Privatização agrava problemas com saneamento básico e deixa famílias sem acesso seguro à água

De acordo com o IBGE, até 2024, 22,7 milhões de domicílios no Brasil não estavam conectados à rede geral de esgoto.
Edição:
Isadora Santos

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Cortes inesperados e falhas no abastecimento d’água têm afetado a rotina de moradores da Grande São Paulo. “No mês passado, pelo menos duas vezes percebi que a água foi cortada antes do horário programado”, relata o mecânico Denis Lourençoni Ribeiro, de 33 anos, morador do bairro Casa Grande, no município de Diadema (SP), ao destacar que, apesar de o racionamento não afetar constantemente sua rotina, cortes inesperados de água têm ocorrido com certa frequência.

Desde 2013, a Sabesp reduz a pressão da rede de água durante a noite em São Paulo para evitar desperdício de água tratada. Mas famílias que vivem nos perímetros da cidade ou em áreas mais altas sofrem com interrupções no abastecimento. São moradores que muitas vezes enfrentam uma rotina intensa de trabalho e dependem da água chegando diretamente na torneira. 

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O mecânico, que mora com mais três pessoas, classifica a qualidade da água que chega na sua casa como boa, sem notar alterações significativas, mas demonstra preocupação com o sistema de esgoto da região. “Aqui na minha rua tem esgoto, mas a rede já não está suportando mais. Tem uma tampa que sempre fica vazando na rua. Na minha região, algumas casas nem têm rede de esgoto, e [os resíduos] acabam sendo jogados para os fundos, que [escorrem] para a rodovia”, explica.

Além dos problemas com a rede de tratamento de esgoto, ele conta que os cortes no abastecimento afetam tarefas diárias e cuidados com a higiene, sobretudo em residências com idosos ou pessoas que precisam de cuidados especiais. 

Para Denis, a solução está em um planejamento mais eficiente. “Acho que deveria ter mais investimento na prevenção dos problemas de abastecimento e rede de esgoto. Assim, não teríamos esses vazamentos que vemos diariamente nas ruas e poderiam ser evitadas obras emergenciais”, opina.

Já a dona de casa, Indara Cardoso, de 39 anos, é moradora do bairro Jardim Vera Cruz, localizado na zona leste de São Paulo, e relata que também não tem enfrentado problemas significativos com o abastecimento de água.

Ela avalia a qualidade da água como satisfatória, mas observa que, quando a pressão retorna após interrupções, o fluxo vem forte por cerca de 30 segundos com cheiro de cloro, normalizando em seguida.

Quanto à rede de esgoto, fala que a estrutura na sua rua é boa, com coleta regular. Por outro lado, reconhece que ela e sua vizinhança não sofrem diretamente com os impactos da medida, pois possuem caixas d’água suficientes para suprir a demanda diária. “Tenho caixa d’água, e na minha vizinhança a maioria também tem.”

Privatização privilegia o lucro

O que Denis e Indara descrevem faz parte de uma dinâmica maior de desigualdade e precarização de serviços. É o que explica a professora e pesquisadora Luciana Ferrara, coordenadora do Centro de Estudos das Favelas (CEFAVELA) da Universidade Federal do ABC (UFABC) sobre o avanço da privatização ao redor do país.

O Brasil ainda enfrenta questões quando o assunto é saneamento básico e acesso a esgoto tratado, o que reflete em problemas sociais e de saúde pública do país.  De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD Contínua, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos cerca de 77 milhões de domicílios existentes no país, 29,5% não estavam conectados à rede geral de esgoto, o que equivale a três em cada dez residências expostas a algum tipo de risco relacionado à água imprópria para consumo ou uso doméstico.

O relatório que sistematizou dados por amostragem de domicílios e tipo de esgotamento mostra que 63,8% das casas estão conectadas à rede geral ou fluvial, 6,5% possuem fossa séptica ligada à rede, 15,1% têm fossa séptica não ligada e 14,4% utilizam outros tipos, como fossa rudimentar, vala ou córrego.

Para a pesquisadora, especialista em Planejamento Urbano e Ambiental, a questão sanitária revela camadas de desigualdade que distanciam, diariamente, milhões de pessoas de direitos básicos, sobretudo nas favelas e periferias.

No cenário nacional, segundo ela, há grandes diferenças entre as regiões, tanto no acesso à água quanto no atendimento da coleta e do tratamento de esgoto. A cobertura da rede de água geralmente é maior do que a da coleta e do tratamento de esgoto, e as maiores desigualdades permanecem nas regiões Norte e Nordeste do país.

A análise da pesquisadora vai de encontro ao que aponta Pnad acerca das desigualdades territoriais em relação ao tipo de esgotamento dos domicílios. A região Sudeste supera a média nacional (70,4%), com 90,2%. Na sequência aparecem o Sul e Centro Oeste que registram 70,2% e 63,8%, respectivamente. As piores condições são localizadas no Nordeste (51,1%) e no Norte (31,2%).

Entretanto, mesmo em cada uma das regiões, há um funil de desigualdades locais. “Se olharmos para áreas urbanas e rurais, há diferenças, pois o déficit de água se concentra mais nas áreas rurais, enquanto o déficit de coleta e tratamento de esgoto é maior nas áreas urbanas. Nas favelas, o déficit é ainda maior, tanto na rede de água quanto na coleta e tratamento de esgoto, em comparação com o restante da cidade”, explica ao destacar que isto faz das favelas territórios com maior incompletude de infraestruturas, sofrendo consequências em saúde pública, qualidade de vida e no desequilíbrio ambiental.

Dados específicos sobre favelas e periferias mostram que, no Brasil, meio milhão de residências pertencentes a estes territórios não têm rede de água, quase 100 mil não têm água encanada, mais de 109 mil dependem de poços artesianos e quase 705 mil usam fossas rudimentares. Quanto ao esgoto, 58% têm rede, 13% têm fossa não ligada e 61% têm fossa séptica ou ligada à rede. Sobre o lixo, 76% recebem coleta regular, mas 107 mil ainda descartam em terrenos ou áreas públicas. Os números constam na pesquisa “Censo Demográfico 2022 Favelas e Comunidades Urbanas: Resultados do universo”, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Ainda segundo a pesquisadora, a privatização em massa das companhias de água agrava o problema. O Estado de São Paulo é um dos principais exemplos.

Em julho de 2024, a Sabesp — principal companhia de saneamento do estado de São Paulo — foi privatizada, com a venda de 32% das ações e manutenção de apenas 18% sob controle público. A mudança, segundo o governo estadual, visa acelerar a universalização do saneamento, elevar os investimentos e garantir o abastecimento de água e tratamento de esgoto a municípios que historicamente enfrentam exclusão no acesso a esses serviços.

No entanto, especialistas e movimentos sociais acreditam que a privatização não resolve o problema, pois privilegia o lucro e os interesses privados em detrimento do acesso universal à água e ao saneamento. Nesse sentido, alerta-se para prováveis efeitos reais da medida, como aumento da tarifa de abastecimento e dificuldade de pagamento por famílias de baixa renda, redução da qualidade da cobertura d’água em áreas pobres, enfraquecimento do controle social sobre o serviço, impactos ambientais, etc.

Novo Marco Legal do Saneamento

O Novo Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020) alterou a legislação anterior, de 2007, que já visava a universalização do saneamento, mas a principal mudança é a ampliação da atuação do setor privado, o que, segundo a Luciana, gera consequências na forma como os municípios concedem o saneamento. “A lei de 2017 amplia essas possibilidades e, inclusive, incentiva o município a transferir a concessão do serviço para empresas privadas.”

Em relação à universalização, há diversas análises sobre os impactos da privatização do saneamento. “Primeiro, as companhias privadas precisam garantir sua rentabilidade. Assim, quando os processos de concessão são abertos, essas empresas tendem a se concentrar em áreas com mais cidades, regiões maiores e população com maior capacidade de pagamento”, explica.

“A população de baixa renda, que habita as favelas, enfrenta mais dificuldades financeiras, e a universalização nesses territórios nem sempre ocorre no mesmo ritmo que em outras áreas. Isso cria uma tendência de melhor cobertura e serviço fora das favelas, enquanto a população mais vulnerável permanece mais exposta a riscos ambientais”, acrescenta.

De acordo com Luciana, outro ponto é que, anteriormente, as companhias estaduais atendiam uma grande quantidade de municípios, e os mais lucrativos, em termos de tarifa, ajudavam a suprir investimentos nos menos lucrativos, garantindo um atendimento cruzado. Com a privatização, isso deixa de estar garantido, pois os serviços passam a ser feitos com base em contratos que definem quais áreas terão atendimento e como ele será realizado.

A especialista em Planejamento Urbano e Ambiental pontua que “muitos contratos de companhias privadas não incluem as favelas de forma clara.” No Rio de Janeiro e em outros municípios, por exemplo, o atendimento dessas áreas não têm o mesmo comprometimento que havia pelo poder público. 

“Embora os números gerais indiquem 98% ou 99% de cobertura, na prática ainda há muitas pessoas em favelas e ocupações sem acesso à água ou esgoto. Medir a universalização apenas em porcentagens oculta o problema.”

Luciana Ferrara, professora, pesquisadora e coordenadora do Centro de Estudos das Favelas (CEFAVELA) da Universidade Federal do ABC (UFABC). Especialista em Planejamento Urbano e Ambiental.

Neste contexto, os indicadores usados por empresas privadas para medir a universalização do saneamento não são suficientes para retratar a realidade da população.

A universalização muitas vezes é medida, somente, pela cobertura da rede [de água e esgoto]. Porém, ter a rede passando na rua não garante acesso real, especialmente em favelas e periferias. Muitas famílias não conseguem pagar pela tarifa social, permanecendo conectadas a ligações precárias ou improvisadas para água e esgoto. Isso cria insegurança hídrica doméstica que não aparece nos grandes números e famílias continuam sem acesso adequado à água e ao saneamento. 

A Sabesp já possuía um capital misto, mas mantinha forte caráter público-social, atuando nas favelas e comunidades urbanas em parceria com prefeituras e projetos de urbanização. 

Com a privatização recente, a pesquisadora afirma que os impactos nos territórios ainda estão sendo estudados: observa-se uma intenção de ampliar a cobertura, mas sem garantir que a população consiga pagar pelas ligações, que a tarifa social seja mantida ou que os custos não aumentem. “Programas como o Água Legal que ligavam comunidades à rede de água, passaram por grandes reformulações e as informações sobre eles ainda não são claras”, finaliza.

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