Se preparar para o vestibular é apenas um dos passos que o jovem dá em busca de uma vaga no ensino superior. No meio desse trajeto, ele ainda precisa lidar com a escassez de políticas públicas de educação, além de problemas que impactam a sua saúde mental e física.
A educação pública está entre as áreas que mais vem sofrendo com a falta de investimentos públicos. Em 2018, por exemplo, o orçamento para novos investimentos no Ministério da Educação, teve uma redução de 32% em relação a 2017. O valor destinado para investimento em 2017 foi de R$ 6,6 bilhões, enquanto no ano de 2018 foi de apenas R$ 4,52 bilhões.
Esse cenário de sucateamento atinge um público especifico: jovens, negros e principalmente a população de baixa renda, que na pratica, é quem mais utiliza e precisa acessar serviços públicos educacionais de qualidade.
No entanto, quando abordamos sobre o ingresso da juventude periférica nas universidades, precisamos refletir sobre o processo que esse jovem passa durante o período de formação escolar, tendo em vista alguns fatores que influenciam diretamente no desenvolvimento desses indivíduos, como o desgaste psicológico, emocional e físico.
Para entender a fundo como esse contexto social está em curso nas periferias, conhecemos a história de três jovens que percorreram diferentes caminhos em busca do acesso à universidade. Os estudantes Pedro Fernandes, Larissa Rodrigues e Ana Carolina, contam como se dá esse processo desde o desgaste psicológico, até a busca e uso de métodos alternativos à educação pública.
Assista a reportagem completa do projeto #NoCentrodaPauta
O sucateamento do ensino médio
Antes mesmo de pensar no ensino superior, a educação pública básica já não oferece recursos suficientes para o desenvolvimento completo desses estudantes. Segundo os dados apresentados recentemente pelo Ministério da Educação nenhum estado brasileiro atingiu a meta do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) 2017 no ensino médio.
Nas escolas publicadas estaduais de São Paulo, a meta de desenvolvimento do ensino médio não é alcançada desde 2013, conforme revela a pesquisa anual realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Para o coordenador pedagógico, Rafael Cícero, o estado precisa fazer o contrário do que tem feito hoje: “ao invés de sucatear, deveriam aumentar significativamente os investimentos, de modo a ter uma educação básica de maior qualidade, que consiga ser universalista.”
Ele chama atenção para o perfil do público prejudicado pela decadência causado pelo governo no ensino público. “Quem estuda na escola pública na sua maioria são jovens periféricos. Não avançar nesse cenário, impacta diretamente a vida dessa população.”
A estudante Ana Carolina, 19, moradora do Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, conta que não houve base suficiente em seu ensino fundamental e médio que a preparasse para o ensino superior. “No fundo eu acho que a escola ela não te prepara para o vestibular, ela te desprepara, te desmotiva. O desgaste psíquico de passar pelo processo da escola pública é muito desgastante.”
Para além do contexto da educação básica, quando entramos na conjuntura do ensino superior, o cenário não é nada animador. Com a aprovação da Emenda Constitucional 95 – PEC dos gastos, que limita os gastos públicos à variação da inflação por 20 anos, aumentam as barreiras sociais na educação a partir das reduções de bolsas, burocratização e enxugamento de vagas para acesso a programas como Fies e Prouni, fora a falta de verbas para a manutenção das estruturas educacionais e programas de pesquisa.
Ingressar no ensino superior não é a única preocupação desse jovem. A última pesquisa do Censo da Educação Superior, mostra que somente em 2016, 30% dos alunos matriculados em instituições públicas e privadas tiveram que deixar seus cursos, o que equivale a 3,4 milhões de universitários.
Quando se trata do jovem que vem das periferias, a preocupação aumenta. “Muitos jovens da periferia até conseguem chegar nas universidades, porém, muitos não conseguem se manter, porque nessa redução, a assistência estudantil é uma das áreas que está sofrendo. Então você tem menos alunos podendo morar em repúblicas, morar nas próprias instituições”, relata o coordenador Rafael sobre os impactos desses cortes para os jovens periféricos que conseguiram ingressar nas universidades.
Educação popular como estratégia de cuidado
Frente a essa conjuntura, muitos jovens procuram formas alternativas para percorrer o caminho até o ensino superior. Uma das possibilidades são os cursinhos populares que vem gerando grandes impactos não só na difusão de conteúdos teóricos, mas também na construção de um olhar crítico sobre as demandas sociais.
O coordenador pedagógico da Rede de Cursinhos Ubuntu, Rafael Cícero, contextualiza a importância de experiencias com a educação popular nas periferias. “Faz tempo que a periferia é um polo de resistência. Temos muitos cursinhos nas periferias fazendo esse enfrentamento e defendendo a democratização do acesso à universidade. Elas estão ali no campo do que chamamos de educação popular, e essa educação é uma defesa, uma luta de emancipação da classe trabalhadora.”
“Muito mais do que ser um espaço conteudista, de simplesmente debater assuntos dos currículos escolares, essas experiências também são na sua maioria experiências de formação de cidadãos, de jovens críticos, de jovens com olhar mais amplo para sociedade. Elas ajudam nesse campo de cidadania, no sentido de reconhecimento, pertencimento”, conta o coordenador sobre como agentes das periferias vem buscando alternativas frente ao sucateamento do ensino público.
Residente do bairro João XXIII, zona oeste de São Paulo, o estudante Pedro Fernandes, 21, um dos articuladores na criação do Cursinho Livre Cláudia Silva Ferreira, conta que a partir do programa de formação também é necessário questionar a importância de ocupar esses espaços acadêmicos. “Entender que o vestibular, a faculdade, é uma ocupação de espaço, como uma pessoa pobre e talvez a primeira da família a entrar na universidade.”
Junto com a dificuldade de acesso, os desgastes psicológicos que acompanham esses estudantes, faz com que muitos desenvolvam traumas e barreiras mentais que afetam inclusive suas relações com a família e amigos.
“A saúde mental de estudantes que são da periféria e pessoas que estudam no Dante Alighieri, é totalmente diferente. Eu cheguei aqui atrasado porque eu estava trabalhando, por exemplo”, compartilha o estudante Pedro.
O psicólogo Ricardo Cavalcante ressalta que os processos psíquicos desses jovens são diferentes: “o jovem burguês está naquele momento só estudando, só se preocupando com isso. O jovem da periferia além de se preocupar com estudo, tem que se preocupar em cuidar do irmão mais novo, tem que se preocupar em ajudar em casa, por exemplo. Então os desgastes emocionais vão nesse sentido.”
*Esta reportagem faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização dos coletivos Alma Preta, Casa no Meio do Mundo, Desenrola e Não me Enrola, Imargem, Historiorama, Periferia em Movimento e TV Grajaú, com patrocínio da Fundação Tide Setubal.
Cerca de 30 reportagens serão publicadas até o final de outubro com assuntos de interesses da população das periferias de São Paulo em ano eleitoral. Acompanhe os sites e as redes sociais dos coletivos e não perca nada!