Falas sobre a flexibilização do uso de máscaras em locais abertos e publicidades governamentais influenciam moradores das periferias a acreditarem que a pandemia de covid-19 está no fim. Entrevistamos uma especialista em patologias humanas, que analisa os impactos das medidas e de falas de representantes do poder público sobre esse cenário.
Desde o início de novembro deste ano, eventos de esporte, cultura e lazer, estão liberados para serem realizados com a capacidade máxima de lotação, sendo obrigatório o uso de máscara e apresentação do comprovante de vacinação para a entrada do público. O governo do estado de São Paulo também começou a cogitar a possibilidade da liberação do uso obrigatório de máscaras em locais abertos.
Mas de que forma esses anúncios por parte do poder público e a flexibilização de medidas preventivas para o combate a covid-19 impactam no cotidiano dos moradores das quebradas?
Conversamos com uma especialista em patologias humanas, que fez uma análise desse cenário nos territórios periféricos e também com um morador do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, que contou não ter seguido todas as medidas de prevenção à covid-19, e apenas utilizou máscaras em locais fechados por ser obrigatório.
“Infelizmente ainda não podemos flexibilizar o uso de máscaras”
Zezé Menezes é mestre em Patologia Humana pela FIOCRUZ e Universidade Federal da Bahia
Para Zezé Menezes, mestre em patologia humana pela FIOCRUZ/UFBA, ativista da rede Coalizão pela Vida, Marcha das Mulheres Negras de São Paulo e Coalizão Negra por Direitos, ainda não é o momento para levantar o debate sobre a não obrigatoriedade de máscara ou de outras medidas de combate à covid-19.
“Infelizmente ainda não podemos flexibilizar o uso de máscaras e nenhuma das medidas de prevenção ao contágio pelo vírus Sars-Cov-2, simplesmente porque ainda ocorre sua transmissão no Brasil e na maioria dos países. Os dados científicos mostram que, ao contrário, o período que se aproxima, com as festas de finais de ano, requer cuidado redobrado”, aponta a especialista.
Atitude negacionista
“Eu mesmo não usei nada e não segui nada [recomendações contra a covid], eu me incomodei de usar a máscara, mas usei quando necessário, mas muita gente não usou, e aí, por exemplo, você vai no mercado tem que usar, mas na rua mesmo as pessoas sempre ficaram sem máscara”, afirma o morador do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, que preferiu não se identificar.
O morador nos contou que nesse período de pandemia, não seguiu recomendações de órgãos de saúde, mas tomou as duas doses da vacina por grande influência da família. Ele afirma utilizar a máscara para entrar em estabelecimentos que exijam o uso da proteção.
“Eu hoje estou é pior que no começo, porque agora parece que não tem mais covid, ninguém usa mais máscara em quase lugar nenhum por aqui onde eu moro, e assim, eu acredito que possa evitar eu pegar o vírus, mas não 100%”, coloca.
O morador reforça que não é adepto do uso de máscaras e álcool em gel de força espontânea. “Eu não uso álcool, às vezes uso a máscara pra entrar nos lugares fechados mesmo”.
Publicidade governamental
Segundo a mestre em patologia humana, os governos tanto Federal, quanto os Estaduais e Municipais, têm passado para a população uma falsa ideia de segurança. “É perceptível o grande número de pessoas que abandonaram o uso de máscaras após serem vacinadas. Isto não é real, basta ver que ainda temos óbitos causados pela covid, ou seja, as medidas preconizadas pela OMS há quase dois anos seguem atuais”, coloca Zezé.
“A população, entretanto, é bombardeada por uma intensa propaganda governamental que dá um tom de normalidade na vida social e tem como consequência expor estas pessoas ao contágio pelo covid-19 e o risco de morte ou de desenvolverem sequelas”
afirma a especialista em patologia humana e ativista da rede Coalizão pela Vida.
O morador do Rio Pequeno que preferiu não se identificar, não faz uso frequente das medidas de prevenção, mas acredita que a liberação pode aumentar o número de casos, mesmo relatando já ver diariamente pessoas sem a proteção.
“Se liberarem eu acho que vai aumentar os casos da covid, porém ninguém mais usa, você vê na rua mesmo, os pontos de ônibus tão cheio de gente sem máscara, as pessoas só põe pra entrar, andando na rua sem máscara, só põe pra entrar nos lugares, então fica essa daí, né, eu não sei”, observa o morador.
A integrante da Coalizão pela Vida reforça a importância de se utilizar álcool em gel e máscara como medidas fundamentais e efetivas para prevenção da covid-19. “Existem muitas coisas que estão acontecendo, medir temperatura, e outras coisas, não são efetivas, não tem de fato um impacto na prevenção contra covid, mas álcool em gel e máscara sim. Além de outras, como distanciamento social, como a vacinação, elas são medidas essenciais”, pontua a especialista.
Cor e CEP como fatores históricos de desigualdades
Para Zezé, ainda faltam medidas pensadas para os territórios periféricos, voltadas a garantir segurança aos moradores. “E tem um lado difícil e perverso de tudo isso, que é dessa população não ter acesso ao álcool em gel, máscaras de qualidade, que é a pff2”, aponta ela.
Segundo nota técnica da Rede de Pesquisa Solidária, divulgada em 20 de setembro de 2021, data histórica que celebra o dia da Consciência Negra no Brasil, homens negros morrem mais por covid-19 do que homens brancos, e mulheres negras morrem mais por covid-19 do que todos os outros grupos (homens negros, mulheres e homens brancos), nos dois casos, isso ocorre independente da ocupação no mercado de trabalho. Para realizar o levantamento, utilizaram dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, de 2020.
A nota técnica divulgada no boletim da Rede de Pesquisa Solidária, se baseou nas mortes por covid-19 no Brasil no ano de 2020, e buscou identificar a ocupação das pessoas que morreram do novo coronavírus.
“Óbvio que o resultado dessa população absolutamente desassistida pelo estado brasileiro, é uma população que sofre, adoece e que morre por covid-19”
Zezé Menezes integra a Rede Coalização Pela Vida e a Coalizão Negra Por Direitos
“Essa pandemia tem uma característica muito difícil, muito perversa, que é exatamente ser uma pandemia que tem uma característica de que a população de maior vulnerabilidade, é a população que deveria receber a maior proteção, o maior cuidado pelo Estado, e é exatamente o oposto”, explica Zezé Menezes.
Ela aponta que para as periferias é praticamente impossível fazer o distanciamento social, pois muitas pessoas das periferias trabalham geralmente em serviços precarizados, no trabalho de atendimento, prestação de serviços, sendo um segmento que não consegue fazer home office.
“Uma parcela muito pequena da população negra ficou em home office. A imensa maioria ficou sujeita aos transportes públicos, não teve essa possibilidade, o acesso às medidas preventivas, que vai desde o saneamento básico, medidas essenciais, água, distanciamento social, home office, até equipamentos de proteção, uma EPI, máscaras de qualidade”, coloca a especialista.
“Óbvio que o resultado dessa população absolutamente desassistida pelo estado brasileiro, é uma população que sofre, adoece e que morre por covid-19, e que desenvolve as sequelas dessa doença tão perversa”, aponta Zezé.
Notícias falsas e desinformação influenciam decisões da população
Na avaliação da mestre em patologia humana, as fake news e tudo que vivenciamos ao longo nesses quase 2 anos de pandemia, teve um efeito perverso para a população das periferias. “Fez com que essa população acreditasse no caráter inofensivo do vírus, então é só uma gripe e que vacina não resolve, que é bobagem usar máscara, é para frouxo”, relembra ela sobre declarações do presidente Jair Bolsonaro.
“Tudo isso que foi propagado diretamente do Palácio do Planalto e que todo mundo já sabe, isso causou e tem causado a grande maioria das mortes por covid, essa é a questão perversa de tudo isso”, aponta.
Ela analisa que essas mentiras e fake news prosseguem, resultando inclusive em políticas dos governos. “Imagine que flexibilizar o uso de máscaras e outras medidas protetivas contra a covid é uma das piores aberrações, piores coisas que poderiam acontecer nesse momento que se quer zeramos o número de óbitos”, coloca Zezé, relembrando que no Brasil, quase dois anos após a chegada da pandemia, mais de 200 pessoas ainda morrem todos os dias por covid. “Ou seja, o vírus segue circulando e segue matando pessoas”, argumenta.
“Uma falsa sensação de que elas estão imunes a partir do momento que elas tomam a vacina”
Zezé Menezes tem um histórico de atuação como ativista junto a Marcha das Mulheres Negras
A especialista aponta que a vacinação por si não resolve a questão da pandemia, e que os governos estão colocando uma falsa sensação de segurança nas pessoas. “Uma falsa sensação de que elas estão imunes a partir do momento que elas tomam a vacina. Isso foi também um fator que causou muita preocupação nos pesquisadores, porque as pessoas de fato relaxaram no cuidado de prevenção a covid-19, a partir do momento que começaram a se vacinar”.
Zezé finaliza afirmando que estamos em um ciclo que dificilmente vai ser resolvido, principalmente por estarmos nos aproximando do final de ano e na sequência, o carnaval.
“São momentos de aglomeração, carnaval principalmente, por ser uma festa com milhares de pessoas nas ruas, e eu temo de fato da gente continuar por mais um ano com esse vírus circulando no Brasil”
analisa, afirmando que não estamos tomando os cuidados necessários e efetivos para que pare a circulação do vírus.
Especialistas de diversos setores da saúde apontam que os cuidados ainda precisam existir e se manter, mesmo com a vacinação da população. “Precisamos continuar com as medidas preventivas, mas, o principal é que o Estado ofereça políticas públicas para toda população, em especial para as de maior vulnerabilidade social, que são os povos originários e a população negra”, conclui Zezé Menezes.
*Esta reportagem foi produzida com o apoio do Fundo de Resposta Rápida para a América Latina e o Caribe organizado pela Internews, Chicas Poderosas, Consejo de Redacción e Fundamedios. O conteúdo dos artigos aqui publicados é de responsabilidade exclusiva dos autores e não reflete necessariamente a opinião das organizações.