Projeto prevê derrubada de 63 mil árvores para ampliação de aterro sanitário e construção de incinerador em São Mateus 

Segundo a população, o projeto apresenta riscos para os moradores, que vão de doenças respiratórias a impactos ambientais.
Edição:
Evelyn Vilhena e Isadora Santos

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Implantado em 1992, o Aterro Sanitário Sítio São João, no distrito de São Mateus, marcou o início da destinação de resíduos na zona leste da cidade de São Paulo. Após sua desativação, em 2009, o espaço deu lugar à Central de Tratamento de Resíduos Leste – CTL, operado pela concessionária de limpeza urbana Ecourbis. Intitulado como “Ecoparque”, o centro de tratamento já passou por cinco ampliações. Hoje, o local opera próximo da capacidade máxima. 

Em meio às discussões sobre o futuro da gestão de resíduos na capital, o Projeto de Lei 799/2024 — aprovado em dezembro de 2024 — alterou o Plano Diretor para permitir o corte de 63 mil árvores na região. Entretanto, a proposta não agradou moradores e organizações sociais que acompanham o tema. De acordo com a população de São Mateus, São Rafael e outros bairros vizinhos, o projeto avançou sem transparência adequada e sem garantir a participação popular nos debates sobre suas etapas e impactos ambientais.

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“Da minha casa até o aterro são quatro quilômetros, e mesmo assim sinto o cheiro do lixo. Com essa ampliação, a situação irá piorar”, é assim que Silvia Jerônimo, 38, conselheira tutelar e moradora de São Rafael, distrito da zona leste de São Paulo, descreve sua preocupação diante do problema ambiental que atinge ela e outros moradores da região, que enfrentam o risco da expansão de um aterro sanitário. 

Silvia nasceu e vive no bairro Jardim Santo André, no distrito de São Rafael, vizinho ao distrito de São Mateus, onde também participa dos movimentos de luta por moradia. Ela conta que a luta contra a construção do incinerador é uma reivindicação antiga entre os moradores. “Lembro que a gente gritava: ‘Diga não ao incinerador de São Mateus’. Antes, ele ficava perto do Sesc e depois foi desativado. Esse aterro acabou vindo para a nossa região nos anos de 1990”, recorda.

A luta por melhores condições ambientais no distrito de São Mateus é antiga. Desde a década de 1990 a população dos bairros Jardim Santo André, Cidade Tiradentes, São Rafael e adjacências pauta sobre o aterro sanitário construído na região e o impacto na vida dos moradores. Em 1992 o aterro foi instalado e desde 2004 se tornou a Central de Tratamento de Resíduos Leste (CTL Leste), sob administração da Ecourbis. Agora, a discussão é sua ampliação e instalação de incinerador (forno industrial para queima do lixo).

Silvia ressalta que, além das 63 mil árvores que podem ser derrubadas, caso o projeto avance, a instalação de um incinerador agrava problemas ambientais. 

“Com essa ampliação, que é equivalente a sete campos de futebol, haverá ainda mais lixo”, relata Silvia ao reforçar que o problema afeta o bem-estar e a qualidade de vida da população local.

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A moradora aponta a relação entre raça e classe na escolha do local para instalação do incinerador. “Não há outra explicação para isso. A maioria das pessoas que moram em São Mateus e nas regiões ao entorno são pretas, pardas e pobres”, ressalta.

Além de danos para a fauna e flora, há risco de problemas respiratórios, principalmente em mulheres gestantes, idosos e crianças. “Quando está muito calor, sentamos na rua para conversar com os vizinhos, o que faz parte da vida comunitária, e de repente, o cheiro do lixo sobe forte. Sentimos de longe”, compartilha.

Mobilização coletiva

Em 4 de outubro de 2025, moradores e representantes de movimentos populares de São Mateus, Cidade Tiradentes e São Rafael se reuniram para participar da audiência pública acerca do projeto da Ecourbis e reforçar a mobilização da comunidade contra o aterro sanitário. 

“A prefeitura, a subprefeitura e a Ecourbis não chamam a comunidade para participar da discussão. Simplesmente decidem que vai ser construído um incinerador aqui e pronto.” Silvia Jerônimo, conselheira tutelar e moradora do bairro Jardim Santo André, em São Rafael, zona leste de São Paulo. 

“Tentam fazer um trabalho paliativo dizendo que a ampliação do aterro será positiva, sem prejuízos, mas não é assim”, coloca Silvia ao reforçar que os moradores da região são contra a PL 799, que estabelece a ampliação do aterro sanitário. “É muito importante unirmos forças para fazer com que as pessoas tenham consciência de que isso não pode acontecer”, diz.

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Fátima Magalhães, professora e moradora do Jardim Santo André desde 1968, destaca os prejuízos caso a ampliação do aterro se concretize. A educadora, que chegou na região ainda criança, acompanhou de perto as transformações do território e sua casa fica atrás do aterro São João. 

Um dos caminhos que passa pelo aterro dá acesso ao Pico do Morro do Cruzeiro, o segundo ponto mais alto da cidade. Desde 2013, a Ecourbis prometeu a construção de um centro de referência para gestão ambiental e educação comunitária, que funcionaria como espaço para monitoramento do aterro e participação da comunidade em ações de preservação e reflorestamento ambiental. A previsão de entrega do espaço pela concessionária é para julho de 2026.

A mobilização pela preservação da APA (Área de Proteção Ambiental) do Morro do Cruzeiro reuniu moradores de São Rafael, São Mateus e de outros bairros da Zona Leste, que participaram de diversas ações em defesa do território. Entre as iniciativas, destacou-se a 3ª Caminhada ao Morro do Cruzeiro, realizada em 29 de julho de 2006, organizada para chamar atenção à importância da conservação ambiental.

Em 2007, o livro Memórias do Meu Jardim — produzido pelo projeto Se Este Bairro Fosse Meu e escrito pela professora Rita Arantes — registrou a riqueza de fauna e flora do local e a persistente luta da comunidade pela proteção da área.

Os moradores defendem, historicamente, vigilância permanente para evitar novas agressões ambientais. Apesar disso, Fátima relembra que em 2016, um crime ambiental atingiu o Morro do Cruzeiro, quando 350 árvores foram cortadas com motosserra. Mesmo assim, a própria população se organizou e garantiu a compensação ambiental da área desmatada.

“Apesar de falarem em conquista, na verdade a conquista [de compensação ambiental] aconteceu por parte da própria comunidade”, explica.

O Parque Morro do Cruzeiro, considerado patrimônio imaterial e uma área de preservação ambiental, localizado na mesma região onde ocorre a expansão, também sofre com a ampliação do aterro. Há anos, a comunidade se mobiliza para preservar o local. “Graças à nossa luta, vai se tornar Monumento Natural de São Paulo, sendo o primeiro monumento natural da cidade conquistado por uma mobilização comunitária”.

“No Aterro [São João], não é só o mau cheiro, mas quando esquenta ou esfria, parece que o chão ferve e o ar fica ardido.” Fátima Magalhães, professora e moradora do bairro Jardim Santo André, em São Rafael, zona leste de São Paulo.  

Segundo Fátima, o projeto que prevê a ampliação do aterro e a instalação do incinerador, apresentou números diferentes do inicialmente divulgado pela Ecourbis, junto à subprefeitura de São Mateus. “No início, nos disseram que 10 mil árvores seriam afetadas, mas descobrimos que eram 63 mil. O relatório de impacto estava camuflado. A obra foi paralisada e houve mudanças na lei de zoneamento. Uma audiência popular foi marcada, mas algumas empresas não compareceram”, conta sobre o histórico do projeto. 

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A Frente Popular Contra a Ampliação do Aterro de São Mateus, está mobilizando um abaixo assinado contra o projeto da Ecourbis de ampliação do aterro, a instalação do incinerador e contra o corte de 63 mil árvores na região. No abaixo-assinado, a mobilização exige:

  • Suspensão imediata de qualquer processo de aprovação para ampliação do CTL Leste e para instalação de novo aterro ou incinerador na área do Parque Natural Municipal Cabeceiras do Aricanduva;
  • Publicação e divulgação de estudos técnicos completos, independentes e acessíveis;
  • Realização de audiências públicas no território de São Mateus, com participação efetiva da população, movimentos sociais, universidades, especialistas e órgãos de controle;
  • Apresentação de um plano de gestão de resíduos que contemple: expansão da coleta seletiva e da compostagem descentralizada; fortalecimento de cooperativas de catadores e logística reversa; implantação de centrais de triagem e de biodigestão de orgânicos; metas claras e progressivas de desvio de aterro, com monitoramento público; transparência sobre a situação de exaustão do CTL Leste, seus custos presentes e futuros, e os impactos financeiros, sociais e ambientais de cada alternativa considerada; respeito integral às áreas protegidas, ao Parque Natural Municipal Cabeceiras do Aricanduva e às políticas de enfrentamento à emergência climática.

De acordo com o Mapa da Desigualdade de 2024, distritos da zona leste de São Paulo apresentam níveis elevados de vulnerabilidade social. No ranking, que começa pelos territórios com melhores condições socioeconômicas, São Mateus aparece na 44ª posição, São Rafael em 55ª, Guaianases em 80ª, Sapopemba em 87ª e Itaquera em 89ª.

“Mesmo assim, continuam tentando ampliar o aterro sem compensações ambientais. Existe fauna e flora, mas, porque estamos no fundão, parece que só merecemos lixo e não equipamentos culturais, por exemplo. Nós lutamos por políticas públicas e por compensações ambientais, mas quase nunca somos atendidos”, afirma a professora.

Atuação do poder público

Fátima conta que passaram a se articular a partir de audiências na Câmara Municipal, para dialogar com vereadores comprometidos com a causa. “Foi muito difícil, pois o processo de ampliação, inicialmente, parecia [inviável]”.

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A conselheira tutelar, Silvia, questiona as prioridades do poder público no território ao ressaltar que há 13 anos não foram construídas  novas escolas na região. 

“São Paulo é uma das cidades mais ricas do planeta, mas a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente da Prefeitura, e até mesmo o Governo do Estado, não fazem nada pela nossa região. Quais são as saídas tecnológicas que estão sendo buscadas para evitar esse desmatamento e a derrubada de tantas árvores? Existe alguma alternativa? Qual seria a outra alternativa que a gente, da região, poderia ter?”, questiona a conselheira tutelar Silvia Jerônimo.

Ela afirma que, na chamada terceira divisão do Jardim Santo André, não existe nenhuma unidade escolar. “As crianças precisam se deslocar de um território para outro para conseguir estudar. O que fica claro é que o morador de São Mateus só merece lixo e esgoto”.

Segundo ela, o subprefeito, Oziel Souza, não se posiciona sobre o caso. “Ele ignora a ameaça que nossa região enfrenta e, por não se pronunciar, consente com esse ataque. Ao permanecer em silêncio, ele dá aval [para que a ampliação do aterro avance]”, conclui ao ressaltar a falta de diálogo com a população.

Outro lado

Em nota, a empresa Ecourbis Ambiental informa que a Central de Tratamento de Resíduos Leste (CTL), único aterro sanitário municipal de São Paulo, recebe cerca de 7 mil toneladas de resíduos por dia das zonas sul e leste, com segurança ambiental, impermeabilização, captação de biogás e tratamento de chorume, que vira biometano e água de reúso.

Segundo a nota, para garantir a continuidade da gestão de resíduos, a empresa submeteu à Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) um Estudo de Impacto Ambiental para ampliar o aterro, com compensações como plantio de árvores, preservação das nascentes dos rios Limoeiro e Aricanduva e respeito ao Parque Natural Municipal Cabeceiras do Aricanduva, onde investiu R$ 34 milhões. 

A concessionária ainda garante que o projeto inclui novas tecnologias de valorização de resíduos: a Unidade de Tratamento Mecânico Biológico (TMB), que tratará 550 mil toneladas por ano, e duas Unidades de Recuperação Energética (UREs), gerando cerca de 30 MW cada. 

Além disso, assegura que tem promovido reuniões com moradores e lideranças para apresentar o projeto e as devidas compensações ambientais.

*Entramos em contato também com a Subprefeitura de São Mateus, mas até a publicação do conteúdo, não obtivemos respostas. 

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