No Brasil, 45% dos brasileiros consomem algum tipo de bebida alcoólica, sendo 27% de forma moderada e 17% de maneira abusiva, segundo estudo do Centro de Informações Sobre Saúde e Álcool (CISA), que traz dados coletados até 2023. Considerando uma população com mais de 200 milhões de habitantes, isso representa cerca de 36 milhões de pessoas sob uso de álcool no país. O panorama também mostra que, entre as pessoas que declararam consumo abusivo de álcool, 59% são negras.
O sanitarista, pesquisador e redutor de danos, Allan Gomes, aponta que questões relacionadas ao uso excessivo de álcool são problemas sistêmicos. “O desemprego e a falta de oportunidade vão criando um cenário de vulnerabilidade e estresse constante. Quando não existe equipamento cultural, esportivo, de lazer, o bar se torna um ponto de lazer, [de socialização] para essa população, principalmente aquela que tem os marcadores de classe, de raça e de cor”, afirma.
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Segundo Allan, fatores sociais interagem entre si e potencializam o risco de quem desenvolve este uso abusivo, que também envolve a combinação de vários fatores sociais, econômicos e culturais.
“Questões de saúde, como o uso de álcool e drogas, atingem a todos. Por isso, é essencial olhar para cada situação a partir da redução de danos, construindo junto com a pessoa a melhor resposta para aquele momento, contexto e realidade”, pontua ao citar o uso que gera prejuízo ao indivíduo e, por vezes, as pessoas do entorno.
Ele coloca que o uso abusivo de álcool pode estar relacionado a uma série de situações, como o marketing para consumo da bebida, dificuldade de acesso a equipamentos públicos, questões familiares, contextos sociais e econômicos, entre outras situações. “Existe uma naturalização muito forte do consumo do álcool que muitas vezes faz parte da vida comum. Sempre irá aparecer como elemento de socialização para todo mundo. Esse marketing que existe da indústria do álcool é muito agressivo”, coloca.
Consumo x dependência
Ao considerar que o consumo de álcool não é o problema em si, mas sim a dependência, o especialista lembra que, entre os fatores do uso abusivo, em muitos casos, está vinculado a um recurso de socialização.
“É claro que socializar com álcool é algo comum, mas podemos problematizar [os contornos desse consumo em excesso], que afeta, por exemplo, a população de rua de forma muito diferente. A experiência de viver na rua é angustiante e pesada”, exemplifica ao citar sobre os diferentes contextos e motivações no consumo.
“Muitas vezes, o álcool funciona como um amortecedor, ajudando a lidar com o isolamento e a falta de políticas públicas. Acaba sendo um alicerce para suportar a vida em meio à precariedade. É como uma válvula de escape”. Allan Gomes, sanitarista, pesquisador, redutor de danos em álcool e outras drogas.
Ao se debruçar sobre as estatísticas, Allan analisa que a população negra é a mais impactada. Ele pontua um acúmulo de vulnerabilidades e a principal delas, quando se trata dessa população, é o racismo nas estruturas sociais. Para os homens negros, o cenário ganha outros contornos.
A edição de 2024 da pesquisa Álcool e a Saúde dos Brasileiros do CISA, mostra que mulheres negras (pardas e pretas) são as mais afetadas por mortes relacionadas ao álcool e a população negra em geral tem as maiores taxas de óbitos atribuíveis ao álcool.
“O uso histórico da bebida alcóolica carrega estigmas [colocados sob a pessoa que consome], mas se esmiuçar [voltamos aos] paradigmas raciais. O racismo vai adoecendo, nós, homens negros, e acabamos nos retraindo. Nesse contexto, o álcool se torna uma forma de acolhimento, mas também de destruição”, ressalta.
Políticas de cuidado como forma de prevenção ao excesso e dependência
O pesquisador ressalta a importância da rede de apoio quando existem circunstâncias de danos como reflexo do uso abusivo. Na perspectiva da política pública, através do SUS, cita os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), em especial os de atendimento para álcool e drogas que desenvolvem um trabalho de cuidado das pessoas com algum tipo de transtorno relacionado à bebida e outras substâncias.
Allan lembra que o SUS oferece o Programa de Controle do Tabagismo, que promove grupos de apoio nas Unidades Básicas de Saúde. “Da mesma forma, é necessário, em termos de política pública e SUS, construir programas de educação em saúde voltados ao álcool, tanto para quem deseja parar de beber definitivamente quanto para quem quer apenas reduzir o consumo. A redução de danos é importante, pois constrói junto com a pessoa e o profissional de saúde a melhor abordagem”, explica.
“Não existe uma abordagem fixa para cuidar do álcool na saúde pública. O essencial é dialogar com as pessoas sobre o uso problemático e abusivo, que afeta inclusive as dinâmicas familiares”. Allan Gomes, sanitarista, pesquisador, redutor de danos em álcool e outras drogas.
Ele coloca alguns caminhos para enfrentar o uso problemático de álcool, como: criar campanhas de educação e saúde sem apelo punitivista ou moralista; desenvolver programas de controle e redução do consumo que envolva as UBS no território; fortalecer outros espaços de acolhimento e acompanhamento e a elaboração de uma estratégia nacional focada em promoção da saúde, ancorada nos princípios da redução de danos.
“Existem os Narcóticos Anônimos, os Alcoólicos Anônimos, grupos de apoio comunitário que são estratégias a se considerar. Mas que eles não sejam a única resposta. A redução de danos, reconhecida pela Política Nacional de Saúde Mental há pelo menos 20 anos, ainda enfrenta muitos preconceitos, tanto entre profissionais quanto no nível da política pública. Isso porque ela é, acima de tudo, uma estratégia de direitos humanos”, destaca Allan.
Estrutura social e seus diferentes impactos
A política para Redução de Danos é uma resolução baseada na Portaria Nacional nº 1.028, de 1 de julho de 2005, que garante saúde com liberdade e autonomia. A mesma não é contra a abstinência, mas busca pautar um uso seguro que entenda as dinâmicas que atravessam a vida das pessoas.
Astro Rafael Feraci, psicólogo e redutor de danos que trabalha junto às populações em situação de vulnerabilidade, ressalta que a abordagem precisa sair do campo teórico e se aproximar da realidade das pessoas nos territórios. “Por mais que a gente tenha muitos relatos sobre como é uma droga legalizada com a via comercial e tudo mais, falta trazer para o pé no chão. O que é necessário é uma conversa sincera e trazê-lo como uma substância, pois muitas vezes o álcool nem é visto como droga. O álcool não é visto, o cigarro não é visto, o remédio, o café que se toma não é visto como uma substância”, explica.
Entre os atravessamentos nessa discussão que envolve desigualdades, para Astro, o acesso a espaços diversos também é uma camada de debate. “Qual é o tipo de lazer que cada região periférica consegue ter? O centro de São Paulo é um lugar mega badalado, com vários acessos à cultura, ao lazer e a espaços de socialização. Ao mesmo tempo, temos pessoas que conseguem acessar esses recursos e também o outro lado: a população em situação de rua, que não tem acesso a nada”, exemplifica.
“A redução de danos traz esse olhar para a singularidade do [indivíduo]. Quando a gente ouve a pessoa, a gente consegue atender o corpo completo. Também existe um lugar estrutural onde se olha para o uso de forma muito individual, pensando na pessoa que faz uso de substâncias. Só que o uso de álcool acontece de forma coletiva, socializando num rolezinho ou na rua para amenizar a fome, o frio e outras situações”. Astro Rafael, psicólogo e redutor de danos.
O psicólogo ressalta a necessidade de ações conjuntas que considerem as pessoas de forma mais ampla, também a partir dos atravessamentos sociais. Classe, raça e gênero são marcadores que estruturam as avaliações e uso dos espaços de saúde, como refletem os resultados da avaliação sobre os serviços de Atenção Primária do SUS, divulgada em 2025, a partir de uma amostra composta por 2.458 respostas de todo o Brasil.
O estudo ‘Perfil dos Usuários Mais Frequentes da Atenção Primária à Saúde (APS)’, mostra que mesmo sendo a população negra – 57,1% pessoas pardas e 16,2% pretas, em especial mulheres 60,2%, a que mais busca serviços de APS, são os homens brancos que melhor avaliam o atendimento. Ainda que eles não utilizem o serviço.
“Moro na periferia de Suzano, sou transmasculino não binário, então [coloco] outros recortes também para pensar esse uso. É importante colocar que estou falando de uma perspectiva própria [pois] minha história também se atravessa a partir desse assunto”, comenta ao pontuar outras perspectivas no debate debate sobre redução de danos com populações vulnerabilizadas.
Astro alerta sobre os efeitos do estigma com as pessoas em situação de maior risco que fazem o uso excessivo a ponto de causarem danos para si e coletivamente. “Isso gera um distanciamento desumanizado. A pessoa deixa de ser vista como humana e vira ‘outra coisa’, selvagem”. Para ele, reconhecer a importância da humanização na acolhida gera construção de vínculos genuínos.
Atendimentos públicos
Encontre endereços de unidades do CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas), principal serviço, funcionando em regime de “porta aberta” para oferecer tratamento multiprofissional e acompanhamento sem necessidade de encaminhamento ou agendamento prévio: Acesse aqui
Espaços que realizam reuniões dos Narcóticos Anônimos (NA) para orientação e encaminhamento próximos ao seu endereço: Acesse aqui. O site também oferece a opção de participar de reuniões virtuais.
O NA oferece uma linha telefônica para pessoas que precisam de ajuda imediata: 0800 888 6262 ou 132. Também existe a opção de conversar pelo WhatsApp: (19) 3255-6688.
Também é possível buscar apoio do grupo Alcoólicos Anônimos (AA): Acesse aqui para localizar endereços onde são realizadas reuniões presenciais ou virtuais.
O AA realiza atendimento também através de WhatsApp, pelo telefone: (11) 94719-6531. Além de um número de Plantão Telefônico: (11) 3315-9333.
As Unidades Básicas de Saúde podem orientar e encaminhar para tratamento especializado através do Sistema Único de Saúde.