou com um sonho quase inexplicável. “Antes da gente se ver pela primeira vez, eu já tinha visto ele num sonho meu. Cheguei a ver ele todinho. No sonho vi que estava sentado, depois escrevendo e o resto já não me lembro mais”, relembra.
A aposentada conta que durante esse sonho, Francisco lhe entregou um bilhete e depois desapareceu. “Eu cheguei a sonhar ainda mais três vezes. Depois dessa terceira vez eu encontrei com ele e lembrei: é o rapaz do sonho. Dali pensei na gente ficar junto a vida inteira. Eu conheci a família dele no mesmo dia”. Pouco mais de um ano depois, o casal se casou, ainda em Pernambuco.
“Quando se ama assim, de verdade, o amor não termina, ele é o mesmo, mas a gente tem que ter paciência” – Dona Expedita Maria de Morais, 89, dona de casa, aposentada e moradora do Jd Arco-Íris, município de Diadema, São Paulo.
Respeito, admiração, presença, dedicação, cuidado e paciência são algumas características que Expedita cita na construção do amor quando pensado na perspectiva da relação com o outro. “Agora ele está nesse estado, doente, mas eu gosto dele, eu ainda o amo. Eu e ele vamos continuar até o fim da vida. Não sei quem vai primeiro, se é eu ou se é ele, mas enquanto eu não partir, enquanto Deus não me levar, nós estamos juntos”, conta.
Dona Expedita, assim como muitas mulheres que são a base do seu núcleo familiar, se preocupa com as dificuldades de todos ao seu redor e entende que existem diferentes formas, ritmos e configurações de afetos. Ela ressalta que toda ternura aparente de um casamento, por si só, não isenta das dores reais que existem. Isso inclui lidar com a rotina, com o envelhecer e as mudanças que o tempo provoca.
“Amo Francisco, mas [confesso] que quando ele começou [a piorar do Alzheimer], eu senti medo sim. Até hoje sinto. Ainda hoje sinto que é pesado pra gente estar aqui vivendo essa vida assim [com ele dependendo de mim e de outras pessoas]. A gente ainda está junto, mas não podemos estar só nós dois juntos como era no tempo que começamos [a nossa história]”, reflete Expedita sobre a influência do tempo e do Alzheimer nas construções de afeto enquanto casal.
Com 65 anos de relação, ela compartilha sobre as mudanças ao longo dos anos. “Aquele tempo da gente novo, nem se compara como é agora com a idade que temos, mas ainda assim a gente tem aquele prazer de estar os dois velhinhos juntos. De todo jeito, eu queria que ele pudesse andar, ficar bem para os dois juntinhos andar, dar um beijos, sair pra passear, nem que fosse aqui pela rua mesmo, só nós dois, porque era tão bom”, conta com tom de saudade.
Foi a partir de uma amizade em comum que se deu o encontro entre Gisele Vicente, 30, e Andressa Andrade, 30. Moradoras do Jardim Santo Antônio, no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, que entendem o amor como uma escolha diária, mesmo diante dos desafios.
Entre um dia e outro, é no cuidado e no esforço de manter o vínculo que se reencontram. “Eu tenho feito esse trabalho de me auto analisar para não deixar o estresse cotidiano afetar a pessoa que eu estou. Porque, no fundo, ela não tem culpa. Ela é o meu lar. É a pessoa que eu tenho que trazer o afeto, ou buscar conforto. E não descarregar o estresse”, conta Andressa.
“A vida é de altos e baixos. Todo dia temos o hábito de falar como cada uma está se sentindo, dividir. Sou aquela pessoa mais de acolher, escuto, às vezes a gente só abre um vinho. Dessa forma, não deixamos com que o que pesa na relação faça a gente desistir. A rotina é puxada, [mas pra ela ser boa], ela precisa ser suave”, diz Gisele Vicente, 30, gerente operacional, moradora do Jd Santo Antônio, Capão Redondo, zona sul de São Paulo.
Juntas há um ano, a rotina e demandas do dia são questões que atravessam a construção desse laço, diz Andressa.“Duas horas e meia num transporte público lotado, as pessoas já estão tendo seu dia exaustivo e todo mundo vira meio egoísta nesse transporte. Você já chega em casa cansado, mal-humorado. Mas tenho feito um esforço de me observar mais, para não deixar o estresse do dia a dia afetar quem eu sou. Porque, no fim das contas, a pessoa que está comigo não tem culpa disso.”
Apesar das dificuldades, Andressa reforça que seguem escolhendo estar juntas e que para ela, o amor não é tudo. “Tem gente que se ama e não consegue ficar junto. Mesmo assim, o amor é um ponto de partida. Às vezes, duas pessoas estão juntas mesmo que tudo ao redor diga que não vai dar certo. Mas se ainda existe amor, existe uma chance”, reflete.
“Com certeza eu acho que falar [sobre afeto nas periferias] é revolucionário. Pensando como a Gisele de 15 anos, eu queria ter visto mais casais aqui [na periferia], queria ter partilhado essa vivência com pessoas próximas da nossa região, para as ter também como inspiração, referência”, coloca Gisele, que ressalta sobre a importância de falar sobre afeto na perspectiva de pessoas LGBTQIAPN+.
“No geral, quando existiam duas mulheres demonstrando afeto nas ruas, era um grande problema. É disso que estou falando, quando digo que não via [outras pessoas LGBT+]. Hoje a gente poder estar aqui e falar sobre isso é muito bom”, destaca.
Chegaram as festas juninas e julinas! É tempo de muita comida típica, brincadeiras e celebração. Em muitas escolas infantis, a programação inclui apresentações com as crianças caracterizadas de “caipirinhas” para a tradicional dança. Meninas com penteados de trancinhas e vestidos coloridos, meninos de calça, camisa e chapéu estilo cowboy.
Do jeitinho que a tradição pede: trancinhas no cabelo, chapeú e pintinha. Fotos – Juh na Várzea
Na quebrada, muitas ruas já começam a ganhar as famosas bandeirinhas penduradas como decoração. A galera sempre aposta naquela camisa xadrez, faz as famosas sardinhas no rosto… A Festa Junina é linda, cheia de tradição. Vem lá do interior, das comunidades rurais, da fé popular e da alegria da colheita.
Especialmente no Nordeste, ela se tornou uma celebração ligada à colheita do milho e à resistência da cultura popular. A figura do “caipira” representa o homem do interior, e por isso os trajes típicos fazem referência direta à zona rural.
Clima de festa na quebrada! Bandeirinhas no alto, cheiro de milho no ar e aquele som de forró misturado com funk. Fotos – Juh na Várzea
Então, vale a reflexão: quando a gente se veste de “caipira”, estamos celebrando uma cultura ou zombando dela?
A resposta pode estar na intenção, mas também no cuidado. É importante entender de onde vem essa tradição, valorizar quem vive essa realidade o ano inteiro, e não só no mês de junho, e, acima de tudo, respeitar.
Lembrando também o quanto essas festas movimentam empregos e geram renda para empreendedores autônomos. Na quebrada, sempre rolam as barraquinhas de venda, as danças e, claro, a fogueira. A galera vai no estilo: mistura xadrez com Nike, quadrilha com passinho… Muita tradição com identidade!
O que não falta é alegria e diversão, aquecendo os corações no frio de junho, com muito som, risada e aquele cheirinho bom de milho assado no ar.
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A partir da atuação da Biblioteca Becei e do Quilombo Seu Gustavo, o episódio aborda como a música, o teatro, a dança, a literatura e outras linguagens artísticas colaboram nos processos de aprendizagem e podem ser utilizados como prática pedagógica.
Um trajeto de balsa, que percorre a Represa Billings, é o principal meio de conexão para chegar até a Ilha do Bororé, no Grajaú, zona sul da capital. É nessa região, que possui uma área de proteção ambiental e que abriga diversas iniciativas que têm o território e o meio ambiente como eixo de atuação, que são realizadas as atividades da Casa Ecoativa, como o “Quintal Produtivo”.
No Quintal Produtivo, oficinas, jogos cooperativos e práticas sustentáveis, são pensadas para envolver os visitantes e ensinar sobre o cuidado com a natureza. Cultivo de hortas, composteiras, observação de gongolos – espécie de invertebrado que contribui na decomposição de matéria orgânica no solo, produção de tintas naturais, brincadeiras e dinâmicas de vínculo são algumas das práticas do projeto, que acontece e é promovido pela Casa Ecoativa, um Centro Eco-Cultural, fundado há mais de duas décadas, gerida e cuidada pelos próprios moradores, em articulação com a Associação de Moradores da Ilha do Bororé (AMIB).
“Elas chegam, percebem que o som é diferente, que a qualidade do ar é outra, olham o ambiente e já se ambientalizam com o espaço. Em geral, iniciamos a nossa proposta através de jogos cooperativos para fazer aquele ‘quebra-gelo’. Hoje, por exemplo, as crianças da turma que veio aqui, optou por iniciar pelas oficinas naturais. Elas mesmas colheram a tinta, prepararam, pilaram, peneiraram, tiveram todo esse contato e fizeram suas artes”, conta Eluane Soares, moradora do Jardim Lucélia, no Grajaú, e eco-educadora na Casa Ecoativa, sobre um dia de atividade com crianças no Quintal Produtivo.
Eluane afirma que o contato com a natureza, ativa os cinco sentidos: visão, audição, olfato, paladar e tato. Também conta que um dos objetivos da iniciativa é despertar o senso crítico das crianças e o afeto pela comunidade, não apenas no Bororé. “Costumo dizer que não tem como amar algo que a gente não conhece. Como vou amar a natureza se não tenho contato com ela? Nego Bispo já dizia que não é cuidar da terra, é se relacionar com ela”, diz.
Segundo a educadora, o corpo é fundamental no processo de aprendizagem e faz parte das metodologias sensíveis que utilizam, construídas a partir do território.“A gente trabalha muito com a memória, com o sentir e com o fazer. Então o corpo também está sendo estimulado: a pisada no chão, o cheiro, o som, o tato, tudo isso traz uma conexão com a terra que é difícil ter na cidade”.
“Um dos momentos que me marcaram muito foi quando um menino de 11 anos, disse na roda de encerramento que gosta de jogar no celular, mas estar aqui com a gente lhe trouxe uma paz que ele não sentia há muito tempo. O nosso trabalho também envolve a desrobotização. Quando você está no aqui e no agora, brincando, participando, entendendo a forma da horta, que cada alface tem uma forma diferente, cheiro, etc, tudo isso gera conexão. Além disso, trabalhamos muito as relações humanas.” Eluane Soares, moradora do Jardim Lucélia, no Grajaú e eco-educadora na Casa Ecoativa.
Reconhecer o valor pedagógico da natureza, é uma das abordagens do grupo, como conta Eluane. “Quando a gente mostra e ensina a importância de uma borboleta passando, do som dos passarinhos cantando, da possibilidade de subir numa árvore centenária, o ser humano acaba, naturalmente, desenvolvendo esse amor, esse afeto. Então ele vai cuidar, zelar por esse espaço e pensar dez vezes antes de jogar lixo em lugares indevidos. Vai entender que aquilo não é lixo, mas resíduo, e vai se sentir pertencente.”
Esse cuidado com a terra também se materializa na horta comunitária mantida no espaço. O responsável pela área, Adão de Souza, diz que tudo é feito com muita criatividade e reaproveitamento. “Quando cheguei aqui, os canteiros eram normais, feitos direto no chão. Aí a gente teve a ideia de reaproveitar umas telhas descartadas para montar os canteiros. Ficou mais prático para plantar e renovar a terra”, explica.
Adão, que é morador da Ilha do Bororé e responsável pela horta da Casa Ecoativa, compartilha que o trabalho na horta desperta a memória afetiva de muitas pessoas, com aromas e sabores que remetem, inclusive, às lembranças da infância. “Já aconteceu de vir criança que nunca tinha visto um pé de quiabo. Elas só conheciam o quiabo da feira. Então esse contato direto é muito importante. Tem adulto que se emociona também, lembra da infância. Professores vêm aqui e dizem que isso traz lembranças boas do passado.”
“Tem quem nunca plantou nada. Quando vê o alface crescendo, quando entende que foi ela que colocou a semente, aquilo muda alguma coisa [em sua consciência].” Adão de Souza, morador da Ilha do Bororé e responsável pela horta da Casa Ecoativa.
As visitas também despertam reflexões nos educadores que acompanham os grupos e depois aplicam os aprendizados em sala de aula, como é o caso da Stefany Figueiredo, professora do CCA ABC Aurora, que fica na zona leste de São Paulo, e estava junto dos alunos durante uma visita realizada em maio no espaço.
“Onde estamos não temos muito contato com esse tipo de ambiente. Queríamos proporcionar essa experiência a eles [crianças] e também ensinar o trajeto, já que todos eles vieram de longe e é importante a criança andar de transporte público, algo precisam aprender para o futuro”, coloca Stefany.
A professora conta que vivências como as do Quintal Produtivo contribuem na socialização, no aprendizado sobre trabalho em grupo e a compartilhar. “Pretendo fazer com eles uma exposição de artes no CCA, usando também os conteúdos que aprendemos aqui. Eles mesmos, inclusive, tiveram a ideia de fazer um mosaico com tintas naturais, que já está na parede do espaço. Pensamos em fazer esse mosaico dentro do nosso espaço com a participação deles, para que tudo tenha a mãozinha das crianças”, diz Stefany.
O contato com a terra é elemento central nas vivências. Foto: Geovanna Santana.Horta comunitária propicia alimentação saudável. Foto: Geovanna Santana.
Felipe Almeida, de 13 anos, já compreende a importância da preservação do meio ambiente. “Na minha casa mesmo não tem quase nada de verde. Não tem plantinha, nem árvore. Então, se eu quiser ver natureza de verdade, tenho que ir pra bem longe. Tipo aqui, longe, mas valeu a pena. Eu nunca tinha vindo aqui antes, nunca tinha visto esses passarinhos assim, tão de perto. É muito legal. Aqui ensina a gente a ter mais respeito pela natureza.”
“Às vezes, a gente não consegue evitar umas coisas, tipo o desmatamento, o fogo que parece que nunca param. Mas eu acho que um dia a natureza pode cansar e aí a terra vai dar o troco na gente. Se as pessoas fossem mais conscientes, talvez fizessem outras coisas, além de só destruir, matar as plantas, cortar as árvores. Às vezes dá muita tristeza pensar nisso, porque os bichos estão lá, quietinhos na natureza e sofrem com tudo isso. Essa experiência aqui também ensina essas coisas” – Felipe Almeida, 13, aluno do CCA Aurora.
Esther Morais, de 12 anos, entende a visita como um despertar. “Eu vou contar sobre tudo isso para os meus amigos, pra minha família e para outras pessoas também, vou falar para virem aqui. Ninguém que eu conheço tinha vindo antes. E a coisa mais legal que eu aprendi aqui foi o plantio com a composteira.”
“Quando a gente não cuida da natureza, é a gente mesmo que acaba se machucando” – Esther Morais, 10, aluna no CCA Aurora.
A atividade Quintal Produtivo é destinada à escolas, ONGs e coletivos. Não há restrição de idade. Para conhecer outras iniciativas da Casa Ecoativa, os interessados podem consultar o calendário de atividades pelas redes sociais e agendar uma visita ao local por meio de formulário online de inscrição, WhatsApp ou DM do Instagram.
Nos últimos anos, os preços dos alimentos têm subido de forma expressiva, reflexo de uma inflação que ultrapassa o reajuste dos salários. Entre os produtos que mais pesaram no bolso dos brasileiros em 2024 está o café, com um aumento de 37,4%. A alta afeta diretamente quem vive da venda de alimentos nas ruas e também quem consome esse tipo de serviço no dia a dia – especialmente em regiões periféricas.
É o caso de Glória Borges, 45 anos, que vende café, bolos e sucos naturais na saída da estação Santa Cecília, no centro de São Paulo. Moradora dos Campos Elísios, Glória começa sua jornada ainda de madrugada: acorda às 3h para dar conta da produção de dez garrafas de café, dez bolos e cerca de 20 sucos naturais. Às 6h30, já está na calçada onde mantém sua barraca há oito anos.
“Eu pensei em trocar a marca [do café], mas como uso sempre a mesma e meus clientes já estão acostumados com o sabor, quis continuar. Só que está muito mais caro. Uso cerca de 48 pacotes por mês”, conta.
Segundo a economista Dina Prates, o aumento do preço do café está ligado principalmente à crise climática e à alta demanda internacional. O Brasil, um dos maiores exportadores do produto, vê os estoques internos pressionados quando o mercado externo paga mais, o que impacta diretamente no preço das prateleiras. “O café é o queridinho do brasileiro. Ele está presente na maioria dos lares e é um dos 13 alimentos considerados prioritários na cesta básica, segundo o DIEESE”, explica Dina.
Mas, além de apontar os fatores do aumento, a economista reforça que os impactos da alta nos preços precisam ser entendidos a partir da realidade de quem depende diretamente da venda ou do consumo desses produtos.
“Quando falamos de inflação em alimentos como o café, não é só sobre valor. É sobre o que isso representa para quem vive da informalidade, para quem compra um café a caminho do trabalho, e para as mulheres que sustentam famílias com essa renda.” Dina Prates, economista.
Para lidar com os custos, Glória optou por um reajuste moderado. O café, que antes custava R$ 2,00, passou para R$ 2,50. Os bolos subiram de R$ 4,50 para R$ 5,00.
“Eu comecei a dar um aumento em cada coisa para não ficar só no café. Estudei bem e vi que não dava para colocar o café a R$ 4,00, senão eu ia afastar o pessoal. Ali na estação só passa trabalhador”, argumenta. Mesmo com o aumento, Glória conseguiu manter sua clientela fiel.
“Tenho clientes que me acompanham há anos. Eles sentiram o aumento, claro, mas entenderam. Todo mundo está sentindo isso no bolso.” Glória Borges, vende café, bolos e sucos naturais na saída da estação Santa Cecília, no centro de São Paulo.
Além da venda na estação, Glória também entrega seus produtos em obras de construção que ficam perto da sua casa pela manhã. “Antes de chegar na barraca, eu já fiz entrega em duas ou três obras. Café, bolo e pão. É o que me ajuda a manter o básico em casa.”
Dina Prates avalia que políticas públicas poderiam contribuir para garantir melhores condições de trabalho e renda a ambulantes como Glória. “Hoje, esse grupo está à margem de qualquer garantia formal, e o impacto da inflação recai com muito mais força sobre eles. Seria importante que houvesse programas voltados para a inclusão produtiva de trabalhadores informais, especialmente mulheres, que são maioria nesse setor.”
Ela também aponta estratégias que podem ajudar a diminuir parte das perdas, como compras em volume, busca por promoções, parceria com pequenos produtores ou até a venda em combos – como café com bolo por um valor fechado. Mas faz um alerta: “São paliativos, não soluções estruturais”, afirma.
“O problema é maior e envolve desigualdade de acesso, ausência de proteção social e a própria lógica do mercado que empurra o ônus para quem tem menos margem de manobra.” Dina Prates, economista.
Quem também enfrenta esse cenário é Francisca Leal, 56 anos, conhecida como Dona Chiquinha, moradora do Jardim Romano, na zona leste de São Paulo. Há mais de três décadas, ela vende café e outros produtos na região do metrô Belém.
“Eu trabalho ali no metrô há 33 anos, a gente começou vendendo outras coisas, [como] guarda-chuva, rádio. Na pandemia, com os bares fechados, eu comecei a levar uma garrafa de café. Todo mundo queria café e eu não tinha com quem comprar mais garrafas. Levava só uma garrafinha de café com leite, saía daqui do Jardim Romano de madrugada, pedindo a Deus para dar certo”, lembra.
Com o tempo, ampliou o negócio. “Fui comprando uma garrafa hoje, outra amanhã, aí comecei a produzir mais. Quando começou uma obra ali, as coisas melhoraram. Cheguei a ter 35 garrafas entre café, chá e chocolate. Hoje, estou com 27”, diz.
“Tem dia que eu vou de mercado em mercado procurando promoção. Preciso manter meus fregueses.” Dona Chiquinha, moradora do Jardim Romano, zona leste de São Paulo, vende café e outros produtos na região do metrô Belém.
Apesar da alta nos custos, Dona Chiquinha decidiu não aumentar o preço do café. “Todo mundo aumentou, mas eu pensei: vou sobrevivendo, ganhando pouco, mas mantendo meus clientes”, diz.
Ela conta que toda a renda da casa vem dessas vendas e que o trabalho conta com a ajuda do marido, que tem problemas de saúde. “É dali [venda de café] que eu compro os remédios dele, que a gente come, paga as contas, a gente sobrevive.”
A história de Dona Chiquinha e de tantas outras trabalhadoras evidencia a necessidade urgente de políticas públicas voltadas para a proteção de quem atua na informalidade, especialmente em tempos de crise. “Elas não deveriam precisar correr atrás de promoção de madrugada ou segurar os preços para manter clientela. Isso não é sobre força individual, é sobre ausência de suporte coletivo”, aponta Dina.
A economista defende que, além de observar o impacto da inflação sobre quem vende, também é necessário olhar para o consumidor. “Quem compra café na rua também está em situação vulnerável. Para muitos, esse café de R$ 2,00 ou R$ 2,50 era uma pausa acessível no meio do dia, e agora ele pesa. Essa cadeia é de ponta a ponta e revela o quanto estamos desassistidos.”
O café, símbolo nacional e parte do cotidiano de milhões de brasileiros, se tornou um termômetro da desigualdade. Para milhares de ambulantes, é sustento. Para os consumidores, uma necessidade que exige escolhas. E, para o poder público, deveria ser um alerta.
O ano era 2015, saí com meu moleque do fundão da Sul em direção ao metrô Santana. Chegando lá, encontrei meu camarada Guilhermo. Depois de algum tempo sem se ver, decidimos aproveitar o convite do amigo Flávio Galvão, do Coletivo Fabicine, pra pôr o papo em dia. Ele foi nos buscar no metrô com a Kombosa que, mais tarde, se tornaria um cinema itinerante.
Flavião, vulgo Gordo, estava organizando a retomada das sessões cineclubistas na sedinha do Peri Alto, espaço que reformaram conjuntamente com o grupo de Rap Ca.Gê.Be, uma construção bem loka no meio da favela. Tinha estúdio, sala de reunião e lá em cima no terceiro andar o espaço de exibição, uma laje coberta onde aconteceria o primeiro Churraskino.
Uma sessão de curtas regada a churrasco, cerveja, etc. Bem nos nossos moldes. Nesse dia exibi uma versão remasterizada do meu primeiro doc o “Imagens de uma vida simples” de 2006 sobre Solano Trindade e foi muito massa a experiência, voltamos para a zona sul nem sei como, mas já era tarde da noite, meu pivete provavelmente foi quem me levou de volta.
Esse dia foi mágico e a memória daquela inusitada sessão cineclubista ficou na cabeça por muitos anos.
Não que já não tivéssemos feito sessões em lugares bem incomuns, mas a energia daquele dia foi especial. Eu já calejado, uma espécie de andarilho de cinema, já tinha feito coisas bem diferentes como exibição em oficina mecânica, mostra de filmes nordestinos no escadão, festival de cinema em campo de várzea, em sacolão da prefeitura, viela e na clássica laje do Zé Batidão.
Mas o tal Churraskino não saiu da memória, primeiro porque o nome é muito bom, une duas palavras bem diferentes “Churras” abreviação do maloqueirês brasileiro, que significa churrasco e “Kino” que tanto no Alemão como no Russo significam “filme”, ou seja, um churrasco de cinema, uma total dessacralização da sétima arte, ou a certeira inclusão da oitava arte “a gastronômica” no panteão antropofágico do audiovisual.
Do ponto de vista pessoal, o que mais me atraia na ideia era a junção de duas coisas que eu amo, cinema e churrasco, de forma bem informal, mas super respeitosa, na medida certa pra deixar a exibição mais favelada, e também dar aquela glamourizada no churrasco, coisas que só se vê em quebrada.
E foi com essa fórmula na cabeça que 8 anos depois daquele fatídico dia no Peri Alto, do outro lado da cidade, que refundamos o Churraskino, liguei pro Gordo e pedi permissão pra continuar o que eles tinham interrompido precocemente e fomos aperfeiçoando a técnica, já que tínhamos em mãos um espaço ideal que permitia que o churrasco rolasse no fundo, sem atrapalhar o filme.
Em janeiro de 2024 fizemos a primeira sessão em parceria com o Bloco do Beco no espaço da varanda do Ibiralab.
Começou tímido, mas logo foi dando sinais de que seria uma febre. Como todo agito de favela o povo foi dando o tom, naquele modelo de festa americana, cada um traz um kilinho de carne, alguma breja, um refri pras crianças e pau no gato.
Instalou-se a primeira sala de cinema 5D do bairro do Jd. Ibirapuera, todos os sentidos voltados para a diferentosca sessão de filmes com som, cheiro, visão, tato e paladar em uníssona direção.
E as parcerias foram chegando, um vizinho ajudou a adaptar um suporte de projetor para altura do nosso teto baixo, Jonny, amigo nosso, ajudou a melhorar o som, a turma do Ibiralab foi ajudando nas compras, na organização do espaço, passamos a ter um churrasqueiro dedicado, fizemos vakinha e rifa pra fortalecer os comes e bebes, e acima de tudo contamos com o apoio e a dedicação dos cineastas amigos em ceder os filmes e virem para fazer o debate com os presentes.
Tivemos sessão do Festival Internacional de Curtas, tivemos sessão em parceria com a Filmicca e o Coletivo Quitus, com o FIANB (Festival Internacional do Audiovisual Negro), tivemos a presença de Lincoln Péricles, Akins Kintê, Thais Scabio, Sérgio Vaz, Vinícius Silva, Aira Bonfim e até a presença internacional do cineasta queniano Tony Gigz.
O mais engraçado é que normalmente a galera desacredita da seriedade da proposta, um bom exemplo foi quando passamos o filme “Gira Bandeira” do poeta e cineasta parceiro Akins Kintê, ele chegou e o fervo tava pesado, quando entrou tava música rolando churrasco e falatório, daquele modelo, ele me disse logo “Ehh mano será que a galera vai parar pra prestar atenção no filme?” eu de bate pronto acalmei “fica tranquilo irmão que a galera é treinada”.
Sei que ele não botou fé, mas depois se surpreendeu, foi pegar o microfone falar que ia começar e soltar o play o silêncio se instalou, rolou debate, teve fala emocionada e veio até amigo do interior, o também cineasta Rafael Capucho, tudo na disciplina, esgotada a prosa a farra podia voltar, karaokê, folia e diversão, porque pensar e consumir cinema não precisa ser chato, engessado.
E assim se deu, e assim vem funcionando há quase dois anos. A fórmula é simples e tem a marca da experiência cineclubista que a minha geração construiu na pele e na raça, levando caixas de som na cabeça e projetores por árduos caminhos dessa cidade.
Mas também teve e tem a pedagoginga das ruas a ciência que os saraus nos legaram, saber a hora de falar e silenciar, adaptar os lugares, ser maleável como água entre as frestas.
Pois se não temos bibliotecas, que os bares, os pontos de ônibus se tornem nossos altares da literatura, se não temos estúdios de música, que os barracos e os becos gravem as trilhas da próxima estação, se não temos teatros que as praças e calçadas sejam o palco da atuação verdadeira, se não temos cinemas, e se os que existem não cabem no nosso orçamento, não respeitam nossos corpos, que as lajes e quintais sejam a nossa sessão ideal, pois cineclubismo não se faz com manuais, se faz pisando na lama, projetando no lençol, nas traves dos gols, nas escolas públicas, onde o povo estiver, sem tapete vermelho, pisando o mesmo chão dos trabalhadores e trabalhadoras que inspiraram os filmes e que depois são cerceados em suas próprias narrativas.
Nesse sentido fazer a sessão junto a um espaço de formação autônoma de cinema, como é o Ibiralab, é entender que a ampliação de repertório se dá também por essa via e que tanto o que estudamos em aula como o que assistimos nas telas são expansores de consciência num mesmo processo de troca, que não pretende rezar cartilha para letrados, mas sim ampliar novos públicos para além das Reservas Culturais da vida.
Já há algum tempo que me irrita a lábia mentirosa de quem diz que está fazendo formação de público e fala consigo mesmo, não forma ninguém e vende a imagem de que está levando os filmes do cinemão para espaços informais, papo para inglês vê.
O que chamam de informal são salas montadas de universidades, são espaços “alternativos” como Cine Bijou na praça Roosevelt, Matilha Cultural, entre outros. Nada contra os espaços e seus públicos, a questão é que esses lugares não alcançam a quebrada e aqueles populares que não estão na hype destes circuitos centrais.
O maior problema é não ampliar público de fato e vender a ideia de que o está fazendo. Como sempre, setores mais abastados do mercado audiovisual percebem nossa tecnologia, a formatam, rotulam com seus termos e vendem de volta para a gente.
Nesse caso há uma lógica muito perversa que é a de engendrar esses conceitos na política pública e nos financiamentos privados, dando nova roupa pra uma prática muito antiga, desta forma os playboys ganham os recursos que seriam destinados a projetos periféricos, apenas usando o título de “cinema de impacto social”, mas na real na maioria dos casos sem sequer pisar em uma favela.
O verdadeiro impacto social é quando uma senhora que nunca tinha ido a uma sala de cinema vai pela primeira vez num espaço como o cinema na laje, impacto social é quando um cineclube torna-se um evento mensal importante com a presença do público local, fortalecendo o comércio do entorno, as redes de atuação política, quando se faz um festival que desde a programação, a quem faz comida, o material gráfico ou a manutenção estão em sintonia, são do mesmo território, estão igualmente sendo favorecidos, e posso dizer que estas iniciativas, assim como o Churraskino, existem e estão em todas as regiões periféricas da cidade, na zona norte tem o Coletivo Fabicine, na zona leste o Cine Campinho, no centro o Cine Quebrada, na ZO tem o CineAfrobase, enfim opções construídas na luta cotidiana e que impactam muito mais socialmente que a réplica renitente dos cinéfilos cults, falando com o próprio umbigo.
Este texto é um desabafo, mas também um convite para você leitor de quebrada, de todas as regiões, dia 21/06 teremos uma sessão especial com a presença dos parceiros inspiradores deste projeto que é potência na zona sul. Reencontraremos a Fabicine lá da norte para um Churraskino no extremo sul, no meio da rua do Jd. Ibirapuera, quer ver na prática como acontece? Cola que será sucesso, saiba mais em @ibira_lab
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É possível falar de saúde mental sem pautar direitos sociais? Nesse episódio, abordamos de que forma a discussão de saúde mental esbarra em acesso a direitos como lazer, moradia, trabalho e renda, por exemplo. O que significa saúde mental para quem está na quebrada trabalhando 12 horas por dia?
Seja ao desbloquear o celular, passar pela catraca da academia ou acessar o aplicativo do banco, o reconhecimento facial já faz parte do cotidiano de muitas pessoas, ao prometer mais segurança e praticidade.
Contudo, quando implantado de forma enviesada, esse tipo de tecnologia pode se transformar em um risco, especialmente para a população negra. É o que aponta Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).
Em São Paulo, esse risco ganhou uma nova dimensão com o Smart Sampa, programa de videomonitoramento que irá completar um ano em julho de 2025. O sistema opera com cerca de 25 mil câmeras espalhadas pela cidade, sob a justificativa oficial de identificar foragidos da Justiça e proteger cidadãos de crimes.
Segundo a pesquisadora, essa discrepância ocorre porque os algoritmos são treinados, majoritariamente, com imagens de pessoas não negras e de pele clara, perpetuando assim um ciclo de exclusão e erro.
Pablo, que também é diretor do Panóptico, um projeto que monitora novas tecnologias na segurança pública no Brasil, ressalta que o reconhecimento facial já demonstrou, tanto no Brasil como em outros países, uma tendência a confundir pessoas negras com muito mais frequência do que pessoas brancas.
“Essas tecnologias possuem, desde a sua concepção, um elemento embutido que perpetua vieses. São marcadores sociais de diferença que refletem as estruturas dos locais onde foram criadas. E, inevitavelmente, quando aplicadas em cidades como São Paulo, acabam impactando principalmente jovens negros das periferias”, afirma o pesquisador, que ressalta o impacto em outras esferas, como em restrições invisíveis ao direito de ir e vir.
“Jovens negros já se auto impõem restrições de circulação para evitar abordagens policiais. Agora, com o reconhecimento facial, esse processo se amplifica.” Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)
A experiência do Rio de Janeiro é exemplo desse fenômeno. Em 2019, durante um projeto-piloto de reconhecimento facial, pesquisadores do CESeC mapearam a instalação das câmeras e identificaram que boa parte delas foi posicionada em pontos tradicionalmente usados para o controle de ônibus vindos das periferias até bairros considerados nobres na região, como Copacabana. “A instalação das câmeras representava uma espécie de muralha digital, que controlava o fluxo desses jovens”, aponta.
O especialista também alerta para um desdobramento ainda mais grave: a violência policial. “O reconhecimento facial fatalmente se desdobra em abordagens policiais. E sabemos que essas abordagens, muitas vezes, são violentas, resultando em violações de direitos e até mesmo em mortes.”
“Isso reforça a ideia de que o monitoramento não é neutro: ele redesenha os espaços urbanos e intensifica as desigualdades já existentes.” Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)
Ausência de regulação e transparência
Pablo salienta que atualmente não há uma regulação específica para o uso de reconhecimento facial no Brasil. “O que vemos é um uso indiscriminado, que não respeita direitos humanos e tampouco garante a responsabilização das autoridades”, diz.
A Prefeitura de São Paulo afirma que a implantação do Smart Sampa seguiu a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e elaboram relatórios de impacto, porém, a falta de transparência sobre esses documentos gera desconfiança entre especialistas e organizações da sociedade civil.
“Os relatórios são opacos. A prefeitura se nega a fornecer informações detalhadas, o que impede que a sociedade civil possa realmente avaliar se há garantias de direitos humanos nesse processo”, coloca Pablo.
Por entender que os efeitos negativos dessa tecnologia superam seus benefícios, o CESeC defende que não é uma tecnologia que deveria ser utilizada. No entanto, o especialista reconhece que, diante das resistências ao debate sobre o banimento, seria necessário ao menos estabelecer uma regulação rigorosa.
“Hoje, não temos nenhum tipo de regulamentação nem municipal, nem estadual, muito menos federal. O tema precisa ser tratado com a seriedade que merece”, ressalta.
Outro ponto crucial, segundo ele, é a inclusão efetiva das vozes periféricas na discussão sobre o uso dessas tecnologias. “Já tivemos algumas experiências de abertura de debates e escutas, mas é preciso que isso seja feito de maneira séria, não como um ritual simbólico.”
Ele propõe a realização de audiências públicas e a participação ativa de organizações da sociedade civil que já vêm debatendo o tema como formas de democratizar a discussão.
Pablo também questiona a prioridade dada ao investimento em tecnologias de vigilância. “Milhões de reais são gastos com reconhecimento facial, enquanto questões urgentes como as políticas de resiliência urbana e o enfrentamento das catástrofes climáticas são negligenciadas.”
Para ele, o risco maior é que o Smart Sampa e sistemas semelhantes se consolidem como ferramentas de controle social e criminalização de populações vulneráveis, sob a justificativa de segurança pública, sem o devido debate sobre seus reais impactos.
Meu pai conta que, quando era criança — lá pelos anos 1970, ouviu minha avó conversando com suas amigas sobre um tal de Chico. Ela dizia que odiava quando o Chico vinha e que ele estava para chegar.
Curioso, como qualquer criança saudável, meu pai perguntou à minha avó:
— Mãe, quem é esse tal de Chico que a senhora está esperando chegar?
Meu pai disse que mal terminou a frase e foi surpreendido por um tapa no rosto, dado por minha avó. Depois daquele dia, ele entendeu que esse tal de Chico era parte de uma conversa que dizia respeito somente às mulheres, e que ele não tinha nada a ver com isso.
O tempo passou e calhou de meu pai crescer, se casar com minha mãe e ter três filhas que, aos 12 anos, menstruaram. Como era minha mãe quem trabalhava fora e ele quem ficava conosco em casa, uma de suas atribuições como responsável era comprar absorventes para nós.
Mensalmente, era necessário comprar, pelo menos, quatro pacotes de absorventes e, quando a grana apertava, minha mãe usava paninhos, para que nós pudéssemos usar os absorventes comprados.
Eu me chamo Elânia Francisca, tenho 40 anos, e essa história que contei faz parte de uma narrativa maior sobre a pobreza menstrual no Brasil e no mundo inteiro.
Eu sei que você, pessoa leitora, deve conhecer alguma história de gente que deixou de ir à escola por não ter absorvente, ou que enfrentou dificuldades para usar o banheiro escolar durante o período menstrual, porque não havia papel higiênico e, em alguns casos, nem água para se limpar no momento das trocas de absorvente. Eu não vou nem comentar sobre o sabonete ou o lenço umedecido, que são importantes nesse período.
São cinco dias do mês em que muitas meninas brasileiras ficam desconfortáveis diante da ausência de insumos para cuidar, com dignidade, de seu período menstrual.
Desde a criação do Programa Dignidade Menstrual, há a distribuição gratuita de absorventes em todo o Brasil, mas isso é apenas uma ação entre tantas outras necessárias para garantir a dignidade menstrual.
Esse processo educativo sobre menstruação nos ajuda a responder questões como: Por que menstruamos? Por que sentimos cólica quando menstruamos? Afinal, o sangue menstrual é sujo? Por que há quem molhe plantas com esse sangue? Coletor menstrual dói? É verdade que absorvente interno “tira a virgindade”? Menstruar dói?
Essas são perguntas que surgem no percurso educativo quando falamos sobre dignidade menstrual.
E isso não é papo de menina, não!
Os meninos também podem (e devem) vivenciar esse processo, para não crescerem acreditando em mitos preconceituosos sobre menstruação e para respeitarem as meninas na escola, em casa e na comunidade. Meu pai, por exemplo, só aprendeu que Chico era um apelido dado à menstruação quando se tornou jovem e se casou com minha mãe, pois, na infância, foi castigado ao tentar saber sobre o tema.
Minha avó ainda acredita que esse assunto é somente para mulheres, porque, durante muitos anos, foi educada para sentir vergonha de menstruar.
Dia 28 de maio é marcado pela luta em defesa da dignidade menstrual, e eu desejo que possamos ampliar as ações de educação menstrual e que haja garantia de direitos para que todas possamos menstruar com dignidade.
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