No distrito da Brasilândia, zona norte de São Paulo, o Coletivo Prevenção para Todxs tem pautado a necessidade de dialogar com a população periférica sobre prevenção às ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis) e o acesso à saúde. A iniciativa, que surgiu durante a pandemia da Covid-19, começou com a distribuição de autotestes e de preservativos para os moradores dos bairros Jardim Guarani, Taipas, Parque Tietê, Jardim Elisa Maria, Parque Itaberaba, entre outros. Atualmente o grupo também circula por escolas para falar sobre prevenção.
Thiago Araújo, morador da Brasilândia, ativista, educador social e um dos fundadores do Coletivo Prevenção Para Todxs, conta que o cenário epidemiológico sobre as infecções foi um dos motivos para a criação do projeto.
ASSINE NOSSA NEWSLETTER
Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.
Segundo o Boletim Epidemiológico de 2024, do Ministério da Saúde, até junho de 2024, o Brasil registrou quase 20 mil novos casos de infecção por HIV e cerca de 18 mil diagnósticos de aids. A maior parte dos casos (37,1%) está entre jovens de 20 a 29 anos. A região Sudeste teve o maior número de mortes por aids (55,5%), seguida pela região Sul (18%). Mesmo com os números altos, a mortalidade por aids caiu 32,9% entre 2013 e 2023.
A sífilis é ponto de atenção entre jovens de 15 a 29 anos. Dados da OMS e da OPAS mostram que, entre 2020 e 2022, os casos entre pessoas de 15 a 49 anos aumentaram 30% nas Américas. No Brasil, o Ministério da Saúde aponta que o crescimento tem sido mais forte entre homens jovens.
Entre as hepatites virais, 13% das pessoas infectadas no mundo haviam sido diagnosticadas com hepatite B até o fim de 2022, e apenas 3% estavam em tratamento. Para a hepatite C, 36% foram diagnosticadas e 20% em tratamento, o que representa 12,5 milhões de pessoas.
Outra motivação importante para o surgimento do coletivo veio de uma vivência pessoal de Thiago. Após uma relação sexual desprotegida, ele precisou acessar a PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV), medicamento de uso emergencial que pode evitar a infecção pelo HIV, vírus causador da aids, se iniciado em até 72 horas após a exposição. Mas ao procurar atendimento na região, foi informado de que a profilaxia não estava disponível e precisou se deslocar até outra zona da cidade. A situação, além de angustiante, segundo ele, escancara as múltiplas desigualdades no acesso à saúde nas periferias.
‘‘Quando a gente olha e fala para a Brasilândia, estamos falando de diversos bairros, onde o SAE (Serviço de Atendimento Especializado) e o CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento) são muito distantes. [O mais] próximo aqui de onde a gente está é pelo menos uns 15 minutos. Mas, por exemplo, se você vai para Taipas, o mais próximo fica a uma hora de distância [de transporte público]”, diz o ativista.
“Pensando nesse contexto, temos noção, através dos dados do boletim epidemiológico, que os moradores daqui [da Zona Norte] só chegam no sistema de saúde quando já estão adoecidos, apresentando algum sintoma, pois o sistema não alcança essas pessoas ainda durante o período de testagem”.
Constatações como essas impulsionaram ações diretas e territorializadas do grupo, que atualmente realiza não só palestras, mas também rodas de conversa, oficinas e debates sobre prevenção, tratamento e combate ao estigma contra pessoas vivendo com HIV/Aids. A iniciativa também realiza a distribuição e facilitação no acesso a insumos de prevenção, como camisinhas internas e externas, gel lubrificante, auto testes de HIV, PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV) e PrEP (Profilaxia Pré-Exposição ao HIV).
‘‘O que mais nos preocupou foi perceber, durante as distribuições dos insumos, que muitas pessoas sequer sabiam o que era um preservativo interno ou o autoteste de HIV. Começamos a cobrar a Secretaria Municipal de Saúde para entender qual era o plano para esse público, pois o s dados só aumentam a cada ano” Thiago Araújo, morador da Brasilândia, ativista, educador social e um dos fundadores do Coletivo Prevenção Para Todxs.
O grupo realiza atividades principalmente em espaços educativos, como escolas e cursinhos populares, mas buscam levar informações a outros espaços que tenham interesse em dialogar sobre o tema. Em 2024, por exemplo, o projeto foi convidado para falar sobre prevenção sexual em uma igreja evangélica para um grupo de mulheres de 30 a 60 anos.
A iniciativa já alcançou diretamente mais de 1.500 pessoas por meio das palestras ministradas em cerca de 15 escolas. Indiretamente, o impacto já ultrapassa 3 mil pessoas, considerando a distribuição dos kits de prevenção, em parceria com o SAE Nossa Senhora do Ó. Além disso, participam de eventos públicos, feiras livres e campanhas nas ruas.
Estigmas e esteriótipos
Outra ferramenta importante que tem amplificado as ações é o podcast produzido pelo grupo que fala sobre prevenção, tratamento, cuidado humanizado e luta contra a sorofobia.
Jéssica Oliveira, co-fundadora e educadora no projeto, menciona a evolução dos encontros ao longo do tempo. “Eu acho que o saldo que a gente tem tirado de positivo é ver essas informações sendo levadas à frente. O nosso diferencial é usar uma linguagem mais simples [e] direta que as pessoas entendem melhor. A gente evita termos técnicos, aqueles que assustam e costumam aparecer nas escolas. Assim, prestam mais atenção e entendem com mais clareza [questões] que já [vivenciam no dia a dia]’’.
‘‘As pessoas não sabem onde buscar informações. O tema não é discutido em casa, a escola evita abordar, e a internet nem sempre é uma fonte confiável. Por isso, o coletivo cria um espaço aberto para perguntas sem julgamentos’’ – Thiago Araújo, morador da Brasilândia, ativista, educador social e um dos fundadores do Coletivo Prevenção Para Todxs.
O combate aos estigmas e estereótipos é parte crucial do trabalho realizado. “Sempre buscamos desassociar as ISTs [a algum grupo de pessoas], para que eles entendam que não é um bicho de sete cabeças, que há como se prevenir, que tem como se testar e se tratar. Queremos mostrar que é possível manter [a saúde] em dia, não só com a camisinha, como geralmente só é falado”, afirma Thiago.
Jéssica diz que sobrevivência é a palavra que resume a atuação do projeto. “A nossa região está sendo extremamente atacada pelas polícias, esquecida pelas políticas públicas. Nós não temos acesso à saúde, ao saneamento básico, à alimentação, a meio de transporte adequado. A gente tem buscado o mínimo de [direitos] que o governo deveria garantir para nós. Então, para a gente conseguir ter esperança, [mas] antes a gente tem que sobreviver”, diz.
Thiago aponta que existem avanços na pauta, mas que a periferia continua à margem. Nesse sentido, ele reforça a necessidade do funcionamento dos três pilares do SUS: integralidade, universalidade e equidade. Além do acesso a insumos e a informações, o educador coloca que para a prevenção às ISTs, a rede de saúde precisa estar pronta para receber as pessoas.
“Não adianta apenas chegar a máquina [de dispensação de PrEP e PEP na cidade], uma máquina parada ali não vai fazer diferença para a pessoa que não tem informação. Que chegue sim a máquina, mas com a informação e com acessibilidade para o acesso”, ressalta Thiago.