“Não tenho acompanhamento psicológico”: a saga de Malúe Aba Dias para sobreviver na pandemia

No retorno da série Relatos LGBTQIA+, a artista Malúe Aba Dias, moradora do Jardim João XXIII reflete sobre o futuro de pessoas não binárias na quebrada e o impacto da pandemia no seu direito de existir.

“Sou uma pessoa não binária e androssexual”, define Malúe Aba Dias, 21, artista que mora no Jardim João XXIII, zona oeste da cidade de São Paulo. Ela atua no movimento cultural do território onde vive, realizando saraus em espaços públicos, peças de teatro e outros eventos de cunho político e artístico.

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Malúe vive com a família, na qual, mora com a sua avó, primos e o seu pai. A artista conta que ao todo convive com sete pessoas dentro de casa, e relata como é a convivência diária com os parentes, que pouco compreendem as questões de gênero e sexualidade que impactam a vida de uma pessoa não binária.

“Sempre tive um maior contato com as mulheres de casa, minha vó e minha tia, ao todo sete pessoas divididas em três casas, eu, meu pai na primeira casa, a família do meu tio na segunda, minha vó na terceira, a convivência entre eles, eu acho natural e normal, claro, todos cis, o igual se conhece e se trata muito bem, agora comigo é diferente”, diz a artista.

Segundo a moradora do Jardim João XXIII, o processo de se assumir uma pessoa não binária começou em 2018, e de lá para cá muitas coisas mudaram a sua visão de mundo. “Me assumi em 2018, me entendia como cis, usava o nome de registro, ainda me sentia atraído por mulheres, foi um choque aqui em casa, nunca pensariam que pudesse ter alguém diferente em casa, mas fui me entendendo de outras formas, hoje entendo que sou trans não binaria, atraído por homens, que se chama Malúe, mas aqui em casa não me chamam pelo nome, já tentei explicar, gritar, mas não adianta, sei que não vão evoluir”, descreve.

A maneira como é tratada pela família, por mais normal que pareça para os parentes mais próximos, deixa marcas na trajetória de vida de Malúe, que vive um constante processo de construção de identidade. “Me enxergam com outros olhos, cuidam de mim de outras formas, mas na mente e emoção deixam de lado, às vezes me sinto sozinha, por não poder contar tudo para eles, pois vão me julgar e dizer que não é certo, eu sei que é sim, este sou eu, queira eles ou não, não vou voltar pra um armário que vivi por 19 longos anos, um dia sairei daqui e vou voar que nem uma borboleta”, afirma.

O pronome pessoal em terceira pessoa ‘ele ou ela” não se encaixa de maneira apropriada para se referir a o gênero não binário, pelo fato das pessoas que assumem essa identidade de gênero não se reconhecem como homem ou mulher, portanto, se identificam como um gênero neutro. Essa compreensão abre margem para que a forma de se referir a elas mude por completo.

Malúe faz questão de explicar o que é androssexual e conta como enxerga seu corpo. “É quase homossexual, mas como não me entendo como homem não seria assim, ou seja, androssexual é uma pessoa que sente atração por homens, seja trans ou não. Sou uma pessoa preta, gorda, forte, que sempre está em mudança, ama cantar, canto desde sempre, mas profissionalmente desde 2019.”

Como será o futuro? 

A maior preocupação que atravessa os pensamentos de Malúe é sua condição socioeconômica, que parece não dar sinais de melhora. “Eu acho que a maior dificuldade é não ter um emprego, não poder ter uma estabilidade financeira, ajudar em casa, comprar roupas e makes, porque tendo essa pequena estabilidade, você saindo pra trabalhar, comprar suas coisas, seu equilíbrio emocional, no meu caso, vai se igualando, angústia e medo vão indo embora por alguns momentos”, argumenta.

Mesmo diante desse cenário, a artista não deixa enxergar o futuro. “Eu estou tentando enxergar as coisas daqui para frente de uma forma positiva, que vamos sair dessa, já passamos por outras pandemias, não tirando a importância e letalidade que a covid-19 tem, creio que a sociedade em questão de direitos vai ser muito difícil de mudar, principalmente o patriarcado que está enraizada em nós, mas acho que com luta, com pessoas pretas, mulheres, indígenas, LGBTQIA+ nos altos cargos de governo, com todos unidos vamos alcançar algo muito bom no futuro”, reflete.

Atenta a sua contribuição para o universo artístico, Malúe fala sobre a importância de se preparar para aprimorar seus conhecimentos, visando um futuro coletivo para quem faz cultura na quebrada. “Eu espero me aperfeiçoar mais na arte que eu estou fazendo, tentando passar meu cotidiano e de muitos outres, através da arte, na música e dança, tenho essa esperança, meu futuro é a arte”, enfatiza.

O isolamento social e o corpo LGBTQIA+ 

Em meio a pandemia de coronavírus, muitas famílias estão construindo ou não laços de afeto que não eram exercitados da melhor forma antes do isolamento social. Nesse cenário, a artista destaca como a convivência familiar está afetando a sua saúde emocional. “Eu estou um turbilhão de coisas, são muitas coisas mesmo dentro de mim, é preocupação em arranjar um trampo e fazer as tarefas que já temos que fazer dentro das nossas vidas”, relata.

Aba Dias lembra que outro fator que mexe com sua estrutura emocional é a forma como os familiares demonstram se importar com você. “Dentro de casa se importam comigo, mas de uma forma que impede minha existência, eu tento entendê-los, mas não tenho nenhum acompanhamento psicológico, conheço pouco, mas também nem procurei muito, acho que por falta de tempo e dinheiro para me preocupar sabe.”

A aceitação do gênero e da sexualidade é um dos pontos que mais afetam o bem-estar da artista, que vive em busca de um apoio para lidar com situações adversas do cotidiano. “Para uma pessoa como eu, que se vê sozinha dentro de casa, não tendo a aceitação de quem se convive todos os dias, é complicado demais, porque não vemos ali um apoio, vemos os mesmos olhos julgadores que na rua, e ficar presa dentro de casa vai nos afetar com ansiedade, depressão e muitos outros distúrbios mentais”, avalia.

O dilema da não aceitação dentro de casa causa impactos severos na artista, como por exemplo, a necessidade de sair de casa para conseguir respirar outros ares. “Eu tenho ansiedade e essa falta de aceitação dentro de casa me faz sair, mesmo na pandemia eu sigo tendo todos os cuidados e usando todos os protocolos, máscara, álcool em gel, graças aos deuses não peguei esse maldito vírus, fico triste por ver jovens como eu não ligando realmente pra isso, saindo pra longe sem máscara e sem distanciamento, mas fazer o que, não temos uma mansão, uma piscina dentro de casa pra ficar, não tem nada que nos faça manter-se em casa”, avalia Malúe. 

Malúe Aba Dias mora no distrito do Jardim João XXIII, território onde ela afirma se sente mais segura. 

Me sinto mais segura aqui na minha quebradinha

Malúe Aba Dias, 21, moradora do Jardim João XXIII, zona oeste da cidade de São Paulo

Desde 1999, a artista mora no Jardim João XXIII, território que Malué considera o “fundão da zona oeste”. No seu ponto de vista, um dos diferenciais do bairro onde mora é a união entre os moradores.

“Sinto que o povo aqui de certa forma é unido, quase todo final de semana tendo um baile, um churrasco (infelizmente ainda nesta pandemia), gosto dessa união, aqui não vemos muita cultura, como há em outras regiões, até tem, mas geralmente os artistas ficam dentro de suas casas e vão se apresentar fora daqui”.

É no Jardim João XXIII que Malúe encontra sua rede de apoio, formada pelos próprios moradores do território. “A minha roda de amigos reside aqui, são quase que meus vizinhos, todos LGBT’s, são a minha rede de apoio, querendo ou não, são eles que me aceitam do jeito que sou, e uma parte dessa rede também é a minha família, que me fez ser que eu sou hoje, me deu fundamentos para ser a Malúe, mesmo eles não me aceitando eu os agradeço, sem eles não estaria aqui, mas eu e os amigues sempre estamos em alguma ação cultural aqui, mas é difícil, é um bairro que não teve uma inserção cultural antes, mas seguimos tentando e vamos conseguir”, conta, afirmando que neste momento está preparando uma proposta de projeto para o VAI, programa de valorização de projetos culturais destinado a coletivos artísticos das periferias de São Paulo.

Ao analisar a forma hostil como a cidade de São Paulo trata a população LGBTQI+, Malúe garante que se sente à vontade para circular em sua quebrada, mas que esse sentimento muda quando pensa em outras regiões da cidade. “Pensando na São Paulo toda, querendo ou não me sinto mais segura aqui na minha quebradinha, estou rodeada por pessoas que já me conhecem e de alguma forma vão correr por mim e vice-versa, o centro é mais aleatório, um corpo como o meu, preto, lgbt, ainda é um alvo, pensar como vou me vestir, me portar, não digo que nas margens não é assim também, porque tem seus casos, mas é algo que não acontece todo hora”, acredita. 

Jardim João XXIII – Zona Oeste ( Foto: Malúe Dias)

Canto pra que a pele preta e lgbt sempre estejam em nossos ouvidos

Malúe Aba Dias, 21, moradora do Jardim João XXIII, zona oeste da cidade de São Paulo 

A arte de cantar faz parte do processo de construção social e política de Malúe. A poética do canto a motiva a seguir em frente, para espantar suas frustrações. “A arte me fortalece muito, é nela que despejo minhas frustrações, alegrias, lágrimas, sorrisos, a arte está na minha raiz, nós pretos criamos o pop, jazz, blues e o rock, tornamos possível a ida do homem branco à lua. Eu canto para espantar os maus, canto para que a pele preta e lgbt sempre estejam em nossos ouvidos”.

Mas foi em um espaço de formação audiovisual que aconteceu o processo de percepção e construção de identidade da artista. “Fazer um curso do Instituto Criar, um curso de audiovisual voltado para pessoas pretas e que moram nas margens foi um boom na minha mente e no meu jeito de ser, conheci pessoas trans, lésbicas, gays, e ali fui entendendo que eu não era cis, muito menos bissexual, e que era tudo bem ser assim”, afirma.

Relembra que com cerca de 10 anos já percebia que tinha um comportamento diferente dos outros ditos meninos. Na escola sempre andava com as meninas e já sabia que sentia algo pelos meninos.

“Eu reprimia isso demais porque achava que era algo ruim e que não iriam me amar”, conta o artista, relembrando que antes do ano de 2019 nunca teve contato com pessoas Lgbts., e que a partir do curso, sua vida ganhou outro sentido para construir uma história livre de estereótipos e pressões psicológicas.

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