Com o avanço das desigualdades sociais, fake news e a desinformação, terapeutas analisam os impactos destes problemas estruturais na saúde mental da população periférica durante a pandemia de covid-19.
“Sinto que minha saúde mental decaiu durante a pandemia. Me senti por diversas vezes insegura, sem uma utilidade. Precisava de um emprego e não conseguia. Realmente incapaz! Tive problemas com ansiedades e afins”
Esse é relato de uma jovem de 23 anos que participou do levantamento realizado pelo Desenrola em setembro deste ano.
Além do aumento da fome, desemprego, mortes e outras tantas desigualdades, a pandemia também aumentou a proliferação da desinformação e fake news.
Diante deste cenário, conversamos com duas psicólogas que atuam com a população periférica, para discutir essas questões e traçar perspectivas sobre como esse contexto de desigualdades sociais e digitais afetou e ainda impactará a saúde mental dos moradores.
Segundo Thainá Aroca, psicóloga clínica, psicanalista em formação e integrante da rede PerifAnálise, um grupo de terapeutas que atuam nas periferias da zona leste de São Paulo, os filhos da classe trabalhadora já enfrentavam uma realidade difícil anterior à pandemia.
“O jovem periférico acaba tendo que enfrentar diretamente as dificuldades e os problemas de casa e assumir uma responsabilidade dentro de casa e ter uma preocupação financeira da dinâmica de casa, acabam tendo que contribuir com a renda da família para não serem despesas”
Thainá atua na linha de frente de combate aos transtornos da saúde mental da população negra e periférica durante a pandemia de covid-19.
Impactos da desinformação
Para Rosimeire Bussola, psicóloga atuante no SUS, psicanalista e também integrante da PerifAnálise, a pandemia mostrou os riscos das notícias falsas e o quanto podem gerar mortes.
“Enquanto nação, são as autoridades porta-vozes dos acontecimentos a nível social, são essas figuras que têm a responsabilidade de transmitir à população de modo seguro os acontecimentos”, enfatiza ela.
“Podemos ver o horror, o despreparo e desserviço causado por essas pessoas, incluindo principalmente o Presidente da República, que fomentou mentiras, desqualificou o trabalho científico”
Rosimeire Bussola reconhece o impacto da desinformação gerada por líderes políticos nos moradores das periferias.
A psicóloga ainda complementa: “Motivou a população a se aglomerar, criando um ambiente de risco e fazendo uso das notícias falsas para validar as suas falas”, analisa Rosimeire, e afirma que com posturas como essa, geraram dúvidas e incertezas que influenciam pessoas a comportamentos de risco.
“Perdi muito do pouco que tinha de controle da minha saúde mental, e com a atual conjuntura econômica do país e todo esse turbilhão de informações, digamos que influenciou um pouco no meu cotidiano e na ansiedade”
Esse é outro relados de um dos jovens que participaram do estudo realizado pela nossa equipe de produção de dados
A psicóloga Thainá ressalta que embora nas periferias a realidade do acesso à internet e outras garantias sociais ainda sejam muito precárias, ela percebeu em sua experiência clínica, que no momento de distanciamento social durante a pandemia, foi na internet que muitos jovens encontraram espaço de troca e conversas, como uma fonte de refúgio e respostas para a insegurança gerada pela pandemia e a falta de gestão pelas autoridades do país gerou na população de modo geral.
Políticas públicas
Ao analisar o cenário no qual os moradores das periferias, mulheres, pessoas pretas e lgbtqia+, foram a população mais afetada pela pandemia, fake news e desinformação, Rosimeire Bussola afirma que para pensar uma melhora da saúde mental dessa população, é preciso pensar no fortalecimento das políticas públicas, na garantia do acesso aos serviços do SUS e do SUAS – Sistema Único de Assistência Social.
“Ao acessar esses serviços, à população pode ter um espaço de promoção e prevenção de saúde, tratamento dos agravos deixados pela pandemia e informação construída de modo comunitário, pois esses serviços estão nos territórios, conhecem a realidade local, e juntos com a população pensam estratégias de cuidado”, explica a profissional.
“Já havia um quadro de ansiedade antes da pandemia, mas no ano de 2020 tudo se agravou e passei pela depressão. Foi um momento extremamente difícil. Havia tantas preocupações, era um caos mundo afora. Muita gente morrendo, medo de familiares e amigos se tornarem vítimas do vírus, ao mesmo tempo que lutava para me manter firme nos estudos, e como não conseguia, me sentia horrível. Desenvolvi a compulsão alimentar como nunca antes (já sofria de transtorno alimentar). Enfim, foi realmente um ano horrível. Porém, hoje venho melhorando de pouco em pouco, me sentindo mais forte a cada dia”
Relato de uma jovem de 17 anos, moradora da zona sul de São Paulo.
Thainá alerta que a piora da saúde mental da população periférica também faz parte de um cenário anterior à pandemia. “É importante ressaltar que as consequências da piora da saúde mental da população periférica percebida na pandemia não está exclusivamente relacionada com o início da pandemia da covid-19, mas sim está ligada ao agravamento de todas as restrições de acesso e estado de exceção que essa população já convive diariamente, antes mesmo da covid-19”, aponta a psicóloga.
Ele lembra que em 2020, o Ministério da Saúde, baseado no documento “Diretrizes para um Modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil”, pretendeu revogar portarias que organizam os serviços em Saúde Mental, no sentido de minar o funcionamento dessas políticas e focar em hospitais e ambulatórios psiquiátricos, enfraquecendo a atuação do CAPS, por exemplo.
Após décadas de implementação da RAPS – Rede de Atenção Psicossocial que estruturam a reforma psiquiátrica brasileira, a RAPS é apoiada na liberdade e na socialização de pessoas em sofrimento psíquico. A psicóloga ressalta que pensar saúde mental junto com a população periférica é também defender os serviços de saúde pública e denunciar ataques à Rede de Atenção Psicossocial
“É defender políticas de cuidado em saúde mental veementemente contrários à lógica racista, classista e punitivista em que estrutural e historicamente são fundadas prisões e manicômios. É defender o SUS e sua transversalidade de atuação”
A terapeuta da Rede PerifAnálise valoriza o legado do Sistema Único de Saúde – SUS, pelo fato de ser a principal serviço de acesso a saúde pública no país.
Thainá pontua que os coletivos e movimentos sociais periféricos foram os mais interessados em pensar ações de suporte e assistência para a quebrada nesse momento de crise. “Só demonstra o abismo de que os interesses do Estado não só não contemplam as realidades periféricas, assim como as negligência, sendo que é papel do Estado a garantia de acesso a direitos básicos à população de modo geral”.
“Minhas crises de ansiedade aumentaram, eu tive um momento de quarentena que faltou muito pouco para ter um surto. Fiquei o máximo que pude em casa, mas em algum momento temos que sair”, relata jovem de 21 anos, moradora da zona sul de São Paulo, que respondeu ao nosso levantamento de dados sobre saúde mental.
As psicólogas analisam que o atual cenário é preocupante e o futuro é duvidoso, por estarmos vivendo num contexto de retrocesso e desinvestimento nas políticas públicas de saúde, especialmente na saúde mental, além do desmonte das políticas já existentes.
“Alertamos que para que a saúde mental dos jovens periféricos possa ser cuidada, é importante que haja acesso aos serviços públicos que garantam atendimento à saúde mental”, reforçam as profissionais da saúde mental.