Sentados no chão, reunidos em círculo, um dos jovens se direciona até o centro da roda para apresentar sua fala. Quem está ao redor observa e incentiva, assim o espaço vai ganhando movimento e forma. Essa é parte da rotina de apresentação teatral dos integrantes do coletivo Usina dos Atos, que mesmo com o desafio do financiamento, desde 2009, desenvolve projetos que unem arte, formação e impacto social na região da Cidade Tiradentes, Guaianases e São Mateus.
A principal atividade do grupo é o Projeto Primeira Cena, criado em 2010, que envolve formação de jovens a partir de técnicas de teatro e dança, com duração de um ano. Em paralelo, participam de oficinas de política, comunicação e literatura.
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Cai Teixeira, articuladora cultural e um dos mobilizadores, conta que já realizaram sete edições, com 17 turmas e 19 trabalhos artísticos circulando por diferentes territórios, com jovens da Cidade Tiradentes, Grajaú, Sapopemba e Campo Limpo. Muitas ações aconteceram no que chama de “guerrilha cultural”, sem recursos. “A última edição com recurso foi a sétima, entre 2022 e 2023. De 2009 a 2019, praticamente não tivemos financiamento, apenas em 2012 conseguimos algum apoio. Nesse período, tudo que fizemos foi na base de mobilização própria”.
Em 2019, a maioria das pessoas do coletivo conciliava outros trabalhos com as atividades do grupo, ano que Cai saiu do emprego fixo para se dedicar integralmente à iniciativa. Foi nesse momento que a produtora passou a estudar sobre captação de recursos.
O coletivo existe há 16 anos, sendo 11 registrado com CNPJ, pensado para captação. As atividades acontecem em parceria com espaços públicos ou ocupações. O Primeira Cena, projeto de arte-educação, ocorre principalmente no CEU Inácio Monteiro, na zona leste, parceiro desde 2011 e considerado o mais constante. Ao longo dos anos, as ações também já passaram por outros equipamentos, como o CEU Cidade Dutra, CEU Três Lagos, CEU Casa Blanca e a EMEF Miguel Ferreira, na zona sul, além da ocupação Mateus Santos, em Ermelino Matarazzo.
“Começamos a buscar cursos e certificações importantes para acessar editais e financiamentos. A partir daí, conseguimos recursos algumas vezes e, em 2022 e 2023, acessamos o FUMCAD, que é um recurso muito bom, mas difícil [de acessar]. Com ele, conseguimos implementar o projeto em quatro regiões diferentes, atingindo o maior número de jovens simultaneamente”, relembra Cai.
Com acesso ao financiamento, as ações do grupo expandiram: realizaram a publicação de dramaturgias, lançamento do podcast “Diversamente” e estruturação de uma biblioteca digital, mesmo o valor não sendo suficiente para garantir recurso fixo aos jovens e para manter a sustentabilidade de todas as atividades. Um exemplo é o livro digital Periferia Esperança, que reúne a peça criada por jovens do Projeto 1ª CENA, da Usina dos Atos. A publicação funciona como registro e divulgação da dramaturgia periférica.
O FUMCAD é um fundo municipal voltado a projetos sociais que atendam especificamente crianças e adolescentes, com recursos destinados por pessoas físicas e jurídicas via imposto de renda e gestão do conselho municipal. Diferente da Rouanet, que é uma lei federal de incentivo à cultura e permite que empresas e pessoas físicas apoiem diretamente projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura, com foco na produção e difusão artística.
O coletivo já escreveu para ambos, mas não obteve aprovação nas etapas finais da Rouanet. “O Primeira Cena foi aprovado pelo Ministério da Cultura, via Lei Rouanet, mas travou justamente na etapa de captação do recurso, o que mostra que, de fato, o [dinheiro] não chega para nós, na periferia. O projeto é de cerca de 2 milhões de reais, um recurso bastante significativo, só que não conseguimos atrair empresas para apoiar. Quando chega nesta etapa, e inclusive ainda está apto para captar e temos tentado articular, não avançamos”, diz.
“Isso tem tudo a ver com o fato de ser um projeto periférico, de não ter a visibilidade de artistas conhecidos ou de alguma instituição com nome mais forte e reconhecido”. Cai Teixeira, articuladora cultural e uma das mobilizadoras
Desigualdades no acesso à incentivos culturais
Maior concentração de recursos voltados à cultura no centro de São Paulo. É isso que os dados da pesquisa realizada pela Associação Cultural, Recreativa e Esportiva Bloco do Beco e o Observatório Ibira 30 mostram. O material traz um mapeamento sobre a distribuição dos recursos captados pela Lei Rouanet – mecanismo federal de incentivo cultural via renúncia fiscal, na cidade de São Paulo, entre 2014 e 2023, criado em parceria com a Fundação ABH e com a Universidade Federal do ABC (UFABC).
Entre os indicadores que evidenciam os padrões estruturais do financiamento cultural, é possível identificar que 88,86% dos recursos foram captados por projetos de regiões centrais da cidade de São Paulo, que abrigam 17% da população. Já nas periferias, onde vivem mais da metade dos paulistanos, foi distribuído 1,38% do total de recursos.
Segundo o estudo, projetos periféricos sofrem disparidades desde a submissão das propostas até a aprovação e captação de recursos, o que se relaciona com barreiras técnicas e institucionais. Ou seja, a lei existe, mas praticamente não chega. Quando chega, não é na sua totalidade.
Marcelo Zarzuela, um dos pesquisadores do Ibira 30, aponta que as leis de incentivo, em especial a Rouanet, precisam ser repensadas para incluir quem está fora do radar e promover soluções protagonizadas pelos territórios. “De fato, existe uma desigualdade imensa. A gente imaginava que ela estaria mais centro-periferia, mas não esperávamos que fosse tão grande. Essa concentração acontece em regiões específicas, como o chamado ‘corredor da cultura’, onde estão localizados os grandes centros culturais que ditam muito do que é cultura em São Paulo”, afirma ao citar sobre áreas periféricas que recebem 1,38% de todo o recurso, mesmo representando 50% da população da cidade.
O pesquisador destaca que apesar do recurso ser público, quem decide para onde vai o dinheiro são as empresas. Em razão dessa estrutura, os equipamentos de maior porte não apenas são os maiores da cidade em termos de visibilidade, mas também os mais articulados com as empresas incentivadoras neste processo.
“Se a empresa decide para onde vai o dinheiro e esses equipamentos conseguem dar mais qualidade para contrapartida do que uma organização de periferia, com certeza o recurso será alocado lá, pois as empresas também trabalham com essa perspectiva da visibilidade [dos seus negócios]”, explica Marcelo sobre o processo que reforça os ciclos de exclusão cultural.
“Não se pode pensar que uma lei existe para reproduzir as mesmas desigualdades que a gente enxerga na cidade. Essa [Rouanet] é uma lei que está reproduzindo, historicamente, as mesmas desigualdades que a gente tem e já conhece”. Marcelo Zarzuela, pesquisador e um dos coordenadores da pesquisa desenvolvida pelo Ibira 30.
O pesquisador aponta que, a partir do cruzamento de dados, identificaram os locais de concentração do recurso. “Percebemos que as coisas se casam: domicílio em situação de precariedade é onde não se capta Rouanet. Educação de mais qualidade é onde se capta mais”.
Fatores raciais cruzam com marcadores socioeconômicos. Bairros periféricos identificados com alto índice de pobreza e infraestrutura precária, como Cidade Tiradentes, São Mateus e Jardim Ângela, concentram a maior parte das favelas, enquanto distritos centrais recebem a maior parte dos recursos. No Jardim Ângela, 53,3% das residências são favelas; em Moema, 0%. Pinheiros (IDH 0,942) captou R$ 1,2 bilhão, enquanto Parelheiros (IDH 0,680) não teve projetos aprovados.
A pesquisa aponta a divisão da cidade de São Paulo que está organizada em 96 distritos, distribuídos em 32 subprefeituras. São mais de 11 milhões de habitantes e cerca de 570 mil (média de 5%) vivem na região do M’Boi Mirim, território em que a pesquisa se aprofunda, que inclui os distritos Jardim São Luís e Jardim Ângela.
A região do M’Boi Mirim, registrou 10 projetos que captaram recursos na última década, sendo 0,02% do total da cidade. Capão Redondo e Campo Limpo, que abrigam 9,39% da população, representam menos de 1% do montante arrecadado, com 35 projetos que captaram.
A concentração de recursos se dá principalmente em um raio de 5 km ao redor do centro expandido de São Paulo, o que representa 98% do total investido, com destaque para Pinheiros, que entre 2014 a 2023, responde por 20,36% de toda a captação municipal.
A Lei de Fomento à Cultura da Periferia, resultado da luta dos movimentos culturais periféricos, busca um modelo oposto: 70% dos recursos devem ser alocados à Área 3 (regiões periféricas com alta vulnerabilidade social e domicílios com baixa renda); 23% à Área 2 (regiões intermediárias em termos de domicílios de baixa renda) e 7% às Áreas 1 e 4 (centro e demais regiões com menor vulnerabilidade), com redistribuição conforme vulnerabilidade social.
Na prática, em São Paulo, existem territórios que recebem maior apoio estatal. Exemplos de grandes proponentes na Rouanet incluem: MASP – Museu de Arte de São Paulo (R$ 235,7 mi), Fundação OSESP (R$ 190,7 mi), Fundação de Apoio à USP (R$ 176,5 mi), Fundação Bienal (R$ 154,2 mi), Museu de Arte Moderna de São Paulo (R$ 113,4 mi), todos localizados na área 1.
Após aprovação, os projetos entram na fase de captação de recursos privados, etapa que depende da mobilização do proponente. A efetivação do recurso favorece quem tem redes consolidadas e conhecimento dos circuitos culturais. Mesmo São Paulo, que lidera nacionalmente em captação, apresenta grandes desigualdades territoriais. O Mapa da Desigualdade mostra que viver em certos distritos impacta diretamente o acesso a direitos básicos e serviços públicos.
Marcelo ressalta que muitas pessoas nas periferias deixaram de escrever projetos para a Lei Rouanet, pois até tiveram ações aprovadas, mas sem captação, isso pela dificuldade de ter acesso a um portfólio de empresas.
“Um passo importante é uma coalizão pensando em ajudar a mobilizar as organizações periféricas a voltarem a escrever projetos para a Lei Rouanet”, sugere. Outro fator que o pesquisador coloca é que, a desigualdade constatada através da pesquisa, também tem relação com o que é considerado ou não cultura.
Cai, da Usina dos Atos, afirma que existe uma tendência de enxergar arte apenas como grandes shows e eventos, o que apaga outras linguagens. Para ela, é necessário políticas públicas que incluam todas as formas de expressão artística, especialmente aquelas produzidas nas periferias. “Apesar de ser importante, a Lei Rouanet é muito excludente. Para muitas pessoas, ela parece tão complexa que nem tentam enviar projetos”.
“O poder público, especialmente as prefeituras que deveriam investir mais em ações formativas voltadas para os artistas e coletivos, oferecendo espaços para que eles aprendam a elaborar projetos e entendam os processos necessários. Em paralelo, [as organizações] têm um papel fundamental neste processo, apoiando artistas e coletivos a se desenvolverem na arte e na cultura”, avalia a articuladora cultural.
Ela aponta que o movimento e agentes culturais periféricos se organizam em busca de políticas públicas que têm sofrido cortes, atrasos e descontinuidades.“Em paralelo, não deixamos de produzir nossa arte e cultura. Continuamos fazendo e existindo, muitas vezes com recursos próprios, juntando um pouco daqui, um pouco dali, ou mesmo sem edital, resistindo e promovendo transformação nas periferias, a partir daquilo em que acreditamos”.
“No sentido financeiro ainda é difícil, porque as pessoas merecem receber pelo trabalho que realizam. Mas, felizmente, resistimos. Continuamos produzindo, fazendo arte, transformando, educando pessoas, construindo [novos olhares] e exercendo incidência política-cultural”, finaliza.