“Sapopemba [onde estamos], é um território de muita luta social. Queremos resgatar quem foram as pessoas, especialmente, as crianças LGBTQIA+ que construíram a história do bairro. É sobre disputar a narrativa e o imaginário”. É assim que Lígia Gimenes, psicóloga e coordenadora do Coletivo Enu Itan, explica sobre o trabalho que o grupo desenvolve, desde 2023, em defesa das infâncias LGBTs, no distrito de Sapopemba, localizado na zona leste de São Paulo.
Pensar em cada criança como um indivíduo repleto de sonhos e particularidades é uma das características da iniciativa. No coletivo, os próprios jovens planejam e conduzem atividades, como a produção de um podcast — da roteirização à edição final —, aulas de capoeira angola e momentos de pintura. Cada proposta busca valorizar e fortalecer as singularidades das crianças e adolescentes, com propostas que respeitem seu tempo, interesses e diferentes formas de aprender e de se expressar.
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O Enu Itan promove diversas atividades socioculturais — fixas e rotativas —, pensadas para estimular o protagonismo das crianças e adolescentes, como oficinas de Vogue, rodas de conversa e outras vivências culturais, no CEDECA (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente) Sapopemba. Entre as ações do grupo, recentemente, os educandos participaram da produção de um documentário e tiveram a oportunidade de dialogar com pessoas LGBTs mais velhas, com o intuito de promover troca intergeracional.
Geralmente, o público chega ao coletivo a partir de pontes criadas no território, como escolas, serviços sociais, ações comunitárias ou pelo próprio CEDECA.
No final de 2022, as fundadoras do coletivo buscaram financiamento para consolidar a atuação. Nesse processo, Lígia diz que passaram a refletir sobre a importância da memória como ferramenta de disputa política e social, o que desdobrou-se na ideia do documentário.
“Não é novidade que as histórias que se contam sobre pessoas LGBTs geralmente são muito tristes. Então a gente começa a pensar na necessidade de recuperar histórias, de fazer o processo de resgate de memória. Um processo que foi apagado”, ressalta Lígia ao contar sobre as diferentes frentes de atuação.
Em Sapopemba, o bairro Fazenda da Juta foi um dos territórios historicamente construídos pelas mãos dos próprios moradores, mas há poucos registros da contribuição das pessoas LGBTQIA+ que passaram por ali, é o que afirma a psicóloga. “Recuperar essas memórias é uma forma de [retomada], de disputar politicamente o lugar das narrativas e do imaginário.”
Demanda territorial
Foi através da articulação da Lígia e de outras quatro trabalhadoras do CEDECA (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente), todas moradoras da região, que o Enu Itan foi criado. O trabalho do grupo começou a partir do acompanhamento do caso de uma jovem trans, moradora de Sapopemba que, aos 14 anos, iniciou seu processo de transição de gênero.
Inicialmente perceberam que a adolescente estava sofrendo uma série de violações de direitos, como transfobia, em diferentes espaços, como na escola, em suas casas e nas ruas. Lígia, que já trabalhava em um serviço de proteção à vítima de violência, foi acionada para oferecer cuidados a esta adolescente. “Passamos cerca de um ano e meio acompanhando de perto a situação, identificando diversas situações de violência e precariedade no acesso à educação, à saúde, em seu convívio familiar e comunitário”, compartilha sobre a jovem que atualmente tem 18 anos e segue recebendo assistência.
A realidade da adolescente atendida pelo Enu Itan reflete a experiência compartilhada por inúmeros membros da comunidade ainda nesta fase da vida.
A Pesquisa Diversidade Espro 2024 ouviu 3.257 jovens entre 14 e 23 anos, sendo 36% LGBTIs, e revelou que 53% deles deixaram de frequentar o ambiente familiar e 60% evitaram públicos por preconceito. Além disso, 36% se afastaram da escola, 41% de espaços religiosos e 20% do trabalho.
Lígia conta que foi identificada a ausência de políticas públicas mais amplas voltadas para crianças e adolescentes trans e para jovens LGBTs de modo geral. Neste contexto, a dificuldade dos serviços institucionais em acolher esses jovens foi um dos desafios. “Temos uma atuação mais local, porém também está aberto a acolher jovens de outros territórios. Estamos na zona leste, mas temos conosco jovens que vêm da zona sul, por exemplo”, conta.
Protagonismo das infâncias
Ela explica que as atividades são construídas em diálogo com as crianças, valorizando seus saberes e seguindo a educação popular. Ela afirma que o papel da equipe é orientar de forma conjunta. Em audiência pública recente sobre direitos das crianças e adolescentes, mostraram grande protagonismo, marca da metodologia do CEBEC. Na ocasião, relataram tanto experiências positivas, como espaços de convivência e aprendizagem que cultivam no território, quanto desafios e violações que enfrentam, como negligência e falta de acesso a direitos básicos (saúde, educação, lazer, etc).
“Para pensar as nossas práticas, bebemos muito da fonte dos movimentos sociais. Inclusive, o nome ‘Enu Itan’, que em iorubá significa ‘boca da história’, foi uma escolha inspirada no campo epistemológico das matrizes africanas, nos saberes de preservação de uma tradição, para refletir sobre o que significa ser LGBT enquanto parte de um processo de continuidade”, descreve Lígia, que reafirma a importância de potencializar a existência de pessoas LGBTs.
“Pessoas trans, lésbicas, gays, bissexuais não nascem e nem começam sua trajetória de identidade aos 18 anos. Todas têm uma infância que merece ser reconhecida e respeitada.”
Lígia Gimenes, psicóloga e uma das fundadoras do Coletivo Enu Itan, em Sapopemba, zona leste de SP.
Ao mesmo tempo, lembra que os desafios não se restringem à identidade. “Quando falamos [desta população], não podemos reduzir o cuidado apenas ao respeito ao nome social ou ao acesso à hormonioterapia. Crianças LGBT+ também vivem em casas que alagam, em favelas sem saneamento, em contextos de violência doméstica, etc. É preciso lembrar que são sujeitos sociais como todos os outros, atravessados por raça, classe e território.”, reforça.
Ela reconhece que há diferenças no cuidado, mas ressalta que existem mais pontos em comum quando se olha para desigualdades estruturais. “Principalmente quando olhamos para classe, território e raça”. Para ela, o cuidado oferecido a crianças das periferias é muito distinto daquele destinado a crianças brancas de escolas particulares, com acesso a médicos e outros recursos.
Marcos legais
A psicóloga destaca que, para além da dimensão afetiva e emocional, a atuação do Enu Itan se respalda em marcos legais, sobretudo no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Constituição Federal. Nesse sentido, as estratégias de cuidado são pensadas com base nos dispositivos legais que já existem.
Lígia explica que, mesmo sem citar de forma direta as crianças LGBTQIAPN+, o artigo 5º da Constituição Federal garante que nenhuma criança ou adolescente pode sofrer qualquer tipo de opressão. Isso, segundo ela, oferece uma base sólida para a defesa dos direitos dos jovens LGBTQIAPN+, mesmo que a legislação não mencione explicitamente “crianças dissidentes de gênero e sexualidade”, o entendimento jurídico é de que elas também estão protegidas.
“[Da mesma forma], o ECA prevê que é papel da sociedade proteger as crianças e os adolescentes. Portanto, também é papel da sociedade proteger crianças lésbicas, gays, bissexuais e trans.”
Lígia Gimenes, psicóloga e uma das fundadoras do Coletivo Enu Itan.
“Se olharmos para a política do Sistema Único de Saúde (SUS), seus três princípios — equidade, universalidade e integralidade — já temos respaldo suficiente para que todos os trabalhadores do SUS desenvolvam trabalhos referentes à criança e ao adolescente”, diz acerca dos processos moralistas e inconstitucionais que vulnerabilizam crianças e adolescentes travestis e transexuais.
Ela reforça que o Enu Itan aposta em um viés educacional sobre aspectos dos direitos humanos e cidadania. “Os jovens e suas famílias buscam ajuda na rede ou em outros espaços. A gente realiza muitas formações sobre como lidar com as famílias, como auxiliar [no processo de afirmação de identidade], como pensar frente ao judiciário, à comunidade escolar e à educação infantojuvenil”, destaca.
Articulação de eventos em unidades CÉUs, em Fábricas de Cultura e outros espaços são algumas das ações do grupo, que mesmo não encontrando aprovação em todos os espaços, ainda assim tem muita adesão e compreensão.
“O que vemos é que os trabalhadores expressam um desejo real de instrumentalização, de conseguir dar conta e produzir cuidado [de forma qualificada].”
Lígia Gimenes é psicóloga e uma das fundadoras do Coletivo Enu Itan.
“O campo de defesa da infância e adolescência é consolidado há muitos anos. O campo de defesa de direitos LGBTs também. Mas nós, enquanto movimento LGBT, muitas vezes não nos arriscamos a falar sobre. Elas existem. No Enu Itan, a gente vem fazendo essa reflexão: precisamos pensar e falar para além da discussão adultocêntrica que dita ‘com que idade uma criança pode ser quem é’”, finaliza.