“O trabalho doméstico não deu possibilidades”: Marilene Silva aborda o autocuidado após os 50 anos

Moradora do Capão Redondo, Marilene Silva aponta que discursos etaristas e capacitistas não limitam suas vivências enquanto mulher, negra e periférica.
Por:
Viviane Lima
Edição:
Evelyn Vilhena

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Em uma quarta-feira de calor, Marilene Pereira da Silva, 64, nos recebeu em sua casa, no bairro Jardim Itaoca, distrito do Capão Redondo, zona sul de São Paulo. Apesar de demonstrar estar um pouco tímida, Marilene estava sorridente e muito produzida com anéis nos dedos e um perfume que contou ter usado para participar da entrevista. 

Devido a uma infecção de meningite que Marilene teve aos 10 anos, ela perdeu a audição e parte da fala, por isso, toda a entrevista foi mediada pela sua filha, Lena Silva, que trouxe falas em terceira pessoa sobre as vivências de Marilene.

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“Ela ficou um longo tempo acamada, perdeu os movimentos motores, não falava, não andava, não fazia nada. Então, aos poucos, depois de quase um ano, ela foi recuperando tudo e sem nenhum tipo de assistência médica, porque na roça não tinha nada disso”, conta Lena sobre o período em que Marilene adoeceu e perdeu a audição.

Marilene Silva gosta de viajar e passear, ampliando com frequência as suas vivências. (Foto: arquivo pessoal)

Nascida em Ipiaú, na Bahia, aos 10 anos, Marilene foi morar no município de Jequié, no mesmo estado, com a mãe, Laurentina da Silva, e ficou por lá até os 19 anos, quando se mudou para trabalhar em São Paulo. Marilene passou boa parte da vida trabalhando na casa de outras pessoas, fato que influenciou em como conseguia ou não se divertir.

“Apesar de ter cuidado bastante da minha avó, [isso] não foi um empecilho [para ela] deixar [de] viver, sair ou passear. Foi de fato o trabalho doméstico que aprisionou ela e não deu possibilidades”

comenta Lena, filha de Marilene

Atualmente aposentada, Marilene trabalhou durante 30 anos como empregada doméstica. Ela dormia na casa em que trabalhava e tinha apenas um dia de folga na semana. Diante dessa dinâmica, Lena tentou negociar para que Marilene tivesse duas folgas na semana e que dormisse em casa. Sem sucesso na negociação, acordaram de pedir a demissão de Marilene, mas os empregadores não aceitaram de forma amigável.

“Aceitamos um acordo onde a minha mãe não teve seus direitos pagos. Mas eu falei para ela: ‘mãe, você está com 50 e tantos anos, se não sair agora dessa casa, dessa condição e não começar a viver sua vida, [vai ficar] presa no dinheiro dos tempos trabalhados. Não vai ser saudável para ninguém’”, conta Lena sobre o período em que Marilene tinha pouco tempo para fazer outras coisas além do trabalho.

Cuidando de si

Desde 2015, quando deixou de trabalhar nas condições relatadas como empregada doméstica, Marilene passou a descobrir outras atividades e ter tempo para si. Já fez curso de artesanato, gastronomia e em 2023 começou na academia. Ela relata que entre as várias motivações para iniciar uma atividade, o que mais a deixa animada é a possibilidade de conhecer pessoas e criar vínculos.

Marilene Silva em um passeio com as amigas. (Foto: arquivo pessoal)

“Na academia, quando ela não vai, todo mundo pergunta, ‘cadê sua mãe?’. E é esse carisma. Às vezes ela chega, não precisa falar nada, só um sorrisinho, aí pronto, todo mundo [pergunta] quem é essa senhora fofinha”, compartilha Lena, enquanto Marilene sinaliza concordar com a análise da filha.

Além da academia, desde jovem a aposentada tem o hábito de viajar para o Guarujá, Guarulhos, Aparecida do Norte e chegou recentemente de Jequié, na Bahia, local no qual ela vai quase todo ano. “Ela tem orgulho, porque consegue se locomover e fazer tudo sozinha”, Lena pontua.

“Gosto de conversar, adoro conversar”, conta Marilene, que sempre está em festas com amigos e familiares em casa, e se diverte com as amigas quando sai para dançar forró e ir ao samba.

(Fotos: arquivo pessoal)

“Quando ela toma uma cervejinha gelada fica muito feliz. Ela gosta de festa, se organiza um churrasco aqui, um almoço com a família, ela fica extremamente feliz. Ela gosta de estar com pessoas”, acrescenta Lena, enquanto Marilene reage com entusiasmo, gesticulando e sorrindo.

Estudos

Na infância, após a meningite, Marilene não conseguiu retomar os estudos, mas em 2022, com o estímulo da filha, ela começou a estudar Língua Brasileira de Sinais (Libras), no Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA), no Campo Limpo. “[No início] ela foi muito resistente, porque nasceu falante e ouvinte, e aí ela tinha esse preconceito”, comenta Lena.

“Fui conversando com ela sobre essa possibilidade da escola, não apenas para aprender libras, mas para aprender outras atividades e aumentar o círculo social. E aí isso ela achou mais interessante. Quando ela foi no Cieja Campo Limpo [e] viu o acolhimento, a professora, que era negra, ela se identificou muito”, conta sua filha sobre o processo de estudar libras.

Embora as condições que vivenciou ao longo da vida não tenham favorecido Marilene se alfabetizar, ela desenvolveu os próprios métodos para dar conta de algumas demandas que envolvem a leitura. 

“Ela tem uma memória muito boa. No serviço ela fazia a listinha de produtos que faltava, e aí teve uma vez que a patroa dela me perguntou ‘sua mãe não sabe ler e escrever, como é que ela faz a lista de produtos?’. Aí ela [a Marilene] falou, ‘eu vou olhando e vou copiando’. Ela tem essa memória fotográfica”, explica Lena.

Marilene Silva usando os acessórios que ela confeccionou. (Foto: Pedro Oliveira)

E com essa habilidade Marilene também desenvolveu sua autonomia. “Ela não gosta de ficar em casa, então ela sai para passear. Ela consegue manter relações muito fortes com todo mundo da família, então para ela não tem muito dessa coisa da distância”, conta Lena enquanto Marilene confirma acenando com a cabeça.

Para além dos estigmas, Marilene se permite viver coisas novas, principalmente após descobrir os benefícios de olhar para si, e isso também inspira sua filha. “Aprendo muito com ela a ter disciplina, sabe? Se ela botou na cabeça que ela vai fazer uma coisa, ela de fato faz”, diz Lena, com sorrisos de Marilene ao seu lado.

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