O desmonte de políticas públicas aliado a pandemia da covid-19, aumentaram o cenário de carestia – encarecimento do custo de vida – nas periferias, impulsionando a luta contra a inflação, historicamente liderada por movimentos populares e de mulheres.
Na década de 70, o Brasil ainda passava por uma intensa ditadura que afetou os preços dos alimentos básicos nas periferias e favelas, de forma inigualável. Simultaneamente, os Clubes de Mães, criados em 1972, fizeram surgir militantes e ativistas que, anos depois, se engajaram no Movimento Custo de Vida, buscando diminuir a alta dos preços.
Ana Dias, foi uma dessas mulheres que ajudou na fundação do movimento, a fim de desenvolver ações para combater a carestia na época. Quase 50 anos depois, o encarecimento do custo de vida não deixou de existir e se intensificou com a pandemia e o desmonte de políticas públicas que o país vive. Assim como Ana Dias naquela época, Joelma Costa dos Passos, 25 anos, sente na pele o desafio de ir ao supermercado e perceber que os preços dos itens essenciais à vida mudaram drasticamente.
“Antes eu ia no mercado e com R$600 eu fazia a compra do mês inteiro, de limpeza, comida, verdura, carne… tudo isso eu conseguia. Hoje eu já não consigo mais”
relata Joelma, que trabalha no setor de limpeza.
Joelma é mãe solo e mora com o filho José Mateus, de 10 anos, no Parque Arariba, zona sul de São Paulo. Ela trabalha realizando limpezas em casas de família, e conta que além dos preços subirem, o valor que ganha mensalmente não subiu junto, já que recebe por dia, e na pandemia, muitas famílias pararam de contratar os seus serviços.
“Antes, além de eu trabalhar a semana inteira, o preço das coisas não estava tão absurdo assim, né? Agora muitas coisas eu tive que substituir. Antes eu comprava carne, agora eu estou substituindo mais por frango, linguiça, nuggets, quibe… qualquer outra coisa que dê pra dar uma auxiliada”, diz, sobre ter o poder de compra ceifado pela inflação, o que impactou a rotina alimentar dela e do filho.
Atuação do conselho de segurança alimentar
Para Maria Angélica, que atua no Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (COMUSAN), o preço dos produtos essenciais à vida sempre foi um fator para a desigualdade social, já que a aquisição do alimento não é para todos, principalmente para as famílias que estão nas periferias.
Conselheira desde 2018, mas envolvida com demandas territoriais de segurança alimentar desde 2012, Maria Angélica entende que a luta dos conselhos é a mesma que a dos movimentos contra a carestia: fazer com que a segurança alimentar nas periferias faça parte de um plano de governo; fazer o estado olhar para as necessidades da população periférica.
“Segurança alimentar não está no plano do governo […] Então quando chega a pandemia, a gente viu explodir de tal maneira [a insegurança alimentar], e o preço naquele momento não era a principal preocupação, e sim a ausência de conseguir aqueles alimentos, e também do poder público mandando qualquer coisa em um tamanho pequeno, pra nossa cidade que é gigante”
aponta Maria Angélica.
“Mandar qualquer coisa” é o mais preocupante para Maria Angélica, pois reforça o pensamento de que qualquer alimento serve para matar a fome, e segundo ela, a batalha do Conselho é oposta: é garantir que os alimentos que chegam na população periférica tenham todos os nutrientes necessários para a saúde.
“Quando veio a pandemia, o poder público que já não fazia nada, aí que não fez mesmo, durante meses, e a sociedade civil vai sozinha, sem nenhum aparato do governo, fazer conferências nos territórios. Aí nasce a esperança das pessoas pelos alimentos saudáveis que são: frutas, legumes e verduras, que tem que tá na mesa do pobre, porque é direito”, expõe a profissional sobre a ausência do poder público para dar o respaldo a população, fazendo com que a responsabilidade de se articular e criar soluções para o combate à carestia fiquem totalmente centradas nos coletivos, movimentos e conselhos.
” ‘Olha.. mas é muito caro comprar alimentos agroecológicos, é muito caro pra quem não tem nada e tá precisando’ [ouvia ela]. Ou seja, a alimentação saudável e equilibrada é só pra rico?”
questiona a conselheira.
A luta dos movimentos contra a carestia
A realidade que Maria Angélica lida dentro do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional e que Joelma vive diariamente, é próxima à que Ana Dias enfrentava. As coisas começaram a seguir caminhos diferentes quando ela e outras mulheres começaram a organizar atos para reivindicar qualidade de vida mais justa para as famílias periféricas.
“45 anos atrás era um mundo totalmente diferente. A situação da consciência e do despertar nasceu dos grupos e dos movimentos das mulheres, da preocupação de fazer com que a mulher fizesse algo”, relembra Ana Dias, 79 anos, uma das atuantes do clube de mães, e que junto a outras mulheres, lutaram contra a carestia.
Foi em 1978, que aconteceu uma grande Assembleia no colégio Santa Maria, e depois um ato na Praça da Sé, em São Paulo, organizado pelo Movimento Custo de Vida. As autodenominadas “mães da periferia” levaram milhares de pessoas às ruas e colheram mais de um milhão e trezentas mil assinaturas que reivindicavam direitos humanos básicos, que foram levadas até as autoridades.
“Tudo isso não aconteceu assim no susto, teve embate, teve discussão, teve encontros, teve enfrentamento, e no meio disso a gente conseguiu creches, escolas, postos de saúde… tudo isso a gente não tinha na periferia, a gente conseguiu através dessa luta e dessa união”
enfatiza Ana Dias.
Mais de 4 décadas depois, a luta e busca por direitos não cessou, e outros movimentos começaram a surgir para combater a carestia e dar seguimento à luta dos Clubes das Mães e do Movimento Custo de Vida. Em dezembro de 2021, durante a pandemia da covid-19, nasceu o “Comitê Contra a Fome e o Desemprego da Zona Sul”, que refez o ato proposto em 1978, e levou as pessoas para um ato público contra a fome e o desemprego no metrô Capão Redondo, no dia 21 de dezembro de 2021.
A motivação para o surgimento do Comitê foi a percepção de que as doações de cestas básicas e marmitas que haviam iniciado no começo da pandemia, já haviam chegado ao fim em muitas comunidades. Um acontecimento impulsionado principalmente pela falta de políticas públicas. Com isso, militantes partidários, Movimento Pelo Direito à Moradia (MDM) e cursinhos pré- vestibulares do território chegaram a uma conclusão:
” ‘Acho que vamos ter que fazer o segundo movimento contra a carestia’. E não é que pegou? Infelizmente pegou. A gente pensou que nunca mais ia ter que fazer isso… mas a gente entendia que precisava dizer pra população que ‘ó, estamos atentos’ ”
conta Regina Paixão, membra do Comitê.
Desde então, o Comitê tem se organizado para pautar uma vida mais justa para os moradores periféricos da zona sul.
“Os planos do Comitê têm sido se organizar para ocupar vários espaços da cidade que têm condições de construir ações que favoreçam a chegada de cestas para a comunidade como triagem de vagas. Conscientizar de volta a população sobre a agricultura urbana e também queremos responsabilizar os vereadores para se envolverem na pauta e nos apoiarem na pressão e na elaboração de leis que beneficiem a população”, exprime Regina.
Para Regina Paixão, assim como Ana Dias, continuar essa luta é dar voz ao sujeito periférico.
“Na verdade, todos precisam voltar a debater a questão política e a da representação popular. Voltar a ocupar espaços de comissões, plenárias, fóruns e movimentos para poder influenciar na economia e produção, e voltar também às ações contra a miséria e pobreza que incluem o investimento em ações sociais de renda”
ressalta Regina.
“Eu acredito muito na mulher. A mulher tem uma força, uma fé e uma crença. Na periferia é onde o povo sofre mais, sofre violência, fome, desemprego… então esse povo quando ele consegue despertar para fazer alguma coisa, ele nunca mais sai da luta”, conclui Ana dias, que há mais de quatro décadas luta no movimento contra o encarecimento do custo de vida e hoje reforça a importância de novas movimentações frente a desassistência aos territórios periféricos.