Para uma grande parcela da população brasileira, a política ainda parece algo distante. Dados do levantamento DataSenado indicam que, em 2012, 63% dos brasileiros demonstravam algum interesse em política, número que caiu para 53% em 2022. De acordo com o estudo, 18% dos entrevistados dizem ter um alto interesse, enquanto 35% afirmam ter um interesse médio. Quando questionados sobre os motivos do desinteresse, apontaram a falta de conhecimento sobre o sistema político relacionado a falhas no ensino que não consegue explicar sobre o tema.
Outro fator citado foi o sentimento de desilusão com a política institucional, além da percepção de que os políticos preferem manter a população afastada e desinformada sobre como funcionam os processos.
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Lara Pascom, especialista em políticas públicas, práticas autônomas e colaborativas, explica que esse cenário não é fruto de um único problema, mas de um conjunto de fatores que agravam esse afastamento, sobretudo da população periférica, dessa participação cidadã.
“Estamos passando por uma espécie de solidão [coletiva], mesmo com tanta conectividade. Com as redes sociais [geramos e escolhemos a informação que queremos acessar] e depois ficamos nós mesmos sobrecarregados dessa mesma informação. [Além disso], a nossa educação política é insuficiente, a gente não aprende na escola sobre política, finanças públicas que são temas que permeiam toda a nossa vida’’, destaca.
Lara detalha que, mesmo nas esferas em que a população poderia interferir, como na discussão das leis orçamentárias, outro obstáculo é a linguagem técnica e a burocracia que distancia ainda mais os cidadãos da possibilidade de fiscalizar e cobrar o poder público. “Quando falamos de PTA, LDO, LOA, ninguém sabe o que é. E os documentos são cifrados, difíceis de entender, o que impede que a população acompanhe o destino do dinheiro público”, exemplifica.
A especialista aponta diferentes tipos e níveis de participação social. ‘‘O primeiro é a ação direta da comunidade, como mutirões e melhorias locais, quando a comunidade se junta para [reformar] uma lixeira. O segundo é o controle social, ou seja, a fiscalização do governo pela população, que acontece quando as pessoas buscam informações em portais de transparência, fazem denúncias ou usam a Lei de Acesso à Informação (LAI)”, diz Lara, que ainda cita sobre incidência política a partir da organização coletiva para pressionar mudanças.
Segundo ela, os conselhos municipais também são espaços fundamentais. ‘‘Os conselhos são temáticos, como os de meio ambiente, saúde, educação, diversidade sexual, e podem ter poder deliberativo ou consultivo. Além disso, eles podem administrar fundos específicos, o que é uma forma importante de participação social e controle’’, explica.
“Temos o direito de saber. A lei garante isso. O primeiro passo é identificar o que te incomoda, o que te causa indignação. Depois disso, buscar entender as causas e usar os mecanismos disponíveis para cobrar respostas do governo. Navegue pelo site da prefeitura da sua cidade, faça perguntas, cobre respostas”. Lara Pascom, especialista em políticas públicas, práticas autônomas e colaborativas.
“O controle social é um exercício importante que fortalece a democracia e qualifica a participação política”, diz Lara ao destacar que o E-OUV (Sistema de Ouvidorias do Poder Executivo Federal) é uma das formas de exercer a participação social e colaborar com a gestão pública. Este é um canal de comunicação, onde a população pode interagir com a prefeitura local para fazer denúncias, elogios, sugestões e/ou reclamações, contribuindo para a melhoria dos serviços da cidade.
Como acompanhar os mandatos da sua cidade? : “Sou uma cidadã que tem o direito de cobrar’’: caminhos para participação social e incidência política a partir das periferiasParticipação social no cotidiano
Mesmo diante de um sistema que considera falho, Wandy Uchôa, 26, estudante de direito, ativista e moradora de Diadema, município da Região Metropolitana de São Paulo, integra a Comissão da Diversidade da OAB Diadema e acredita que a participação social é essencial. Para ela, entender os próprios direitos e o funcionamento dos órgãos públicos é o primeiro passo para dialogar com as decisões que impactam a vida das pessoas, seja no nível municipal, estadual ou federal.
Sua trajetória de engajamento político-social iniciou a partir de uma violência que sofreu em um dos serviços públicos de saúde. “[Passei por] transfobia no Quarteirão da Saúde, pronto-socorro em Diadema. A médica se recusou a me chamar pelo nome social. Quando gravei um vídeo expondo o caso, viralizou”, conta.
Wandy conta que a partir daí entendeu que deveria ser ouvida de alguma maneira. “Na minha cabeça, quando eu transicionei, achei que nunca mais seria ouvida. Eu enterrei meus sonhos. Inclusive, costumava falar que a partir do dia que tomasse meu primeiro comprimido de hormônio, estaria assinando meu atestado de solidão para o resto da vida. Porém, ver que fui ouvida, me deu forças”, conta a estudante, que após essa situação articulou uma reunião com o diretor do hospital.
A estudante acompanha audiências públicas e é representante oficial da sociedade civil na Comissão da Diversidade da OAB Diadema, para ampliar a inclusão, representatividade e o acesso à justiça. Ela também utiliza as redes sociais para mobilizar a população para participar em pautas de interesse do município.
A vivência familiar também é um dos marcos nessa mobilização de Wandy. “Minha mãe sempre foi obcecada por política. Eu [percebi ela] sendo ainda mais ativa quando a nossa casa caiu, porque a gente morava num terreno que ficava em uma área congelada (área isolada ao acesso devido à movimentação de solo ou risco de deslizamento de terra). Nisso veio uma chuva e levou nossa casa. [Ver minha mãe lutando], acabou me inspirando e despertou algo dentro de mim”, compartilha.
Wandy pontua sobre um desinteresse da população em fiscalizar políticos que ocupam cargos há muitos anos, mas associa como sintoma de um problema estrutural que afasta as pessoas dos debates públicos.
“O que me faz ter mais vontade de estar perto é porque eu vejo o quão triste é a situação das pessoas, principalmente na periferia. Temos vereadores em Diadema que já estão no cargo há 20 anos e simplesmente se você sentar com qualquer pessoa da periferia e perguntar: ‘Por que você vota nele?’, não sabe dizer’’, coloca.
‘‘[Culturalmente] temos muitos conteúdos disponíveis que nos estimulam a imaginar o fim do mundo, mas poucos que incentivam a gente a imaginar futuros desejáveis. [A política] vai ficando distante. Isso influencia na motivação das pessoas, parecendo quase impossível mudá-la, mas dá.’’ Lara Pascom, especialista em políticas públicas, práticas autônomas e colaborativas.
Wandy busca pautar demandas relacionadas à saúde, educação, cultura, lazer, moradia, segurança pública, transporte e população LGBTQIAPN+. “Sempre que saía de reuniões da ONG da Diversidade de Diadema, quando falava da pauta trans, me diziam: ‘A gente tá engatinhando’. Mas esse ‘aos poucos’ nunca vira nada e a gente tem pressa. O movimento LGBT+ foi iniciado por pessoas trans, mas nós, as mesmas pessoas trans fomos deixadas de lado”, conta sobre uma de suas mobilizações.
Para a estudante, a incidência política precisa acontecer de forma coletiva, mas se questiona sobre como organizar demandas de interesse da população para pensar em estratégias que direcionam políticas públicas. “Sou uma cidadã comum, como qualquer outra pessoa e que tem o direito de cobrar, seja qual for o governo’’, finaliza.
Assessora de incidência política comenta desafios de participação social nas periferias após eleições: “Sou uma cidadã que tem o direito de cobrar’’: caminhos para participação social e incidência política a partir das periferias