O grupo de pesquisa Rede de Mobilidade da Periferia desenvolveu o aplicativo Sufoco, com o objetivo de criar uma rede colaborativa de dados que podem ajudar a mapear e relatar problemas no transporte público, uma rotina comum vivenciada por moradores das periferias e favelas de São Paulo.
Passar sufoco no transporte coletivo faz parte da rotina do morador da quebrada, porém em meio a pandemia do novo coronavírus a condição de má qualidade do serviço público que oferece acesso a cidade, ganhou outro significado: o risco dos passageiros serem contaminados pela covid-19.
Foi pensando nisso que a Rede de Mobilidades da Periferia, um grupo de pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), formados por pesquisadores e estudantes que moram e vivem o cotidiano das periferias, criou o aplicativo Sufoco, para mapear de maneira colaborativa e em tempo real os alertas dos passageiros que estão em situação de aglomeração no transporte público de São Paulo.
O professor de geografia Ricardo Silva, 43, morador da Penha, distrito da zona leste da cidade, leciona na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Ele revela que suas pesquisas deram embasamento para criação do app, pois nas entrevistas com as pessoas sempre aparecia o tema da lotação. “Eu fui estudar transporte e mobilidade, e especialmente no doutorado eu percebi nas pessoas quando fazia as entrevistas, elas reclamavam muito sobre essa questão da lotação, mas não é um tema muito levado em consideração, até mesmo do campo da mobilidade”.
Silva afirma que a partir de suas pesquisas ele entendeu que o problema de mobilidade urbana vai além do planejamento da cidade. “A mobilidade como um direito né, não simplesmente como mercadoria. A mobilidade como mercadoria é isso: um transporte lotado que atende os interesses mercadológicos, pras grandes corporações, é interessante que se tenha o transporte lotado, dá mais lucro”, explica.
A partir desses estudos, o professor concluiu também que para mudar essa lógica de superlotação no transporte é necessária uma modificação de pensamento. “Direito à cidade é pensar o transporte público, gratuito, de qualidade e a cidade acessível né, de outra maneira para além dessa lógica mercadológica”.
O professor relembra que o ponto de partida para criação do app foi marcado pela realização de debates e diálogos com as pessoas, para construir junto a elas uma proposta de ferramenta digital, em formato de mapeamento colaborativo, na qual os passageiros do transporte público pudessem denunciar as situações de superlotação.
Em meio a esse processo, o professor sempre buscou formas de mostrar o quão letal seria a pandemia de coronavírus para os moradores das periferias e favelas de São Paulo. “No começo da pandemia, em março, eu fiquei muito atento em produzir mapas e buscar dados, que de alguma forma pudesse revelar a letalidade do coronavírus nas periferias”, conta.
Para a Rede Mobilidade da Periferia, o importante é garantir a utilização da tecnologia para que as pessoas tenham autonomia e voz para fazer denuncia sobre a situação do transporte público. “Imagina a construção de mapas a partir dos interesses das pessoas que vivem nos lugares, ou que sofre as dificuldades no dia a dia, como a mobilidade e revelar esses problemas, a partir das vivências delas”, argumenta o professor que integra o grupo de pesquisa.
Com o app funciona?
O app Sufoco possibilita que os usuários qualifiquem o reporte de situações de lotação escolhendo o tipo de coletivo como ônibus, metrô e trem. Além disso, a partir dos dados relatados pelos passageiros será possível acessar informações sobre qual linha tem maior recorrência de lotação, qual linha que tem mais lotação, seja ônibus, metrô e trem.
Para que esses dados transpareçam a realidade que os moradores estão vivendo dentro do transporte público nesse momento, a Rede Mobilidade da Periferia entendeu que os próprios usuários de ônibus poderiam fazer isso em tempo real.
“Esses dados com esses problemas podem ser as próprias pessoas, as pessoas que estão nessa condição de lotação do transporte. Elas podem ajudar a construir um mapa de maneira colaborativa”, diz Ricardo, apontando o processo natural de alimentação de informações pelo qual o app pode funcionar, onde o objetivo é fazer com que as pessoas pudessem produzir suas próprias informações, a partir de suas vivências, a fim de transformá-las em dados.
Essa produção de dados independente tem que divulgar mais pra comunidade
Serginho Lima
Serginho Lima, morador do Jardim Eliane, zona leste de São Paulo, participou da fase de testes do app como colaborador comunitário. Ele conta como foi a experiência. “Você coloca a linha e o app dá algumas questões para você escolher se está usando o transporte como lotado, com aglomeração, sem aglomeração ou se você não conseguiu entrar. Eu achei bastante simples”, relata o morador.
Segundo Lima, durante o uso do aplicativo, ele sempre relatava que usava a linha de ônibus do bairro na categoria lotado e que não tinha horário específico para a linha estar em estado de lotação, ou seja, não dependia dos horários de pico para isso acontecer.
Em meio a essas experiências, o morador relata que o descaso da prefeitura com o transporte público em seu bairro é recorrente. “A gente tem duas linhas aqui dentro do bairro que é a 253F, que todos os anos a gente tem que ficar brigando porque eles queriam até tirar daqui a linha, dizendo que teria que otimizar”, conta Lima, afirmando que além disso, o índice populacional no bairro não para de crescer, o que aumenta ainda mais a demanda por um transporte público que atenda a demanda de moradores.
Ele faz questão de compartilhar a indiferença que sente em relação aos órgãos públicos que deveriam pensar o planejamento da vida nos territórios periféricos. “Se vê que ninguém tem proposta para transporte público, não tem plano pra periferia”.
O morador ressalta que a produção desses dados pode ser uma oportunidade para cobrar medidas mais efetivas, prevendo que mostrará mais a realidade do bairro. “Eu acho que p formato desse aplicativo é uma coisa muito boa, porque você não tem nos meios oficiais dados para refutar inclusive questões que a própria Secretaria Municipal de Transporte coloca, não existe nada pra gente refutar nesse sentido, então essa produção de dados independente tem que divulgar mais pra comunidade”, finaliza.