‘‘Me sinto útil em poder matar a fome de quem depende daquela única refeição no dia’’, diz trabalhadora do Bom Prato de Paraisópolis 

Política pública de combate à fome e à insegurança alimentar, o Bom Prato garante, desde os anos 2000, refeições nutritivas a 1 real, em São Paulo.
Edição:
Isadora Santos

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Na correria da cozinha do Bom Prato de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, dona Maria Antônia serve quem chega, garantindo que ninguém fique sem sua refeição. A fila é cada vez maior, enquanto mais pessoas aguardam pela sua vez. Cada prato entregue com cuidado e atenção reflete o trabalho diário que dona Maria exerce há quase cinco anos na unidade.

Moradora de Paraisópolis desde 2013, a auxiliar de cozinha, Maria Antônia Araújo, 61, nasceu em Garrafão, cidade localizada no estado do Pará, região norte do país. Filha de pai cearense e de mãe belenense, ela vive em São Paulo desde 1983, ano que antecedeu o encontro com seu esposo, com quem é casada até hoje e tem três filhos. Também é avó de duas crianças, que cuida como se fossem suas filhas, equilibrando a vida familiar com a rotina intensa de trabalho no Bom Prato, como auxiliar de cozinha.

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“Eu sempre gostei de cozinhar. Eu amo preparar os alimentos e mesmo lá no interior da roça, desde pequena me lembro de quando meus pais levantavam cedo para trabalhar e também de sempre prepararem o almoço e jantar dos trabalhadores que os ajudavam no trabalho no plantio”, compartilha ao lembrar que aos sete anos, subia em uma tora de pau ‘sebo’ (espécie de tora de madeira lisa e escorregadia), para ficar observando sua mãe preparar o jantar.

Comida no prato e cuidado comunitário

Desde 2021, Maria Antônia trabalha na função de auxiliar de cozinha no Bom Prato de Paraisópolis. Segundo ela, sua rotina envolve diversas etapas da preparação das refeições. Responsável pela produção de legumes, seleção de frutas, preparo de saladas e serviço na rampa, relata a correria e a dedicação de todos os dias.

“A única coisa que nós auxiliares não fazemos é cozinhar diretamente. Mas a parte de paneleiro, devolução, que é a lavação de pratos para servir os funcionários, bipar os cartões, fazemos. Também participamos da faxina geral, que acontece duas vezes por semana, às quartas e sextas-feiras”, conta.

O Bom Prato é um programa de segurança alimentar do Governo do Estado de São Paulo, criado em 28 de dezembro de 2000, que oferece refeições saudáveis e a preços acessíveis, com o objetivo de combater a fome e a insegurança alimentar. As refeições custam R$ 0,50 (café da manhã) e R$ 1,00 (almoço e jantar), os mesmos valores há 25 anos. 

O cuidado com a higiene também é parte do processo rigoroso dentro da cozinha. “As frutas que são comidas com casca, como peras e maçãs, colocamos em um [higienizador de alimentos], por cerca de 20 minutos. Depois desse processo, lavamos tudo na água corrente e depois [colocamos] em uma caixa fechada”, detalha sobre o processo que a equipe realiza para começar a servir às 10h30.

“As frutas que não são comidas com casca são descascadas, cortadas e arrumadas. A salada, do mesmo jeito, e os legumes que são cozidos, como a couve da feijoada, seguem o mesmo processo, tudo bonitinho. Isso se repete todos os dias”, explica.

Ela conta que todos os dias é tirada uma amostra de 100 gramas de tudo que é servido no café da manhã, almoço e jantar. “Cada saquinho é armazenado com a data e, se algum cliente passar mal, vai para o laboratório para exame”.

A organização é outra fase essencial para que tudo funcione corretamente. “Nós, auxiliares, entramos no serviço às 07h. Depois entra outra turma que fecha o roblado às 8h30, com outras tarefas. Temos que aprontar tudo até 9h30, pois a unidade também prepara marmitas [para distribuição externa]. Depois, fazemos toda a higienização e limpeza, para que o Bom Prato abra às 10h30 e comece a servir o almoço dos clientes’’.

A trabalhadora destaca o movimento intenso que o restaurante recebe e os diferentes perfis de público, o que, na sua visão, reflete a importância do Bom Prato como uma política pública que não só atende quem enfrenta contextos extremos de vulnerabilidade social, mas que também cumpre um papel essencial de integração comunitária, por funcionar como espaço de socialização e de oferta de alimentação saudável e de qualidade para todos.

“Nossa unidade é sempre bem movimentada. É difícil ter um dia que não bate a meta [de atendimentos]. Hoje servimos feijoada. Ontem, por exemplo, era frango assado”, destaca sobre a variedade do cardápio.

Insegurança alimentar ainda é realidade nas quebradas

Em 2024, o Brasil reduziu os índices de fome, no entanto, os números ainda são alarmantes. Segundo o IBGE, atualmente 6,48 milhões de pessoas vivem em insegurança alimentar grave — 2,2 milhões a menos do que em 2023, o que representa diminuição de 24,2% de domicílios com algum grau de insegurança alimentar.

As regiões Norte (37,7%) e Nordeste (34,8%) ainda concentram os piores índices de insegurança alimentar, com 6,3% e 4,8%, respectivamente, dos lares em grau grave.

O IBGE classifica como insegurança alimentar grave quando pessoas de uma mesma residência passam fome, pois não há comida suficiente nem de boa qualidade para todos se alimentarem.

Sem trabalho e renda, moradores das periferias dependem do Bom Prato para se alimentar

Em São Paulo, cerca de 5,8 milhões de pessoas enfrentaram algum grau de insegurança alimentar até 2024, sendo 1,4 milhão em situação grave de fome. A maioria teve redução na quantidade ou qualidade dos alimentos, com mulheres e pessoas negras sendo as mais afetadas. Os dados são do I Inquérito sobre a Situação Alimentar do Município de São Paulo (2024), conduzido pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

O mesmo levantamento revela que, em domicílios liderados por mulheres negras, a insegurança alimentar grave era 2,1 vezes maior do que em domicílios chefiados por homens brancos. Entre famílias com renda de até um salário mínimo, 84% precisaram reduzir a variedade da alimentação por falta de dinheiro. 

Em Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo, com mais de 100 mil habitantes, a realidade não difere do cenário geral do país. A Associação Ação Gueto, organização local, realizou entre fevereiro e junho de 2024 um levantamento sociodemográfico das famílias cadastradas em seus projetos de segurança alimentar. O estudo aplicou questionários presenciais a 333 famílias, selecionadas com base em critérios como inscrição no CadÚnico, presença de crianças menores de 7 anos, gestantes ou lactantes, e risco de Insegurança Alimentar e Nutricional (InSAN).

Os resultados mostraram que 81% das famílias estavam em risco de InSAN moderada ou grave, 71% estavam inscritas no CadÚnico (sendo 22% ainda na fila de espera) e 83% tinham mulheres negras como chefes de família. 

Depois de morar 30 anos no Jardim Miriam, bairro que faz divisa com Diadema, região metropolitana de São Paulo, a então residente de Paraisópolis celebra o fato de não precisar pegar condução para ir ao trabalho, já que mora há poucos metros da unidade em que trabalha. Ela ainda reforça a importância do programa para o território.  

“É uma alegria ter essa unidade no nosso território e servir pessoas que muitas vezes não têm nada para comer. Às vezes, essa é a única refeição do dia. Quantas vezes já tiramos do próprio bolso para ajudar quem não tem nem um real para comer’’.

Maria Antônia, auxiliar de cozinha no Bom Prato de Paraisópolis e moradora da região.

Trabalho coletivo

Maria Antônia ressalta o espírito de equipe e o respeito que sustenta a base do trabalho que desempenham diariamente. Para ela, é esse comprometimento diário que faz a diferença na rotina e na qualidade do serviço. 

“Aqui nós falamos que somos uma super equipe. Trabalhamos com horários e todo mundo é unido. Além disso, há uma grande força feminina. Sempre teve mais mulheres que homens aqui. E a relação com o nosso gerente, Ronie, é muito boa, pois é prazeroso trabalhar com ele”, diz.

A auxiliar de cozinha Maria Antônia, 61, ao lado de Ronie Leonardo de Pontes, 36, gerente do Bom Prato de Paraisópolis. Foto: Gustavo Araújo

“O melhor de tudo ao longo destes anos morando em Paraisópolis é saber que, com o trabalho no Bom Prato, estou finalmente conquistando a minha casa própria e voltar para o nordeste. Eu e meu marido continuamos batalhando, pagando aluguel e os custos da nossa casa, mas agora estamos conseguindo”, comemora ao contar que pretende deixar a equipe em breve, mas permanece na unidade até se aposentar.

Em meio à insegurança alimentar e à fome que ainda atinge muitas pessoas, o trabalho de Maria na unidade se materializa em cuidado prático: nas frutas higienizadas e refeições de qualidade servidas. 

Em meio à insegurança alimentar e à fome que ainda atinge muitas pessoas, o trabalho de Maria na unidade se materializa em cuidado prático: nas frutas higienizadas e refeições de qualidade servidas. 

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