“Estar só em casa é osso”: artista do Grajaú fala sobre o isolamento do homem trans na pandemia

A segunda entrevista da série Relatos LGBTQIA+ mostra a história de Gustavo Revaneio, morador do Grajaú que compartilha a rotina sobre como é ser um homem trans na pandemia e relata como o isolamento social foi agressivo e gerou alguns impactos emocionais e psicológicos no seu cotidiano.

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“Sou um homem trans, boyceta e pansexual”, define Gustavo Revaneio, 18, artista independente e comunicador, que mora do Jardim Mirna, bairro localizado no distrito do Grajaú, extremo sul de São Paulo. Durante a pandemia, ele afirma que o confinamento dentro de casa gerou uma série de impactos psicológicos que poderiam o ter levado a desistir de viver.

“Em uma visão mais psicológica é bem difícil pra gente estar trancado em casa e na maioria das vezes tendo contato apenas com as pessoas cis e heteronormativa”, afirma Revaneio, enfatizando que “em alguns dias e a disforia acaba sendo pior”.

Segundo o Manual de Transtornos Psiquiátricos para Profissionais da Saúde (MSD), a disforia de gênero se caracteriza pela identificação com o gênero oposto associada à ansiedade, depressão, irritabilidade e muitas vezes a um desejo de viver como um gênero diferente do sexo do nascimento.

Para o morador do Jardim Mirna, não estar em contato com os seus iguais da comunidade LBTQIA+ gerou uma forte crise emocional durante a pandemia. 

“Sair e ver pessoas como a gente é muito importante, se reconhecer no outro, ter referências. Estar só em casa é osso. Teve dias que só fiquei dentro do quarto apenas pensando e tentando me livrar dessas coisas que como eu disse não é meu, a disforia quem causa é a cisgeneridade. É um verdadeiro limbo entre dias bons e ruins”

Revaneio acredita que é importante se manter vivo, pois por mais difícil que pareça, pois a comunidade LGBTQ+ precisa resistir e se fortalecer com o apoio do outro. “Muitas pessoas se inspiram em nós e a gente nem sabe, vivo por isso, vivo pelos meus. E não sinto que seja a comunidade LGBTQ+ no geral. Vejo a população TRANS como a mais vulnerável.”

O artista independente ressalta que o apoio familiar fez toda a diferença ao longo dos últimos meses da pandemia em que ele ficou dentro de casa sem contato presencial com os seus amigos. “Eu sou muito privilegiado em poder ter diálogos com minha família. Muitos dos nossos estão morrendo na rua ou até mesmo dentro de casa e ver isso também é muito gatilho pra pensar em desistir, mas como eu disse acima preciso estar vivo”.

Antes pandemia de coronavírus, o território onde Revaneio reside no Jardim Mirna, extremo sul de São Paulo, era e é um ponto de autoafirmação da sua identidade. Ele conta que sempre estava em contato como o movimento cultural da região. 

“Sempre busco estar em contato com meu território, fotografando eventos no Centro Cultural do Grajaú e em outros espaços culturais da quebrada. Para além dos eventos culturais, procuro também fotografar o território, fazer grafites e espalhar a minha arte, frequentando os ateliês dos coletivos e criando uma rede com quem está na cena cultural do Grajaú”.

“meu trampo , seja com foto, vídeo, pintura ou colagem é pensado no meu território, o Grajaú é meu país.”

Gustavo Revaneio

Em meio a tantas questões negativas causadas pelo isolamento social durante a pandemia, Revaneio compartilha uma notícia positiva, descrevendo sua experiência e descobertas em relação ao começo do tratamento hormonal. “Comecei faz um mês. Está sendo incrível. A cada dia estou podendo me conhecer melhor. É uma sensação indescritível”.

Ele não vê o tratamento hormonal como algo necessário para essa afirmação social do que é ser homem, mas ressalta que sempre teve vontade de ter essa experiência. 

“São apenas vontades que eu sempre tive e ver isso acontecendo com meu corpo me enche de felicidade. Ultimamente ando correndo atrás do Centro de Cidadania pra pessoas LGBTS em Santo Amaro, já que não tenho convênio particular. Lá eles oferecem psicólogo, acompanhamento para o tratamento hormonal e também auxiliam no processo de retificar o nome e o gênero”, finaliza. 

“Pra ser homem basta se sentir um” 

Gustavo Revaneio morador do Grajaú (Foto: Mei -Natália Miguel)

“A descoberta da minha sexualidade e identidade caminham lado a lado, um levou o outro e foi de uma forma bem lenta”, revela o jovem. Com 18 anos, a história de sua autoafirmação e descobertas sobre seu corpo e sua identidade de gênero são recentes, fato que faz o artista relembrar os momentos que mais o marcaram dentro desse processo de descoberta.

“Tive que me desprender de muitas coisas ensinadas desde criança, foi quando eu entendi que ser homem não está nada ligado com a ideia do ‘masculino’ e que são apenas construções da sociedade”, argumenta Revaneio, enfatizando que o conceito de gênero masculino pode ser ressignificado.

“Pra ser homem basta se sentir um, da sua forma e sem se basear em nada e nem ninguém. Cada ser é único e tem a sua individualidade e a sua forma de manifestar a sua orientação de gênero. Estereótipos foram criados e enraizados e precisamos todos os dias lutar contra essa construção”

Ao relembrar esses momentos de constantes descobertas, ele conta também como foi o diálogo em casa e os processos de relacionamento com a sua família. “No começo foi bem difícil a adaptação pra me chamar no gênero e nome que me identifico e até hoje é um processo para minha mãe e meu padrasto me chamar dessa forma”, relata.

Ele complementa ressaltando “quase sempre eles ainda erram, mas sempre que possível é conversado pra que não falte com o respeito”. Segundo Revaneio, tem dias que ele não está a fim de corrigir ou falar nada com seus pais. Isso é algo que já me machucou muito e tem dias que ainda dói bastante, porém com conversas e cuidado tem sido algo que tem melhorado com o passar do tempo”.

O jovem finaliza a entrevista afirmando que o diálogo com sua irmã de nove anos, ele só precisou falar com ela uma vez para ela entender o momento que ele estava passando. 

“Foi preciso apenas uma vez para dizer a ela como eu me identificava e como queria ser chamado pra que ela começasse a mudar a forma de me chamar e sempre que ela erra corrige. Quando estou mal é o que me ajuda a seguir, minha outra irmã de um ano também me chama de irmão, nunca me chamou de outra forma e é isso que nos dias ruins me ajuda a sentar, respirar, me acalmar e seguir”. 

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