“Capoeira tem uma série de fundamentos, é tão complexa que até hoje não [se] consegue definir se é luta, dança ou música”, é a partir dessa multiplicidade de funções que Joice Teixeira contextualiza sobre a prática. Segundo a educadora e cofundadora da coletiva N’Kinpa – Núcleo de Culturas Negras e Periféricas, quando reconhecida enquanto fundamento histórico, intelectual e filosófico do povo negro, a capoeira tem o potencial de ser uma ferramenta antirracista, inclusive na educação infantil.
Esse potencial da prática é vivenciado no cotidiano, como no caso da Maria Vitória, de 5 anos. “A minha filha é tão pequena e já sofreu racismo de uma coleguinha que falou que ela era uma criança preta, pobre e feia”, relata Silvia Cristina, mãe da Maria Vitória. Silvia é analista de relacionamento e junto com a filha moram no bairro Cidade Domitila, localizado no distrito de Jabaquara, zona sul de São Paulo.
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Maria Vitória é ativa, se equilibra nos brinquedos do parquinho, corre e pula. No entanto, na hora da conversa ela é concentrada, presta atenção e fala pouco, mas muito sinaliza. Ela conta que gosta de brincar de capoeira e que quando crescer quer ser médica, para cuidar de crianças.
A pequena comenta que outro dia na escola subiu no escorregador e acabou caindo, chorou, mas voltou a brincar. Assim como na capoeira que ensina como cair e levantar, ela já estava desbravando o brinquedo novamente. O relato da vivência da Maria Vitória com a capoeira é o corpo em movimento.
“Infelizmente, aproximadamente com três [ou] com quatro anos, elas [as crianças] já [são] racializadas e conseguem contribuir para o fomento do racismo”, explica Jussara Santos, que é pesquisadora das infâncias, educadora, trabalhou na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, na área de educação infantil e atualmente é consultora da ONG CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades).
Desde 2023, Maria Vitória estuda na EMEI Cruz e Souza e foi por lá, através do projeto ‘Terreiros Nômades: Macamba faz Mandiga – Saberes Afrodiaspóricos nas Corporeidades da Cena’, da coletiva N’Kinpa, que ela teve os primeiros contatos com a capoeira e com outras manifestações culturais de origem africana.
“A capoeira é a cultura dos nossos ancestrais. Então, ela vem agregando ainda mais no conhecimento e no fortalecimento dela [Maria] como uma criança negra”,
Silvia Cristina, mãe da Maria Vitória, de 5 anos.
Joice, que também é pós-graduada em Cultura Afrodiaspórica e pesquisadora das culturas de origem africana, menciona que a N’Kinpa e as ações realizadas pela coletiva, que tratam de culturas originárias, africanas e afrodiaspóricas por meio da arte e da música, são sempre bem acolhidas pelos pequenos. “Na escola, com as crianças é espetacular, porque elas se entregam. Nós, adultos, que ensinamos às crianças serem racistas”, aponta a coordenadora da coletiva.
Capoeira e educação
O principal impacto que o ensino da capoeira tem sobre as crianças que vivem nas periferias, e que estão na primeira infância, é a desmilitarização dos corpos, como aponta Joice. “O sistema colonial militariza os corpos. Sentado em fileira, um olhando para a nuca do outro e o púlpito. Todas as vezes que a gente leva as culturas africanas, aí já vem com o estado laico, que nunca foi laico, e não vê o quanto, o tempo inteiro, a gente está vivenciando corporalmente a cultura religiosa cristã”, explica.
Jussara menciona que por parte das pessoas brancas, esse aprendizado dos valores civilizatórios africanos não deve se dar por meio da apropriação, mas através da ampliação do entendimento e percepção de mundo. “A capoeira vai contribuir para toda e qualquer criança, porque ela parte da cosmovisão africana, então nós conseguimos aprender um projeto de sociedade antirracista a partir da capoeira, que traz a circularidade, a ludicidade, o axé”, coloca a educadora e pesquisadora das infâncias.
Para Joice, a educação tem um papel fundamental nesse aspecto de ampliar as narrativas e possibilidades de se enxergar e existir no mundo.
“Quando eu trago outras perspectivas, dos povos originários, da afrodiáspora, dos povos africanos em sua plenitude, desde a primeira infância, eu estou trazendo também para essa criança branca o imaginário de que ser humano é o corpo de uma forma geral e não somente o sujeito branco. A educação vem trazendo uma única versão em que o humano é [apenas] o sujeito branco”
Joice Teixeira, cofundadora da coletiva N’Kinpa.
Jussara e Joice apontam que o racismo, que também está nos direcionamentos do que será ensinado ou não nas escolas, afeta o desenvolvimento das crianças, de modo que, as crianças negras, tendem a ter autoestima baixa, sentimento de inferioridade e insegurança. “Para as crianças brancas, eu trago esse imaginário de que elas não são superiores e para as crianças pretas de que elas não são subalternas”, afirma Joice.
Aplicação das leis
O ensino da capoeira nos estabelecimentos de educação foi reconhecido como lei em 2021. A Lei 17.566 determina que o ensino da capoeira deve ser integrado à proposta pedagógica de educação das escolas da rede municipal de São Paulo. Porém, Jussara menciona que essa lei não é aplicada. A pesquisadora atuou de 2020 a 2023, no Núcleo de Educação Étnico-Racial (NEER) da Secretaria Municipal de Educação (SME), e participou da construção do Currículo da Cidade, de 2022, que contém orientações pedagógicas antirracistas para professores da rede municipal.
A Secretaria Municipal de Educação de São Paulo confirmou que a lei municipal ainda não foi regulamentada e informou que criou “um Grupo de Trabalho através da Portaria SME N° 4.964/2024, com participação de membros de segmentos da Pasta e representantes da sociedade civil, mestres de capoeiras, acadêmicos e membros de coletivos voltados à promoção da capoeira na cidade de São Paulo”.
Segundo a SME, “o objetivo é construir uma proposta estruturada de implementação da capoeira em todas as Unidades Educacionais da Rede Municipal de Ensino, discutindo formas e procedimentos a serem desenvolvidos.”
Segundo Jussara, o mesmo acontece com a lei federal 10.639, que existe desde 2003, e determina a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira em todo currículo escolar, mas não é amplamente posta em prática.
A pesquisa Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, realizada em 2022, pelo Geledés e o Instituto Alana, obteve resposta de 1.187 secretarias municipais de educação, equivalente a 21% dos municípios do país, e constatou que dessas secretarias, 71% não aplicam a lei federal, ou realizam pontuais ações voltadas para o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas.
“As leis surgiram de ativismo para poder ter possibilidades de trabalhar [nas] instituições ou dentro das políticas públicas, e mesmo [assim] a gente ainda não consegue trabalhar, porque elas ainda não são aplicadas e às vezes não são nem conhecidas”, menciona Joice, cofundadora da coletiva N’Kinpa, que realiza o projeto ‘Terreiros Nômades: Macamba faz Mandiga – Saberes Afrodiaspóricos nas Corporeidades da Cena’.
Ela também comenta que já trabalhou em uma escola que não tinha nada sobre a cultura ou história afrodiaspórica, e que chegou a sofrer violência racial nesse espaço. Joice afirma que lidar com a burocracia, com o sistema colonial das instituições e alcançar o entendimento de que as perspectivas de mundo e as manifestações de origem africana não se limitam a religiosidade e ao entretenimento, são os principais desafios para aplicar a educação antirracista nas escolas.
“O nosso maior desafio é a gente, por exemplo, falar de Exu como filosofia e não como religião, porque ele também pode ser, mas ele não é somente. Esse é o grande desafio de trabalhar culturas originárias, afrodiaspóricas e africanas, porque é pluri, não é mono, e a forma como a colonização e as instituições, [sendo] a escola é uma delas, quer trabalhar [é] fazendo com que a gente caiba nesse lugar. Como se eu quisesse ações antirracistas sendo racista”, finaliza Joice.