Em busca do sustento para os filhos, mãe solo enfrenta diariamente uma jornada tripla, que transforma a filha adolescente em responsável pelo irmão de cinco anos, que nessa faixa etária de idade não tem acesso a serviços públicos de educação infantil.
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Com a chegada da pandemia, as mães solo nas periferias de São Paulo se desdobraram para manter uma estrutura de cuidados com os filhos. Essa é a história da Irenilza Soares da Cruz, 46 anos, moradora do Cidade Ipava, bairro localizado no distrito do Jardim Ângela, zona sul da cidade.
Irenilza é conhecida carinhosamente como “Tuca” no território onde mora. Ela é mãe de cinco filhos, entre eles estão Thaís, 27, Stephanie, 21, João Pedro,14, e Thayná de 12, adolescente responsável por cuidar do irmão mais novo, o Luiz Fernando de cinco anos.
Baixa renda e jornada tripla
Segundo o Mapa da Desigualdade de 2021 da Rede Nossa São Paulo, a remuneração média mensal de um trabalhador com emprego formal no distrito do Jardim Ângela é de $2.450,00, mas o salário que Irenilza recebe por mês não chega a um terço desse valor.
“É difícil manter a casa só com um salário, porque vem conta de água, de luz, perua escolar. Então a gente vai fazendo como pode, esse mês compra uma coisa, mês que vem compra outra e assim vai”, conta Irenilza.
O fato de Irenilza deixar seus filhos sozinhos não se trata somente da confiança que tem em Thayná, mas também da necessidade de manter a casa e comprar o alimento para a família.
“Com esse dinheiro que minha mãe pagaria pra outra pessoa cuidar, ela tá juntando pra comprar as coisas pra dentro de casa” explica a adolescente.
“Quando eu chego do trabalho, vou lavar uma roupa, porque o resto das coisas minha filha mais nova já fez”
Irenilza é mãe de cinco filhos, uma dele é o Luiz de cinco anos.
Enquanto isso, a mãe se divide em três trabalhos: atuando como boleira, atendendo os clientes do seu barzinho e ainda realizando a venda de cosméticos como parceira da Avon. A Tuca foi casada por 16 anos, mas hoje se encontra separada e ela não poupa esforços para dar o melhor aos seus filhos.
Essa jornada tem sido ainda mais pesada e cansativa, pois a renda dela tem sido insuficiente para fazer as compras do mês, fato que a obriga a trabalhar em diversos lugares e ter pouco tempo para conviver com os filhos.
De segunda-feira a sexta-feira, Irenilza sai às cinco da manhã de casa, e a partir deste momento sua filha Thayná de 12 anos começa a cuidar das atividades domésticas e da criação de Luiz, seu irmão mais novo.
“Quando eu chego do trabalho, vou lavar uma roupa, porque o resto das coisas minha filha mais nova já fez”, relata Irenilza, apontando o papel da filha nos cuidados com a organização da casa.
A violação do convívio
Com a rotina puxada, ela relata que às vezes não consegue aproveitar o tempo com as crianças, mas que sempre se esforça para fazer algo diferente e estar mais perto da família.
“Tem dias que eu não consigo ter um tempinho pra eles porque eu chego muito cansada, mas o que eu consigo fazer com eles quando posso eu faço”, afirma.
O tempo para Irenilza é tão curto que ela não consegue participar das reuniões escolares dos filhos, porque os horários da escola não se encaixam na sua rotina, e suas filhas mais velhas também não conseguem ir porque trabalham.
Atuando desde 2011 como conselheira tutelar na região da M’ Boi Mirim e Jardim Ângela, Silvana Farias, de 50 anos, comenta que pandemia obrigou as mães solo a abandonar o emprego ou a deixar seus filhos em casa sozinhos para assegurar o trabalho e a renda da família.
“Aumentou os casos de mães que não sabiam como ter que trabalhar e não ter com quem deixar os filhos, foi complicado pois de qualquer forma a mãe era orientada e aconselhada que mesmo diante de tudo o que estava acontecendo, os filhos teriam que ter a supervisão de parentes ou vizinhos, sendo assim alguns conseguiram, outros abandonaram seus empregos”, relata a conselheira.
A conselheira destaca que esse cenário impacta ainda mais o convívio e a afinidade que precisa ser desenvolvida entre pais e filhos. “As famílias de hoje já não têm convívio algum, os pais têm pouco tempo para os filhos e de certa forma atrapalha no crescimento enquanto indivíduo, pois os conselhos que tínhamos antigamente poucas famílias trazem consigo para passarem este conceito de geração em geração”, explica.
“Entre 0 e 3 anos e 11 meses a criança tem a creche com período integral, mas entre os 4 e 5 fica sem esta assistência”
Silvana Farias é conselheira tutelar há 10 anos e tem vasta vivência com atendimento a mães solo no Jardim Ângela.
Silvana ressalta que a situação vivenciada por Irenilza, que tem um filho de cinco anos, afeta outras mães e famílias de todas as periferias de São Paulo, pois na primeira infância fica mais difícil conseguir um equipamento público de educação infantil com vagas abertas para essa faixa etária.
“Entre 0 e 3 anos e 11 meses a criança tem a creche com período integral, mas entre os 4 e 5 fica sem esta assistência, e com 6 anos pode ser inserido nos Centros de Crianças e Adolescentes (CCAs), só temos estas políticas públicas para auxiliar nesta fase da infância, não existe equipamentos públicos que poderiam atender com esta idade, isto é uma das dificuldades que temos”, conta a conselheira tutelar.
Nesse contexto, a pandemia contribuiu para o aprofundamento de problemas que antes eram pontuais entre as famílias do território. “Com certeza as famílias da periferia foram as mais afetadas neste período de pandemia, as denúncias por ‘abandono de incapaz’ aumentaram bastante”, aponta ela, argumentando que o abandono de crianças só aumentou porque as mães não tinham com quem deixar os filhos.
Felizmente, esse não é o caso da família de Irenilza, mas segundo a conselheira tutelar, muitos pais perderam seus empregos durante a pandemia, gerando um aumento significativo no atendimento do conselho tutelar da região.
“Quanto a questão financeira, muitas destas famílias perderam seus empregos e ficaram à mercê do auxílio emergencial, na nossa região muitas ONGs e movimentos acabaram auxiliando as famílias” diz a conselheira, reconhecendo a importância das ações solidárias que aconteceram na região, para garantir principalmente acesso a alimentação.
Filhos sozinhos na pandemia
Irenilza conta que a preocupação que sente em deixar seus filhos mais novos sozinhos é grande, não só pelo fato de a qualquer momento algo pode acontecer, mas principalmente porque ainda são crianças.
“Eu saio pra trabalhar, mas com aquela preocupação, que pode um fio ter um curto, o mais novo de 5 anos pode engasgar, porque ele é uma criança que se engasga muito. Então a gente sai para trabalhar, mas com aquele pensamento, sabe?”, desabafa.
Segundo Irenilza, a pandemia só piorou a preocupação com os filhos, porque as crianças nesse período ficaram mais doentes, e como ela não pode faltar no serviço, a insegurança toma conta dos seus pensamentos que focam na saúde das crianças e o medo de estar longe de casa.
Responsável por cuidar do irmão de cinco anos, Thayná está cursando a 6ª série na Escola Municipal Professor Edvaldo dos Santos Dantas. Ela conta que é raro os momentos que consegue se encontrar com seus amigos.
“Mesmo chegando cansada, minha mãe chega e brinca com a gente”
Thayná considera a mãe como uma grande amiga.
Mesmo na adolescência, Thayná já demonstra um amadurecimento em relação a situação da mãe e com os cuidados do seu irmão mais novo. “Minha relação com eles é muito boa. Eu sinto que estou tendo bastante responsabilidade né, cuidar assim, sendo tão nova”, diz a estudante.
Apesar de não ter tempo para conviver com os amigos da escola, ela conta que sua mãe todos os dias se torna sua melhor amiga, elas conversam e brincam bastante juntas. “Mesmo chegando cansada, minha mãe chega e brinca com a gente quando consegue, ela é muito brincalhona”, revela Thayná.
A partir dos relatos de Thayná, que demonstram o impacto de cuidar do irmão mais novo nas suas relações sociais com outros jovens da mesma idade, convidamos a psicóloga Thaís Ferreira,32 anos, formada pela Universidade Metodista e que atende famílias das periferias, para analisar suas respostas.
A terapeuta enfatiza que numa situação como essa vivenciada pela adolescente é de suma importância manter uma relação sadia e próxima entre pais e filhos. “Uma criança que acaba tendo que cuidar de outra, infelizmente ambos perdem aquele momento que precisavam ter com os pais, já que alguns acabam se responsabilizando pelo outro filho”, avalia a psicóloga.
“Oriento muito sobre atividade física para os adultos e para as crianças, o brincar, ter rotinas, mas cuidado com o excesso de telas digitais”
Thaís Ferreira é psicóloga com experiência em atender famílias em situação de vulnerabilidade social nas periferias.
Ela aponta que os impactos na saúde mental que envolvem essas situações de mães solo se intensificou durante a pandemia, afetando ainda mais o cotidiano das famílias. E que isso é tratado com cuidado caso a caso, mas que em sua maioria, as orientações e conselhos passados se assemelham.
“Eu sempre oriento as famílias a se ‘reinventar’, se adaptar, entender que foi algo que não estava no nosso controle, e então não podemos dominar a situação”, explica.
Ela esclarece que em situações de confinamento e perda de relações sociais, a prática de exercícios físicos ajuda no alívio da ansiedade e da depressão. O que ajuda bastante também é o desapego das tecnologias e redes sociais, tirar um tempo para si mesmo e praticar atividades que gosta.
“Oriento muito sobre atividade física para os adultos e para as crianças, o brincar, ter rotinas, mas cuidado com o excesso de telas como tablet, celular, televisão e games”, finaliza a terapeuta,