Inteligência periférica: como trabalhadores “informais” sobreviveram ao desemprego e à pandemia em 2020

Na primeira reportagem da série “Inteligência Periférica” contamos sobre o desemprego nas periferias de São Paulo com uma análise histórica do núcleo de pesquisa do Centro de Estudos Periféricos e como esse cenário reflete na vida de um DJ, que durante a pandemia precisou parar de dar aulas para evitar aglomerações, e após alguns meses voltou a gerar renda com o trabalho de vendedor ambulante nas linhas de trem da CPTM em meio à pandemia de covid-19.

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Diante das crises de desemprego, falta de segurança física, emocional e financeira, trabalhadores informais têm usufruído da sua inteligência estimulada pela necessidade de sobrevivência e causada pela ausência de direitos sociais, para adaptar estratégias de geração de renda sem apoio do governo, cenário que existe desde antes da pandemia de covid-19.

Um dos impactos sociais gerados pela covid-19 nas periferias e favelas de São Paulo, logo nos primeiros meses da pandemia, foi a necessidade do fechamento parcial ou total das atividades empresariais de iniciativas fomentadas por micro empreendedores, além dos trabalhadores informais, expondo a fragilidade das condições de trabalho desses profissionais que há muito tempo lidam com a falta de assistência do poder público.

O trabalho autônomo e informal não é algo novo para muitos moradores das periferias do país, que na ausência de vagas de trabalho com carteira assinada, com o sucateamento das relações de trabalho, e o racismo institucional e estrutural, criam suas próprias possibilidades para gerar renda. Muitos encontraram no mercado de trabalho informal uma solução para não depender do emprego com carteira assinada.

Uberização da vida, evolução do bico, empreendedor periférico, desocupados e trabalhador autônomo são alguns dos termos que tentam ilustrar o cenário de precarização das relações trabalhistas no qual vivem essas pessoas. Mas afinal, desde quando essa realidade passou a fazer parte da vida de quem mora nos territórios periféricos? 

Contexto Histórico: o desemprego nas periferias de São Paulo

Desde 1990, quando ocorreu um forte processo de desindustrialização na capital paulista e muitas vagas de trabalho e emprego desapareceram em decorrência da guerra fiscal, os trabalhadores das periferias enfrentam a ausência de políticas públicas de geração de emprego e renda, especialmente na cidade de São Paulo.

Essa análise histórica foi realizada pelo grupo de pesquisadores Cleberson da Silva, Nataly de Oliveira, Egeu Gomez e Matheus de Carlos, que atuam no núcleo de trabalho do CEP – Centro de Estudos Periféricos da Unifesp, iniciativa que propõe centralizar o seu olhar acadêmico e social para a produção de conhecimento sobre o cotidiano dos territórios periféricos.

“Não houve uma preparação dos trabalhadores que permaneceram na cidade para trabalhar em outras atividades que demandam um maior domínio da economia do conhecimento, e tampouco aos jovens que chegavam ao mercado de trabalho”, afirma o grupo de pesquisadores do CEP.

Com o agravamento da crise de desemprego, eles avaliam que para além de atingir adultos e idosos, sobrou para a juventude a tentativa de concorrer a uma vaga de trabalho formal em programas de primeiro emprego, como Aprendiz. “Muitas das oportunidades eram em empresas públicas como o Correio e Caixa Econômica Federal. Como as vagas não são suficientes, para a maior parte restou os chamados ‘bicos’ e diversas formas de trabalho precarizado”.

A ausência de assistência para as necessidades dos moradores dos territórios periféricos reflete diretamente nas formas que eles encontram para se reinventar e garantir uma renda no final do mês.

Segundo o Centro de Estudos Periféricos, a falta de oferta de trabalho próximo aos locais de moradia, resulta em enormes deslocamentos realizados diariamente pela população periférica.

“Uma das alternativas encontradas pelos trabalhadores das periferias foi criar as empresas de garagem. Uma garagem pode se transformar em um ponto comercial rapidamente para gerar renda para o proprietário do imóvel e complementar uma aposentadoria, ou para um aposentado iniciar algum negócio, mas os jovens também têm usado as garagens para montar salões de beleza, lanchonetes, cyber cafés, tabacarias, etc”, analisa os pesquisadores.

“Os trabalhadores da periferia encontraram o empreendedorismo como estratégia de sobrevivência e não como o ideal propagado por homens brancos dentro de um escritório.” Núcleo de Trabalho do Centro de Estudos Periféricos. 

O grupo de pesquisa dedicado a compreender as transformações sociais nas relações de trabalho explica que trabalho informal não significa ilegalidade. “Entendemos que o termo empreendedorismo está relacionado a quem trabalha de forma autônoma, por conta própria, seja sozinho ou em pequenos grupos, geralmente familiares. Comércio informal é aquele que se dá de maneira não regular quanto ao estabelecimento, no que é referente ao alvará de funcionamento, licenças e outras permissões, mas cujo produto comercializado não é ilegal ou oriundo do tráfico. O trabalho informal é aquele que não atende às leis trabalhistas vigentes”, finaliza. 

Pesquisa Seade – Janeiro 2020 / Elaboração: Flávia Lopes – Info Território

Correria hoje, vitória amanhã

O primeiro trabalhador informal que nós entrevistamos é o Paulo dos Santos, mais conhecido como DJ Dagoma. Ele atua como Dj, arte educador, e também vendedor ambulante dentro dos trens da CPTM. O Dj começou a trabalhar como ambulante a partir do convite de um amigo, que emprestou 20 reais para a compra da primeira mercadoria, isso ainda no início dos anos 2000. Na época, Dagoma trabalhava olhando carros no Cartório de Carapicuíba, região oeste de São Paulo.

“Ele me emprestou 20 reais, e a caixa de paçoca era 10 reais cada. Eu comprei duas caixas e comecei com duas caixas de paçoca. No final do dia eu tinha vendido 10 caixas de paçoca. E aí eu comecei a ir e estou até hoje. Ele faleceu já faz anos, e hoje eu estou aí, vai fazer 20 anos no trem, no mercado informal”

conta o Dj e arte educador, que por muitos anos teve o trabalho como vendedor ambulante sua principal fonte de renda.

Atualmente Dagoma mora na região da Luz, bairro central de São Paulo, mas nasceu e cresceu em Carapicuíba, zona oeste da cidade. O Dj e arte educador já trabalhou com carteira assinada, mas relata que encontrou no trabalho informal melhores possibilidades. “O que fez eu mudar é porque eu ganho mais do que eu trabalhar registrado. Porque registrado eu não ganho o que eu ganho, e eu vi que eu também posso ter MEI – Micro Empreendedor Individual, né!?”, conta o DJ.

“Eu vi que eu registrado recebia aquele salário no mês, eu pagava as contas e ficava duro. E tinha que esperar virar o mês para poder receber de novo, ou chegar no dia 20 para pegar vale. Então o que me fez mudar, quando eu caí dentro do trem, foi ver uma realidade totalmente diferente. Falei ‘mano, meu porto seguro financeiro’, tá ligado”, compartilha Dagoma.

A principal fonte de renda do Dj antes da pandemia do coronavírus era como arte educador: dando aula e tocando em eventos culturais. “Eu não estava mais indo muito para o trem. Estava mais só fazendo a arte, tocando, dando aula, e aí devido a pandemia brecou tudo, né!? Aí eu fiquei sem fazer minhas atividades. Eu ia para o trem de vez em quando, quando eu pegava promoção, e era difícil estar indo”, relata.

DJ Dagoma – Arte: Flávia Lopes

Para o arte educador, poderiam existir mais possibilidades de apoio pensando também na sua atuação artística: “Como eu vejo que o poder público pode ajudar a gente é na Secretaria de Cultura, para Casas de Cultura, promoção de eventos, isso eles podem ajudar, ajudar muito. Essa é uma ajuda que eles poderiam, abrindo os editais, e é isso”.

Com a divulgação e execução do Plano São Paulo pelo governo do Estado, alguns serviços não essenciais começaram a retomar as atividades com a capacidade reduzida conforme cada fase do plano de reabertura. Para o DJ Dagoma, a reabertura trouxe algumas mudanças.

“Eu voltei a tocar, aula não e eventos também não. Agora eu estou fazendo live para os grupos que não tem DJ, aí eu dou suporte como DJ para os grupos, né? E estou fazendo umas lives eu mesmo individual. O trem moio, não tá dando pra trabalhar mais no trem. E é isso né mano, vamos seguindo né, quem não luta tá morto”

compartilha o DJ.

Nesse período, Dagoma começou a participar das lives depois que parou com as vendas no trem, que no início da pandemia estava dando retorno.

“Até eu entrei e comecei a ganhar um dinheiro com as promoções que eu tava buscando em umas docerias, como aqui no centro, fora do centro. Mas aí agora os cara reforçou a segurança e não tá dando mais para trabalhar. Hoje você não vê muito marreteiro dentro do trem, né. Você nem vê na real marreteiro, né. Isso é foda né mano, porque era o ganha pão não só o meu como de vários”, conclui Dagoma.

DJ Dagoma é um dos exemplos de vários trabalhadores que mesmo com a pouca ou nenhuma assistência do Estado, buscou caminhos para continuar seu corre e sua luta. Na próxima reportagem da série “Inteligência Periférica”, você vai conhecer o Josiel, jovem morador da zona sul de São Paulo que assim como Dagoma, continua construindo seu próprio caminho para gerar renda, fortalecendo a comunidade e a si mesmo. 

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