“Tive um pai muito bacana e presente. Meus tios também foram e são referências que carrego comigo. Sempre tive estes bons exemplos para me inspirar como pai’’. Essas são algumas das memórias paternas do educador Leonardo Cordeiro, 37, que cresceu em uma estrutura familiar, que além da figura da mãe, também teve um pai afetuoso e participativo.
Multiartista, morador do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, ele é pai do pequeno Luan, de 2 anos, e conta que sempre quis viver esse momento. Ao descobrir que seria pai, Leonardo passou a entender, na prática, a paternidade como lugar de presença, compromisso, escuta ativa e cuidado.
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“Quando adolescente, via muitos amigos meus que tinham pais ausentes. Aquele pai que fica o dia todo no bar e mal consegue conversar ou trocar com os filhos. Era estranho pra mim, pois meu pai era muito presente e envolvido com a família. Naquele tempo, achava que era diferente, mas depois entendi que era raro ter um pai como o meu. Muitos amigos tinham pais presentes só fisicamente, mas emocionalmente ausentes. Tudo recaía sobre a mãe”, conta ao relembrar sobre a construção da paternidade ao longo da sua vida e o cuidado que, em geral, é delegado às mulheres.
Um homem atento à rotina da casa e que dava conta das tarefas domésticas não era algo novo para ele. “[Meu pai] era um cara romântico, parceiro, me ensinava até mesmo coisas simples, como limpar o vaso depois de usar para o próximo utilizar. Ou seja, sempre nos ensinou sobre senso de cuidado com o coletivo”, recorda.
Antônio Cordeiro, pai do educador, deixou aprendizados sobre amor, coragem e presença. Após seu falecimento, o desejo de Leonardo pela paternidade persistiu. “Quando minha ex companheira me contou da gravidez, já me coloquei totalmente disponível. Fomos morar juntos, participei de tudo, pois se sobre a mãe recaem obrigações durante a gestação, eu também tinha [as mesmas obrigações]. Se ela iria faltar no trabalho para ir a consulta, eu também faltaria. Encarava como ‘nós estamos grávidos. É nosso filho, nosso compromisso’”.
Atualmente, Leonardo e a mãe do Luan seguem juntos apenas enquanto parceiros na criação do pequeno. A dinâmica de não morar mais na mesma casa que o filho, trouxe mudanças nesse cotidiano. “Ficar longe do Luan me jogou em uma depressão profunda. A sociedade reforça a figura da mãe solo como vulnerável, e mesmo eu querendo ser presente, muita gente prefere me colocar no padrão do pai ausente, do cara que some”, coloca.
Leonardo conta que buscou meios de estar mais presente na vida do filho, com a possibilidade de guarda alternada e um arranjo mais igualitário na convivência e tarefas. Judicialmente foi determinado que o pequeno deveria ficar com a mãe, considerando o mais adequado para garantir estabilidade e cuidado durante a primeira infância. Para ele, o formato não é melhor, pensando na dinâmica de demandas e convívio.
Léo fica com o filho uma vez por semana, e a cada 15 dias tem mais tempo juntos. “Pra mim isso é pouco. Me sinto uma visita. E é injusto, pois tenho disposição real para dividir os cuidados. Sinto muito em parecer uma visita frequente para o meu próprio filho”, compartilha ao contar sobre a nova rotina.
“Quis muito ser um pai presente e tenho que lidar com uma nova realidade [que é difícil de aceitar]. A depressão que passei foi difícil de reconhecer. Tive muitos pensamentos suicidas e o que me segurou foi pensar: ‘Quero ver o Luan mais uma vez.’ Só isso. A saudade de ouvir a voz dele de novo, foi esse pensamento que me manteve vivo.”
Essa relação com o filho, também ampliou a percepção do multiartista com suas sobrinhas. “Me questionei muito o porquê dos pais das meninas acharem que é suficiente visitar de vez em quando. Um deles, por escolha própria, sequer aparece”. Léo busca estar presente também nesse convívio com as sobrinhas, que nomeia como uma paternidade afetiva. ‘‘Fico feliz por essa troca, mas não é uma felicidade plena. A ausência que o pai delas faz, só elas vão saber o tamanho disso um dia”, reflete.
“Criando um menino e duas meninas, vejo as diferentes camadas disso tudo (paternidade). As formas de se relacionar, de conversar, de acolher. Mais do que dar conselhos ou resolver problemas, é estar presente. Perguntar como estão, ouvir, abraçar, [estar] na rotina, no convívio.” Leonardo Cordeiro, multiartista e pai do Luan, de 2 anos.
Terapia, leituras e estudos sobre paternidade foi um caminho que escolheu para desenvolver seu repertório na criação do Luan. “Foi aí que descobri muita coisa, inclusive sobre quem era meu pai dentro de tudo isso. No meio desse processo também participei [de atividades como: acompanhamento pré-natal, cursos de preparação para o parto, acolhimento emocional para pais e mães, oficinas e grupos de apoio à amamentação], na Casa Ângela, que foi onde o Luan nasceu. Lá, oferecem formação em paternidade e maternidade. Isso é muito importante. Tudo me deu base para pensar como eu queria ser pai e como eu queria amar também’’, compartilha.
Para o educador, trocar sobre afeto e cuidado na periferia, em algumas redes, ainda é desafiador. “No meu território, aprender a mostrar afeto foi uma construção. A maioria dos caras daqui, da periferia, não tinha esse lugar de falar o que sente um para o outro. Mas eu tive sorte. Alguns dos meus amigos eram diferentes. A gente se falava mesmo: ‘te amo, se cuida, foi da hora conversar com você’. E isso era genuíno.”
“O Luan é agitado, esperto e muito musical. A gente passa muito tempo junto em torno da música. Eu toco alguns instrumentos, então ele aprendeu a brincar com isso. Ele já tem gosto musical: todo sábado ou domingo de manhã ele pede pra ouvir Jorge Ben.” Leonardo Cordeiro, multiartista e pai do Luan, de 2 anos.
Criar memórias positivas com o Luan é parte dos desejos futuros do Léo. “Quando estou com ele no colo, balançando para dormir, lembro do meu pai fazendo isso comigo, lembro dele me ninando. São camadas de afeto que a gente vai construindo de um jeito nosso”, diz sobre o pequeno ainda não entender muitas coisas, mas entender o afeto.
Para o futuro, o educador espera que a construção que tem feito hoje, seja lembrada pelo Luan. “Se um dia você ler isso, espero que esteja feliz, realizando seus sonhos, saudável e inteiro. Que eu e sua mãe consigamos te dar tudo o que precisa para ser você mesmo. Quero te ver feliz, te potencializar. Dizer que te amo parece pouco perto do que sinto, mas é a palavra mais próxima que eu conheço: Por isso, eu te amo muito e sempre.”
Construção da paternidade
Diferente da experiência do Leonardo, a paternidade nunca foi um desejo concreto para Rene Rodrigues, 31, pai da Heloá, de 8 anos. O morador de Guarulhos, São Paulo, acreditava que gestar uma criança estava associado apenas às mulheres cis, pensamento que mudou com a chegada da filha.
Dentro de casa, Rene teve um pai presente que foi exemplo de companheirismo e cuidado, mas para ele, o processo de se reconhecer enquanto pai passou por outros entendimentos com relação a sua vivência trans.
“Nunca me imaginei gestando, mas aconteceu. A descoberta foi surpresa para todo mundo, inclusive para mim. Só que em nenhum momento passou pela [minha] cabeça não dar continuidade. Ela [Heloá] se tornou a coisa mais importante da minha vida. Às vezes até me pego refletindo [por que nunca quis ou pensei em ter um filho]”, divide.
“Naquele momento, não tinha muito entendimento [sobre a gestação]. Não me via gestando um ser humano. Não fazia sentido para mim. Hoje entendo que este era um pensamento machista, mesmo sem perceber. Nós, homens trans, precisamos entender que a gente tem diferenças, porém, existem homens que gestam sim.” Rene Rodrigues, 31, pai da Heloá, de 8 anos.
Com o nascimento de Heloá, ele precisou lidar com vulnerabilidades e com a realidade de uma sociedade que ainda coloca pessoas trans em situações de violência em que não se sentem dignas de amor e cuidado. “Quando eu tive ela, nem pensava muito sobre [como seria criar uma criança], a única coisa que eu pensava era se ela iria me amar”, compartilha ao falar dos questionamentos que já fez a si mesmo sobre as trocas com Heloá. “Ela já está com oito anos, mas [confesso que] até hoje me preocupo”.
Sobre a relação que cultivam, todos os dias, destaca: “Ela é muito amorosa. Às vezes, ela chega em mim me chamando de papaizinho. Mesmo com toda a correria do dia a dia, quando estamos juntos, tento sempre estar por inteiro, sem [distrações] ou pensando em outras coisas.”
Com brilho nos olhos, diz que Heloá é uma criança muito parceira. “Digo que ela é a minha versão, somos muito parecidos, em tudo”.
No lugar das expectativas de aceitação, Rene conta que foi preciso também ajustar as expectativas com a própria mãe. “Minha mãe [idealizou uma imagem perfeita] de que eu seria sua bebezinha, sua princesa, aquela ideia de que iria crescer, me casar, dar netos. Ela criou e projetou muitas expectativas em mim. Quando tive a minha filha, ela passou a [transferir essas] e outras expectativas, do tipo: ‘Agora a minha neta vai me trazer tudo isso”, diz.
“Saiba que meu coração é todo seu”, finaliza Rene ao citar a filha.