“As maiores vítimas têm a mesma cor e mesmo endereço da bala perdida”, afirma Elaine Mineiro sobre danos das enchentes

Iniciativa mapeia enchentes nas periferias de São Paulo com o intuito de comparar dados oficiais e pesquisadora de cidades aponta a necessidade de políticas públicas antirracistas para lidar com as consequências.
Edição:
Evelyn Vilhena

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Perder móveis e objetos pessoais em uma enchente não é algo novo para Mayara Carla de Lima, 31, auxiliar de limpeza e moradora da Vila Minerva, no distrito de Guaianases, zona leste de São Paulo. Lidar com as consequências das enchentes no território é uma situação que se repete na vida da morada de Guaianases, como ocorrido em fevereiro deste ano.

“Moro aqui a minha vida toda, nesta casa há exatamente 12 anos. A frequência de enchentes aqui é de 3 ou 4 vezes ao ano, principalmente se abrirem as comportas de Ferraz de Vasconcelos [que] alaga tudo por aqui. Pode estar caindo uma garoa, se abrir a comporta lá, aqui enche”, afirma a moradora de Guaianases.

“Já perdi tudo tantas vezes que eu nem sei falar direito. E aqui é nós por nós, ninguém mais ajuda se não for a própria comunidade. Porque na nossa subprefeitura não existe nenhum apoio, e quando vem, é depois que a enchente já passou duas semanas”

Mayara Carla de Lima, 31, moradora da Vila Minerva, no distrito de Guaianases, zona leste de São Paulo.

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Mayara conta que mora perto da subprefeitura da sua região, mas quando vai procurar alguém para receber alguma orientação, o processo se torna difícil.

“Você demora três horas esperando a boa vontade de alguém de procurar um assessor, um responsável para te dar uma resposta. Quando vem, a resposta é ligar no 156 e esperar, mas esperar o quê? Morrer alguém? A casa cair? Outra enchente? Nossos governantes de município não ouvem a comunidade”, afirma Mayara.

“Eu estou falando porque eu vivi isso, eu vivo isso. Eu pedi socorro, suporte para o estado e não tive. Eu saí com meu bebe de colo sendo carregada pelo pai dele, porque eu não sei nadar. Eu liguei para os bombeiros, mas ninguém apareceu. Estou até hoje esperando o resgate deles. Se não fosse a população, a comunidade nem estaria aqui hoje”, aponta Mayara ao relembrar a situação que viveu no começo deste ano.

O cenário relatado por Mayara, não é diferente para Tania Aparecida, 52, cozinheira, moradora do bairro Jardim Lourdes, no distrito de Lajeado, na zona leste de São Paulo. Tania é uma das moradoras que sofre todo ano com o impacto das enchentes no seu território e analisa que a primeira ação do poder público deveria ser mapear quem precisa de apoio.

“Dinheiro, aparatos para ajudar a gente o poder público tem, só não existe um interesse mesmo. Todo ano é a mesma coisa, todo ano isso acontece e eles sabem disso, sabem que vai acontecer, mas ninguém faz absolutamente nada”

Tania Aparecida, 52, moradora do bairro Jardim Lourdes, no distrito de Lajeado, na zona leste de São Paulo.

A moradora do distrito de Lajeado, reflete sobre a necessidade de ações para evitar as ocorrências que seguem acontecendo no território.

“Olhar para os territórios e enxergar quem está precisando de um respaldo e depois ter divulgação de uma própria educação para que as pessoas saibam o que fazer com o próprio lixo, incentivar as pessoas a discutirem sobre o que estão vivenciando”, reflete Tania.

“Todo ano isso acontece e eles sabem disso, sabem que vai acontecer, mas ninguém faz absolutamente nada”

Tania Aparecida, 52, moradora do bairro Jardim Lourdes, no distrito de Lajeado, na zona leste de São Paulo.

Dados insuficientes sobre as periferias

Diante das situações de perdas que afetam os territórios periféricos como resultado das enchentes, a mandata coletiva de vereadores de São Paulo, Quilombo Periférico, lançou um mapeamento para registrar enchentes e alagamentos nas periferias da cidade com o intuito de comparar com os dados oficiais e catalogar essas ocorrências para acompanhar como a Prefeitura de São Paulo está se preparando para prevenir e criar planos de contingenciamento em relação às catástrofes.

A iniciativa surgiu após a mandata constatar divergência entre os relatos e imagens de enchentes dos moradores de territórios periféricos em São Paulo e os registros do CGE (Centro de Gerenciamento em Emergências Climáticas da Prefeitura de São Paulo).

“Desde a segunda quinzena de janeiro recebemos de munícipes de diversas partes da cidade pedidos de ajuda, muitas vezes desesperados por conta de enchentes e alagamentos que atingiram suas residências. Colocamos nossas equipes. para atuar no atendimento emergencial, acionando os bombeiros, a Defesa Civil, Assistência Social e oferecendo suporte jurídico”, relata a vereadora Elaine Mineiro, da mandata coletiva Quilombo Periférico, sobre as primeiras ações executadas pela mandata.

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Elaine pontua a necessidade de investigar como essa subnotificação de casos impacta a ausência de políticas públicas efetivas de combate às enchentes, uma vez que o CGE é também o órgão responsável pelo planejamento técnico de ações de combate à essas situações.

“Consultamos registros de enchentes e alagamentos registrados pelo CGE nos últimos três anos. Nesse levantamento descobrimos que o CGE mapeou 500 pontos de alagamentos na região central e no mesmo período nenhum na Cidade Tiradentes. Quando olhamos para outras áreas da cidade como Guaianases, Sapopemba, Jabaquara e M’Boi Mirim, os dados eram muito parecidos e totalmente distantes da realidade dessas regiões”, aponta a vereadora com base nas análises realizadas pela mandata.

A iniciativa também identificou que as subprefeituras de Cidade Tiradentes, Guaianases, Sapopemba e Ermelino Matarazzo não possuem estações meteorológicas em seus territórios. Esses equipamentos são usados para medir, computar e fazer um registro histórico da frequência, intensidade e densidade das chuvas em diferentes pontos da cidade.

“Essas informações são muito importantes para o trabalho de prevenção e contingenciamento de enchentes e alagamentos na cidade e mais uma vez são [em] áreas periféricas, onde vivem a população preta e pobre da cidade, que essa política não é aplicada”, aponta a vereadora que reforça a necessidade de ações contínuas do poder público.

Elaine ressalta que se o órgão responsável por esse acompanhamento não tem em seus registros os casos de alagamentos e enchentes que ocorrem nas periferias, automaticamente essas regiões ficam fora do fluxo de planejamento das políticas públicas.

“Estamos falando aqui de racismo ambiental, quando os maiores prejudicados pelas catástrofes ambientais, pela falta de planejamento e contingenciamento de emergências são a população preta e periférica”

Elaine Mineiro, vereadora na mandata coletiva Quilombo Periférico.

Para registrar ocorrências de enchentes e alagamentos em territórios periféricos, a mandara coletiva Quilombo Periférico orienta o preenchimento do formulário online disponível aqui.

Desigualdade planejada

Para a pesquisadora de Direito a Cidade e espaço público LabCidade FAU USP e Coordenadora de Direito a Cidades Antirracistas do Instituto Peregum, Gisele Brito, as desigualdades vivenciadas pela população, o racismo ambiental e a segregação urbana, são frutos de um planejamento. Um planejamento que sempre buscou manter a população negra e pobre longe da população rica e branca.

“Se a gente não tivesse bem organizado onde mora cada um na cidade, onde moram os pretos, os brancos, os pobres, os ricos, a polícia não poderia sair por aí atirando nas pessoas. Atirar balas que vão achar sem erro nenhum corpos negros e corpos pobres”, aponta a pesquisadora sobre a dinâmica da ocupação dos territórios que define quem sofre mais ou não em um cenário onde a terra é mercadoria.

A coordenadora da área de Direito à Cidades Antirracistas do Instituto Peregum, aponta que existem uma série de políticas públicas pensando a cidade e moradia que foram conquistadas pelos movimentos da reforma urbana nos anos de 1960 e 1970. Segundo ela, esses movimentos conseguiram com que muitos mecanismos de proteção e justiça social fossem colocados nas leis, mas falta racializar os mecanismos para políticas públicas que de fato sejam antirracistas.

“É preciso que a gente pense a produção de uma cidade antirracista e não pode ser só da boca para fora. Precisamos começar a produzir política pública, instrumentos que façam isso, assim como foi quando pensamos na lei de cotas raciais.”

Gisele Brito, pesquisadora do LabCidade FAU USP e Coordenadora de Direito a Cidades Antirracistas do Instituto Peregum.

A pesquisadora ressalta que o racismo ambiental está sendo discutido há muito tempo, desde antes dos anos 1960, quando as quebradas já se organizam em busca de acesso a água, luz e saneamento básico para seus territórios, e mesmo que as pessoas não utilizassem o termo, isso já era um entendimento e uma luta contra a opressão.

“As cidades no Brasil são como são [e] as tragédias acontecem do jeito que acontecem por conta do racismo. As cidades no Brasil foram pensadas para serem um dispositivo de manutenção de uma sociedade racista que queria afastar e matar a população negra e usar a população pobre, então é importante que a gente continue expondo isso e se articulando para ficar mais forte e entender que o problema não é só nosso”, ressalta Gisele Brito.

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