Direitos invisíveis: abastecimento de água continua irregular nas periferias de SP

126 dias após a divulgação oficial do primeiro óbito por covid-19, o novo coronavírus, ocorrido na cidade de São Paulo no dia 16 de março, toda noite de segunda-feira a domingo, a água vai embora e só retorna pela manhã na casa de muitos moradores de periferias e favelas. 

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Na quinta reportagem da série Cidade dos Direitos Invisíveis, o abastecimento de água surge como uma das principais inquietações apontada por moradores do distrito do Capão Redondo e Cidade Ademar, na zona sul de São Paulo. Apuramos que após 126 dias da divulgação oficial do primeiro óbito de covid-19 no município, ocorrido no dia 16 de março, toda noite de segunda-feira a domingo, a água vai embora e só retorna pela manhã.

No mês de março deste ano, a Coalização pelo Clima, rede de coletivos que debatem e promovem ações de acesso à informação para combater mudanças climáticas, deu inicio a um processo de identificação de casos na cidade de São Paulo, onde os moradores estavam enfrentando problemas de abastecimento de água no início da pandemia. Na primeira fase do estudo, foram identificados 138 relatos de moradores que residem em periferias, favelas e cortiços nas quatro regiões do município.

Em meio à pandemia de covid-19, o novo coronavírus, a freqüência desses relatos reforça a crise sanitária em curso nas periferias. “No meu bairro falta água 1 hora e só volta de manhã”, conta Silvia de Souza, 43, moradora da Cidade Julia, no distrito Cidade Ademar, citando o horário que ela e seus vizinhos ficam sem água de maneira rotineira no bairro.

Silvia lembra que essa experiência de ficar sem água não é algo novo. “Teve uma vez que ficamos quatro dias sem água por causa de uma obra da prefeitura. Já é difícil ficar sem água, agora com esse vírus é muito mais difícil. A gente ta desprotegido aqui”.

No Capão Redondo, distrito localizado do outro lado da zona sul de São Paulo, que faz divisa com o município de Itapecerica da Serra, Embu e Taboão da Serra, Cristiane Silva, 39, afirma que morar no território é conviver com uma infraestrutura precária de serviços essenciais à vida. “Aqui tem casas de alvenaria e outras de madeira, em muitas partes as ruas são de barro, falta água sempre aqui e a energia é bem precária, não funciona quase nada”.

Dados invisíveis

No início do mapeamento realizado pela Coalização pelo Clima, no distrito do Capão Redondo foram registrados 11 casos de abastecimento irregular. Já na Cidade Ademar foram registrados quatro casos.

Com mais de 268 mil habitantes, o Capão Redondo tem uma média de 19 mil por quilômetro quadrado. Como o abastecimento de água atinge um bairro inteiro ou mais, fica impossível saber quantos moradores de fato estão sendo afetados pela falta de água.

Esse cenário muda completamente quando observamos os dados demográficos da Cidade Ademar. O distrito tem uma das maiores densidades de moradores da zona sul de São Paulo. Mais de 22 mil pessoas residem por quilometro quadrado no território, o que só aumenta ainda as incertezas sobre quantos moradores de fato estão sendo afetados neste momento de pandemia pelo interrupção no fornecimento de água.

Embora os moradores apresentem essas vivências que ilustram uma realidade cotidiana, as campanhas públicas veiculadas pela prefeitura de São Paulo pedem que se lavem as mãos com certa periodicidade, para prevenir o contágio. Na análise do geógrafo e mestre em planejamento e gestão do território, José Donato, morador do Campo Limpo, a água faz parte de uma dura realidade periférica.

“A questão da água nas periferias traz uma realidade muito dura, no sentido em que nos meios de comunicação sempre aparece uma mensagem para você lavar as mãos e se higienizar, quando você sabe que você tem aquele princípio limitado, que em determinados horários você não vai realizar o básico”

afirma o geógrafo, destacando a questão marcante que e o horário que a água costuma sumir das torneiras.

Ele enfatiza que a limitação dos moradores ao consumo de água gera uma desigualdade social em relação aos hábitos de higiene individuais e coletivos. “As pessoas trabalham diante das possibilidades com uma grande limitação do acesso à água, que muitas vezes é básico para o seu consumo e agora tem que dividir com higiene, com maior esforço de manter as mãos limpas, de lavar as máscaras, têm uma limitação de cuidar de si mesmo e do próximo”, analisa.

“Meu sonho é ter todas as ruas asfaltadas, rede de saneamento básico e energia elétrica de qualidade”

A profissão de diarista sofreu grandes impactos durante a pandemia de coronavírus. Quem não perdeu o emprego, foi afastada do posto de trabalho por tempo indeterminado, está trabalhando com uma carga horária reduzida ou em poucos dias no mês, o que afeta diretamente o salário final, comprometendo a renda familiar.

A relação entre trabalho, renda, moradia e urbanização está diretamente conectada a vida da Vanusia Silva, 43, moradora do Jardim Itaoca, no Capão Redondo. Ela relata que vive numa constante crise com o território onde vive com mais oito membros da família. “Quando chove vira aquele rio, não dá nem para passar, tem que esperar, mas a prefeitura não está fazendo nada pela gente não, continua igual, só que agora é pior porque precisamos mais”.

Vanusia diz que a pandemia aumentou as dificuldades de manter uma renda familiar estável. “Eu trabalhava de diarista, agora por causa do coronavírus, só vou um dia e isso dificulta muito porque só meu marido tá trabalhando aqui e somos oito. Estamos vivendo basicamente com o salário do meu marido e o auxílio emergencial que eu consegui”.

Desempregada e sem renda, a moradora da Cidade Ademar, Silvia Souza, está numa situação parecida com a de Vanusia. “Estou desempregada e sem renda, moro no terreno dos meus pais e estamos vivendo das doações”, afirma ela, cobrando uma posição do Estado, que deveria se atentar a questão de moradia.

“Acho que o governo deveria fazer mais habitações para que as pessoas saiam do aluguel, porque hoje quem ganha um salário mínimo paga 600 ou 700 reais de aluguel e o resto não dá nem para o mercado. E nesse momento, se as pessoas não tivessem que pagar o aluguel sobraria um dinheirinho a mais para ajudar a se cuidar”.

Silva acredita que a questão da moradia está ligada com a segurança habitacional. “A moradia própria tem uma ligação direta com a segurança, a segurança de você estar em um local e no dia seguinte você vai continuar nele. A dificuldade de ter acesso a moradia principalmente pelos custos, longos períodos de pagamentos, o sonho da casa própria é cultural, que vem passando de gerações. Hoje é menos coletivizada dentro do imaginário da população e mais individual, onde você tem uma questão de luta individual pela moradia onde você vai agregar sua família”.

Embora não se conheçam e também não sejam vizinhas, Cristiane, moradora do Capão Redondo, conta que seu sonho é presenciar a urbanização e a melhoria da vida no bairro. “Meu sonho é ter todas as ruas asfaltadas, rede de saneamento básico e energia elétrica de qualidade. Eu tinha e continuo a ter o sonho da moradia própria, porque vivo em uma ocupação e a qualquer hora podem me tirar daqui”, finaliza.

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