Pesquisadora defende protagonismo periférico contra a violência estética das redes sociais

Segundo a pesquisadora Lidiane da Silva, a produção cultural periférica desafia estereótipos de classe e raça, sobretudo no ambiente virtual.
Edição:
Isadora Santos

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Tendência, trend, modinha ou hype, seja lá qual for o nome, todos refletem o mesmo fenômeno: a cultura digital, que conecta e influencia, na mesma velocidade em que pode desacelerar reflexões. Conteúdos virais e em alta têm gerado padrões de consumo e comportamento, especialmente entre jovens e adolescentes. Alguns chegam a esconder mensagens racistas e estereotipadas que afetam a percepção do que é estilo, beleza e identidade para pessoas periféricas, e em especial, negras.

Uma pesquisa realizada em abril pelo Porto Digital em parceria com a Offerwise, mostrou que 90% dos adultos com acesso à internet acreditam que os adolescentes não têm apoio social ou emocional suficiente para lidar com o mundo digital. O estudo, inspirado na repercussão da Adolescência, transmitida pela Netflix e que abordou os impactos da vida online na vida dos adolescentes, apontou que os maiores desafios para os jovens são a depressão e a ansiedade (48%) e a pressão estética (32%).

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‘‘As mídias sempre determinaram quem iria performar determinado padrão [de consumo ou comportamento], e até mesmo pessoas historicamente marginalizadas, ao ganhar visibilidade, em alguma medida, acabam reproduzindo estes padrões. Ao mesmo tempo, marcas e mídias se apropriam da estética e linguagem da quebrada, mas sem reconhecimento’’, explica Lidiane da Silva, pesquisadora e mestre em semiótica.

Tendências e racismo

Conteúdos sobre a estética “clean girl”, o look do dia, tratamentos capilares, rotina de skincare, bolsas, acessórios e centenas de produtos de luxo, se encontram com o vídeo da unha da semana, a nova tendência do modelo de calça, do procedimento estético bombástico do momento, segundo Lidiane, são exemplos que refletem padrões de consumo, estética e identidade. 

No pano de fundo dessas tendências, um dos debates é sobre o que é considerado bonito, descolado, que também se conecta com o que a mídia e as plataformas ditam como o que é desejável e valorizado. As pessoas compram e se apropriam desses estilos conforme o que é exibido. No entanto, o problema existe bem antes da chegada da internet, cita a pesquisadora, que tem se dedicado a estudar economia criativa e os modos de consumo e expressão no contexto das periferias.

“Inclusive, até falar sobre isso geralmente expõe que a pauta é levada a sério apenas quando vem de um influenciador ou influenciadora branco(a), privilegiado(a), ou quando os meios de comunicação replicam algo que o movimento negro já denuncia há anos. O movimento sempre apontou como a mídia forma padrões de beleza e estética baseados em corpos brancos, magros e ricos”, reforça Lidiane ao detalhar o perfil dos influenciadores que continuam ditando padrões e tendo mais alcance entre o grande público.

Relatório publicado em agosto de 2025, mostra que nomes como Virgínia Fonseca (26%), Nathalia Arcuri (3%), Bianca Andrade (2%), Anitta (1%) e Juliette (1%) lideram entre as mulheres, enquanto Felca (12%), Carlinhos Maia (9%), Whindersson Nunes (5%), Felipe Neto (3%) e Rodrigo Góes (2%) aparecem como os perfis masculinos mais lembrados entre os influenciadores brasileiros, segundo a pesquisa “Influenciadores Digitais 2025”, realizada pela Opinion Box em parceria com a Influency.me.

Segundo a pesquisadora, os padrões de beleza e referências culturais foram construídos para excluir corpos e culturas periféricas, e essa herança ainda influencia a forma como os sujeitos periféricos se percebem e são lidos socialmente. 

“A discussão estética para nós, pessoas negras, foi necessária, pois o racismo começou pelos brancos, [também pela] da via da [aparência]. Mas os avanços na mídia foram frágeis: as marcas só abraçaram a diversidade por lucro, não por compromisso real. A sensação de progresso é ilusória, e muitas vezes seguimos padrões explorados pela mídia.” Lidiane da Silva, pesquisadora e mestre em semiótica.

Ela observa que estilos da periferia são usados para afirmar status social, mas que esses espaços continuam violentos para a população negra e periférica. “Achamos que vencemos [ao encontramos] diversidade de corpos, tons de pele, gente preta e periférica. Mas, na real, as marcas nunca acreditaram nisso. Só viram [possibilidade de retorno financeiro] e tornaram disto tendência”.

Desigualdade de oportunidades para criadores periféricos

De acordo com a pesquisadora, embora criadores periféricos consigam gerar visibilidade e estabelecer novas referências, ainda enfrentam desigualdade de oportunidades, além de pressões sobre o que produzem e compartilham. 

“Criadores mais privilegiados, por exemplo, conseguem viver de seu conteúdo e mostrar uma vida que nem sempre é verdadeira. Já nas quebradas, a pessoa precisa trabalhar, dar conta de outras mil coisas, e ainda se esforçar para produzir conteúdo’’, afirma.

Criadores de conteúdos contam como é trabalhar com as redes sociais sendo periféricos

O impacto das redes, mesmo quando imperceptíveis, se estende especialmente aos adolescentes, que usam diariamente as plataformas digitais pertencentes às Big Techs (como TikTok e Instagram) não apenas como consumidores, mas também como personagens num espaço de construção de identidade e valores, controlado por algoritmos, ressalta. 

Nesse sentido, segundo Lidiane, as telas cumprem uma dupla função. ‘‘É comum ouvir que os pais precisam controlar o tempo de uso, mas, na prática, a realidade das famílias é outra. Muitas mães, sozinhas, acabam recorrendo às telas para manter os filhos seguros. O celular se torna uma espécie de babá eletrônica’’, esclarece, ao analisar os desafios que envolvem o uso excessivo para além da influência dos padrões de consumo e destaca a necessidade de compreender a responsabilidade das plataformas.

Protagonismo periférico

A pesquisadora destaca ainda que pesquisar academicamente, para si, está conectado ao seu próprio processo de autoafirmação, fruto da vivência na quebrada. Nascida e criada na comunidade do Parque dos Camargos, bairro localizado na cidade de Barueri, região metropolitana de São Paulo.

Filha de mãe diarista, que criou sozinha ela e seus irmãos, o estudo foi apresentado como uma forma de transformação da realidade. “Venho de uma família que não experimentou o acesso à educação formal, uma família [de maioria] não alfabetizada. Essa ausência me fez acreditar que, por meio dos estudos, eu poderia mudar a minha vida. Eu me agarrei muito a essa ideia, desde cedo’’, divide.

Esse movimento a levou a assumir sua pesquisa de mestrado e iniciou um processo de compreensão sobre sua posição enquanto sujeita periférica na universidade e no mundo. ‘‘Passei então a citar autores que colocam a quebrada no centro da discussão, como Tiaraju Pablo D’Andrea, Neuza Santos Souza, Vilma Ribeiro, entre outros”, conta sobre o processo de construção de referências.

Ao defender que o processo de construção de referência seja protagonizado pelas pessoas dos territórios, Lidiane reforça a importância de potencializar o trabalho de quem mora na quebrada, incluindo os próprios influenciadores que vivem nelas.

”As marcas seduzem, e a gente precisa delas para viver, ter visibilidade e construir identidade [no mundo]. Porém, no fundo, isso mantém um sistema capitalista e cruel. A questão é: como potencializar nossas próprias marcas? Precisamos colocar a quebrada no centro, sem depender de um sistema que nos oprime”, afirma.

“A quebrada é tecnológica, criativa e detentora de saberes próprios. Precisamos nos apropriar disso.” Lidiane da Silva, pesquisadora e mestre em semiótica.

Lidiane ressalta que o poder define conceitos de beleza e pertencimento, e que tem muitas pessoas falando de temas importantes: “Porém, são pessoas nadando contra a corrente.”

“No fim, para nós, a sensação de avanço é sempre muito sensível. A gente acha que conquistou muito, mas esses avanços são lentos, frágeis e sempre em disputa”, conclui.

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