“Jaraguá é meu lugar de paz na cidade”, diz Jessica Cabral sobre ser mulher, preta e bissexual na quebrada

Jéssica Cabral compartilha suas vivências enquanto mulher, negra, periférica e bissexual na série Relatos LGBTQIA+, e conta também como a quebrada acolhe sua existência.  

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A auxiliar de limpeza e articuladora cultural Jessica Silva Cabral, 22, nasceu no Jaraguá, zona noroeste da cidade, mas mora há 13 anos no bairro de A.E Carvalho, localizado no distrito de Itaquera, na zona leste de São Paulo. Jéssica foi uma das articuladoras do Projeto Sancas, ação de lazer e cultura no território.

“A minha participação nesse projeto veio para eu entender que sou também uma base para quebrada, para entender minha identidade aqui, hoje em dia todo mundo que passa por mim, fala, ‘ah, eu já fiz o projeto e tal’, foi muito legal poder construir algo aqui dentro”, compartilha.

A articuladora conta que, no momento, seu principal foco é trabalhar e passar um tempo com sua namorada. “Sou uma jovem pobre, que tá sempre no corre de não se lascar, determinada, focada em fazer dinheiro, ganhar dinheiro. Minha vida é trabalhar, e agora que eu namoro, é trabalhar e ficar com a minha namorada”.

Atualmente ela mora com a mãe, o padrasto e o irmão: “Nossa convivência é bem cada um na sua. A gente gosta de ver novela juntos, e de final de semana tomar uma, a gente não tem muito essa coisa de fazer refeições juntos, ou esperar um ao outro para jantar, mas somos unidos da nossa forma, cada um no seu quadrado”, relata.

Jéssica conta que começou a perceber sua sexualidade através de uma música que ela ouviu e que seu entendimento enquanto mulher bissexual veio em torno dos 12 ou 13 anos de idade. “Foi quando eu comecei a me interessar, foi quando meu corpo começou a mudar e ter vontade de estar com outras pessoas”, afirma. 

“Nessa época eu lembro bem que eu virei pra mim mesma e fiquei ‘nossa eu acho que eu gosto de meninas e meninos’. Eu lembro que vi na TV a música ‘meninos e meninas’, e aí fiquei ‘putz, eu sou assim mesmo’. E foi isso que me marcou, que eu lembro de pensar já naquele momento sobre essa sexualidade.”

Jessica Cabral

Jessica relembra que com 13 anos falou para sua mãe sobre o que estava sentindo em relação a sua sexualidade, mas na época sua mãe não entendia muito bem e considerava que era coisa de indeciso.

“As pessoas leem os bissexuais enquanto confusos né, eu sofria muito bullying na escola, não tinha autoestima nenhuma, sempre achei que os meninos não iam se interessar por mim, então eu escolhi as meninas, e disse que era lésbica, fiquei dos 13 aos 19, e atualmente eu tenho uma liberdade muito maior dentro da minha casa”,

Ela conta que já conversou com sua família sobre sua bissexualidade, já namorou homens e mulheres que apresentou para a família e hoje tem o respeito deles. “Tem um entendimento, acho que as conversas e eu entender eles também implicou muito para que as visões deles sobre minha sexualidade mudassem também, mas hoje consigo dizer em casa que não sou indecisa, é uma escolha, e nós bissexuais existimos”.

Nascida em Jaraguá, ela afirma que o lugar que se sente segura na cidade é na quebrada. “Eu me sinto segura lá na casa da minha avó no Jaraguá, onde eu gosto de estar. Um lugar que me traz memórias de infância, que me traz tranquilidade, que me traz conforto e muita segurança”. 

“Acho que aquela quebrada lá no Jaraguá é meu lugar de paz na cidade, onde consigo ser eu sabe, me encontro comigo lá.”

Jessica Cabral

Jessica afirma que ser uma mulher preta e bissexual na cidade passa desde a fetichização desses corpos, aos estigmas criados diariamente.

“Ser lgbt na cidade de São Paulo é um inferno, é uma fetichização sem fim, tudo gira em torno do que você faz ou deixa de fazer com os gêneros que você se relaciona, com homens ou mulheres, tudo acaba se resumindo a relação sexual, ainda mais que tem os estigmas da mulata exportação e da negra raivosa”, afirma Jéssica que sente apontamentos desde colocações como “uma negona dessas ficando com mulher”, até alguma fala que se posicione, onde surgem mais comentários: “olha lá a sapatão falando, essa é mesmo”. 

(Foto: Bruna Ferreira)

“A quebrada em si me respeita, me acolhe, mas fora dela, eu sou só mais uma pessoa querendo chamar a atenção. Como a sociedade enxerga uma pessoa preta LGBT? Como pessoas que querem chamar atenção e existe uma invalidação das nossas sexualidades, gêneros, estilos, gostos, é perturbador”

Jessica Cabral

Cuidados e construções de laços durante a pandemia 

Jéssica começou a namorar durante a pandemia da covid-19. Ela conta que possuem uma ótima relação com a família uma da outra. “Todas as vezes que eu fui visitar minha sogra sempre fui muito bem recebida, muito bem acolhida, respeitada, e acredito que a mesma coisa se faz aqui em casa”, afirma. 

“A gente senta junto para beber e conversar, tenho a intimidade também de ter levado ela na casa da minha avó sabe, que foi a casa que eu fui criada, e toda a minha família, avó, tios, primos, adultos, crianças, evangélicos, macumbeiros adoram muito ela, e tem um boa relação com a gente junta”.

Jessica Cabral 

A moradora da zona leste acredita que por terem iniciado a relação durante a pandemia, aumentou o laço familiar. “O engraçado é que acaba sendo um namoro lgbt a moda antiga sabe, onde o casal frequenta a casinha uma da outra, almoça com a sogra, e acho que por ter começado essa relação bem na pandemia e por sermos mulheres periféricas, isso aumentou muito o laço familiar”

Assim como a pandemia afetou muitos corpos pretos, periféricos, pobres e lgbtqia+, o de Jessica também foi afetado. Ela conta que sua rede de apoio é sua família e amigas da quebrada: “São pessoas que estão por mim, somos as mulheres dos corres, correndo todo dia de um b.o”.

Ela conta que sua saúde mental foi afetada, e que muitas pessoas da sua família pegaram covid, entre eles seu avô, que não resistiu. “É muito difícil perder alguém assim, estamos todos aqui bem sentidos ainda, meu psicológico está bem ruim, e estou tentando trabalhar na positividade, na fé, estou em um momento de reflexão”, afirma.

Jessica fala que “a vida não mudou muito para quem está aqui”, que trabalha presencialmente durante a pandemia, e não parou em momento nenhum: “Só diminui quando a busca por faxinas deram uma parada também, mas o medo de contaminar alguém de perto sempre esteve comigo né, desde o começo, eu sigo tomando cuidado e com as precauções necessárias, máscara, álcool em gel, distanciamento máximo que der, porque não tem como ser o estipulado né”.

Mesmo com todo cenário da pandemia, Jéssica diz que tem que olhar para o futuro e tenta enxergar algo bom, apesar de muitas perdas.

“De acordo com meus planos pra ficar bem mesmo eu preciso voltar a fazer meus projetos, ajudar de novo na quebrada, a ajudar as pessoas daqui a terem outras perspectivas, preciso de conseguir um emprego melhor, que ganhe mais, preciso viver mais a vida sem ser só no trabalho, ou então mudar de país mesmo, talvez ir para Europa”, finaliza. 

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